Eis a que sensações e a que planos de consciência nos leva a ascese mística. Neste plano alcancei — e só nele se pode alcançar — o conhecimento imediato de Cristo. Sei que tremenda coisa estou dizendo e só agora posso dizê-la — depois de amadurecer através das experiências que descrevi. Até agora, estive calado. Mas o meu trabalho todo se moveu para convergir, fatalmente, para as culminâncias onde aponta a síntese suprema do meu pensamento e da minha vida. A figura em que a concepção abstrata e sublime do êxtase se humaniza, tornando-se ainda mais acessível como presença e assim se avizinha da consciência normal — é Cristo. Sua voz tomou forma e se delineou naquele vulto que contemplo com amor e tremor; definiu-se num Ser que me tornou pela mão e me disse: "Caminhaste e estás cansado, mas não podes parar. Deves ainda avançar e vencer outras lutas e cansaços. Segue-me. Não podes mais parar. Coragem. Estou ao teu lado" Na doçura da carícia, no ímpeto da tempestade, no terror da solidão, ouvi ainda: “Segue-me, segue-me”. E essa ordem se gravou em mim. Naquele momento me tornei criança, fechou-se a vista da terra e reabriu-se a visão do céu e o êxtase me retomou em seus tentáculos e me levou para longe.

E a Sua face que me aparece e me atrai no centro do incêndio, o aerólito gigantesco que se avizinha de mim, flamejando. Era uma voz e se tornou uma figura sensível e próxima, completa na sublimação de todos os atributos do concebível. A debilidade de representação humana, ao desejo da matéria, de concretizar, foram concedidas imagens, mas não são Imagens de Cristo. Certas figuras adocicadas, de uma suavidade mole, exterior, rósea e ovalada — são um véu, não uma expressão, são distância e sofrimento para quem as contempla.

O verdadeiro Cristo é uma realidade e uma sensação imensa que repele imagens. É um infinito que se conquista por sucessivas aproximações. A medida que o espírito sobe, aos vários planos de consciência correspondem vários planos de conhecimento de Cristo, os quais são uma revelação progressiva de sua essência divina. No piano sensorial a consciência não supera a representação concreta do Cristo histórico, do conceito encarnado em forma humana. No plano racional, a consciência crítica procura o divino naquela figura, sem conseguir encontrá-lo. No plano intuitivo a consciência encontra, por inspiração na revelação, o Cristo cósmico e compreende que coincide com a Divindade. No plano místico a consciência sente pelo amor o Cristo místico, e da concepção de Deus passa a unificação com Deus.

Assim a consciência alcança e toca, progressivamente, um Cristo sempre mais interior, penetrando na Sua profundidade; um Cristo sempre mais real e imaterial, dele se avizinhando primeiro com os sentidos, depois com a mente e depois com o coração, um Cristo sempre maior, mais potente, mais bondoso, mais unitário, mais transparente na Sua realidade — isto é: sempre mais, para o homem, perfeito modelo de Deus. Nesta progressão de imaterialidade e de interiorização, o espírito avizinha-se de Sua divina realidade, sente mais evidente Sua verdade. Vivi nestas diversas profundidades do real, nos diversos planos de consciência; senti, da vastidão conceptual da revelação mosaica, que se detinha no Deus-criador, somente potência, emergir o Cristo-místico, o Deus-amor que, do mundo cósmico conceitual da mente floresce no íntimo mundo místico do sentimento e do coração. O Cristo que eu sinto e amo é um Cristo imaterial, interior, cuja manifestação terrena representou a mais perfeita expressão de Deus. Ele é um ritmo no qual me harmonizo e em cuja sintonia me dissolvo, uma vibração da qual quero me fazer eu próprio, e que de mim quer se fazer ela própria. Será um Cristo demasiado alto para as necessidades comuns da concepção normal, mas somente Este é o Cristo real; só nesta interioridade e imaterialidade é concebível n'Ele a Divindade, a presença, a unificação.

Os escritores contam as vicissitudes do Cristo histórico; a arte tenta exprimir-Lhe o vulto concreto; o próprio ritual comemora-O baseando-se nos fatos de uma vida vivida aqui em baixo. Os olhos humanos fecham-se às manifestações sensoriais e só através desta, trabalhosamente, pode alcançar a realidade imaterial. Assim a vida de Cristo demora de preferencia no sentido humano, no drama sangrento da cruz, mais que no sentido divino — o triunfo luminoso da ressurreição. Mas aquele é o momento inferior, mais denso e pesado, no qual o espírito se põe em contato com a matéria. É o lado menos divino, menos belo — se em Cristo pode haver menos belo: o momento no qual a luminosidade tem a força de imergir-se, sem se apagar, nas trevas. Este é o Cristo histórico, gênio, reformador, mártir  o homem visto por todos. É o fato tangível e inegável, em que o super-sensível se materializou — o fato alcançado mesmo pelos escritores materialistas e difamadores, impotentes para o vôo e que não souberam caminhar além. Neste aspecto de Cristo o infinito fechou-se no ritmo curto da vida de um homem, para que até os cegos o pudessem tocar. E esta é talvez, para quem sente o verdadeiro Cristo — a maior maravilha do amor divino

O Cristo histórico, realmente, morreu, e parece ter acabado. Mas, existe um Cristo mais profundo e ele continua vivo. É deste que falo. Ele esta vivo na minha sensação e na minha paixão. Presente em nós, fora do espaço e do tempo, eternamente. Só a carne morre, só a matéria se desfaz, o espírito não. O Cristo real não abandonou jamais a Terra. Não poderia ser prejudicado por aquela pequena vicissitude humana da vida e da morte. Cristo simplesmente mostrou-se, há vinte séculos: mas estava vivo na revelação que o preanunciava. Esta vivo, ainda que possa não parecer, ainda que talvez os homens não o desejassem, esta vivo na Igreja que Lhe professa o ensinamento. E isto, por razões e meios super-humanos. Cristo é — além do passado e do futuro. Não surge e não desaparece, não nasce e não morre. Este Cristo vem, não do exterior, em forma humana; a sua chegada se dá no interior, no espírito. É fato espiritual, é luz de compreensão e de amor. Sua realidade não pode ser procurada nos fenômenos físicos. O preanunciado Reino dos céus está, antes de mais nada, no coração do homem — e este é o campo que tem de ser arado; esta é a criação que deve ser feita. Só um Cristo assim, sentido com ritmo interior, pode ser um vínculo de almas, um princípio de fusão e de unificação no qual todos os filhos de Deus poderão reviver em divina unidade. Cristo, com a Sua paixão, lançou a ponte do amor através dos egoísmos humanos, entre si e eles. Abriu e moveu o vórtice do altruísmo. Deu o primeiro impulso à expansão. Tornou possível a unificação.

O Cristo real é completo na Sua trindade de Cristo histórico, Cristo cósmico e Cristo místico. Esta trindade projeta a sua imagem nas três fases evolutivas ou planos de existência do nosso universo: matéria, energia, espírito. Tem a sua correspondência no microcosmo humano, organismo feito de corpo, mente e coração; de sentidos, de concepções e de sentimentos. O Cristo histórico é a forma, a manifestação no plano físico; o princípio retoma a matéria e a carne para elevá-las a si, através do amor. O mistério da redenção se baseia neste recuo dos vários planos para o plano inferior, por um princípio de equilíbrio e de coesão que o impõe, para que a evolução não se afaste e avance compacta. O Cristo cósmico é conceito-lei, é o princípio de organização que rege e regula o mundo. O Cristo místico é amor   princípio de harmonização, de coesão e de unificação. Assim a Trindade se completa envolvendo-se em si mesma: é ao princípio de coesão do amor que o princípio-lei confia a redenção da carne. E a Trindade é una, presente nos seus três modos de ser. "Eu sou. o Caminho, a Verdade, a Vida", disse Ele. O Caminho, isto é, norma de vida prática sobre a Terra, para chegar a Deus; a Verdade, isto é, a síntese do conhecimento, o pensamento de Deus; a Vida, isto é, a força do amor, a unidade das almas em Deus. E na fase que aqui estudo, da ascese mística, que a alma alcança o mais fecundo aspecto da Divindade — o amor. Sem o Cristo, que foi, acima de tudo, manifestação de amor, como poderia o homem acercar-se de Deus? A vinda de Cristo a Terra foi, portanto, a descida do espírito até a carne para um ato que é o terceiro momento, no qual os dois primeiros se completam: amor. “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus.... O Verbo se fez carne e habitou entre nós", (S. João).” 32
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32 - NOTA: - O autor, aqui, não enfrenta explicitamente, por não ser este o lugar próprio, a questão de saber se o Cristo, que nunca chamou a si mesmo de Deus, mas sempre Filho em face do Pai, se identifica com o Deus do Universo, motor supremo do criado e último termo de tudo o que existe. Confrontando estas páginas com os capítulos sobre Deus e Universo no volume — Problemas do Futuro, parece que, enquanto nesse o autor fala do Deus universal, único centro do todo, abstração suprema insuscetível de definição e além de toda representação, não só em forma sensória, mas também no concebível humano, neste volume o autor queira falar do Cristo somente como perfeita manifestação ou expressão daquele Deus, numa forma relativa a vida terrestre e ao concebível humano.
De todo modo, não e no presente volume, em que o autor exprime as suas mais violentas sensações, que o feriram profundamente na sua entrada no mundo místico, que ele se podia ocupar de precisar aquilo que, somente depois, em outros estados d’alma, pôde fazer nos volumes sucessivos e em outros estados de espírito, especialmente no volume: Deus e Universo (cfr. XIV - "A Essência do Cristo"). (N. do A.)
V.. nota de rodapé n9 1, no cap. XVII da I Parte deste volume. (N. do T.)