Ascese Mística

Um dia senti o meu destino como um feixe de forças convergentes e ascendentes e o reencontrei na força e musicalidade arquitetônica da catedral gótica. As arcadas, sempre se restringindo mais para o vão da porta, exprimem as linhas de concentração do externo para o interior. E eu entrara jovem no templo austero da solidão do pensamento. Lá fora, era para mim estridor e sofrimento e já não podia tornar a gozar as fáceis alegrias do mundo exterior. E desde jovem me acostumei a respirar aquela atmosfera severa, saturada de conceitos profundos. Meus olhos aprenderam a ver na mística penumbra e se alentaram das luzes esplendentes do Alto, que convidavam a subir. O meu olhar embalou-se na música harmoniosa das arquiteturas, no sonho diáfano dos místicos vitrais, na doçura das imagens das coisas eternas e santas. Assim, a minha alma se desafeiçoou, lentamente, da terra e abriu-se toda à visão de Deus. E, como no templo gótico, foi também no meu destino, uma convergência de linhas de força, que me levou acima, acima, ao longo da nave central, até onde a estrutura do edifício abre seus braços em forma de cruz. Levou-me até à culminância sonora da sinfonia arquitetônica na qual explode o grito do Cristo moribundo, lá em cima, no centro do templo onde, sobre o altar-mor, aquele grito se repete no sacrifício da missa. Tenho vivido, naquele anelo de forças convergentes para o Alto, constrangido a um concatenamento compacto como uma fuga de Bach. Arrastei-me ao longo da nave central, deixando atras de mim um rasto de sangue. Mas, chegando ao grande altar do centro, minha alma recolheu o grito de Cristo agonizante, e estreitou-se, num abraço que não terá mais fim, àquela cabeça reclinada. Andava em torno de mim o hálito da pedra ascendente. Nas harmonias das últimas luzes, no vago palpitar dos espaços supremos do templo, no indefinido do último sonho, despedaçou-se a abóbada e em mim apareceu o pensamento de Deus. Meu corpo ficou lá em baixo, unido a cruz. Mas, minha alma fugiu para sempre na glória dos céus

 

Peregrinei por toda esta minha terra úmbrica e além de seus confins, corri no encalço de suas subterrâneas descendências, ressurgidas em terras limítrofes. Nestas me detive longamente, para me encontrar a mim mesmo. Nos seus silêncios austeros e sublimes, minha alma viveu sua mais intensa maturação. Os horizontes altíssimos de suas montanhas me deram a sensação de Deus.

Peregrinei por toda esta terra franciscana de Assis à  irmã Gubbio; do Subásio ao Alverne; da Porciúncula a Greccio. Andei apaixonadamente interrogando as antigas pedras, para que me contassem o segredo de sua história. Estreitei-as ao coração, banhei-as de lágrimas. E falei: Dizei-me, vós que o vistes, o São Francisco humilde e pobre, recordais? Não é possível que um hálito de seu imenso respiro não tenha ficado em vós também; não é possível que o seu abrasante amor não vos tenha percorrido com uma vibração tão poderosa, que até agora não permaneça e que deveis comunicar-me. Não ouvistes? E por que não falais?

Falai, imensos horizontes, narrai-me os êxtases, os trabalhos, as penas daquele coração. De torrão em torrão andei invocando a longínqua lembrança Pedi aos declives inundados de sol, as selvosas montanhas, às veredas, às humildes casinholas, às capelinhas perdidas, aos doces recantos do campo — sempre à espera de uma arcana revelação Interior que me dissessem: é aqui, foi aqui, não vês? Aqui está a pequena figura do Santo, queimando, consumida pela sua paixão; não ouves a sua voz harmoniosa e persuasiva que fala da perfeita alegria? Escuta :40

“Certa vez, vindo São Francisco, de Perusa para Santa Maria dos Anjos, em tempo de inverno, em companhia do Irmão Leão, um frio muito intenso o atormentava. Chamou, nesse momento, o Irmão Leão, que ia mais à frente, e assim lhe falou: Ó Irmão Leão, ainda que os Irmãos Menores dessem no mundo inteiro grande exemplo de santidade e boa edificação, não obstante, escreve e toma cuidadosa nota, que nisso não está a perfeita alegria. E caminhando um pouco mais, São Francisco o chamou pela segunda vez: Ó Irmão Leão, ainda que o Irmão Menor restitua a vista aos cegos, cure os paralíticos, expulse os demônios, faça os surdos ouvirem, os coxos caminharem e os mudos falarem e, o que é muito mais, ressuscitasse um morto de quatro dias: escreve que não está nisso a perfeita alegria. E andando um pouco mais, S. Francisco em voz alta, falou: Ó Irmão Leão, se o Irmão Menor soubesse todas as línguas, ciências e escrituras, e se soubesse profetizar, revelando não somente coisas futuras, mas até mesmo os segredos das consciências e dos homens, escreve que não está nisso a perfeita alegria. (....) E continuando a assim falar pelo espaço de duas milhas, o Irmão Leão, muitíssimo admirado lhe perguntou: Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria. E São Francisco lhe respondeu: Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e enregelados pelo frio, enlameados e atormentados pela fome e batermos à porta do convento e o porteiro chegar irado e disser: Quem sois vós? — e nós respondermos: Somos dois de vossos irmãos — e ele disser: Não falais a verdade Sois dois malandros que andais enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres Fora daqui! —  e não nos abrir a porta e deixar-nos de fora, exposto à neve e à chuva, com frio e com fome, até à  noite; então, se suportarmos pacientemente tantas injúrias, crueldades e rejeições, sem nos perturbarmos e sem murmurações contra ele, se com humildade e caridade pensarmos que aquele porteiro verdadeiramente nos conheça e que Deus o fez falar contra nós, o Irmão Leão, escreve que nisto está a perfeita alegria. E se nós continuarmos a bater à porta e se ele sair perturbado e nos expulsar, como vadios importunos, com insultos e bofetadas, dizendo: Ide embora daqui, ladrõezinhos miseráveis, ide para o albergue porque aqui não tereis comida nem abrigo; se isso suportarmos pacientemente, com satisfação e com amor, ó Irmão Leão, escreve que nisto está a perfeita alegria. E se nos, constrangidos pela fome, pelo frio e pela noite, bater-mos e chamarmos de novo, e pedirmos pelo amor de Deus, com muitas lágrimas, que nos abra a porta e nos deixe entrar; e se o porteiro mais escandalizado disser: — Esses são velhacos importunos, dar-lhes-ei o que merecem, — e sair com um nodoso bordão, agarrar-nos pelo capuz, atirar-nos ao chão, revolver-nos na neve, golpear-nos com aquele bordão, nó por nó: se nós suportarmos todas estas coisas com paciência e contentamento, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, e que tudo devemos suportar pelo Seu amor, ó Irmão Leão, escreve que nisto está a perfeita alegria. ( ....)”  

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Estava frio, no entanto fazia tanto calor no coração! Estava escuro e no entanto resplandecia tanta luz na alma! A tormenta era rigorosa lá fora, mas Deus cantava tão forte do interior!

Escuta, escuta! Não ouves a voz das profundezas? Sim. O Subásio é o mesmo e lá em baixo Assis descansa; em torno, a coroa das colinas úmbricas. São os mesmos, os declives cheios de bosques de Greccio, a vista na direção de Rieti e Fonte Colombo; os mesmos os reflexos escuros e profundos do lago de Piediluco e os perfis de seus grandes montes severos. Os mesmos, os vastos silêncios do Trasimeno imenso. Ouço um bater de remo, no lento caminhar de praia em praia e aí reencontro minha alma, que caminha sem nunca descansar. Vem da terra o eco daquele passo bendito de Francisco, que sigo sem alcançar. Interrogo as ressonâncias íntimas e ouço, admirado, um murmúrio humilde na mais secreta palpitação de meu coração.

Dizei-me, forças da vida, por que não guardastes um sinal do meteoro que por aqui passou, perdendo-se nas transparências do céu; dizei-me, criaturas irmãs que comigo atravessais a vida, nenhum longínquo eco retorna no timbre de vossas vibrações, se tanto ímpeto de paixão vos imprimiu o canto do Irmão Francisco? No entanto, na música da criação ouço ir e vir a harmonia evanescente daquele cântico de Deus que em vós se fundiu quando por aqui passou a alma do Santo. Vós, então, ecoastes, compreendestes e respondestes, cantastes em coro a grande sinfonia que ele entoava, a sinfonia do amor divino.

Dai-me de novo aquele canto, é o cântico de Deus. Criaturas irmãs, ajudai-me a subir, a vibrar, a sentir. Aquele canto arrebatará minha alma deste barulho infernal, para longe da terra, para sempre.

Então, num imenso e profundo silêncio, ecoa mansamente a música divina. Cada forma de existência emite uma nota. Oro  na minha prece ouço Deus como um canto imenso e sublime que emana de todas as criaturas. Cantam todas as expressões de Deus, a terra e o céu, a luz e a vida, a ordem e o pensamento. A minha alma se torna bem pequenina, mas emite harmonia e a cada nota, sintonizo gradualmente; a ressonância me invade, a vibração me eleva, o arrebatamento me conduz. Já não sou eu, mas uma harpa na qual ressoa o Universo. E uma prece na qual se cala. E a união com Deus.

Das profundidades do tempo e do espaço, ouço esta voz potente de Deus, que me leva a alma num turbilhão. Ouço a sinfonia dos vastíssimos horizontes, a luminosidade dos céus, as harmonias da vida, a voz do mundo, cantando: Cristo! Cristo! Cristo! Assim grita a História: Cristo esperado, Cristo presente, Cristo operante no coração da civilização. Cristo, repete-me a beleza da arte, a profundidade da sabedoria, a vitória da bondade, a grandeza do espírito. Esse canto se dilata e me penetra. Cada nota ecoou em mim e lentamente, das humildes às grandes vozes. Minha alma apertou e sorveu em si a estupenda vibração e, acompanhando esta harmonia, subiu com o canto. Cristo! — me repete todo o universo. Cristo sinto chegar, resplandecente, dos céus, tão vertiginosamente alto e belo como sonho que devia ter sido no ardor de Francisco na suprema consagração do Alverne.
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40 - De I Fioretti de San Francesco, cap. VII. (N. do A.) Em algumas edições, inclusive a italiana de Rizzolli, a narrativa se encontra no cap. VIII. (N. do T.)

 

Chegou o momento de dizer tudo sobre mim mesmo, até à última profundidade, de assumir a minha posição e a minha responsabilidade. Eu disse em páginas anteriores (Segunda Parte - Cap. III – Dor) como devia dizer toda a minha verdade, dar testemunho das minhas afirmações, com a palavra e com o exemplo, dar a certeza da idéia que possuo. E disse (Segunda Parte - Cap. I - Em Marcha) que a minha prudência seria vil se no momento decisivo me calasse ou não dissesse tudo. O meu último volume culminava, nas conclusões35 , na afirmativa de que A Grande Síntese é uma revelação conexa, em sua substância evangélica, ao desenvolvimento gradual, na Terra, do pensamento de Cristo, que é emanação contínua. Então, senti que também me movia sobre a linha da inspiração cristã e percebi com que imensa noúre estava em sintonia. Com isso, defini a significação daquela obra. Não nos limitemos à moldura, à veste editorial, à colocação humana. O conteúdo ultrapassa estes confins, resultantes apenas da necessidade do momento. Referi-me à gravidade da hora histórica, que justifica métodos excepcionais para a ressurreição de Cristo no mundo. Então, era cedo para dizer mais Era necessária minha nova maturação, que aparece neste volume, para continuar; era necessário este novo testemunho, para que o leitor pudesse compreender melhor. E mesmo agora destruo as pontes atrás de mim, para que não me seja aberto senão um caminho: o de avançar.

Quanto eu disse de Cristo e sobretudo quanto direi nos últimos e mais intensos quadros que se seguem e uma confissão feita em termos tão sentidos, tão gravemente cheios de empenho diante de Deus, que não se pode admitir a mentira. O equilíbrio deste estudo exclui qualquer enfermidade de consciência. Nem tais afirmações se fazem com escopos humanos, porque elas representam um gravame terrível para quem assume por elas, como eu o faço, plena responsabilidade. Este é o testemunho que eu devo dar hoje, por absoluta ordem interior, da verdade de A Grande Síntese. A íntima ligação de minha alma com Cristo, aqui exposta, confirma hoje e revalida as minhas graves afirmações de ontem, num caminho de tenaz e inflexível coerência. É o testemunho de seu conteúdo cristão, motivo central no renovamento da civilização. Disse-o inequivocamente; é preciso que compreendam também em alguns de meus silêncios terrivelmente eloqüentes. A minha meta e construir; nunca me verão aqui acusar, agredir, demolir. O meu escopo é o bem, é unificar e não semear dissensões, irritações e antagonismos, polemizando. O meu método tem de ser, necessariamente, o método de Cristo — o sacrifício, o perdão, o amor. As dificuldades e os dissabores são apenas para mim. A verdade vale por si, não por mim. A verdade é que tem valor, e não eu.

Mas, perguntar-me-ão que significa tudo isto, que e que eu desejo e aonde pretendo chegar. Não o sei precisamente, hoje. Certamente não se diz tudo quanto eu disse apenas para se lançar um livro. Sei apenas que atras de mim há uma força imensa, à qual obedeço e sigo, sem saber, eu mesmo, dos futuros desenvolvimentos. Eu semeio, mas não colho. Devo ser inteiramente desligado do fruto do meu trabalho. A minha recompensa está em outro lugar, está apenas em Cristo e em Sua aproximação. Não aprendo o meu caminho humano senão dia a dia. Assim tem sido até agora. Não se me atribuam, portanto, perfeições e méritos, pois não os tenho e se faço alguma coisa — não é minha. E perguntar-me-ão: trata-se de um movimento? Tranqüilizem-se todos. Não é um movimento no sentido humano. O homem é muito apegado as suas distinções, divisões e organizações humanas, porque incluem interesses. Eu lhes deixo todas estas coisas que tanto lhes agradam e que para mim nada valem. Nada se muda do que é externo, porque o exterior não conta. Dir-se-á: é utopia. Não. As verdadeiras forças estão no Céu, as forças que renovam a Terra. Nós vimos e sentimos seu maravilhoso funcionamento. Um homem não pode realizar certos movimentos mesmo através de seu heroísmo e de seu martírio; eles despontam na hora histórica, no sangue das povos, no equilíbrio da civilização. Estas forças que tudo operam, se o quiserem, lançarão o homem além de sua própria vontade onde ele não saberia chegar, como um expoente que parece elevado mas que, substancialmente, pode ser insignificante. É um fato que certos movimentos substanciais do espírito não descem sobre a Terra, mas estão fora de qualquer recinto, entre o mundo e o Céu e nunca se desenvolveram valorizando categorias humanas. Não se cuida, pois, de qualquer propriedade: tudo é dirigido tão-somente pela força do espírito. O homem pensa por demais em corrupções. Por isso, não quero nem casas, nem sedes, nem cargos, nem a larga pestilência das organizações humanas. Nada que possa atrair os baixos instintos ou estimular as sempre rápidas reações dos impulsos inferiores do homem comum. Nenhuma fetidez de dinheiro que tanto atrai os ávidos e sombrios aduladores.

Estes fogem, graças a Deus, em face de um prato onde não há senão fadiga, dor, paixão de espírito. Esta é a minha segurança.

Ai das crenças que não exalam somente o perfume da renúncia!

Esta é a minha força diante do mundo: a idéia pura e nua como desce do céu e atirada como semente ao vento, para que germine sob o impulso secreto das leis da vida. Só a imaterialidade é garantia de invulnerabilidade. A força da idéia que desenvolvi e sempre segui, não se desmente e confia só e sempre unicamente nela mesma. Atrás dela estão as forças do infinito, e elas me joeiraram tremendamente a princípio. Agora se desenvolvem, como verifico, com método e lógica.

O movimento é espiritual. A meta é um reino que não é da Terra: o Reino dos Céus. A forma é aristocrática: enfrenta a intelectualidade e a cultura, porque são a aberração do século. Não se tocam os estratos inferiores, mais densos e menos maduros para a compensação. Tudo desce, depois, automaticamente, por gravitação, na assimilação e também, ofuscando-se, na realização. Ficamos em uma atmosfera pura, pelo menos, no momento da gênese e da concepção. As forças substanciais não agem do exterior, mas vão diretas ao coração do homem; incrustam-se nas motivações e estas forças cósmicas estão aqui presentes, em ação. Aqui tudo é forte porque é imaterial; é indestrutível porque é imponderável. Quem está na matéria, se desejar destruir, encontra o vazio e não sabe o que agarrar. Quem está no espírito compreende e não pensa em destruir. Este é um germe tão espiritual que não toma forma humana; é a substância da fé, é um dinamismo puro que em toda parte cairá e em qualquer divisão humana poderá frutificar. É uma paixão de bondade que pode existir em cada casa, em cada instituição, em cada opinião; é um princípio de honestidade do qual cada autoridade não poderá senão se regozijar. É uma pureza e uma sinceridade em que cada alma se sentira renascer. É a luz de Deus que se dá a todos acima dos monopólios humanos: é pura destilação de força e bondade alcançada na fonte, antes que atinja a canalização e as impurezas humanas. Parece nada porque não desceu ainda à forma fixa e concreta. Flutua no ar como um perfume, como o orvalho ainda. não denso. Mas este é o estado mais dinâmico, o estado da gênese. É o espírito do Evangelho que volta na sua esplêndida fase primordial. Ele nada possuía, senão mártires.

Na sua origem, o fogo do espírito era líquido e jorrava em abundância, das grandes crateras abertas. Hoje o homem está imerso na matéria; um século de ciência volatilizou o evanescente perfume do céu. Hoje recolhemos as últimas fagulhas semi-extintas e conservamo-las religiosamente nas lâmpadas acesas, cansado e pálido reflexo do incêndio original. Mas, isto não basta para desfazer as trevas que se tornam cada vez mais densas e ameaçadoras. Não basta o monumento das verdades escritas, conservadas num invólucro imponente que se formou através dos séculos. O espírito é uma força viva que habita no coração do homem. É uma força, não uma palavra escrita, e como força, se difunde e se exaure; não pode ser fechada no imóvel; extremamente móvel, ele se nutre de vida, é uma radiação que desce do Alto, e um calor que se dissipa se não se recebe continuamente novo calor para comunhão da alma com o Céu. “Litera Occidit spiritus autem vivificat". (II, Cor. 3.6) 36. Muitas vezes nós trocamos o continente pelo conteúdo, tocamos o invólucro pensando tocar o fogo, mas em verdade ficamos frios. O hábito acostumou-nos á forma: ouvimos palavras incendiárias e permanecemos indiferentes. Que pesado fardo humano tem a Igreja de arrastar no seu caminho divino! Tanto esfregamos nossas almas impuras nas coisas santas que, em lugar de nos santificarmos, tornamos estas impuras. Abaixamos tudo ao nosso nível, a fim de podermos carregar tudo conosco, para nosso uso e consumo.

Mas a verdadeira fé é um incêndio que se situa com dificuldade no círculo das coisas humanas. É um perfume que não se pode fechar em frascos. É toda uma espontaneidade festiva e, se deve ser codificada em lei, é pela triste necessidade de ser adaptada à vida dos cegos. Esta fé é hoje necessária, necessária é esta erupção espontânea e direta das forças do Céu, necessária esta explosão de energias irrefreáveis como o raio e a tempestade. Pergunto que coisas poderia fazer um punhado de homens fortes, poderosos pela disciplina do espírito, armados desta psicologia heróica, dirigida à renovação da civilização — que coisas poderiam fazer diante da massa inerte, das maiorias jocosas e cegas que não procuram senão o prazer, sem paixão por ideais nem. vontade de martírio, sem saber nada dos grandes desígnios da vida. É necessário, como para as plantas em cada estação, em cada encerramento de um ciclo de civilização, uma brotadura nova e fresca, que atinja diretamente as fontes da vida, e um flamejar de sol que amadureça a messe. Outrora, em tempos de calma, de inércia espiritual, era possível ficar calado e viver de acomodamentos — mas não hoje, quando o inimigo está às portas. Estamos diante do dilema: ou ressurgir no espírito, ou morrer na matéria. A História prepara uma tremenda convulsão de dor. E a voz de Deus para os surdos, é a via da redenção É o batismo da tempestade que faz voltar a pureza; é paixão de alma que faz subir novamente. Não é destruição — é renovação.

Não temamos, Cristo se aproxima, não apenas como justiça, mas também como salvação. Nos séculos de tranqüilidade, também o céu fica tranqüilo. Mas nos momentos de tempestade, o céu se abre e entre os raios lança relâmpagos de luz. Quando os tempos estão maduros, uma ferida se abre na História e jorra sangue e linfa vitais, sem o que parece a humanidade não teria forças para continuar seu caminho. O inimigo está chegando ao centro da fortaleza. Cristo tem de recomeçar do princípio. Nos momentos supremos e decisivos, não resiste quem não for substancialmente forte e não estiver abastecido de espiritualidade, e não apenas de habilidades humanas. Mas o mal, se destrói, também purifica e nas mãos de Deus é guiado para os limites do bem.

O mal é cego e não o sabe — mas o bem, que o guia, sabe-o. As tempestades reedificam e são bem-vindas.

Deus escolhe os Seus meios em toda parte mas bem raramente entre as fileiras oficiais, entre os poderosos e os sábios. Os pobres seres que se fazem admitir neste movimento, arriscam-se, a cada instante, a ficar pulverizados. Eles terão de fornecer sozinhos, sem apoio, o testemunho supremo de sua verdade. E esta não poderá pairar senão mais tarde, sobre um consenso de almas, que não se pode formar senão lentamente, por maturação e por vias interiores e só por experiência completa e quando a vida encerrar-se, isto é, quando aquele consenso não puder mais levar a quem agiu, nenhuma ajuda e nenhum conforto.

Mas também o Alto é avaro de auxílios, não dá sinais nem provas. Estas seriam uma espécie de patente de autorização para o exercício pacífico da própria missão. Não. Ele deve ser exposto a todos os ventos, golpeado por todos os assaltos. A sua alma deve ser atirada nua na poeira das estradas, onde todos possam pisá-la. Nada de posições protegidas e seguras que adormentam e ensoberbecem —  mas humilhações, lutas, incerteza; não a alegria da colheita, mas a fadiga da sementeira.

Muito mais rude que o da Terra é o selo do Céu! Esta exceção, que é péssimo exemplo para a mediocridade ignorante, deve sofrer os mais severos controles, para que a estrada não seja escancarada pela rebelião e pelo erro. A lei é que, cada superação de normas não seja lícita senão quando se entra em normas humanamente mais rígidas, moralmente mais elevadas. Quem vive protegido pela autoridade, cedendo a esta o peso de sua responsabilidade, cairá por este caminho. Quem for escolhido, terá uma soma muito maior de deveres e apenas com a ajuda de Deus poderá resistir e vencer. Ele o sabe. Uma missão é um caminho que se restringe cada vez mais, às vezes até ao martírio. Ele o sabe e não foge. Ele deve dar testemunho. Se Deus não estiver próximo, tal caminho não se poderá percorrer. Só quem está ao lado de Deus concorda em arar semelhantes campos. Neste clima, nenhuma motivação humana resiste. O verdadeiro chamado se faz reconhecer pela ausência de qualquer motivo terreno, por um particular método de luta, por uma cor psíquica inconfundível. E só então ele corre e avança, quando os instintos humanos foram destroçados pela raiz e nenhuma outra coisa senão Deus pode estar nele. Tudo isto é uma peneiração cotidiana, é um controle contínuo de correspondência de capacidade, é um permanente exercício, é um equilíbrio de forças que levam a alma até aquele ponto de sua missão que ela é capaz de suportar, e não além, porque então ela seria abandonada e cairia.

Sinto, afinal, levantarem-se menores objeções as quais, ocupado com outros problemas, não tenho até agora considerado, mas que devo considerar Tudo isto, pode parecer, não é senão o eu humano que grita em mim, que se ensoberbece e se agita. Modéstia, modéstia O verdadeiro místico é sobretudo humilde e este é o livro do orgulho. Que é isto de subir à cátedra, podem dizer-me, e fazer vaidosas afirmações de altíssimos contatos de espírito, não provados pelos outros e que implicam numa gratuita posição de superioridade e autoridade decerto não aceitável pelos demais.

Pense-se, porém, no que é este livro. Ele é uma desesperada invocação a Deus, de uma alma que, vendo o que é o mundo, e o que o espera, oferece para salvá-lo, não tendo mais que dar —  a si próprio. (Ver capitulo XXVII PAIXÃO). Mesmo que seja ameaçado de destruição. A psicologia comum dos críticos move-se em outro plano; não seria possível contentar a todas as pessoas e divergentes exigências. Mas aqui eu sinto bem diferente: sinto a que imensa incompreensão vou de encontro e, no entanto, não posso deter-me. Isso assinala o início do meu mais intenso sacrifício. Falo forte e alto, perturbo os que chegam, desfaço os acomodamentos, semeio o incêndio nos ânimos. Sou violento no espírito porque devo abalar e salvar. Não me iludo: devo pagar pelas minhas afirmativas. Antes morrer que pensar não possa mantê-las. Não são coisas que se afoguem no silêncio ou possam desaparecer na indiferença. Chegará a hora do testemunho ainda mais evidente, não já de palavra, mas de ação e de dor. O meu caminho se estreita, e não posso retroceder. A depuração deve ser severa e exigente na proporção da massa de afirmativas feitas. Qualquer um na terra tem o direito de enfrentar quem assim fala e dizer-lhe: "Exijo provas". E eu devo estar pronto E bem sei que a sociedade moderna, que evita o sangue, sabe triturar um homem de forma sutil muito mais dolorosa.

E diante deste pressentimento foi que senti não poder renunciar ao dever de dar testemunho de minha verdade. Não cumprir esse dever seria para mim trair minha missão. Não posso. E aqui estou para sofrer as conseqüências. Não há alternativa. Espiritualmente, o mundo já está em chamas. Não é lícito, neste momento, cruzar os braços e ficar como espectador, porque a tempestade vem para todos. Qualquer absenteísmo espiritual é hoje culpa e vilania. O mundo deve decidir e escolher seus valores, um princípio deve vencer. Os neutros serão arrastados e se tornarão servos. E as palavras que eu digo não poderiam ficar apenas nos altos céus mas distantes da universalidade. Devem descer, também, à forma precisa de luta e de conquista que o momento histórico impõe, momento de ação tremenda e decisiva. As palavras que eu digo devem saber precisar, no seio da universalidade evangélica, o pensamento que temos hoje o dever de lançar ao mundo, e neste pensamento específico, feito de vida, devo oferecer minha contribuição. E se este livro puder parecer um imperdoável ato de orgulho e de audácia, é justo que eu pague. Aqui estou para isso. Para mim, existe um outro prélio no céu, onde a terra não chega e estou a postos. Que os sonolentos sejam abalados. O sono é hoje a pior das posições.

Compreendo que, para quem vive no plano normal, no qual o movimento histórico é menos sensível, a minha atitude possa parecer, desde logo, exaltação, perigosa audácia, pretensão absurda, estranha megalomania, efeito de desmedido orgulho. Mas, eu não posso viver, na hora premente de hoje, de acordo com as medidas e as prudências humanas, que são proporcionais a fins humanos. Confesso, sim, que sinto tudo isto como um grande dever, um encargo de grande responsabilidade. Não se veja em tudo isto, e especialmente na unificação de que falei, uma posição elevada e de vantagem conquistada para sempre. Veja-se, ao invés, uma posição de trabalho na qual me devo manter a custo de uma contínua tensão de espírito e. que posso perder apenas dela deixe de ser digno. A unificação não é um agigantamento do meu eu humano, coisa que tantos temem, mas é o eclipsar-se deste eu numa unidade maior. Não é auto-exaltação falar deste novo eu em que meu ser desaparece. Para mim é, ao contrário, um ato de suprema consagração. Examino-me e me confesso sem pretensão de infalibilidade. E isto é tudo o que sinto agora na minha consciência. Não tenho culpa se assim é, por sua natureza, para quantos o vivem, o fenômeno místico — se eu me encontro a vivê-lo agora e se isso está fora da experiência normal e além da compreensão.

Algumas coisas não se dizem — poderiam ainda objetar. Mas, eu tenho o dever de dar o exemplo, de devolver o que recebi, de dar aos outros a alegria conquistada, o dever de indicar o caminho e de testemunhar minha experiência. Tenho o dever, pesado e gravíssimo, mas necessário aos que dormem, de inquietar as consciências. Cumprido o dever, silêncio. O fenômeno, naturalmente, fica e vivíssimo, mas, acabada a necessidade de manifestá-lo para um fim benéfico aos outros, minha boca se fecha e tudo ficará fechado sob o selo do meu silêncio, simples fato pessoal presumível apenas por suas conseqüências. Mas, fazer-me compreender primeiro é hoje parte de meu dever. Era necessário explicar e esta sinceridade pode ser uma prova capaz de sacudir as almas. Não vejo outro meio de fazer isto. Que pode importar, ante a urgência da hora e a perfeição da meta, diante do bem de tantos, se para tudo isto um só se deva expor às críticas e ao sofrimento? À natureza humana normal repugna a idéia nua e abstrata. É necessário que essa idéia se materialize num ser que a vida aqui, lutando, sofrendo, testemunhando. O homem comum exige esta materialização para contra ela bater a cabeça — é preciso dar-lha. Eu, porém, tenho aqui a sensação humanamente penosa de uma pública confissão, a sensação da última espoliação da minha personalidade que assim não tem mais ângulos seus, nem segredos, nem refúgio, porque tudo deu, toda se expôs e toda, já agora, pertence aos outros.

Digo-o e repetirei para que também o leitor distraído perceba: por caridade, não se me atribua qualquer coisa de excepcional e de superior como homem. Nada seria mais falso e mais nocivo para o meu trabalho. Não se esqueça jamais o quão profundamente estou mergulhado nesta natureza humana, contra a qual tanto luto dia a dia. Faço uma declaração. Se não a quiserem compreender, a culpa não é minha. Não poderei, por isso, mudar o meu caminho. Faço de uma vez e para sempre esta bem clara distinção: não se me atribua nada de bom que eu possa fazer. Isso não é meu. Esta é a verdade. Atribuam-se-me, ao invés, todos os defeitos, as fraquezas, as culpas que possa ter o meu trabalho. Tudo isto, sim, é verdadeiramente meu.
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35 - As Noúres, cap. VI (Conclusões). (N. do A.)
36 - “A letra mata, mas o espírito vivifica”. Palavras do Apóstolo Paulo, em sua Carta aos Coríntios. (N. do T.)

Devo completar o estudo do fenômeno também em seu aspecto religioso. Falando assim tão intensamente de Cristo, era inevitável referir-me à Sua Igreja. Minha ascese levou-me ao mais cristão dos misticismos. Eu mesmo devia alcançar o plano místico para poder compreender e afirmar estas conclusões. Os últimos trechos deste volume, que chamo momentos psicológicos, descreverão as minhas últimas realizações espirituais. Gostaria de me calar, mas a Voz me disse: “Fale sempre mais claro e sempre mais forte”. Em certos caminhos não é possível parar. Tenho olhado a Igreja com o mesmo ânimo respeitoso e reverente com que tenho olhado Cristo. Serei o último a levantar a voz contra ela. Mas, meu coração estremece pela gravidade das provas, pela proximidade do momento. O dilema é tremendo: ou reencontrar a força no espírito, conservando-a nua diante de Cristo qual Ele a fez, e somente tal pacto supremo respeitar no mundo, em contato com o Céu, — ou continuar consolidando as posições terrenas, perdendo, então, a suprema e divina força e enfileirar-se, por coerência, no nível das forças humanas, limitadas e vulneráveis, quais o próprio homem.

Esta ao alcance da mão uma grandeza imensa, essencial, na nova civilização. Quem desejará valer-se dela?37 Trata-se não de salvar um organismo, mas de salvar o mundo que precisa de Cristo.38 Agita-se neste livro um conflito mundial trágico e iminente do qual dependerão os futuros milênios. Ai da Igreja visível da terra se dela se afastar a Igreja invisível de Deus! Há uma outra religião, mais profunda, dentro da religião, que supera todas as formas e sem a qual nenhuma religião é valida. É um sentimento universal que é a alma de todas as fés e que se faz sentir por sua verdade. Há uma religião de superfície, feita de práticas, formal, sancionada, forte, triunfante, organizada e em marcha como um exército. E há uma outra religião, sem clero, sem autoridade, pobre, sofredora, simples, forte apenas por uma fé imensa e vitoriosa no céu. Há um Cristo maior, que não esta só nas imagens e nos templos, mas em todo o lugar onde uma alma sofre e ascende. Ha santuários também no coração do homem e momentos nos quais a alma pode falar diretamente com Deus. É necessário reafirmar este imponderável sem o qual nenhuma religião é religião. E necessário reviver como nós tempos em que as coisas do espirito estavam presentes e não chegavam como um eco longínquo das profundezas dos séculos: eram forças ainda incandescentes e destemidas, não resfriadas e cristalizadas. É necessário retornar à força virgem do primeiro Evangelho e do primeiro franciscanismo. Só assim se poderá enfrentar com esperança o futuro.

Neste sentimento culmina a catarse mística de minha alma. A minha ascese não é, portanto, fenômeno circunscrito ou ato fechado no meu egoísmo, mas se expande e se dobra sobre o mundo. A minha paixão demonstra que a metanóia39  a que nos guia o Evangelho, o superamento e a reviravolta de valores que ele nos impõe, toda a sua revolução de espírito, não são utopia, como muitos acreditam, inexeqüível só porque não foi e não é sempre realizada segundo as praxes religiosas e sociais. Quem isto afirma é cego para o imponderável. A luz e o bem que eu recebo do Alto, tenho de devolver e vivo para isso. Por caridade, não se me entendam mal, dando qualquer valor à minha pessoa, que não tem nenhum, julgando capaz da mínima perfeição moral este pobre verme que eu sou. E isto também é verdade e devo testemunhá-la. Eu não sou senão um vil e frágil instrumento colhido numa engrenagem gigantesca. O meu estribilho é este e eu o repito cada noite, ao fim do cansaço do dia: "Senhor, eu sou o teu servo. Nada peço senão isto".

Gradualmente chegamos bem longe das proporções estritamente científicas em que este estudo começou.

Durante o trajeto apareceram na minha consciência momentos culminantes, de mais evidente sensação, de mais intensa emoção. Isolei-os e aqui os exponho sucessivamente porque no desenvolvimento deste trabalho teriam desfeito o desenvolvimento lógico da argumentação. São visões diferentes, mas exprimem sempre o mesmo caminho da minha ascensão. São, talvez, o exemplo de uma arte nova, baseada numa psicologia científico-espiritual nova.

Aqui termino o meu trabalho. Os quadros se desenvolveram sem comentários, num crescendo insistente no qual quem não crê e não sente, mas só observa e raciocina, poderá ver o desenvolvimento do fenômeno como foi colocado no princípio, em seu aspecto científico. Estes quadros, depois de terem atravessado diversos níveis espirituais e planos de consciência, e os mais contrastantes momentos do meu subconsciente e do meu superconsciente, depois de se terem desenvolvido em diversas perspectivas da realidade interior do imponderável, explodiram numa visão suprema: "Paixão", o último grito em que minha voz se apaga. Esse quadro é realidade vivida. Quem quiser me acoimar de louco, releia a parte científica, onde a esta minha interrupção dei sólidas bases.

Tal é o meu ponto de chegada, hoje. Amanhã, não sei. A verdade é que minha vida       caminha. Quem me seguiu até agora o sabe. Mas, os desenvolvimentos mais altos estão hoje acima do que posso conceber. Cristo é uma beleza tão completa, uma grandeza tão vasta, um conceito tão conclusivo, uma perfeição tão absoluta - que não é possível supera-la e imaginar além. É a saciedade do desejo, o último término da mente e do coração. A Sua figura não tem sombras para serem esbatidas; é um infinito e a ele nada se pode juntar, nem se pode superar. Mas justamente porque é um infinito, não tem pausas nem fim, e nunca se acaba de percorrê-lo. A vida, que não se encerra nunca, será para mim uma eterna imersão naquela profundidade sem limites.
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37 - O leitor considere com seriedade e imparcialidade as palavras seríssimas que se seguem no texto. A oferta foi feita sinceramente também à Igreja de Roma, para que a mesma se renovasse para o seu próprio bem. A resposta veio com a condenação do livro. Este foi escrito em 1938. O autor continuou oferecendo a sua obra de bem aos diversos grupos humanos, para a salvação do mundo. No fim, foi o Brasil. que a compreendeu e a aceitou, pondo-se assim na vanguarda. Infelizmente tudo se está preparando na História para que estas páginas proféticas se realizem. Mas, quando foram escritas, ninguém quis acreditar e foram rejeitadas. (N. do A.)
38 - Esclarecendo ainda mais e ampliando estes conceitos. o mesmo Autor escreveu Profecias e Problemas Atuais, publicados por esta Editora. (N. do T.)
39 -   Metanóia - palavra de origem grega (metánoia) significando conversão, não apenas no sentido de arrependimento de erros e pecados, mas ainda, e bem significantemente, de "mudança de espírito", "mudança de mente". vejam-se Mt., 4:17; 21:30; II, Cor., 7:8 etc. Neste verdadeiro sentido evangélico o Autor usou a palavra metanóia no texto original: ".... la metanoia a cui ci guida il vangelo, il superamento e rovesciamento di valori che esso ci impone, tutta la sua rivoluzione di spirito..." (N. do T.).

 

Assim inicia Cristo a ascese mística, a elevação das almas à  unificação com Deus. Ele se faz o grande inspirador, o invisível impulsionador da vida espiritual; a evolução humana se ergue atrás d'Ele, para segui-Lo. Sem Ele, a vida não podia ter alcançado o plano místico — com Ele, prepara-se para alcançá-lo. A história do homem continua a ser escrito no grande livro da vida e inicia uma nova página: a página do amor. Uma nova síntese floresce do trabalho dos milênios, uma nova clarinada, emergindo da profundidade dos tempos, chama à colheita, no curso das civilizações instáveis e inquietas, a vida deslocada de seu eixo e muda o centro das atrações humanas. Os egoísmos se abrem, as consciências se dilatam, o irmanamento começa, a voz de Cristo ressoa de coração em coração num canto único que se funde e se eleva, respondendo à  glória dos céus. O mundo inicia uma poderosa marcha para a realização do Reino de Deus, que não é dádiva gratuita à inércia humana, mas laboriosa conquista feita sob a inspiração de Cristo; a ascensão não é o cômodo desfrutar de méritos divinos, mas fusao humana em Sua paixão.

Caminha, caminha. Inicia-se o grande movimento. Cristo vai à  frente, diante de todos, com o exemplo de Sua dor e de Seu amor, da cruz e da paixão uma luz que avança deixando atrás de si um rasto de esplendor. Por esta estrada luminosa o mundo caminha e segue. Cristo é um Sol esplendente que atrai a si as chamazinhas das almas humanas. D'Ele se desprende uma radiação de amor sob a qual revivem, se levantam, se acendem novas centelhas. É como o começo de um incêndio. E as pequenas chamas engrossam, sobem, sobem, até tocar o céu e unificam-se no esplendor do grande Sol central onde, reabsorvidas, se perdem.

Caminha, caminha. Cristo vai com Sua cruz, sempre diante de todos. Ele não tem propriedades, nem riquezas, nem poder humano. Ele é uma força nua, suspensa entre os horrores da terra e os esplendores do céu. Ele não está na História, mas é superior à História; não está encerrado no tempo, mas é senhor do tempo. Na sua realidade, ele é imaterializável e justamente por isto está vivo e presente. A sua realidade é interior, está nas palpitações e no tormento do nosso espírito. Justamente por isto, Ele está aqui conosco, entre nós, sensível para qualquer um que o saiba sentir. Ele esta vivo e presente e o mundo (porque Ele não é feito de matéria) não O reconhece.

Ele é uma vibração. Sua casa esta em nós — uma ressonância de pensamentos e de ações. Ele vai humildemente peregrinando de porta em porta, pedindo hospitalidade; vai batendo de coração em coração, implorando amor. E o mundo lhe diz: "Quem és tu? Segue, não te conheço".

Caminha, caminha. Ouço chegar, sobre a onda do tempo, ecoando de século em século, esta nova voz de Deus, que traz a boa nova da bondade e do amor: pressentida, profetizada em Israel; alcançada, predicada, vivida no Messias e depois seguida e em atuação na Igreja. Ouço-a chegar, concentra-se como uma força na vinda de Cristo, fazer-se senhora dos equilíbrios do mundo e abrir-se depois em espirais em constante expansão projetando-se sobre a humanidade para iluminar-lhe a alma. O ritmo é contínuo, ligado a um chamado que vai de século em século, se propaga de geração em geração. Repete-se num ecoar de apelos e respostas, de palpitações e de ímpetos, de coração a coração; ouve-se, gradativamente, entre a terra e o céu, uma música imensa. De início, são vozes isoladas, invocações amarguradas e dispersas em paciente espera. Mas, as almas ouvem, atentas, esta nova palavra de amor. Uma força nova invadiu o mundo e se propaga. A ferocidade humana se adoça num estremecimento de ternura. Sob o beijo de Cristo, também a natureza muda a linguagem, até o Cântico das Criaturas, de São Francisco. A alma humana abre-se como uma corola e desabrocha ao cântico de Deus. Este canto ecoa e se dilata em mil ressonâncias, repercute e se multiplica até a última criatura, humilde e desprezada — propaga-se e inunda a terra. E a música das pequenas coisas aqui de baixo desenvolve-se e se repete nas ressonâncias grandiosas do céu, que se abriu para ouvir; sobe a paixão da alma e o amor do homem se unifica no amor de Deus. Esse canto atrai e arrebata. Lentamente, da terra, a humanidade se ergue como uma maré que cresce e sobe em um único cântico de almas apaixonadas, que se funde e se perde na música do céu.

Caminha, caminha. Cristo adiante e atrás o mundo. Como é longa a estrada do Reino de Deus Quantos tropeçam e caem ao longo do caminho Quanto esforço de alma, para unir a terra ao céu! De início é apenas um pequeno grupo; poucos se põem corajosamente em marcha. É pesado o fardo da carne e muitos não podem movê-lo. Mas flameja com tamanho ardor a alma daqueles poucos, é tão ativa a irradiação do céu, ressoa tão harmoniosamente a boa nova, que até a matéria pouco a pouco se abala.

Aqueles poucos são canais abertos, vias de comunicação. A luz assim espanca as trevas, e um calafrio estranho penetra e anima a inerte densidade da terra. Cristo vai adiante e atrai todos após Si: está sempre em marcha, à  frente, no caminho da ascensão. Ele tomou nas mãos o estandarte da evolução e disse: "Sigam-me. Eu sou o futuro". Poucos seres apenas, incompreendidos como o Mestre, seguem-no, sangrando e insultados. Mas Sua voz é tão doce e incomum que muitos, fascinados, se esforçam por ouvi-Lo e caminham juntos para compreender aquela estranha paz que o mundo não possui. Algumas palavras são ouvidas, algumas vibrações alcançadas ressoam na alma através da surda carapaça da carne. E o pequeno grupo de Cristo atrai e avoluma-se pouco a pouco, à medida que caminha. Algumas palavras ecoam e se repetem; novos ouvidos se põem a escutar; novas almas cansadas acorrem, implorantes. Juntam-se uns, e depois outros e a palavra multiplica a palavra, o exemplo multiplica o exemplo, a redenção multiplica a redenção, a ascensão multiplica as ascensões. A onda avoluma-se, o grupo se faz multidão, multidão imensa, incontável, até os confins do mundo. As estradas da vida se abrem. O carreiro estreito e espinhoso dilata-se e se eleva; vejo-o desaparecer no céu, como rasto luminoso de um bólido.

Eu sigo em último lugar, depois de todos. A cada passo, minha alma cai e tenta reerguer-se, peca e espera redimir-se, sofre, expia e sonha elevar-se; e tropeço, paro e recuo. Mas estas quedas me remergulham na humanidade, na vida de todos, me humilham e me irmanam aos humildes É preciso que eu esteja ainda aqui em baixo, na minha imperfeição e no meu trabalho. Se caio, minha vista se ofusca, mas não posso viver na minha cegueira e sou constrangido a subir. Não posso viver sem a sensação de Cristo. Amor e dor, dor e amor Caminha, caminha, minha alma cansada. Mas ilm dia, sobre o áspero caminho de meus esforços, senti um passo junto ao meu, senti outro ombro aproximar-se do meu, levantar a minha cruz e transportá-la para mim. Desde então, não fiquei mais sozinho. Outro coração se debruçou sobre o meu, a dor tornou-se amor e mais ninguém poderá arrancar-me à indissolúvel aliança. No entanto, eu caí novamente e então desanimei por minha fraqueza e tive medo, por minha indignidade. Então, a Voz me disse: "Não temas. Meu amor é mais forte que tua debilidade. Apoia a cabeça sobre meu peito e descansa".

ascese mística  figura 4

Então, tornei a apanhar o Evangelho, para reler e recordar. Aquela Sua palavra doce e potente empurra-me como um forte vento que me leva longe, até Seu mundo, que não é este mundo. Releio lentamente aquela música vasta como o infinito e minha alma desce, de trecho a trecho, aos significados mais profundos da Sua palavra. Aquela música me acalma esta profundidade me sacia. Somente ali, encontro os espaços ilimitados que minha alma deseja. Aquela palavra doce é uma espada de fogo que me penetra a alma e a atravessa como o olhar de Deus; e a vibração mais harmônica que eu possa conceber no universo. Aquela palavra ressoa no meu coração como a harpa de um anjo e dissolve a dor. O meu espírito não tem ecos bastante profundos para exprimir a múltipla, imensa riqueza daquela vibração. Sinto-a alcançar-me, maravilhosa e me aterrorizo ao ouvi-la extinguir-se em minha sordidez. A vibração puríssima daquela onda em mim se distorce e deforma, recebe ressonâncias desarmônicas, e eu choro por mim e por minha opacidade terrível que tudo ofusca e deturpa

Mas, com que direito ouso eu falar de Cristo? Como não compreendo o absurdo de tal intimidade, não ouço a rebelião do universo que diz: “Para trás, imundo! Não sentes o cheiro de tua baixeza?” Então, fujo, horrorizado de mim e torno a olhar de longe, do fundo da minha miséria, aquela beleza à qual já não ouso avizinhar-me. Não sei como a minha pena não se despedaça na violência desta minha sensação, no contraste da consciência de mim mesmo e a irresistível atração. Este tormento de forças me abate, me eleva, me anula e, no entanto, se faz próxima; me estraçalha e, no entanto, me acaricia. Não sei como o meu coração não se arrebenta na exuberância da alegria, no ímpeto da paixão, quando aquela música ainda me arrebata, me levanta, me conduz ao alto, a perder-me nos céus. Como sofro ao ver os cegos que afanosamente procuram o Cristo na História e doutamente discutem e tentam a reconstituição de sua figura entre as cinzas do tempo, enquanto que Ele está próximo e sensível. Ele ressurgiu, está vivo, caminha adiante de nós. Reabramos os olhos que O esqueceram e rever-Lo-emos.

Não! Nós não o vemos. Em vinte séculos de História, aquele perfume sutil esvaiu-se. Nossas mentes e nossos corações, à  força de se friccionarem sobre esses conceitos, sujaram-se. Nossa ação contínua recobriu-os de escórias. O espírito foge da terra e quanto mais se fazem colossais as formas, menos aptas são para contê-lo. O grande edifício é um gigante que permanecerá mudo e vazio, prestes a desmoronar, se não vier a escorá-lo a única força verdadeira que o pode fazer: o espírito. Abandonemos os inúteis protelamentos humanos, a sagacidade da terra e do tempo! Se o espírito se vaporiza, fica um corpo sem alma; um cadáver em putrefação. Além das formas existe uma religião substancial, única que poderá resistir aos momentos terríveis. Existe uma substância íntima e vivificadora, a força única que tudo sustenta — um imponderável sem o qual desmoronam os mais suntuosos templos. Tudo é inútil peso morto, tudo é perigosa dispersão, se não houver um meio de acender e manter, nas almas, que são os verdadeiros templos o espírito do Evangelho.. Não são as posições humanas e a sua consolidação que sustentam o edifício divino. A segurança, suprimindo a luta, suavizando à  subida do Calvário, adormenta a capacidade de conquista. Cristo é uma força ativa e presente antes de tudo nas almas. Não pode ser destruído não pode ser oculto. Se o organismo que a exprime não mais a contém, ela renascerá noutro lugar. Quando esta flamejante e evanescente alma das formas se escapa, mesmo que para os olhos humanos esteja bem firmes, tudo está intimamente corrompido. Se a presença de Cristo não sustém, se o Divino tem de se afastar, então abre-se o abismo; e Cristo, humilde e simples, coloca-se em outra dimensão e continua em outro lugar o seu trabalho.

Então, quem és Tu, Cristo? Perguntei-o à minha dor, que tudo me ensinou, inclusive a reencontrar Deus, e ela me respondeu: "Ele é o fraco a quem deves ajuda, o inimigo ao qual deves perdão, o pobre a quem te deves tu próprio Ele é paixão e renúncia, amor e ascensão. Ele é amplexo e elevação de alma — e anda pela Terra, dia a dia, procurando, implorando hospitalidade nos corações, porque o Dono do Mundo não tem casa nem teto e anda, qual peregrino, esmolando amor".