É este Cristo imaterial, interior, vivente e presente que eu sinto, respiro, vivo, que penetra e se identifica comigo. Se a sensação de Deus se alcança essencialmente através da mente, a sensação de Cristo se toca essencialmente através do coração. A síntese de concepção se transforma e completa em uma síntese de sentimento. O aspecto cósmico do Deus-princípio se multiplica e se dá no seu segundo aspecto de Deus-amor, o Cristo místico. Tenho, portanto, que abandonar a linguagem da razão por uma outra muito mais difícil — a linguagem do amor. Só os que amadureceram poderão compreender-me.

E este Cristo a forma em que a Divindade se humaniza para se aproximar de mim. O acesso se faz pelo caminho do amor. E este o incendiado aerólito gigantesco que ia descrevi. E Cristo chega e eu O recebo, não através da razão, da autoridade ou da História, mas Ele desce diretamente na minha sensação, inviolável realidade interior onde a vontade humana não atua. Esta é uma conquista minha, como pode ser de todos, que o mundo exterior não pode desfazer  é uma realidade que ele não pode expulsar de minha alma.

Não se pode compreender Cristo, aproximando-se d'Ele com ânimo de historiador, de exegeta, de crítico erudito e sábio. Isto pertence ao exterior e fica de fora. É preciso aproximar-se com ânimo amoroso, porque só a quem ama são concedidas certas compressões íntimas e profundas: porque o amor é o caminho único da compreensão. É ele a força tremenda que levou a Divindade à humanização. Realmente, o Evangelho, mais que o livro da sabedoria, quer ser o livro do amor.

Assim me aparece a figura interior de Cristo. Caem os véus do mistério e a Paixão aparece em sua essência. Sob a vida histórica e humana de Cristo surge uma vida mais profunda e real, a qual, e só ela, contém significados interiores e substanciais. Somente revivendo-a assim em profundidade sente-se, a cada passo, o divino irromper, irresistível e cegante através do véu da forma. Tenho agora a sensação do apocalíptico desenvolvimento de forças cósmicas que aquela vida contém, entretecido numa sinfonia grandiosa, na qual ecoa e se completa o desenvolvimento espiritual da humanidade. Somente neste sentido poderei talvez escrever, se tiver forças e se for digno — uma vida de Cristo, primeiramente lida por minha alma na profundeza do coração por força do amor.

Cristo me aparece assim como um trovão que ouço, saindo da noite dos tempos e ecoando de século em século, como uma força progredindo em passo gigantesco através da História do mundo. Cristo é o fulcro do dinamismo das ascensões humanas, é a voz imensa do espírito que tudo arrasta em sua força, é o traçado do cansativo caminho da vida, é a fecundação divina do humano para o divinizar. Através do amor me aparece o vulto divino de Cristo. Sua forma histórica é um átimo, um lampejo, fechado no tempo. Sua realidade é eterna e contém o gesto de Deus que volta as páginas da criação e da evolução do universo. A força deste gesto esta dentro da História; sustém-na, guia-a, eleva-a. O mundo despenca e aquela força toma-o e levanta-o; os destinos dos povos periclitam e aquela força salva-os.

Cristo é o Verbo humanizado que se funde às longas vicissitudes humanas. E o Verbo que o tempo que morre diz ao tempo que nasce, que o ritmo universal transmite e repete, a concepção onde nascem e morrem os milênios, despontam e somem povos e civilizações.

Esta força divina que com tanto ímpeto explodia na Gênese mosaica desce de suas alturas e vem de encontro ao homem. O gesto criador de Deus se adoça em Cristo num amplexo de amor. O mistério da redenção é mistério de amor. A força infinita e trovejante do Deus dos Exércitos assume manifestação mais profunda, se adoça em modulação mais íntima e consegue o milagre inaudito de saber restringir-se na suavidade de um humilde abraço. Em Cristo, Deus deseja descer de Seu trono de glória, alto e longínquo, grande e terrível, e se aproxima para penetrar profundamente no coração do homem. Neste ato sublime esconde e encobre sua força, para se tornar igual ao humilde e ao pobre. Deus se exprime, já não em força, mas em beleza e sentimento. Transmuda o terrificante lampejar do fulgor no doce canto que cinge e arrasta; o gesto armado da justiça no gesto brando que perdoa. Sinto esta mudança interior da divina Trindade para um outro aspecto: este seu remodelamento em expressão mais completa e complexa, para ocorrer às necessidades do tempo, para se unificar com a alma humana, para alcançar nela sua mais viva expressão.

Sinto Cristo como uma força irradiante, tal como luz do Sol, saturando de si a nossa atmosfera espiritual, para que cada alma a atinja, como cada planta ao Sol, segundo a sua capacidade de receber. É uma luz que desce, generosa e imparcial, mesmo no lodo, e não se mancha; conduz pureza sempre renovada. E uma potência indestrutível apesar dos assaltos do tempo, a caducidade das formas, os obstáculos do mal. Vejo-a presente em cada momento, em cada ser, em cada povo, em cada civilização: a sua história é a História do mundo; vejo-a mudar e avançar com o homem, seguindo-o passo a passo, alma de sua alma; sinto-a adoçar-se à medida que as escórias do invólucro caem e a natureza humana, mais sensível, tem menor necessidade de empurrões violentos. Até que Cristo se torna na alma unida, num canto que tem a magia de anular a dor e realizar a redenção. Torna-se um cântico imenso e estupendo ecoando por todo o universo. Ouço-o agora como uma voz que vai de forma em forma e se repete de criatura em criatura. Que nos humildes canta a mesma música dos grandes; que não tem mais limite nem medida; é a sinfonia da unidade do universo. É a voz das almas grandes, é a voz das almas simples; é a voz do espírito abatido que na dor expia e se eleva; é o trovejar das convulsões sociais que submergem e criam as civilizações; é o grito de triunfo dos mártires, é o tímido sorriso da florzinha humilde e inconsciente; é o primeiro vagido de uma vida e de um destino — é o reclinar-se esgotado na morte, alvorada de ressurreição.

Cristo! Tu és a bondade que acaricia, o amor que inflama, a luz que guia. Es também a prova que me cabe, para meu bem, a dor que me liberta, a morte que me restitui a vida. Tudo Tu és, ó Deus! Seja por meio da alegria, do amor, da dor — é sempre a Tua mão que me guia para a única meta, que és Tu. Que animes ou castigues, que acaricies ou punas, sempre atrais tudo a Ti, como suprema razão de vida. Agora cheguei à suprema violência, que supera os raios do Sinai, a violência do amor. Ela me busca o coração, para arrancá-lo e ficar em seu lugar. Então, a alma chegou ao porto, atingiu a meta. Na fuga dos tempos, Cristo venceu.

Antes da vinda de Cristo, Deus era uma lei justa e severa que o homem adorava de longe; era o comando que exigia obediência, incutindo temor. Exprimia-se como força que não pede compreensão, que não se unifica no amor, que permanece distinta no coração do homem. Com Cristo, a manifestação divina chega a uma nova dimensão, aproxima-se mais um grau da vida e da sensação do homem, inicia um lento processo de atração e de absorção, culminando na unificação. É um tipo de ação completamente novo, que deseja arrancar o espírito da natureza humana, deseja levar a evolução além da órbita animal. Deus era lei fechada ao contato do homem. Agora, se abre e se projeta, se dá e se comunica, atrai e unifica. Com a chegada de Cristo, o divino escancara as portas e se despeja em jorro pela terra, os diques ruem e a inundação começa. Será contínua. Os opostos, terra e céu, se atraem, são campos de forças contrárias que têm necessidade de se equilibrar, compensando-se e fundindo-se. A maré da dor humana saía de baixo, prostrada e invocante, alta e terrível, devorando distâncias, destruindo obstáculos interpostos sobre a rota. A dor eleva o destino dos povos e os torna mais dignos. O amor divino sentiu este levantamento do desejo, este intumescer de aspirações e o vórtice celeste se projetou, ansioso pelo contato; as duas espirais tocaram-se e Cristo apareceu como um raio a vibrar entre o céu e a terra; o divino desceu no homem, para que o humano fosse arrebatado ao divino

Assim Cristo se enxerta, como força cósmica, no centro da evolução humana, influi decisivamente sobre o desenvolvimento do fenômeno espiritual — e se inicia uma fase de ascensão que se dirige ao divino. Um mundo novo, feito de sentimentos e de aspirações, antes ignorados, começa a revelar-se, saindo da profundidade da alma. É manifestação divina à qual Cristo dera o impulso inicial. A Sua vinda representa, no campo das forças da vida, mudança substancial, deslocamento fundamental de equilíbrio cujo centro gravitara, agora, da matéria ao espírito. A trajetória da evolução, engolfada na mais desastrosa descida, teve um sobressalto e retomou sua marcha ascensional. A vinda de Cristo é o impulso do céu que desce para realizar a nova obra da ascensão do homem no sentido de todos os superamentos de sua animalidade. E Cristo, que tem nas mãos a força da renovação, se coloca no momento central da evolução do homem, entre o extremo limite da descida (materialismo helênico-romano) e o pressentimento da ascensão, para desintrincar as leis de uma vida superada e reconstruí-la na forma de vida nova, mais digna e mais alta. Cristo é o primeiro momento, o sinal sensível, do nascimento desta força que jamais deixará de agir para o futuro, presente no infinito das coisas, no profundo das almas, na forma da vida, nas obras do homem. E a ação será constante, a presença tenaz, a ascensão lenta e contínua, a elevação será progressiva até à realização do Reino dos Céus. A verdade se fará estrada sempre mais evidente nos espíritos; cada vez mais, o amor divino aquecerá os corações. Através de uma luta longa e estafante, a nave da Igreja de Cristo atravessará o grande oceano da vida dos povos; os mártires sacrificar-se-ão pela idéia e o primeiro movimento se elaborara e atuará, completando-se no pormenor, cada vez mais exatamente, o grande projeto de Cristo; lançar-se-ão, laboriosamente, as bases colossais de uma nova civilização, que transformará o mundo desde os seus alicerces. Cristo foi uma semente. Mas que mundos uma semente contém! Uma semente é, como a palavra de Cristo, uma concentração poderosa de forças, capaz de realizá-las lentamente, germinando e crescendo.

Cristo não destruiu: continuou e fecundou. Arrancou o homem de um plano de vida para transportá-lo a outro, mais alto. A Sua revolução esta sempre presente. No fundo, não é senão a maturação lenta e fatal das leis da vida, sendo, por isso, parte integrante do plano orgânico do funcionamento e desenvolvimento do universo. O contraste entre as forças do bem e as forças do mal, o choque entre o espírito e a matéria — são lutas compreendidas num mais vasto equilíbrio, são momentâneo cansaço da evolução, desordem contida e utilmente enquadrada numa ordem maior. Era necessária uma intervenção enérgica de força excepcional, para desviar e renovar tão decisivamente o curso da História. Para arrancar a prisão da carne o prisioneiro da matéria, aquela luz tinha de possuir a potência do raio. No entanto, naquela força o equilíbrio não se perturba, a fusão é lenta, a obra se completa em ordem. E é esta a sua maior expressão: a força contida na doçura. A carícia de Cristo traz em si o gesto do criador dos mundos. O mesmo tremendo Deus de Moisés sabe evolucionar Sua manifestação e proporcionar Sua expressão no relativo. Era chegada a hora de abrir as portas da verdade e Cristo a arranca do mistério dos templos para a luz do Sol: toma pela mão o homem guiado pela revelação e o conduz mais adiante. Rasga-se o véu do templo. E hoje continua acompanhando o homem, que pesquisa através da ciência, porque a própria ciência não pode deixar de revelar, cada vez mais evidentemente, a Sua verdade. Esta presente na intuição do gênio, no heroísmo do santo, na revelação, que é contínua. Pois Ele está acima de todas as ascensões humanas.