Assim aparece Deus na alma. A existência de Deus desponta nela e se fixa como um fato sensível. Aquela idéia central, síntese do universo, é tocada pela consciência, apenas esta alcança o campo místico. Esta é a substância da minha experiência e aqui a descrevo. No plano racional, a razão procura Deus; mas, na análise, não O encontra (ciência). No plano intuitivo (exemplo, A Grande Síntese), Deus aparece na mente, mas somente como conceito e permanece como uma visão exterior, distinta do eu. No plano místico (exemplo: Ascese Mítica), Deus aparece na consciência como sensação total interior, una com o eu e a síntese da verdade se transforma em amor (união com Deus). Neste plano a revelação se torna arrebatamento. Método para conhecimento, também, mas inusitado e mais profundo. A ciência adota o método da observação. Para superá-la, adotei o método da intuição e o descrevi. Este é o método da unificação. Mas, é uma posição tão fora do comum, tão afastada da normal atitude da consciência humana, que neste plano não é compreensível, não atua, nem se pode comunicar. Vêem-se ressurgir aqui, ante a idéia de Deus, vivos na minha experiência, os níveis de consciência expostos no diagrama da ascensão espiritual. E compreende-se que tremenda realização sensorial é para o espírito o alcançar o plano da unificação. Eis como se pode dizer: Deus está em mim, vibrando na minha sensação.

Descrevamo-la ainda, deixem-me dizer assim, esta tão extraordinária forma de consciência. Expando-me na vastidão das minhas sensações. As vias sensoriais se multiplicam ao infinito, à  medida que a alma evolui. Quando tudo na ascensão se desmaterializa, a vibração alcança o centro consciente, não apenas pelo canal dos sentidos — única via normalmente aberta — mas por todos os lados, excita ressonâncias de mil formas e cada ressonância é sensação. Como no plano intuitivo foram abertas as portas da compreensão, no plano místico se abrem as portas da sensação. Forma-se uma percepção anímica direta.

Estamos além do espaço e do tempo, no infinito. Medidas humanas não nos servem. O todo é um ponto; a eternidade, um instante. Identificam-se. Tudo é onipresente e contemporâneo. E compreendemos então que espaço e tempo são barreiras existentes apenas para as nossas dimensões do relativo — não passam de aparência: outro modo de existir, para o qual Deus é centro e periferia, conceito e manifestação, absoluto e relativo, princípio e forma. Sem olhos, eu vejo o firmamento interior do universo, onde tudo fala sem haver palavras. A substância vai e vem, da idéia à expressão e da expressão à idéia. Movimento imenso, que é mais uma vibração, tão imóvel está. Cada vida é uma pulsação desta vibração. Não, não me engano. Estou tremendamente presente na minha sensação. Respiro seu ritmo na minha própria vida. Nesta profundidade de consciência, a vida é una. O universo é um grande organismo do qual eu, como todos, sou uma pequena engrenagem, útil, inconfundível, necessária, eternamente em função.

A verdade está em mim. Nela estou imerso e ela me nutre. Percebo-a por identificação. O mistério é a barreira de trevas que o invólucro da matéria impõe. Superada a matéria, o mistério desaparece. A limitação esta na ilusão do nosso relativo, não na realidade. O todo esta saturado de verdade, grita-a em alta voz e a alma foi feita para ouvir. Basta romper a crosta e emergir da própria surdez.

O todo esta saturado de amor; ele é a vibração e une o particular, que parece disperso em pó impalpável, atrai-o, torna-o compacto e devolve-o à unidade. Sinto que em sua diversa multiplicidade, o universo é uno. Ecoa em mim o ruído das forças que tudo coligam, socorrem e guiam. Cada ponto se encontra no todo e o todo se reencontra em cada ponto. Tudo é individualizado, mas comunicante, tudo é distinto, mas indivisível, tudo obedece a uma lei inflexível, mas elástica, de infinitas adaptações e compensações e se elabora na imobilidade de seu íntimo movimento. Assim estou fundido no todo e o todo fundido em mim. Sou, agora, onipresente no espaço, coexistente no tempo, como o é qualquer consciência neste plano. Assim a minha vida esta na vida de todas as criaturas e a minha percepção, a minha consciência está em todo o universo. Eis a sensação da nova dimensão e isto é o superamento e o aniquilamento de todas as medidas precedentes. Onde existir um ser, já estou eu, sentindo, vivendo. Eis a verdadeira sensação interior de Deus. A minha concepção e sensação funde-se na concepção e na sensação em que o Universo concebe e sente, ele próprio. Nenhuma objeção teológica ou científica poderá destruir esta minha forma de consciência universal. A voz de Deus é mais forte que a voz dos homens.

O infinito não é o imenso, o incomensurável, como se costuma pensar. Não é grande nem pequeno. É simples, espontâneo, calmo; não é uma extensão cansativa, uma fantástica multiplicação de medidas. É uma atmosfera natural e tranqüila, na qual caíram os limites, foi superada a negação. Não é um múltiplo do finito, mas uma coisa diferente. A anulação como consciência humana me faz emergir à superfície de um oceano luminoso e tranqüilo, livre e sem tempestades. Espaço e tempo são trevas, cisões, prisão, barreira, negação. O infinito é estado de repouso situado além dos limites que a mente humana, em seu relativo, procura eternamente superar, sem o conseguir jamais. Ali o espírito chegou; ultrapassou seu superamento e seus trabalhos.

É nesta zona de grande calma que o espírito ouve a música profunda que está nos fenômenos. O ritmo estético e lógico de seu desenvolvimento, a harmonia dos equilíbrios e das finalidades. E isto tudo não é mais aquela pequena compreensão da mente, mas avizinha-se à alma, dentro dela ressurge, com ela se funde num canto único e imenso. Este canto prende-a, vence-a, arrasta-a e nela irrompe e se unifica numa exultação potente e estupenda. Dir-se-ia que a alma explode projetando-se no universo e que o universo se condensa para fechar-se nela. Nesta dimensão superespacial, universo e espírito têm a mesma extensão. É tão bela e doce a harmonia da criação que o sintonizar-se com ela, o unificar-se em sua ressonância, constitui uma ventura que em seu grau mais intenso é o êxtase em que se alcança a sensação de Deus. A prece não é senão a harmonização inicial. Harmonizar-se, em toda parte, na majestade do canto gregoriano, no simbolismo litúrgico, nas correntes que emanam das catedrais trecentistas; harmonizar-se ainda com maior presteza diante do divino espetáculo do criado; harmonizar-se na estética suprema de um ato de bondade e de amor fraternal em Cristo — este é o caminho que conduz à sensação de Deus. Cristo apareceu e não podia deixar de aparecer a São Francisco, no Alverne, senão como o último ponto desta suprema harmonização.

As fibras humanas se partem na tensão destes paroxismos. Eu ouvi a harmonia do criado, fundi-me nela e alcancei a sensação de Deus. O meu coração pulsou com o coração de todas as criaturas irmãs e nestas palpitações percorreu-me o amor de Deus. Todas as vozes falaram em mim e eu respondi a todas as vozes.

Guiou-me ao centro, de esfera em esfera, um cântico de amor. Deslizando ao longo da sinfonia dos fenômenos e da teoria dos seres, o meu espirito subiu a Deus. Mas a última tensão do êxtase é imensa. O espírito não resiste por muito tempo e precipita-se de dimensão em dimensão, para se reencontrar, como consciência normal, no corpo exânime. Ouço então, como um eco, o cântico continuar de esfera em esfera, ascendente e dulcíssima harmonia que se esvai, se dilui nas trevas terrestres. De novo a mentira dos sentidos e revivo apenas para tornar a ouvir as palpitações de meu coração extenuado. Não conservo em mim senão uma recordação e uma saudade; senão uma ânsia amargurada daquele meu longínquo paraíso, que aqui em baixo parece loucura. Que parece nunca mais poder retornar.