O Sistema

“Estou convencido de que a interpretação leal das últimas conquistas da ciência e do pensamento conduz legitimamente não a um evolucionismo materialista, mas a um Evolucionismo espiritualista. O mundo que conhecemos não se desenvolve ao acaso, mas é estruturalmente dominado por um Centro Pessoal de convergência universal”.

                                                         Pierre Teilhard de Chardin

Coloquemos agora, a visão diante da biologia, veremos que também ela nos oferece provas da teoria da queda. Partamos da verificação do fato positivo de que a vida, chegada a certo grau de evolução, sentiu a necessidade da cerebralização do sistema nervoso. Em dado momento de sua ascensão, a vida achou útil e necessário construir para si um órgão específico do pensamento, demonstrando dessa forma ter percebido a importância da presença de um centro específico inteligente, capaz de dirigir o seu funcionamento. Com isto a vida enveredou por um caminho novo, para o psiquismo, o primeiro grau da espiritualização. Esta afirmação está demonstrada pelo fato positivo (cujo móvel e as íntimas razões só assim podem ser compreendidas) de que, na evolução, o sistema nervoso sofreu um verdadeiro processo de cefalização, e isto por etapas sucessivas, partindo dos primeiros rudimentos nervosos até ao desenvolvimento dos hemisférios cerebrais. Foi com esses meios que se pôde manifestar e funcionar, de forma concreta específica no plano biológico, a inteligência, para afinal revelar-se como primeira potência da vida, potência que permitiu ao homem vencer todos os outros animais.

Trata-se não de uma transformação em bloco, não de uma progressão casual, mas de um complicar-se sistemático, ocorrido seletivamente, segundo algumas linhas determinadas, que revelam a presença de um princípio preexistente, dirigido para um telefinalismo preciso, representado justamente pelo espírito. A cerebralização no seio da evolução representa, verdadeiramente, o que se poderia chamar o traço biológico de todo o processo de espiritualização constituindo a meta final dessa evolução. Podemos considerar isso demonstrado pelo fato de a evolução, no plano humano, tender a desenvolver as funções psíquicas, o que significa espiritualizar a vida. Assim, pois, dentro do telefinalismo da vida, avançar para a espiritualização é um fato fundamental, porque representa uma força maior, uma conquista adequada a assegurar maiores poderes defensivos. De modo que, já agora, a este nível, a inteligência representa para a vida a qualidade e a função mais importante, porque melhor garante o futuro.

De fato, a cerebralização fez aparecer o tipo homem, permitindo-lhe vencer todos os demais seres na Terra. Com ela, de agora em diante, o pensamento se tornará a função biológica mais importante, porque o saber pensar e compreender representará a atividade biológica mais útil.

Esse fato, demonstrando-nos estar a evolução orientada para a espiritualização, revela-nos ser este o terreno das futuras conquistas do homem. Eis então a biologia a nos oferecer uma nova confirmação de nossa teoria, que sustenta o regresso de tudo a Deus, ou seja, ao estado de puro pensamento. Não se pode negar estar, com o homem, a evolução caminhando nessa direção. Com efeito, o que é a civilização? Vista em seu significado biológico, ou seja, compreendida como certo grau de desenvolvimento da vida, a civilização em última análise é apenas uma especialização zoológica atingida pela evolução no plano humano, sob a direção de uma atividade biológica nova e especial: o psiquismo. Esta qualidade aparece apenas nesta fase de amadurecimento evolutivo, ao passo que antes era imperceptível, quase invisível no processo ascensional da vida. Estava apenas latente, embrionária e de fato não aparecia como valor importante. Eis que, com o homem, o psiquismo assume um poder preponderante na evolução, um poder tão decisivo que tornou o homem consciente do fenômeno da evolução, ao ponto não só de compreendê-lo, como de assumir a sua direção. Aqui assistimos a uma emersão decisiva do psiquismo no consciente, psiquismo que até agora dirigira a fisiologia e a morfologia, mas escondido no inconsciente, fora do domínio direto do homem, só agora aparecendo em plena evidência.

No animal, o psiquismo – nele ainda inconsciente – para enfrentar o ambiente, produz, plasmando a matéria celular do organismo físico, alguns órgãos determinados, que funcionam como instrumentos. Eles permanecem ligados ao corpo, só dispondo de determinada quantidade de espaço útil. Não é fácil modificar e renovar esses instrumentos, que representam órgãos especializados, e além disso não podem ser multiplicados além das possibilidades do organismo físico. Uma vez tenha um órgão se desenvolvido para executar determinada função, terminado o longuíssimo processo de formação pelos caminhos de adaptação e da evolução biológica, ele permanece tal qual foi construído, e não é fácil mudá-lo, mesmo que não corresponda mais às necessidades e utilidades do indivíduo. Este permanece preso aos meios por ele mesmo criado, não podendo libertar-se deles, nem facilmente construir outros melhores. Com essa sua técnica na formação dos órgãos, o animal permanece um ser especializado, sendo difícil sair de sua especialização.

No homem, a coisa se passa diversamente, porque ocorreu um fato novo: apareceu o psiquismo que pode conscientemente dirigir a construção de novos instrumentos ou órgãos externos e independentes do corpo, para serviço próprio. Esse novo meio permitiu ao homem superar os limites evolutivos que dificultam a transformação do animal, fechado em sua especialização. Chegados a certo ponto da evolução, a sabedoria que a guia para o telefinalismo preestabelecido, ao invés de trabalhar escondida no subconsciente do animal, aparece visível em novo órgão ou instrumento, o sistema nervoso que se cerebraliza em funções psíquicas. Entra assim a vida em novo caminho, iniciando novo método para realizar-se: abandona o sistema da construção e elaboração de órgãos especializados, muito lento e limitado, rompe os diques e cria um organismo não especializado, mas adquiriu o poder de construir fora de si quantos órgãos especializados ou instrumentos lhe possam ser necessários e úteis para os objetivos de sua vida.

Então, esse trabalho de construção passa do subconsciente ao consciente, ou do consciente cósmico, que dirige a evolução para seus fins, ao consciente do ser humano, dessa forma chamado a colaborar, tornando-se ele mesmo operário e instrumento na realização dos planos da criação. Nasce, assim, no homem um órgão não mais limitado às funções determinadas para as quais foi construído, mas um órgão capaz de construir para si todos os órgãos ou instrumentos que lhe possam servir para a vida; mais ainda: habilitados a construir para si instrumentos capazes de construir esses novos órgãos. Entramos no mundo da técnica e das máquinas. Essa capacidade de construir para si meios separados do próprio corpo é que distingue o homem do animal.

Não há quem não veja as extraordinárias possibilidades de desenvolvimento contidas no atual método. Com as mãos, órgão não-especializado, o homem construiu para si as primeiras máquinas. Depois construiu outras máquinas para construir outras máquinas e assim por diante, aperfeiçoando cada vez mais a sua técnica. Dessa forma está até construindo órgãos artificiais para aperfeiçoar os que ele já possui em seu próprio corpo, ou para supri-los quando defeituosos ou faltantes. Não se exclui a possibilidade de que um dia o homem se apodere a tal ponto dos segredos da técnica da vida, que consiga construir artificialmente um organismo físico ou, se lhe convier mais, os meios para poder realizar a sua vida de entidade espiritual no plano físico, em formas diferentes das utilizadas pela vida até aqui, com essa finalidade. Não podemos imaginar que ilimitadas realizações possa atingir a biologia do futuro, transportada ao plano psíquico e espiritual. Outrora, no plano animal, os aperfeiçoamentos eram obtidos mediante lentíssimas transformações de adaptação dos velhos órgãos a novas condições de vida e exigências do ambiente. Agora, no homem, as mudanças para satisfazer às novas necessidades podem realizar-se rapidamente, por meio dessa nova técnica do psiquismo que dirige a formação de novos órgãos ou instrumentos. Isto porque o órgão principal das construções biológicas não é mais um recôndito e instintivo impulso celular, mas é a inteligência do homem que se tornou consciente da construção biológica a qual deve realizar: um órgão mais ágil, mais sensível, senhor do fenômeno. Com a ciência e a técnica, o homem construiu e possui o instrumento que lhe permite construir outros instrumentos, trabalho que, embora de forma muito diversa, constitui a evolução; no íntimo dela, esse trabalho representa uma criação biológica, embora seja uma biologia não mais do mundo animal. Eis a nova biologia do psiquismo, eis os primeiros passos da vida para a espiritualização. Este não é um fenômeno destacado da biologia, mas é uma sua continuação. O espírito não é inimigo, oposto à matéria: é a continuação da matéria. Eis aí uma ordem de conceitos que se enquadra perfeitamente em nossa visão. Quando vemos o homem só aprender a construir para si os órgãos de que necessita, mas também a construir órgãos com os quais pode construir esses novos órgãos – e isto pelo fato de haver começado a caminhar pela estrada do psiquismo – então podemos dizer que a biologia confirma o conceito fundamental da visão, ou seja, a vida está evoluindo para a espiritualização.

Assim, o homem pode também progredir por outros caminhos, que não são apenas os da evolução orgânica, sem ficar na dependência da lentíssima plasmabilidade da matéria celular. Com o novo elemento introduzido no campo da vida, ou seja, a inteligência, o homem conseguiu freqüentemente superar até mesmo os modelos que aquela vida atingira e lhe apresentava. Com a colaboração, a especialização e a organização, o homem conseguiu dar, na estrutura social, um rendimento ainda maior. Eis a que resultados maravilhosos pode levar a evolução a qual começara com os esforços inconscientes das primeiras plantas trepadeiras, que buscavam a luz, ou dos peixes para formar um organismo que respirasse e vivesse fora da água, ou da vida para criar os sentidos, a vista, o ouvido etc., a fim de perceber o mundo exterior.

Provam-nos estes fatos que a evolução se move em direção a objetivos exatos, justamente os da espiritualidade, objetivos que, por sua natureza, demonstram corresponder a um telefinalismo preestabelecido. Prova-o também o fato de o progresso da evolução não ser um movimento que aconteça ao acaso, mas um desenvolvimento lógico, numa direção constante. Então, pode-se compreender melhor de que modo esteja preestabelecido o objetivo, quando se admitir tratar-se da reconstrução dum organismo preexistente, que foi destruído, e agora se procura apenas reconstruir da mesma forma como já existiu. Ei-nos pois na teoria da queda e no conceito de involução e evolução. Temos, desse modo, de admitir, ao lado do telefinalismo que estabelece a meta, a presença de um impulso interior que a conhece por antecedência e se esforça por atingi-la. Doutra forma não se explicaria como pudesse realizar-se a tendência para esse telefinalismo. Tudo isso se harmoniza perfeitamente com a nossa visão.

             

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Novas confirmações, porém, apresenta-nos um pormenor do fenômeno da evolução. Discute quem nasceu primeiro, o órgão ou a função. Em princípio não existia nem um nem outro. Na primeira origem existia apenas um impulso interior para subir, em forma de desejo instintivo, no qual se revela a lei do regresso às origens. Aquele telefinalismo de que falamos é uma força ativa de atração. Surge assim o desejo, exprimindo esse impulso interior, individualiza-o no caso particular, na forma a ser atingida naquele dado momento e posição da vida. A matéria orgânica é forma regida por esse impulso interior, por isso lhe obedece, deixando-se plasmar por ele. Então o desejo começa a plasmar uma primeira tentativa, ou esboço do órgão, com os materiais que toma do ambiente, material passivo, que obedece por lei da vida, àquele impulso animador. Com esses materiais, aquele desejo se reveste de uma primeira forma rudimentar, que constitui a sua primeira expressão. Nasce, desse modo, um primeiro esboço provisório, à espera de reforçar a tentativa, consolidando o tipo, se ele corresponde às condições do ambiente e às exigências da vida. Ele é a expressão do íntimo pensamento que a dirige; é o resultado de uma luta do pensamento criador contra a matéria inerte, para plasmá-la a seu modo. A luta é feita por ensaios, resistências, adaptações, tentativas. Esta é a forma pela qual se realiza a criação no plano material, por obra do espírito. O pensamento, desde a primeira criação feita por Deus, demonstrou sempre possuir poder criador.

Depois de formado, do primeiro esboço é feito um primeiro funcionamento experimental. Com isto, comprova-se o ambiente, adapta-se, fixa os resultados adequados, aperfeiçoa-se. Esse aperfeiçoamento do esboço leva a um aperfeiçoamento maior no funcionamento, permitindo também que o órgão se desenvolva e aperfeiçoe cada vez mais. Dessa forma, o órgão e o funcionamento, escorando-se mutuamente, guiados e sustentados pelo impulso interior da vida em direção ao telefinalismo, vão construindo e aperfeiçoando-se, até nascer o órgão novo e completo. Desse modo, a manifestação do impulso interior da vida consegue achar aos poucos a sua expressão. O processo se desenvolve, por isso, por tentativas, por experiências contínuas, por adaptações ao ambiente, agindo e reagindo às reações do mesmo; é no entanto, todo constituído de vida que de igual forma tenta, paralelamente, e se adapta e reage, a fim de realizar as suas formas e funções. A vida não se desenvolve em um único ser isolado, mas numa orquestração de seres que se estão experimentando reciprocamente, constituindo dessa forma uma marcha ascensional de toda a vida, cujo telefinalismo deve conter também a tendência de cada um dos seres a unir-se para conseguir reorganizar-se, finalmente, num sistema único. Esta tendência pode constituir outra prova da teoria aqui sustentada, dizendo-nos que o ser evolui do caos para o Sistema, um estado eminentemente orgânico.

Observemos outro fato, que também nos prova o poder criador do pensamento e o movimento da evolução no sentido da espiritualidade. Por um fenômeno paralelo ao agora examinado, segundo o qual a matéria orgânica é dirigida e plasmado pelo impulso interior, animador das formas da vida, acontece que as idéias dominantes na existência de um homem permanecem impressas em seu rosto, os seus traços físicos exprimem, dessa maneira, em síntese, a sua história vivida: dores, alegrias, lutas, vitórias, as notas fundamentais da personalidade, reforçadas ou corrigidas pelas novas experiências. Dessa maneira, um rosto pode representar uma biografia. Para aprender a lê-la, observemos o significado das várias partes do corpo humano.

Pode dividir-se em três planos: 1) Parte inferior: dos pés ao ventre, que constitui a animalidade. 2) Parte média: peito e coração, que representa o sentimento. 3) Parte superior: cabeça e cérebro, que representa a alma e a personalidade.

O rosto humano pode-se igualmente dividir-se em três planos correspondentes àqueles, começando de baixo. 1) O maxilar e a boca exprimem, quando muito desenvolvidos, a animalidade voraz e egoísta, a avidez e a sensualidade bestial. 2) Os olhos exprimem o sentimento do coração, emotividade passional, podendo tomar parte da vida inferior quanto na superior, revelada pelo rosto. No primeiro caso, os olhos exprimem astúcia, egoísmo, avidez, sensualidade. No segundo caso, a inteligência, generosidade, bondade, assim como sexualidade sublimada ao plano de amor espiritual. 3) A fronte manifesta o poder e o domínio atingidos no campo do pensamento, da bondade, do espírito.

Ora, com a evolução, a vida desloca o seu centro do plano inferior ao superior, tanto no corpo como na expressão de seu rosto. Há uma tendência da vida em subir também espacialmente para o alto, da Terra para o céu, tendência em ser cada vez menos réptil que rasteja ou quadrúpede, e cada vez mais homem que caminha levantando a cabeça para o alto. Este fenômeno traduz, em sentido espacial, o fenômeno da subida espiritual. Com tais critérios, qualquer pessoa poderá, ao olhar a sua imagem, ler nela a própria história, destino e valor. A evolução consiste em deslocar o centro da própria vida do plano em que funciona o ventre, para aquele em que trabalha a cabeça, do plano do maxilar para o do cérebro. Este deslocamento traduz nos órgãos materiais que o exprimem, o processo evolutivo da espiritualização. Foge-se da animalidade pelo telhado. Esta é a maturação biológica que leva do Anti-Sistema ao Sistema. Quer se queira, ou não, este é o verdadeiro drama da vida, o seu conteúdo e objetivo. Com a evolução, a vida se torna também fisicamente cada vez mais ereta. Este erguimento da vida, também em sua forma material, representa a transformação (endireitamento) da existência, partindo de sua forma material no Anti-Sistema, para sua forma espiritual no Sistema. O primeiro impulso da vida, nascida no seio das águas, foi de emergir para a terra. Verificamos um contínuo esforço da vida para emergir, erguer-se, libertar-se, esforço para voltar ao Sistema, encontrando somente desta maneira sua explicação lógica. Essa tendência é tão profunda e fundamental que transparece, até nas formas concretas do plano físico. Aí mesmo, vemos escrita a teoria da queda, nas primeiras formas de vida aprisionadas no interior da matéria, das quais apenas a evolução, reerguendo essa vida para o Sistema, poderá libertá-la.

Chegamos assim a ver a teoria da queda e da reascensão também em sua expressão concreta no plano físico. Continuando o desenvolvimento dos conceitos agora expostos, poderemos imaginar o homem do futuro tão adiantado que o cérebro, agora constituindo a sua parte mais evoluída, venha a constituir para ele a parte mais atrasada, por ter transferido o centro de sua vida a planos ainda mais altos. No passado, as artes locomotoras foram a primeira conquista do ser, situada na vanguarda da evolução – e são agora o ponto mais atrasado de nosso nível humano, – assim, o nosso cérebro e o sistema nervoso que hoje representam no homem a conquista mais avançada no seu processo evolutivo, representarão para o homem de amanhã o ponto mais atrasado em relação ao nível que ele houver atingido. Para nós, é tão difícil imaginar qual será o novo tipo biológico em ascensão, situado à frente no caminho evolutivo, quanto podia ter sido para os primeiros répteis, que rastejam na terra, imaginar os fenômenos psíquicos e espirituais, que agora fazem parte normalmente da personalidade humana.

             

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O processo evolutivo, contudo, não é apenas conquista de psiquismo, mas também de organicidade. Essas conquistas são coordenadas e valorizadas em novos estados orgânicos coletivos. Quando os elementos componentes do sistema perfeito saído das mãos de Deus, desmoronaram instantaneamente no caos, não mudou o número infinito das individuações. Outra coisa mudou, ou seja, ao invés de permanecerem fundidas no estado orgânico de sistema, confundiram-se na desordem do caos. Então os elementos se amontoaram ao acaso, como simples soma de individuações que não se conhecem reciprocamente, e não cooperam por meio de fusões coordenadas no seio do mesmo organismo.

Ora, o processo da evolução consiste na reunificação; a vontade íntima que o dirige, impõe como telefinalismo o estado orgânico próprio do sistema, sendo isto justamente o que se deve constituir. Em outros termos, o que desmoronou com a involução não foi o número das individuações ou criaturas: esse permaneceu o mesmo, igual; o que desmoronou no caos foi a sua ordem; o que se desfez foi seu estado orgânico, transformado no estado desorgânico. Dessa forma, ao invés de os elementos componentes do Sistema permanecerem coordenados, para funcionar irmanados no mesmo organismo, unidos pela única Lei, todos em função de Deus, caíram na anarquia, passando a viver indisciplinados sem se conhecerem, repelindo-se ao invés de se fundirem, porque cada um seguia apenas o seu próprio princípio individual rebelde à Lei, somente em função do próprio eu que se havia substituído ao centro único _ Deus.

Consiste o processo evolutivo justamente numa gradual reconstrução do que foi destruído, na reordenação do caos, na disciplina da Lei de Deus. Os elementos componentes permanecem os mesmos, mas modifica-se a sua posição recíproca. O processo consiste em coordená-los, induzindo-os a existir em unidades orgânicas cada vez mais vastas, complexas e perfeitas. Quando estes elementos chegarem a reconstituir-se num Sistema único que os abarque a todos e no qual todos se fundam harmonicamente, tal como era o Sistema em sua origem, então o processo evolutivo estará terminado, porque tudo terá voltado a Deus; e com isso, o Sistema originário, que fora destruído, terá sido reconstruído em sua integridade. O que falta ao estado involuído é a ordem. O progresso tem de reconstruir o estado orgânico. Eis o futuro da evolução.

Como já ocorreu para os elementos do átomo, reorganizados nesta primeira unidade; depois com a sua combinação em moléculas, como aconteceu para as construções da vida desde a primeira cristalização dos minerais, e daí em diante, assim é lógico que a evolução deva continuar a operar. Da mesma forma, a química inorgânica evolui para a química orgânica. A evolução representa um esforço contínuo para organizar em unidades coletivas uma quantidade cada vez maior de elementos, em formas cada vez mais orgânicas e complexas, transformando a simples agregação amorfa – soma apenas dos elementos – num organismo hierarquicamente constituído. Assim, o processo evolutivo mostra-nos de fato a passagem do estado de Anti-Sistema ao estado de Sistema, do estado desorgânico ao estado orgânico, dando-nos ainda mais uma prova em favor da teoria. Isto confirma que o estado orgânico do Sistema é verdadeiramente o ponto de chegada, a meta conclusiva do telefinalismo; demonstra também esta ser a direção que a Lei de Deus impõe à evolução.

A tarefa da evolução é justamente a de executar a reorganização do caos. Dessa forma, o princípio da individuação muda no sentido em que mudam as dimensões da unidade elementar, ou seja, do eu. Este fato, pelo qual cada um dos momentos do todo tendem a fundir-se, organizando-se em grupos cada vez maiores, não é um fato estéril de simples soma de unidade. Neste caso não temos: 2 + 2 = 4, e sim: 24 = 16. Isto no sentido em que se alcança não somente uma quantidade maior, mas ainda mais: uma qualidade superior, de valor maior. A própria física nos ensina que o valor dos fenômenos e do espaço muda em relação às suas dimensões. O que vale para uma, não vale para outra, os princípios aplicados ao infinitamente pequeno não valem para os do infinitamente grande, nem para os do meio, que estão entre os dois.

Ao unificar-se em grupo, os elementos componentes adquirem uma posição diferente, que representa um valor muito superior ao de sua soma, por sua vez representado pelo estado orgânico. Representa um nível evolutivo mais alto, na qual a vida adquire novas qualidades e potencialidades, inacessíveis ao indivíduo isolado e mesmo a uma multiplicidade de indivíduos confusamente amontoados. O estado orgânico representa, sem dúvida, uma das tendências criativas da evolução. E isto pelo fato de se formar uma nova individuação do ser com a reunião dos elementos individuais num grupo. É um organismo diferente, onde aparece um princípio diretivo diverso, uma nova lei que o rege e não é mais a mesma que dirigia cada um dos componentes. Passa-se, assim, a um plano mais alto de evolução, a um novo parágrafo da Lei, significando a reaproximação do Sistema.

Encontramos uma aplicação desse princípio no fenômeno da evolução do egoísmo, dilatando-se um altruísmo. Quando os elementos separados por seu egoísmo fundem-se em unidades, transforma-se a lei do dar e do haver, numa mais alta, dirigida por princípios diversos. Enquanto no plano material, quem dá empobrece e quem toma enriquece, no plano espiritual quem toma empobrece e que dá enriquece. Explica-se essa transformação porque no nível inferior, os seres vivendo separados um do outro por se fecharem em seu egoísmo, não se conhecem e, portanto, não existem entre eles trocas espontâneas, nem compensações. Todavia, quando se coordenam em unidades orgânicas, caem essas barreiras isolantes e tudo se comunica espontâneamente. Tornam-se fáceis, dessa forma, as trocas, que permitem satisfazer todas as necessidades sem a luta árdua necessária para tal, no mundo inferior da matéria e do egoísmo. O fato de, ao evoluir, subir-se para formas de vida mais livres, nas quais cada vez menos se precisa de luta para viver, constitui uma diminuição do atrito entre as criaturas e da dor resultante, ou seja, uma conquista de felicidade. Então, quanto mais se sai das opressões da matéria, tanto mais completamente pode realizar-se a divina lei do amor, pela qual, quanto mais se sobe, tanto mais se abrem as portas de cima em baixo, permitindo descer o bem e a alegria aos planos inferiores. Acontece, então, que quanto mais nos sacrificamos no dar, tanto mais sobre nós choverão do Alto ajuda e consolação. Tudo isso é natural e lógica lei de vida. E quanto mais tentarmos acumular egoisticamente, fechando-nos com isso cada vez mais em nós mesmos, tanto menos poderemos receber do Alto. Isto porque o receber e, portanto, o enriquecer-se, depende da própria receptividade, relacionada ao grau em que se destruiu, com a evolução, o isolamento egoístico da nossa natureza inferior. A irradiação lançada por Deus de Seu centro, sobre tudo o que existe, pode ser recebida pelo ser de acordo com o grau de abertura e receptividade, próprio a cada um, conforme o nível de evolução atingido. O evoluído, por exemplo, que dá aos seus semelhantes, não espera recompensa nem gratidão, que nos planos inferiores representam um legítimo direito de pagamento aos involuídos. O Evoluído conhece a Lei e sabe que esta lhe provê tudo. É, como se costuma dizer com razão: Deus é quem paga. Dessa forma se reorganiza o caos, eliminando cada vez mais a dor e ganhando em felicidade, pelo fato de a vida começar a funcionar segundo leis cada vez mais próximas daquela perfeita Lei do Sistema.

             

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Na própria física vemos transformar-se a lei dos fenômenos à proporção que subimos na escala das unidades coletivas. Vemos que os fenômenos se nos apresentam com características diferentes, de acordo com as dimensões microscópicas que a nossa observação assume. É fato que, quanto partimos da grosseira visão de conjunto e penetramos com a observação na estrutura analítica, verificamos achar-nos diante de unidades-síntese, ou seja, unidades coletivas compostas de elementos que, se observados isoladamente, vemos obedecerem a outros princípios. Acontece isto em todos os campos: no campo físico (a matéria, sociedade de átomos); no plano biológico (organismos de células); no plano social (coletividades humanas); no plano psicológico (psicologia coletiva). Descobrimos, então, aparecer uma nova lei, isto é, a lei do grupo, que não é mais a lei do indivíduo, mas uma lei coletiva superior, dada pela maioria dos casos concordantes, vencendo a minoria dos casos discordantes, os quais, desaparecem reabsorvidos pelos primeiros. Na nova lei, a do grupo, os indivíduos se fundem por homogeneidade de características. Eles sobrevivem não como elementos separados, mas como uma síntese resultante de sua fusão, o que transforma o tipo de sua individuação. Trata-se de existências diferentes, situadas em dois planos diversos do edifício da evolução. O segundo é mais vasto, complexo e aperfeiçoado; é portanto mais poderoso e resistente. Uma coisa é o átomo, outra coisa é a matéria; uma coisa é a célula, outra um organismo; uma coisa é o homem, outra um povo ou humanidade; uma coisa é a mentalidade de um indivíduo, outra uma corrente de pensamento e de psicologia coletiva.

Por isso está nascendo agora em nosso planeta o corpo humano social. Nele sobreviverá o indivíduo de hoje, mas com forma de vida diferente. Não será mais um elemento isolado, que estabelece apenas relações com seus semelhantes, mas constituirá com eles as células e os órgãos – ou seja a anatomia e a fisiologia – deste novo organismo social e humano, como parte integrante, já não podendo mais viver senão em função de todo o organismo.

Com isso mudam os princípios que regem a vida do homem. Nasce assim uma nova ética para guiar atividades humanas, porque os objetivos utilitários que a vida tem de alcançar são agora muito mais vastos. O homem atual debate-se na “jungle” darwiniana da “luta pela vida”, onde ainda está imerso até o pescoço, sendo tão árduo sair dali que a maior tentativa feita para libertá-lo, que é o Cristianismo, conseguiu modificá-lo muito pouco. Ao invés de vencer a animalidade humana, parece que esta foi mais forte do que ele adaptando-o a si, procurando engoli-lo ao invés de ser engolida. E no entanto, não há derrota que possa sufocar o impulso evolutivo da vida; a cada falência, aparece uma tentativa nova, por mais que isso possa parecer logicamente absurdo. Parece um trabalho desesperado, no entanto, é a fé que nos arrasta que no-lo faz realizar aqui, nestes livros, neste momento mesmo. É inevitável que o homem atinja o plano do Cristo, ou seja, que o homem reconheça em seu semelhante, a si mesmo, e o ame como a si mesmo, desistindo finalmente de agredi-lo, ao invés de amá-lo, sempre o agredindo, até mesmo em nome de Deus. No pensamento que dirige a vida para o telefinalismo de sua espiritualização, o que corresponde fatalmente a seus planos preestabelecidos, está determinado que a seleção evolua, oferecendo enfim o triunfo ao mais inteligente e ao melhor, e não ao mais forte ou ao mais astuto.

O homem atual é feroz e ignorante. Começa hoje a realizar os primeiros esforços para sair dessa barbárie. Na hora atual, a temperatura psíquica está esquentando; já se pensa mais do que outrora; os problemas se equacionam e o homem quer resolvê-los. O progresso técnico encurta o espaço, tornando menor o nosso mundo, e conseguindo dessa forma uma humanidade mais compacta e mais unida, aproximação que é necessária para alcançar-se o estado orgânico. Paralelamente há uma intensificação de funções cerebrais e conscientes, e uma entrada em funcionamento das qualidades psíquicas.

Nos métodos evolutivos, isso tudo representa uma inovação que pode levar a conseqüências imensas. A vida lança-se com o homem, em seu novo caminho da evolução psíquica e espiritual. O grande trabalho criador que é hoje confiado é o desenvolvimento da consciência, em todos os sentidos, quer racional na pesquisa científica, inspirativo na arte, espiritual na fé e nas religiões, sentimental nas relações de amor ao próximo e moral numa nova ética melhor e mais inteligente; não mais filha do terror e da luta pela vida, mas de uma compreensão iluminada das exigências materiais e espirituais da vida.

Podemos imaginar o futuro da humanidade na forma de uma mente cada vez mais iluminada. O próprio órgão cerebral terá de aperfeiçoar-se anatomicamente. A estrutura química, mecânica e biológica do encéfalo terá de atingir um grau de complexidade e requinte que permita o funcionamento de novas zonas de consciência, hoje, ainda adormecidas, ativando neurônios ainda não utilizados. Mas isto será apenas um efeito, um aperfeiçoamento do órgão, para exprimir uma função que será pré-determinada, antes de qualquer transformação orgânica, na causa primeira, causa que reside no espírito. Este está se agitando, no homem, irrequieto e febril, para despertar. Hoje existe apenas inquietude e febre, mas amanhã ocorrerá o despertar.

Chegando a este ponto, o homem, que se tornou organismo coletivo da humanidade, tendo-se tornado consciente da Lei que o guia, poderá colocar conscientemente as suas mãos sobre as profundas alavancas biológicas que dirigem o seu desenvolvimento. Poderá assim modificar-se e construir-se como ele mesmo o queira. Dirigirá então com inteligência – cuja falta hoje não lhe dá o direito de guiar – o nascimento físico, o desenvolvimento do corpo e a sua morte, fazendo evoluir sobretudo o espírito, guiando todas as funções humanas, impulsionando tudo para as metas últimas da existência. De tudo isso, nascerá uma nova realidade, desconhecida hoje, uma consciência e uma forma de individuação humana coletiva na qual se realizará uma lei nova, com princípios diferentes tal como deve existir num plano evolutivo mais alto.

O homem, então, não será mais um selvagem rebelde e ignorante, que a muito custo consegue arrancar a sua vida no assalto contínuo dos elementos ou, ainda pior, de seus semelhantes, mas será um operário de Deus, que trabalha, em harmonia com a Lei, apenas para realizá-la. Este será um passo decisivo para a inversão do Anti-Sistema, isto é, para endireitá-lo na forma do Sistema.

O princípio novo que se desenvolverá nesta forma orgânica de humanidade será a consciência da ordem e da Lei de Deus. A isto seguir-se-á um estado de harmonização, que constituirá a descida do reino de Deus na Terra, já que, eliminados todos os atritos da luta, desaparecerão as dores que são a sua conseqüência; pois, eliminando o espírito da revolta, segundo o qual vence e domina o mais prepotente, Deus poderá finalmente mostrar-se ao homem, não mais na forma necessária para que um selvagem obedeça – ou seja, de justiceiro tirânico– mas de Pai amoroso, como só se pode fazer com filho inteligente, que compreendeu ser de sua vantagem viver em obediência à ordem, em vez de fazê-lo na revolta e na desordem.

Eis os princípios novos que surgirão quando aparecer a nova unificação; o psiquismo humano, hoje rudimentar, desenvolver-se-á até o plano espiritual e Cristo nascerá no coração dos homens. A ciência, com a técnica  éolocará as forças naturais a serviço do homem, melhorará a raça com o conhecimento das leis biológicas; assegurará com a economia o bem estar, garantindo, a todos, os meios de vida. Nestas bases, que estão sendo colocadas hoje, poderá realizar-se, livre das fadigas da luta material, o trabalho de elevar o novo edifício espiritual, que será a grande construção biológica do futuro. Isto significa que a vida se espiritualizará. Verificamos então que a evolução biológica terá de desenvolver-se, conforme quanto foi dito na visão.

 

Nós mesmos estamos trabalhando nestes livros, no sentido de determinar a formação e o desenvolvimento de uma corrente de pensamento coletivo nessa direção. Deus verá, do Alto, o nosso esforço desesperado, nesta hora apocalíptica para o mundo e nos ajudará. Pode parecer desesperado o esforço, mas Deus estará sempre presente e ajuda os homens de boa vontade. Aliás, a não ser que queiramos viver como animais ignorantes, não se pode dar à vida mais nobre e sério conteúdo.

 

 

Suspendamos, por um momento o nosso trabalho de análise e crítica da teoria da queda, a fim de observar alguns pontos de vista diferentes, oferecidos por certas posições de pensamento humano, colocando a nossa visão diante da filosofia. Estudaremos, depois, essa visão em relação ao pensamento de Cristo e de alguns profetas, para ver se – e como – eles concordam com ela.

O pensamento humano pode considerar o universo de três modos diferentes:

1º) Como desordenado, ou seja, constituído de elementos separados que se ignoram mutuamente, desconexados e incoerentes, que não constituem uma unidade, nem funcionem nela organicamente. Essa é a concepção do involuído, e exprime o seu tipo, desconhecedor das profundas realidades da vida, instintivamente separatista, isolado de tudo, na concha de seu egoísmo.

2º) Como ordenado. Os fenômenos são concebidos como ligados por leis naturais que os regulam, vendo-se então no universo princípios diretivos e, portanto, em ordem. O universo é pois concebido como uma rede de relações, na qual cada elemento está concatenado aos outros em seu funcionamento. Os fenômenos são coligados por derivação causal, unindo-os a um transformismo lógico, que completa a causa no efeito. Essa concepção corresponde a um estado mais evoluído do indivíduo, exprimindo o seu tipo biológico, alcançado pela observação e raciocínio.

3ª) Como unitário. O universo é concebido como redutível a uma causa única, central, absoluta, realidade fundamental, causa de tudo. Aparece, assim, o conceito de uma realidade espiritual interior que dirige a forma exterior, constituindo apenas a sua expressão ou manifestação. Não se trata só de um ordem, mas da centralidade dessa ordem. Revela-se, então, o conceito da organicidade do universo, o conceito da coligação de todos os elementos componentes numa mesma funcionalidade orgânica. O universo é concebido, neste caso, como uma unidade coletiva, onde todas as individuações ocupam cada uma a devida posição, executando funções adequadas, todas coordenadas por uma lei, constituída pelo pensamento e pela vontade de Deus, que a dirige com um poder central, como senhor de tudo. O universo aparece, então, como um Sistema. Essa concepção corresponde a um estado ainda mais evoluído do indivíduo, exprimindo o seu tipo, que chegou, por intuição, à visão de Deus e do Seu Sistema. Aqui não é só o conceito da ordem que se compreende, como no caso precedente, mas é o conceito da centralidade dessa ordem, pela qual tudo existe em função da causa primeira, sempre central de tudo, Deus. Esta é a concepção do evoluído maduro, cujo olhar espiritualizado chegou a ver além das aparências da forma. É um estado de vidência cósmica, atingido pelo espírito maduro, ao qual se revela a íntima e recôndita realidade das coisas em toda a sua magnificência.

Este terceiro aspecto mostra-nos um universo que, embora atualmente ainda desorganizado em parte, se está reorganizando; que, embora em alguns pontos e momentos ainda hoje é caótico, vive um processo de reordenação (evolução). No campo humano, esse trabalho é executado pelo homem, pelo espírito do homem, como centelha divina saída do primeiro motor, do único motor, podendo ser a única encarregada de dar vida, movimento e desenvolvimento à matéria, por si mesma inerte e incapaz de tudo.

Deste estado do universo, Platão, seguido mais tarde por Santo Agostinho, viu a centralidade e a sua unicidade, da qual tudo deriva. Assim, o universo foi concebido como um foco central único, não criado, absoluto, do qual tudo derivou e deriva, constituindo o relativo, lançado no mundo dos efeitos pela causa primeira, absoluta.

Aristóteles viu, ao invés, o movimento dessa irradiação, o desenvolvimento dos percursos causa-efeito, como uma infinidade de linhas paralelas, esquecendo a centralidade e a unicidade, a convergência e irradiação comuns a todas as linhas daquele desenvolvimento.

Assim, o mesmo fenômeno aparece sob diversos aspectos e diferentes pontos de vista. O primeiro é dado pela visão do intuitivo, sintético. O segundo pela visão do racional, analítico. Com olhos diferentes, formas mentais diversas, perceberam aspectos diversos da mesma realidade.

O cristianismo assimilou o primeiro método com Santo Agostinho e o segundo com São Tomás de Aquino (escolástica). Dessa forma, o mesmo pensamento fundamental foi-se desenvolvendo, em forma de luzes parciais, por lampejos de intuição, iluminando de acordo com perspectivas diferentes o mesmo fenômeno do universo. Os elementos que constituem a visão completa do Sistema já haviam aparecido nas filosofias e religiões, mas isolados, em visões parciais, e não fundidos todos num só organismo. Platão já vira a necessidade de um primeiro motor imóvel, causa originária do vir-a-ser fenomênico universal, causa sem precedentes causais, início determinante da concatenação que mantém o transformismo, na linha de seu telefinalismo. Já fora vista a contraposição entre o relativo e o absoluto, entre o contingente e o eterno. Partindo de nosso mundo já se chegara a conceber o outro, de qualidades opostas.

Chegava-se, assim,  como o Maniqueísmo (de Manes, terceiro século depois de Cristo), a conceber o universo como o teatro de uma luta entre duas potências opostas. Também esse dualismo é verdadeiro. Mas não é toda a verdade. Para compreendê-la era mister explicar como esse dualismo nasceu da unidade e como volta a ela.

Dessa forma, foram percebidos aspectos separados e parciais da verdade, insuficientes por si sós a esgotá-la; aspectos que, ao invés de constituir escolas filosóficas separadas e em luta, deveriam ser coordenados e fundidos num só sistema orgânico. Descobriu-se, assim, em Deus a “causa em si”, o que equivale a “primeiro motor”, ou seja, a causa primeira, início de todo o nosso universho relativo, uma causa que não é, tal como ocorre em nosso mundo, ao mesmo tempo, efeito de outra precedente. A causa absoluta independe do conceito de início, próprio da Terra, mas conceito que não pode existir no infinito. Em seguida, compreendeu-se o vir-a-ser das coisas, e então apareceu o conceito de um Deus em processo de realização, um Deus em elaboração. Mas, para explicar isso, é preciso compreender, primeiramente, como e porque Deus se está elaborando, o que deve Ele realizar nesse processo, qual é o ponto de partida e o ponto de chegada do fenômeno da evolução.

Assim, outros viram no universo uma tendência à emersão dos valores superiores. Mas isto não pode compreender-se se não forem explicadas as razões profundas. Esta emersão é o fruto da evolução. Esses valores superiores são o Deus Imanente, que permanece no universo desmoronado e, com a evolução, cada vez mais se vai revelando. Observando o nosso mundo, vemos existir uma luta entre as suas baixezas e suas grandezas, também existindo aí uma tendência à vitória das últimas; há um impulso ascensional, uma vontade de superação contínua, uma potência “melhorística”. Esse é o “melhorismo” de W. James, segundo o qual o universo, na luta entre os elementos divinos e as forças adversas, é regido por uma tendência automática ao melhor. Observações exatas, mas concepções parciais, insuficientes para dar-nos uma visão completa e cabal do quadro do universo. Visões parciais, de alguns momentos apenas de todo o fenômeno. É evidente o fato de a obra divina estar se realizando com esforço no mundo. E indispensável se compreenda, porém a razão pela qual isso assim acontece, as origens, as causas do processo e as suas metas finais.

Kant, quando dirige o olhar para Deus e procura uma prova de sua existência, escolhe uma prova moral, a noção do “dever”. Sendo fundamental na ética, ela só pode provir de um Ser superior, que dirige segundo uma lei, de acordo com a qual Ele julga, recompensando ou condenando.

Bergson acha que não se pode chegar a compreender a existência de Deus senão através da experiência dos místicos, fenômeno este que não se poderia explicar de outra forma se efetivamente não existisse o objeto de seu amor. Trata-se, porém, de uma experiência, embora autêntica, pessoal, não-demonstrável racionalmente e, portanto, não logicamente necessária para todos os seres racionais; uma experiência não determinante para todos e que, para alguns, pode não ter nenhum valor.

O Panteísmo concebe o universo como uma manifestação da Divindade que nele se exprime sob mil aspectos, ficando de pé o princípio interno dirigente de todo o existir que, por sua vez, não é senão efeito dessa causa primeira. Assim, Spinoza admite uma única realidade, a Substância-Deus, incriada, causa de si e a causa de tudo. A Sua liberdade é determinística, ou seja, é obediência à própria lei, antes livremente desejada. O ser é um elemento desta substância única e eterna, expressão transitória em sua forma. A finalidade do existir é o absorver-se nessa Substância, desindividualizando nela a própria individuação separada.

No panteísmo de Hegel, Deus é a idéia que se tornou totalmente consciente de Si, correspondendo ao nosso conceito de ser, a evolução é reconquista de consciência. Deste processo da re-ascensão, Hegel tirou o conceito de um Deus em evolução.

As citações poderiam continuar. Mas o nosso objetivo não é passar em revista os vários sistemas filosóficos, mas apenas trazer alguns exemplos para esclarecer o nosso pensamento. O que se disse acima é verdadeiro, mas apenas representa alguns trechos da verdade e só pode ser compreendido como parte de uma visão maior, que não encontramos nos filósofos. Para ser completa, a filosofia deveria ser, também, teologia e ciência.

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Surge aqui, espontaneamente, uma pergunta: por que motivo, ao invés de uma visão única, a filosofia nos oferece tantos sistemas diferentes? Na prática ocorre o seguinte: no estudo da filosofia não é ensinado um sistema que apresente explicação cabal dos fatos e que dê uma orientação de como dirigir nossas ações; ao contrário, é ensinado o desenvolvimento do pensamento filosófico através de numerosos sistemas diferentes. Por isso, quando se chega ao fim, aprendeu-se, apenas, a história da filosofia, a arte dialética, a mecânica da lógica, mas, entre tantos sistemas, invade-nos o ceticismo diante de todos, porque nenhum resolve tudo, nenhum deles esgota o problema do conhecimento. O resultado final é um estado de ignorância diante dos fins últimos da vida e um estado de desorientação nas ações. Chega-se, assim, ao pólo oposto ao que se devia chegar e a filosofia falha completamente no seu objetivo, que deveria se explicar para orientar.

Não devemos admirar-nos. Tudo isso é explicável. Os vários sistemas filosóficos foram dados pela forma mental dos diversos filósofos, elevando a sistema uma premissa axiomática, indiscutível para todos os homens, que é o próprio tipo ou temperamento. Qualquer destilação lógica, por mais requintada, ressente-se dessas premissas, pelas quais é influenciada continuamente. Cada um exprime a única visão que pode ver, a que pode conseguir com os seus próprios olhos, de acordo com a estrutura destes. Então, para compreender a realidade do fenômeno filosófico, devemos ver, nos diversos sistemas filosóficos não antagonismos que se excluem, destruindo-se uns aos outros, mas visões relativas que, ao apoiarem-se umas nas outras, se completam e, com isso, se confirmam.

Não devemos, pois, escandalizar-nos com essa pluralidade de sistemas. Quando compreendemos que a filosofia se move no relativo, não podemos considerar tudo isso como defeito. Um relativo em movimento não pode produzir outra coisa diferente. E é justamente esse fato que nos faz compreender a nossa verdadeira posição de seres situados no relativo, capazes apenas de visões parciais. Entretanto, se tudo isto nos surpreende, é porque o nosso espírito tende à verdade do absoluto imóvel, do qual é filho, desejando uma verdade de natureza a satisfazê-lo. Por não conseguir saciar-se com as verdades relativas em evolução, é induzido a repeli-las como inferiores. Pelo menos, assim, satisfaz a ânsia de ter atingido a verdade completa, última e absoluta que o homem manifesta o desejo de dogmatizar – qualidade sua e não de uma religião. Em virtude desse desejo de todos, inclusive os homens de ciência, cada religião, cada escola e cada partido, combate o outro, tudo pela ânsia de atingir o absoluto, tornando-se, desse, modo, absolutistas. Sentimos, por instinto, que a verdade deve ser uma só e sempre a mesma, mas esta é a verdade última, que está além de nosso mundo. Esta é a que queríamos possuir e nos rebelamos, repelimos, insatisfeitos, considerando como inaceitáveis, as verdades parciais, relativas e em evolução. É difícil adaptar-se a esse conceito da mutabilidade da verdade e apenas as mentes evoluídas conseguem sentir-se à vontade neste terreno escorregadio de verdades em contínua transformação. No fundo de nossa alma permaneceu, como num sonho, a lembrança do absoluto, e desejaríamos ser esta a verdade em nosso poder, repugnando-nos de não ser a que possuímos. A verdade que desejaríamos, só poderá ser o fruto da completa reconquista do mundo perdido, porque ela está situada no ponto final da evolução, realizada através do progresso de tantas verdades relativas.

A pluralidade da filosofia não é, portanto, um erro, nem uma dispersão, ou um fato desalentador, mas o sinal de um enriquecimento progressivo. Pode ser uma desilusão presente e um esforço de subida, mas é possibilidade de progresso sempre maior em direção da verdade absoluta, ansiada pela nossa alma. O filósofo pensador é, ele mesmo, um elemento do fenômeno universo por ele estudado, procurando orientar-se dentro do edifício do qual se faz parte. Cada filósofo possui poderes conceptuais e capacidade de visão diferentes, construindo um edifício de conceitos com os materiais que possui. A lógica arquitetônica escolhida o leva a preferir uns em vez de outros. As qualidades do seu temperamento e das experiências assimiladas, do conhecimento conquistado e à sua disposição, e as suas simpatias, estabelecem as preferências que o induzem a pôr em evidência certos aspectos da verdade, ao invés de outros. Nisso também influem seus gostos, a educação, o ambiente, os choques recebidos e as reações que cada um tem, de forma diferente, segundo sua natureza. Entra em jogo, também, a própria personalidade individual, que estabelece o tipo biológico, a sua forma mental e, com isso, a nota fundamental de suas construções conceptuais.

Eis aí então, porque, sendo apenas três, como vimos acima, as possíveis escolhas “metafísicas”, ou seja, as perspectivas conceituais do universo, existam apesar disso tantas filosofias que parecem irreconciliáveis, quantos são os filósofos. Por isso nos cursos de filosofia não se estuda um sistema filosófico único, último e definitivo que contenha a verdade completa e indiscutível, cientificamente provada, mas se estudam tantos sistemas filosóficos relativos, incompletos, discutíveis, teóricos, com visões parciais e progressivas de muitos pensadores diferentes, para fazer de tudo isso um quadro único, com outras visões parciais que são aproximações gradativas de outra verdade ainda inatingível. Ao invés de se estudar como nasceu e como funciona o universo em si mesmo, estuda-se as conclusões alcançadas por tantos filósofos diferentes a respeito do seu funcionamento, e cada um à sua maneira. Dessa forma, o estudioso de filosofia, no meio de tanta multiplicidade de visões, torna-se um erudito que perdeu a visão do funcionamento do universo; torna-se um sábio enumerador de filosofias, mas não possui nenhuma própria para dirigir verdadeiramente a sua vida. Viu terem sido dadas as respostas demais a muitos quesitos, para poder ainda acreditar se chegue a dar uma resposta definitiva.

A convicção da verdade é outra coisa e não pode ser obtida através do estudo da filosofia. A convicção resulta do temperamento, da experiência e das reações do filósofo; é um estado pessoal ao qual se procura reduzir tudo, adaptando-lhe até as verdades julgadas absolutas e as das religiões. E quando o próprio tipo biológico está situado no plano animal, a sua verdade continua sendo animal, e não há erudição filosófica que a possa mudar. Nem mesmo as religiões conseguem transformá-la, senão em pequena dose. O involuído continuará assim, mesmo que seja o mais erudito do mundo. Poderá dissertar a respeito de tudo, mas o único sistema filosófico em que continuará acreditando com convicção será o do ventre e o do sexo, o de sua vantagem imediata. A verdade só pode ser atingida por amadurecimento biológico, o único a nos levar à compreensão, pois nos abre os olhos da alma.

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Observemos, agora, a teoria da queda colocando-a diante do Evangelho, das palavras de alguns profetas, e enfim, diante do pensamento espírita brasileiro.

Quaisquer sejam as dúvidas levantadas contra esta teoria, não pode ser repelida pelos seguidores da doutrina de Cristo. Este, no Evangelho de Lucas, (capítulo 10:18), diz: “Vi Satanás, como um raio, cair do céu”. De fato, a queda foi fulminante, rapidíssima, como ocorre quando rui um edifício. Tornar a subir é cansativo e lento, como acontece na sua construção. E isto porque se deve aprender outra vez, reconstruíndo o que foi destruído. O Apocalipse de São João (capítulo 12:7-9) diz assim: “E houve no céu uma grande batalha: Miguel com seus anjos combateram contra o dragão e batalhavam o dragão e seus anjos, mas não prevaleceram, nem houve mais para ele lugar no céu. Foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente que se chama Diabo e Satanás, que engana todo o mundo: sim, foi precipitado na Terra e com ele foram precipitados os seus anjos”. O Profeta Isaías (14:12) confirma: “Como caíste do céu, ó Lúcifer, como foste cindido e abatido até a Terra? E no entanto dizias em teu coração: tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo.” É possível a qualquer religião ou seita de origem cristã não levar em conta tão graves afirmações?

No entanto, alguns elementos do Espiritismo Brasileiro não aceitam a teoria da queda, pelo fato de a teoria Kardecista afirmar que os espíritos foram criados simples e ignorantes. Mas raciocinemos um pouco. Deus era finito ou infinito? Deus não pode ser senão infinito. Mas, para criar espíritos simples e ignorantes Ele devia tirá-los, não de Si, mas tirá-los de fora de Si. Isto porque, sendo Ele perfeito, só podiam sair de seu seio seres perfeitos, portanto, nunca simples e muito menos ignorantes. Da imensa sabedoria de Deus não podia derivar diretamente uma tal ignorância. Se os espíritos são constituídos da mesma substância divina, tinham de ter, ao menos no momento da criação, as Suas qualidades. Ora, não sendo qualidade de Deus o ser simples e ignorante, os espíritos nascidos Dele, feitos de sua própria substância, não podiam ser simples e ignorantes. Só podiam ter sido assim em duas hipóteses, ambas inaceitáveis porque contrárias ao conceito de Deus, ou seja: primeiro, Deus os tirava de sua própria substância, sendo também Ele simples e ignorante; segundo, Deus os criou não de dentro de Si mesmo, mas de fora, e em tal caso ele não seria infinito, mas finito. Trata-se de dois absurdos. Para poder criar fora de Si seres de natureza diferente da própria, Deus deveria ser um ente limitado, e, ao criar, devia transpor esses limites. Em outros termos: ou Deus tirava os seres de sua própria substância, e Ele era simples e ignorante, ou os tirava de fora de Sua própria substância, e então Ele era finito e limitado.

Ora, é evidente não poder o seio divino, como ocorre entre mãe e filho, ter produzido senão anjos da própria natureza, ou seja, perfeitos, bem diferentes dos espíritos que vemos animando os corpos humanos da Terra. O homem é um ser bem diferente. Aceita-se ser ele o resultado da evolução a qual tem as suas raízes bem distantes, nas profundezas da matéria, da qual o espírito vem vindo, reconstituindo-se lentamente através de formas de vida cada vez mais complexas, permitindo-lhe a manifestação, até chegar ao plano biológico humano que ocupamos. Aceita-se ser o ponto de partida da evolução a matéria, enquanto o ponto de chegada é o espírito, no estado de pureza e perfeição.

Então, no princípio não havia os espíritos simples e ignorantes, mas a matéria. E matéria quer dizer o caos das nebulosas onde ocorre a sua primeira formação, quer dizer desordem, trevas, um mundo desagregado, que começa a reconstruir-se. Ora, aqui surge o ponto que nos obriga a admitir a teoria da queda. Como admitir que a suprema imperfeição representada pelo caos, seja a primeira, a originária criação, a que teria saído diretamente do seio de Deus? Então a substância Dele seria a matéria e a desordem do caos? Um anjo não pode gerar um demônio, nem um demônio pode gerar um anjo. Se Deus, na criação, deu de Si mesmo, então Ele era caos, constituído pela matéria que forma as nebulosas, como todos os atributos e conseqüências relativas. E voltamos a recordar que a criação não podia ser exterior a Deus, porque esse conceito implica a idéia de um limite a ser superado, absurdo, porque Deus só pode ser infinito.

Eis, então, o ponto. Temos diante de nós dois fatos indiscutíveis: primeiro, Deus, só pode ser espírito, ordem, perfeição, causa primeira; segundo, o nosso universo físico, em seu ponto de partida ou criação na qual se inicia a evolução, se acha no estado de matéria, desordem, imperfeição. Estes dois termos opostos precisam ser ligados com a mais estreita das ligações, a da filiação, relação que implica a mesma natureza para ambos. É evidente não poderem se unir da forma como estão, porque entre os dois corre um abismo, verdadeiramente uma completa inversão de termos.

Ora, como preencheremos esse abismo? A lógica impele-nos à única saída, que é a de admitir haja ocorrido um fato novo, ao qual, justamente, temos de atribuir a causa principal de todo esse emborcamento. O emborcamento existe. Seria absurdo procurar as causas dele em Deus. Então, quem o terá produzido? Certamente não foi Deus que é ordem, e não caos. Deus então teria caído no caos? Absurdo ainda maior: um Deus que falha e desmorona. Deus perfeito não pode ter caído, porquanto, se existe evolução, isto prova existir um princípio dirigente que a guia e sustenta, não podendo de maneira nenhuma ter desmoronado. Mas, se Deus não caiu, o que caiu? Eis-nos constrangidos, por uma concatenação lógica da qual não se pode escapar, a admitir a teoria da queda. Essa teoria explica tudo e preenche o abismo entre os dois termos irreconciliáveis. O caos da matéria não é o produto da primeira criação originária, saída do seio de Deus, mas o resultado de outro processo sobrevindo depois. A matéria não é o estado originário da criação, mas o estado de máxima curvatura do espírito, o ponto final do processo da involução e o ponto de partida da qual se inicia a evolução. Só assim se descobre a concatenação lógica entre causa e efeito, doutra forma inexistente e os dois termos permaneciam distantes sem poderem conjugar-se. Só assim aparece o anel unindo-os. Entre ambos existe a revolta e a queda, as únicas que podem explicar o emborcamento. Assim tudo fica claro, cada coisa vai para seu lugar, e não nos vamos chocar de encontro aos escolhos de tantos absurdos inaceitáveis, como vimos.

Foi útil responder a essa objeção de alguns elementos espíritas brasileiros, para esclarecer cada vez mais a visão que estamos examinando. Com se vê, trata-se de coisa bem diferente da criação de espíritos simples e ignorantes. Kardec não entrou no problema porque não seria aceito nem compreendido. Mas, tendo de apresentar de qualquer forma um ponto de partida, escolheu um, no percurso de todo o processo, mais próximo a nós, tal com fez a Bíblia, que parte da segunda criação-material, efeito da queda. Não podia fazer de outra maneira, pois estava falando a criaturas que ignoravam muitos conceitos, só admitidos hoje. Assim também Kardec e os espíritos não podiam falar uma linguagem que teria sido incompreensível para aquela época, porque para as mentes de então era absolutamente inconcebível uma equivalência entre matéria e energia e uma evolução físico-dinâmico-espiritual.

 

Nos últimos capítulos procuramos em primeiro lugar conhecer os atributos de Deus; depois, compreender como operou e como consistiu a criação. A seguir examinamos as condições que tornaram possível a revolta, e como tenha ela ocorrido de fato, para afinal ver como tudo isso se tenha desenrolado de acordo com a lógica perfeita do sistema. Vimos assim que Deus agiu segundo os seus atributos, que a criatura respondeu conforme a sua liberdade e que o Sistema funcionou com as suas qualidades e forças; e observamos como a ação se desenvolveu de forma lógica e coordenada até a revolta e a queda.

Retomemos, agora, esta última parte do fenômeno, a fim de compreender melhor como se verificou, aprofundando cada vez mais a análise e a crítica. Em que consistiu a queda? O que ocorreu exatamente, no Sistema, no momento da revolta? Antes de tudo, a palavra “queda” não exprime um conceito exato do fenômeno e talvez tivesse sido melhor não havê-la aceitado das religiões. Nós a usamos nas primeiras fases das nossas pesquisas, quando nos aproximávamos do conceito, achando-nos em fase de amadurecimento, não tendo sido então ainda possível precisar tudo com exatidão. E para não criar palavras novas, aceitamos as já em uso. Mas, tendo vindo a amadurecer até aqui, verificamos ser a forma mental que as religiões revelam, neste campo, não mais suficiente, pois a argumentação assumiu características de uma teologia científica, confrontada com a psicologia racional positiva, própria da ciência.

Comecemos, então, a precisar não se tratar de queda no sentido espacial, mas, como já explicamos, de uma queda de dimensões, de um desmoronamento de valores. Entretanto, isto ainda não é totalmente exato, porque nos torna a levar ao conceito de queda, embora se trate de uma queda no sentido espiritual e moral. Se houve um desmoronamento nesse sentido, foi o efeito de um processo de afastamento do centro. Eis o que realmente ocorreu. A revolta inverteu, pelo menos para os elementos rebeldes, a direção dos impulsos que os moviam no Sistema. Começaram, então, a funcionar não mais na direção centrípeta, com a cabeça voltada para Deus, centro do Sistema, mas se inverteram movimentando-se na direção centrífuga, para afastar-se do centro, Deus. Assim, ao impulso centralizador que regia compactamente o Sistema em torno do único egocentrismo de Deus, substituiu-se um impulso descentralizador para a periferia, constituído por uma miríade de egocentrismos separados. Em vista da direção tomada pelos elementos rebeldes, automaticamente, como efeito da causa movida por sua livre vontade, o movimento para a periferia acabou determinando a sua exclusão da esfera do Sistema. Os elementos rebeldes achando-se desta forma expulsos por si mesmos do Sistema, em posição de excluídos, constituíram em seu redor, mas do lado de fora, um agrupamento próprio, que foi o Anti-Sistema.

Foi como a expulsão de um pus venenoso, mas isso salvou o Sistema. Também isso fora previsto pela sabedoria de Deus. A revolta foi imediatamente isolada e lançada fora, daí resultando a impossibilidade de contaminar os elementos que permaneceram sadios. Foi importantíssimo esse fato de salvaguardar a integridade do Sistema, pois da permanência desta parte sã dependia agora todo o trabalho de dirigir a salvação dos loucos excluídos, que sozinhos só podiam perder-se. Por aí se vê com quanta sabedoria foi tudo previsto.

Qual a configuração assumida pelo Todo depois desse processo de separação? O Sistema permaneceu intacto, um organismo perfeito tal como era antes, ou seja, uma esfera em redor do seu centro, Deus. O Anti-Sistema, ao projetar-se fora do Sistema, permaneceu de fora, na periferia daquela esfera, como uma emamação da mesma, uma segunda esfera em redor da primeira. Assim, a esfera da desordem permaneceu por fora da esfera da ordem. Podemos, desse modo, formar uma imagem espacial do estado do Todo, após sua queda, imagem que, em outro plano, exprime bastante bem as suas condições de existência. Temos, então, duas esferas, tendo ambas o mesmo centro, Deus, em redor do qual tudo gravita, tanto o Sistema, como também o Anti-Sistema, não obstante este procure afastar-se. Isto significa Deus continuar como Chefe a dirigir tudo, não só a ordem do Sistema, como também a desordem do Anti-Sistema. Por isso, há salvação para este; doutra forma, seria impossível. E assim, o período involutivo da descida pode inverter-se no período evolutivo da ascensão; ora, entre as ruínas do desmoronamento, pode subsistir um impulso de reconstrução e de progresso; o caminho da evolução encontra a sua meta em Deus e é possível estabelecer o seu telefinalismo. A maravilha do atual estado da criação, é a desordem ter sido imediatamente contida, pela previdente sabedoria de Deus, dentro dos limites devidos e enquadrada em outra ordem maior, que circunscreve, dirige e saneia a desordem. Por aí se vê quanto são infundadas as objeções que acusam Deus de falta de conhecimento, por não haver previsto e evitado o desmoronamento. Ao contrário, vemos aqui como este, permitido pelas razões já vistas, voltou a ser retomado e reorganizado sob a invencível direção de Deus.

Temos, então, ao centro, uma esfera de substância, de sinal positivo, e, na periferia desta, uma outra esfera de substância, que, a partir da revolta, se inverteu num sinal negativo. Já explicamos as características do Sistema e do Anti-Sistema, e dissemos que positivo significa felicidade, ordem, inteligência, bem, amor etc., e negativo exprime os valores opostos. Dessa forma, podemos imaginar a primeira esfera feita de luz, paz e harmonia; e a segunda feita de trevas, de dissídios, de ódios. A primeira representa o paraíso, a segunda o inferno. Enquanto nesta as qualidades paradisíacas crescem com a aproximação do centro – Deus –, na outra esfera aumentam as qualidades infernais pela aproximação com a periferia, ou seja, pelo afastamento do centro – Deus.

Considerando esta atual estrutura do Todo, verificamos que se chama queda a representação do percurso que vai da superfície da primeira esfera à periferia da segunda. A inversão dos valores se torna cada vez mais profunda, à proporção que se percorre esse trajeto, caminho de descida ou involução. É nesse percurso que todos os elementos, saídos da esfera do sistema de sinal positivo adquirem de forma plena o sinal negativo. É esse o processo do desmoronamento. Chegados à periferia do Anti-Sistema, o desmoronamento está completo, a ordem do Sistema naufragou totalmente no caos do Anti-Sistema. Neste ponto os efeitos da revolta estão terminados e esgotou-se o impulso centrífugo do emborcamento. Anulou-se, então, o impulso e não funciona mais. Nesse momento pode tornar a fazer-se sentir o impulso de atração centrípeta, emanado de Deus, que continua sempre no centro de tudo. Começa assim o processo de reabsorção de todos os valores negativos, saneando-os até se tornarem positivos por meio da evolução. Assim se realiza o que se chama redenção. Dessa maneira, volta tudo ao estado de perfeição originária e desaparece o tumor do Anti-Sistema.

No Capítulo IV dissemos que o fenômeno da queda compreende um circuito completo de ida e volta, denominado “ciclo”. Divide-se este ciclo em dois períodos: involução e evolução. Cada período se divide em três fases: espírito, energia e matéria, nesta ordem, no período da descida e, na ordem inversa, no da subida. Ora, de acordo com esta nova concepção esférica do fenômeno, o ponto de partida da queda – ou projeção fora do Sistema – é o espírito, e nem podia deixar de sê-lo. No primeiro momento de sua expulsão do Sistema, a criatura ainda conserva as suas qualidades, ainda de espírito. Mas, quanto mais dele se afasta, tanto mais se acentua a transformação em direção involutiva, e a substância assume outra forma: a energia. Continuando ainda, nasce dela a matéria. Por isso, o fenômeno astronômico da formação da matéria surgindo da energia, na formação das galáxias, pertence à última fase do processo involutivo, se concluído se inicia o caminho inverso, não mais involutivo mas evolutivo e isto ocorre na periferia do Anti-Sistema. Na matéria, temos o ponto mais afastado de Deus, o ponto mais periférico do Todo, constituído pelas duas esferas concêntricas. Assim se explica a instintiva e nítida contraposição em nosso mundo, como de dois opostos inconciliáveis: espírito e matéria.

A concepção esférica dá-nos a imagem, também, de outro fato. Em sua fuga da esfera central do sistema, os elementos rebeldes que vão constituir a esfera maior, externa, do Anti-Sistema, vão encontrar-se disseminados num espaço cada vez maior. Há realmente um processo de afastamento entre os elementos, ao aumentar a inimizade e a luta. Ao invés de se estreitarem, compactos, em torno de Deus, como no Sistema, numa unidade orgânica, cada um deles pretende tornar-se, o centro, que para fazer-se obedecer emprega a força, causando dano. Efetivamente, tudo tende a afastar-se da unidade, a quebrar-se, a pulverizar o egocentrismo central e a unidade do Sistema, numa infinita multiplicidade de egocentrismos, repelindo-se para formar um caos, invés de atrair-se para formar um organismo. Assim como no Sistema domina a subordinação, aqui domina a insubordinação.

Mas, em dado ponto o movimento se inverte e a expansão gangrenosa é pouco a pouco sancada; e à proporção que é saneada, o Sistema vai absorvendo-a, de tal forma a abarcar em seu seio, de volta, todos os seus elementos componentes, tal como no estado de criação original. Tudo o que se achava no estado de matéria, cisão, inferno, volta ao estado de espírito, harmonia, paraíso. No fim de todo o processo, desaparece o Anti-Sistema. Os egocentrismos que se repeliam tornam a fundir-se para colaborar organicamente e recompõe-se a unidade do Todo. Como involução havia significado expulsão, evolução significa reabsorção: os dois movimentos compensados, inversos e complementares, se equilibram. Dessa forma, a energia é prisão do espírito, como a matéria é energia condensada. Se o primeiro movimento vai na direção do aprisionamento, o segundo segue a direção da libertação. Por isso a matéria deve ser reabsorvida pela energia e esta pelo espírito. No fim, tudo termina em Deus, ponto de partida. Deus é sempre o centro de tudo. E tudo se reduz a um movimento que, partindo de Deus, volta a Deus. O ponto “alfa” coincide com o ponto “omega”.

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O Anti-Sistema é essencialmente centrífugo, periférico, anti-central, negativo. Primeiramente foi expelido, depois é atraído novamente e reabsorvido no Sistema. A iniciativa compete apenas ao Sistema, partindo de seu centro, Deus. Ao Anti-Sistema compete apenas obedecer a essa iniciativa. Assim à obediência livre de origem se substituiu esta outra obediência forçada, pela qual o ser é constrangido a enfrentar a fadiga da evolução.

O Anti-Sistema é apenas um Sistema às avessas, onde as criaturas decaídas procuram reconstruir, arremedando o Sistema. Mas, pela posição que assumiram, só podem construir de forma inversa, isto é, destruir. Anti-Sistema quer dizer Não-Sistema, negação do Sistema; quer dizer a potência desagregadora do caos, a lógica do absurdo; uma esfera cujo centro de atração é a periferia, onde atinge o máximo da plenitude, feita de cisão e destruição; quer dizer um organismo desorganizado que, para recuperar a sua existência, precisa ser rebocado em sentido contrário ao organismo que permaneceu íntegro. Para salvar-se e reconquistar a vida, o Anti-Sistema precisa negar-se a si mesmo, corrigir à própria custa o mal que fez e deve tornar a subir com o próprio esforço o caminho por onde quis descer.

Como Deus está situado no centro do Sistema, assim Satanás está situado na periferia do Anti-Sistema. Como Deus representa o vértice da espiritualidade, assim Satanás representa o fundo do abismo da matéria. Deus é uno, Satanás está dividido na infinita multiplicidade dos elementos atômicos da matéria. O Anti-Sistema é um pseudo-Sistema, que só pode possuir pseudo-valores. A força do mal é uma pseudo-força, que se baseia toda em nossa fraqueza, resultante da posição de involuídos. As forças do mal não têm poder algum sobre o evoluído espiritualizado; o poder é qualidade do espírito e se conquista subindo, mediante a evolução para o Sistema.

Satanás é a antítese da centralidade de Deus e, representa a máxima excentricidade, está no limite extremo da periferia, no estado de máxima dispersão da centralidade. No Anti-Sistema triunfam os egocentrismos, egoisticamente separados em infinitas individualidades inimigas; no Sistema triunfa o egocentrismo orgânico unitário, onde os egocentrismos menores se fundem, ao invés de se eliminarem.

A tentativa dos rebeldes de substituir-se a Deus faliu completamente, ao ponto de, se quiserem salvar-se, precisarem ser ajudados pelas forças do Sistema, contra o qual se haviam rebelado. Querendo emborcar o sistema, só conseguiram emborcar-se a si mesmos. De sua obra nasceu apenas o mundo do mal e da matéria, mundo do engano e da ilusão. Tudo corresponde a uma logicidade tremenda e fatal. Um Anti-Sistema constituído por excluídos do Sistema, só podia ser um pseudo-organismo, onde tudo é contrafação, tudo é tão absolutamente negativo que tende sempre à destruição, ao invés de tender à construção, até chegar à própria autodestruição.

Assim, as construções executadas pelas forças do mal são pseudo-construções; as obras com as quais quereria imitar os modelos do Sistema, são abortos; suas unificações, que desejariam reproduzir o modelo do Tudo-Uno-Deus, são pseudo-unificações, que não conseguem manter-se em pé senão pela prepotente imposição da força de um chefe. Vimos que, no Sistema, os seres estavam vinculados apenas por uma disciplina espontânea de indivíduos livres e convictos, e não por uma disciplina forçada, pesando com força sobre escravos. No Anti-Sistema, a unidade que se procura atingir baseia-se no princípio oposto. Podemos ter uma idéia disso, observando o método usado pelo homem para constituí-la. E é lógico assim ocorrer, pois grande parte de nosso mundo, a ainda não emersa pela evolução, pertence ao Anti-Sistema.

Em nosso mundo, as unificações não são feitas por livre convicção, mas pela força, material ou moral. Os impérios são forjados com a guerra. A disciplina interna das nações é imposta pela polícia ou pelo exército. Não é o povo que escolhe, elegendo um chefe (os sistemas eletivos não o são em absoluto), mas é o chefe que, por ser o mais poderoso, conseguiu vencer todos os outros pretendentes, fazendo-se livremente escolher pelo povo, em grande parte sugestionado e inconsciente. O governo não serve o país, mas em muitos casos se serve do país para manter-se no poder. Eis aparecer, plenamente, no exercício do poder o egocentrismo separatista do Anti-Sistema. Na prática, não se tem concebido o poder como função social, em benefício da coletividade, como deveria ocorrer de acordo com os princípios do Sistema; ao contrário, tem sido concebido antes de tudo como utilidade própria, pessoal, no sentido separatista e não colaboracionista. Assim, seguindo os princípios do Anti-Sistema, o homem tende, em todas as funções sociais, a fazer prevalecer o próprio interesse egoísta sobre o do próximo. As religiões tendem ao sectarismo, a formar o próprio grupo para coordenar os que estiverem de fora. Na Terra, tudo toma a forma de “partido”. Domina a psicologia do Anti-Sistema, pela qual só lutando, excluindo e dominando se atinge a unidade. Como no Anti-Sistema, existe na Terra o motivo da unificação, mas às avessas. Encontramos, então, uma unificação, para agredir, para dividir, e não para unir. É um irmanar-se, para fazer guerra; um abraçar-se, para lutar contra os outros. Com o proselitismo, procura construir-se uma unidade cada vez mais forte, para que, quanto mais forte, tanto mais inimigos podem ser destruídos e tanto mais indivíduos podem ser dominados. Quanto mais bela e grande for esta unidade, mais prosélitos tiver feito, mais gente se conquistou, mais inimigos foram vencidos, tanto mais se consegue dominar sobre todos e tudo. Esse é o método de construção às avessas, do Anti-Sistema.

E o resultado é da mesma natureza. Uma unificação que se baseia no constrangimento e no esmagamento, permanece sempre ameaçada pela revolta de outros egoísmos, que tentam conquistar a primazia, usando o mesmo método e seguindo os mesmos princípios. O fato de permanecermos ainda no terreno do Anti-Sistema, implica em estar pronto a voltar a cada momento, o motivo da revolta, do egoísmo separatista, próprios da criatura decaída ainda não regenerada. Assim se explica como, não obstante tantas tentativas de unificação e tanta força e astúcia para mantê-las de pé, elas se encontram sempre prontas a cair, porque nas organizações desse tipo, a revolta está sempre latente, e deve ser contida constantemente por uma força maior. Logo que esta cesse, tudo desmorona. Por isso, diz o Envangelho que “quem usa da espada, perecerá pela espada”, e que a violência só pode ser vencida pela não-resistência. A violência atrai violência. Tão logo surge na Terra uma unidade nascida desses princípios, contra ela nasce outra unidade inimiga. Este fato só se explica com estas considerações, explicando também como todas as construções humanas se desmoronam, sendo superadas por outras. Caem assim impérios, as revoluções substituem uma ordem social por outra, ruindo um após outro, todos os governos; os partidos são feitos e refeitos, e os próprios homens se colocam em um e outro, numa contínua reorganização. Tudo se baseia na força, seja de armas, seja econômica, seja de número, mas na força. E todos se apegam a esta, porque é a única defesa no Anti-Sistema, sabem que, se falharem, estão perdidos.

Quem está assim, imerso no Anti-Sistema, não compreende que o verdadeiro inimigo não é o outro grupo ou partido ou quem dele faça parte, mas é o método tão invertido, com que se pretende construir; não percebe que assim só podem fazer-se construções fictícias e temporárias, sempre prontas a desmoronar. A tendência lógica e sadia, inerente à evolução, é a de reconstruir a unidade do Sistema, agora desmoronada, qual existia na origem. O erro consiste em querer atingi-la com a força e o espírito de domínio próprios do Anti-Sistema. Se o Evangelho aconselha o método oposto, há de haver uma razão profunda, exatamente a que estamos explicando. Não há dúvida de, nos planos inferiores, só poder ser usados os métodos do Anti-Sistema que aí domina. Mas, é também certo de não poder esperar-se, desses métodos, nenhum fruto melhor, do que os contínuos desastres que ocorrem nas coisas humanas. Sendo corrompido pelo separatismo, tudo o que provém do Anti-Sistema só pode produzir destruição. Isso tudo constitui o verdadeiro perigo e o inimigo, a ser vencido e dominado. Só quando nos libertarmos dele poderemos chegar a construir. Replicam: mas se eu não me defender, e se para isso não me filiar a um desses grupos, usando tais métodos, serei subjugado pelo mais poderoso. E assim, arrastados pelo mesmo egoísmo, permanecemos todos mergulhados no pântano. O triste fruto por nós colhido, sabemos agora de que planta nasce; sabemos ser os males que sobre nós pesam, a conseqüência lógica de nossas premissas; sendo justificados e bem merecidos. Só há um caminho de saída: conseguir o homem superar, com seu esforço, o seu atual grau de evolução, isto é, sofrer tanto as duras conseqüências de seu atual sistema de vida, até aprender a lição e se pôr em outro rumo, agindo com mais inteligência. O útil não consiste em vencer um inimigo, pois logo surgem outros, num inferno permanente e sim em vencer o sistema da força, fugindo do Anti-Sistema.

A psicologia corrente do homem atual só pode ser compreendida se considerarmos o Anti-Sistema. As objeções mesmas que estamos resolvendo, explicam-se como seu produto. O homem acha-se ainda imerso nele, até o pescoço. O resto pertence mais aos ideais, considerados utopia pelos homens práticos, à vida vivida; pertence às intuições antecipadas das realizações futuras. Entre estas se encontra o Evangelho. Os dois extremos do ser, Sistema e Anti-Sistema, continuam frente a frente mesmo em nosso mundo. Mas o segundo é forte, dono de seu terreno – a matéria – ao passo que o primeiro é ainda uma luz fraca que desce do céu, e que só os mártires e santos transformam em vida. Os dois sistemas se opõem, cada um com suas características. Em baixo, no nível humano, perdeu-se o sentido orgânico do Sistema. Neste, cada um existe em função do todo; no Anti-Sistema todos existem em função do vencedor mais forte. O princípio da revolta obrigou, como conseqüência lógica, a hierarquia do Sistema a inverter-se na anarquia do Anti-Sistema. O homem que está situado ao longo da estrada, acha-se no meio do choque entre os dois impulsos opostos: a matéria quer sufocar o espírito e o espírito quer libertar-se da matéria. Esses dois elementos são verdadeiramente opostos e inimigos, dois extremos irreconciliáveis. Não podem coexistir em absoluto plenamente. Vida de um significa a morte do outro. E o homem deve realizar em si mesmo, através da evolução, o esforço de transformar a matéria, para levá-la novamente ao espírito. Dessa forma, o próprio trabalho que agora estamos realizando nestes livros, enquadra-se na concepção cósmica que vamos aos poucos neles explicando, enquanto procura ajudar esse processo de espiritualização. Uma coisa nos conforta: ver o que está acontecendo é uma novidade, ou seja, no mundo, hoje, se torna cada vez maior o número dos que conseguem perceber fazer parte de uma humanidade nada civilizada, antes, substancialmente feroz e bem primitiva. Deste fato, a humanidade dos séculos precedentes se apercebia muito menos, tal como o animal e o selvagem não percebem ser. Perceber significa começar a afastar-se, notando uma diferença antes não notada; significa chegar a compreender, como concebível, o que antes escapava irremediavelmente no inconcebível. Isto significa estar o homem começando a pressentir uma vida sua diferente, a sua vida mais evoluída de amanhã.

Dessa forma, o conhecimento libertará o homem, pois o que sabe, conhece a lei e não é mais constrangido à obediência pelo castigo das sanções de dor, efeito do erro. O que sabe, obedece por adesão espontânea, porque compreendeu toda a vantagem individual da obediência, a utilidade própria em não violar a Lei. A verdadeira liberdade, a que conduz à felicidade, consiste em conformar-se com a Lei, e não em colocar-se como prisioneiro dos baixos instintos, fazendo-nos recair no inferno do Anti-Sistema.

 

 

Nos três capítulos precedentes desta segunda parte de análise e crítica, repetimos a visão já descrita, num quadro cada vez mais completo e evidente nos termos da lógica humana, com a finalidade de controlar racionalmente o que a inspiração já produziu. Agora, depois da visão de conjunto já ter passado toda diante de nossos olhos e termos idéias mais claras a seu respeito, podemos passar a responder às várias objeções que nos fizeram e nós mesmos levantamos. Não só pedimos aos outros que no-las fizessem, como de propósito as procuramos, pois as dificuldades eram de grande utilidade a fim de verificarmos se algo nos havia escapado, ou não tivesse sido bem focalizado, ou se alguns pontos não estavam bem esclarecidos, para explicá-los melhor, até à evidência, e assim confirmar, mais uma vez, a convicção da verdade de tudo quanto foi exposto. Esse novo trabalho será útil também para completar ainda mais o quadro geral da visão, para sobre ela realizar um controle cada vez mais exato, confrontando-a com as suas conseqüências, que vemos reaparecer na estrutura de nosso mundo; servirá para encontrar novos pontos de vista e para ver o nosso tema sob novos aspectos; servirá para entrar em pormenores esquecidos; para iluminar ângulos que haviam passado desapercebidos; servirá, enfim, para continuar a levar a bom termo o trabalho de análise e de crítica, que estamos realizando.

As dificuldades nascem, em geral, do fato de não se conhecer bem o argumento ou de se querer, por força, fechá-lo dentro de premissas dogmáticas de uma religião ou filosofia, ou dentro de conceitos limitados, fruto de um passado em que o homem não podia penetrar nos problemas, como hoje permitem os novos princípios sobre os quais se baseiam a ciência e todo o pensamento moderno. Para compreender profundamente este quadro do universo é mister possuir a cultura que o homem hoje já atingiu e a maturidade espiritual das gerações do ano 2.000. Só então estes livros serão compreendidos. Neste século estamos em fase de debate, e não de compreensão. Somente agora, vinte anos depois de ser escrita, é que se começa a compreender A Grande Síntese; mas ainda será necessário para se compreender o volume Deus e Universo, e o presente livro, O Sistema, que completa e confirma o segundo. A nós basta confiar estas obras à imprensa, a fim de poderem resistir à destruição humana e superar a barreira do tempo. O resto pertence a Deus. Ele, de Quem aqui tanto se fala, sabe porque nasceram estes livros e o uso que deles fará.

Uma acusação que parece grave, foi feita às teorias aqui apresentadas, com o seguinte dilema, parecendo sem saída. 

“É um fato inquestionável a existência do mal, da dor etc. Ou seja, existe no seio da obra de Deus uma força contrária, Sua inimiga. Se tão grande mal derivou de Deus, seu é o defeito e, portanto, não é perfeito, é injusto e culpado de tantos males. E se não derivou de Deus, mas teve uma origem própria, um Deus que não previu o dano do próprio Sistema não é onisciente, e um Deus incapaz de livrar-se do mal não é onipotente”.

A objeção é feita sob forma de dilema, aprisionando o pensamento entre duas paredes sem meio de escapar. Mas o pensamento só ficará preso ali se, ou, até quando as paredes forem fortes e reais. No caso deste dilema elas parecem fortes, mas caem logo que se compreenda a realidade das coisas. E, derrubados os pontos de apoio, o dilema perde todo o valor.

A objeção procura demolir a divindade em seus primeiros atributos: a perfeição, a onisciência e a onipotência. Partindo do fato positivo de o mal e a dor existirem em nosso mundo, procura-se jogar a culpa de tudo isso sobre a Divindade, que poderia ter feito melhor as coisas. E o “melhor” para o homem que julga é apenas o seu egoístico bem-estar. Este foi lesado, e então, aplicando ainda hoje o princípio do egocentrismo revoltado e os métodos de divisionismo do Anti-Sistema onde caiu, o homem vai imediatamente lançar a culpa dos outros, em todos, mas nunca em si mesmo, sem pensar que Deus deve ser também justo. Embora sendo uma criatura situada no relativo, o homem pretende julgar Deus e o absoluto.

O primeiro ponto do dilema ataca a perfeição de Deus. É certo não ter o nosso mundo as qualidades do Sistema, mas as do Anti-Sistema. Isto é claro. Ora, se o próprio fato é uma prova da queda, porque é absolutamente inadmissível que uma obra tão imperfeita como é o Anti-Sistema, possa ter saído diretamente do seio da perfeição de Deus. Ao invés, tudo se explica logicamente se admitirmos que o Anti-Sistema não deriva diretamente de Deus, que criou apenas o Sistema perfeito, continuando perfeito. Ele mesmo. O Sistema só mais tarde se corrompeu por obra da criatura livre, fato do qual nasceu, como só podia nascer, a obra imperfeita. É lógico, não agradar ao homem essa teoria, pois implica na sua culpabilidade e no dever de aceitar-lhe as conseqüências. E aceitar com obediência é justamente a qualidade mais deficiente do ser rebelde, e continua ainda a fazer falta em nosso mundo, conseqüência direta da revolta e da queda. Não há portanto contradição entre a perfeição de Deus e a imperfeição de nosso universo. E nem se pode falar de injustiça em Deus. O estado atual é precisamente o efeito de Sua justiça. Quem compreendeu, como está acima escrito, o desenvolvimento de todo o fenômeno, vê de imediato quanto sejam ingênuas e inaceitáveis essas objeções.

Então, a primeira parte do dilema está errada. Vejamos a acusação contra a onisciência de Deus. Afirmar que Deus não havia previsto a ruína, significa nada haver compreendido do que ocorreu. Com efeito, uma criatura constituída pela própria essência divina não podia deixar de ser livre. Ora, liberdade implica na possibilidade também de uma desobediência, liberdade de qualquer coisa, ou então não é liberdade. Ora, o fato de tudo ter sido previsto, mesmo uma possibilidade de revolta, e as conseqüências que vemos serem automaticamente tomadas para o processo de saneamento, é uma prova em favor, e não contra, a onisciência de Deus. Quem compreendeu o exposto, viu que o sistema tinha sido provido de todas as qualidades que lhe pudessem depois permitir a recuperação da saúde perdida, como de fato está ocorrendo com a evolução, que leva todas as coisas ao estado íntegro da origem.

Errada está também a outra parte do dilema. Vejamos a última parte, atacando a onipotência de Deus. Não poderemos afirmar não ser Deus capaz de libertar-se do mal, efeito da queda. Ele está se libertando do mal porque o Anti-Sistema está em processo de cura, tudo voltando fatal e automaticamente ao estado de Sistema perfeito. O erro do dilema consiste em acreditar ter as forças do Anti-Sistema o mesmo poder que as forças do Sistema. Não é assim. Ao contrário, Deus permaneceu senhor de tudo, do Sistema e do Anti-Sistema, da mesma forma que o nosso “eu” é senhor de todas as células, tecidos e órgãos de seu corpo, não só da parte sadia, mas também da parte doente. É à parte sadia que a natureza se encarrega de trabalhar para levar a saúde à parte doente. Lembremo-nos que Deus é o centro único de tudo, tanto do Sistema como do Anti-Sistema. Segue-se daí continuar este último a depender e ser dirigido pelo mesmo centro único que, através do Sistema, penetra totalmente o Anti-Sistema, onde Deus transcendente reaparece em Sua forma de imanente. Acontece, então, não podermos atribuir às forças do mal um poder próprio absoluto, uma existência autônoma independente, mas apenas um poder e uma existência em função das forças do bem, as mais fortes, forças de Deus que regem o Sistema e o Anti-Sistema; portanto, também o mal lhes deve obedecer. As potências rebeldes da desordem estão, pois, subordinados às obedientes da ordem e, como tais, não podem deixar de dar sua contribuição, embora em forma invertida, no negativo, como resistência, como banca de exame e experiência, para a vitória do bem. Satanás, é mister compreendê-lo, só é inimigo de Deus aparente e superficialmente. Em sua substância, em profundidade, é o escravo de Deus. O próprio Satanás dá assim, embora numa forma especial, como também deu Judas, a sua contribuição para a realização da redenção. Todas as vezes que as forças do bem se encontram com as forças do mal, nos achamos diante de um choque tremendo entre as potências cósmicas do Sistema e do Anti-Sistema, que lutam para vencer sempre as primeiras, que regem e dirigem a evolução e são a alma do progresso.

Como se vê, a solução das dificuldades nos conduz por fim, a esclarecimentos relativos ao estado real das coisas, sem conhecimento por quem faz a objeção, por não possuir uma orientação somente conseguida através de uma visão completa de todo o fenômeno. E, infelizmente, a humanidade de hoje ainda não possui essa visão completa, nem nas religiões, nem na filosofia, nem na ciência.

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Outro dilema foi colocado em oposição à teoria da queda:

“Ou Deus criou os espíritos já sábios e, então, eles não podiam cair; ou criou-os ignorantes e não podiam ser considerados culpados portanto, não podiam ser punidos”.

Também este dilema é derrubado, por não possuir pontos de apoio, pois os seus pontos de referência são outros, e resultam de um estado diferente. A resposta a esta objeção permitir-nos-á focalizar melhor o problema do conhecimento. O fato é não ter as coisas se passado como afirma o dilema. Deus não criara os espíritos nem totalmente sábios, nem completamente ignorantes, mas, como acima explicamos, a cada espírito fora dado um conhecimento proporcional à sua posição na hierarquia, de acordo com a necessidade em executar sua função. Façamos uma comparação com o corpo humano, como unidade coletiva. Os espíritos do sistema se acham diante de Deus, em conhecimento, tal como a inteligência e o conhecimento que dirigem o funcionamento dos elementos do corpo humano se acham diante da inteligência e do conhecimento do eu central, que dirige o funcionamento de todo o nosso organismo. Cada elemento tem seu devido lugar na hierarquia, constituída por natureza e funções diversas, mas todas coordenadas e necessárias, numa estrutura orgânica. Isto desde o átomo até à combinação de átomos e moléculas, destas às células, destas até aos tecidos, até aos órgãos, e destes até ao organismo todo. Não importa ser o elemento consciente ou não de seu trabalho. O fato dele o executar demonstra, de qualquer modo, que o conhece. Para cada elemento, tudo está proporcionado à sua posição. O conhecimento, nos elementos do Sistema, está subordinado ao conhecimento do elemento superior, segundo a escala hierárquica, até o limite superior, Deus, o único verdadeiramente onisciente. Então, o conhecimento tem um sentido muito diferente do que o dilema afirma. A posição dos espíritos a este respeito não era absoluto, como se imagina.

Tratava-se de um conhecimento que precisava completar-se com o conhecimento dos outros elementos, os quais, em conjunto, se completavam na onisciência do eu central. Havia, portanto, uma hierarquia no conhecimento, como havia uma hierarquia nas funções regidas por esse conhecimento. Pode-se compreender, desta maneira, como deve ter ocorrido a queda e o desastre que ela produziu, quando as células do organismo, ao invés de continuarem a viver disciplinadamente, em função da ordem geral, quiseram tornar-se independentes dela, e se puseram a funcionar anarquicamente, como ocorre com as células do câncer numa sociedade de células disciplinadas, num organismo sadio.

O desastre da revolta foi devido a uma exagerada super-estimação do próprio eu, por parte dos espíritos rebeldes que quiseram, dessa maneira, sair da ordem da lei como lhes fora designada. E ainda agora, o homem tende a recair, a cada momento, nesse mesmo erro, desobedecendo a Lei de Deus, mais fiel, neste caso, aos princípios do Anti-Sistema no qual caiu, do que aos do Sistema do qual proveio. E assim voltam sempre a soberba e o egoísmo, como efeito e eco daquela primeira vontade de querer tornar o seu próprio pequeno “eu”, o centro de tudo. Esse erro foi previsto pela onisciência de Deus, como se prova pelo fato de o Sistema já ter sido antes provido dos meios automáticos necessários à recuperação e ao restabelecimento. Todavia, esse erro não fora previsto pelo conhecimento menor, próprio dos elementos componentes, os quais, justamente porque menores, ou seja, menores também no conhecimento, não possuíam a onisciência própria do centro, Deus. Daí a possibilidade da queda. Mas é fácil imaginar o que acontece – como no caso do câncer ou em qualquer organismo composto de elementos que tenham funcionamento coordenado – quando as células ao invés de aceitar a disciplina imposta pela lei de todo o organismo, pretendem assumir, cada uma delas, funções de direção. Um elemento componente se perde ao sair do funcionamento orgânico de um corpo, como um todo. Por isso, tanto no Anti-Sistema como no câncer, tudo desmorona na dor, no mal e na morte. Acontece isto porque os seres menores, construídos para viver em função de outros, e todos em função do todo orgânico, ao colocarem-se na posição de primeiros, em lugar de últimos, e ao assumirem funções de direção que não conhecem, emborcam o Sistema, que assim aparece invertido, ao negativo, com as qualidades opostas. Acontece o que fatalmente aconteceria se um soldado se fizesse general ou um simples cidadão, chefe de Estado.

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Já que estas objeções perdem o sentido, após os esclarecimentos prestados acima, continuemos a focalizar cada vez com maior exatidão outros pormenores da teoria da queda. Estudamos o problema da perfeição, onisciência e onipotência de Deus, depois o do conhecimento da criatura. Observemos, agora, qual a sua posição em relação à liberdade.

Para resolver estes problemas é necessário lembrar-se de que o Sistema não era constituído por Deus de um lado e uma multidão de seres do outro, todos iguais, dependentes de Seu comando caprichoso. Num Sistema perfeito não pode haver arbítrio. O Sistema era construído de forma totalmente diversa. Os seres estavam hierarquicamente coordenados um em função do outro, constituindo, assim, todos em conjunto, uma unidade orgânica, da qual o próprio Deus fazia parte, pois Ele era constituído por aquela unidade da qual todos os seres faziam parte. Por isso, tudo existia num estado de fusão, o Criador nas criaturas e as criaturas no Criador. Podemos ter uma idéia disso ao observar o corpo humano, que temos motivos para presumir seja uma reprodução, embora mínima, daquele modelo. Os espíritos representavam, em relação a Deus, o que são as inteligências das células, dos tecidos, dos órgãos etc., em nosso organismo, em relação ao eu central que o rege, todo na sua unidade. Existe, assim, uma hierarquia de inteligências e de funções, subordinadas ao centro, que domina e unifica tudo, e constituindo com ele um só ser, uma unidade orgânica, num todo coletivo.

Num Sistema assim, um conceito de liberdade-capricho, feita de arbítrio que possa mover-se loucamente, não pode existir. Tal como as células em nosso corpo também no sistema, cada criatura era livre, mas dentro das margens de disciplina que rege o todo. Livre, mas sempre em função do todo. Essa disciplina representa a primeira condição da vida de qualquer elemento que faça parte de um organismo. Só nesse sentido pode entender-se a liberdade dentro do Sistema. Como no organismo humano, havia aí uma lei superior que regulava tudo e ai de quem dela se afastasse.

O Anti-Sistema representa precisamente o afastamento dessa lei. Se nosso ser físico-espiritual em estado de saúde pode dar-nos uma idéia do Sistema, nosso ser em estado de doença nos dará uma idéia do Anti-Sistema. O Sistema decai no Anti-Sistema tal como um corpo sadio quando adoece. Mas não é por isso que o doente se torna outro homem, nem seu corpo passa a depender de outro centro, ou de outro eu. Ele continua sendo o mesmo ser de antes, mas apenas, ao invés de estar são, se acha num estado diferente, chamado patológico. O seu “eu” central permanece o mesmo, com as mesmas funções de direção suprema, como Deus permaneceu também, em seu aspecto imanente, em nosso universo desmoronado, ou Anti-Sistema. Em ambos os casos o eu central permanece dentro do organismo e quando adoece aí permanece, justamente para curá-lo, como faz qualquer organismo que luta para curar-se de sua doença. O estado de perfeição (Sistema) representa um estado de saúde, enquanto o estado de imperfeição (Anti-Sistema) representa um estado de doença.

Dessa forma, a criatura só podia existir com funções bem definidas em relação ao funcionamento geral. Pode, para o homem, não ser facilmente compreensível este conceito de liberdade determinística, pelo fato de, estando ele situado no Anti-Sistema, ser levado a conceber tudo às avessas, e portanto a compreender a liberdade como um direito à revolta e ao abuso, como um arbítrio do “eu” que sobrepõe à Lei. Para o ser perfeito, a liberdade só pode ser uma: a de existir de acordo com a ordem dessa perfeição, porque sem esta ordem não pode existir perfeição. A cisão entre livre-arbítrio e determinismo é um produto de nosso estado dualístico de decaídos da unidade. Só no Anti-Sistema podem reinar a imperfeição, a ignorância, a incerteza. E por isso, só aqui pode existir o livre-arbítrio, pois a escolha só é possível onde ainda não se conhece o caminho melhor, o qual só pode ser um, o único perfeito.

Em última análise, no Sistema, como no Anti-Sistema, sendo tudo regido por Deus, a Sua perfeição exige tudo ser determinístico. Ao desmoronar na matéria, o ser perde a consciência e todas as demais faculdades diretivas. A Lei o substitui completamente em tudo e ele fica totalmente sujeito ao determinismo escravo a que também está sujeita a matéria. Evolvendo, o ser desperta sua consciência, significando reencontrar a Lei, compreendê-la e perceber cada vez mais o prejuízo e o absurdo de revoltar-se contra ela. Isto também significa começar a colaborar, reentrando assim, pouco a pouco na ordem, o que quer dizer assumir cada vez mais funções diretivas de operário da Lei e de instrumento de Deus.

Então, com a experiência da queda, acontece que, quanto mais se evolui, tanto mais a liberdade se torna liberdade de obedecer à Lei e sempre menos vontade de desobedecer-lhe. De modo que, a liberdade suprema das criaturas, no sistema perfeito, nós só a podemos entender com liberdade de obedecer a Deus, espontaneamente, por livre adesão, vivendo perfeitamente harmonizados em Sua ordem.

 

 

Inicialmente, procuramos entender quais eram os atributos de Deus, depois como operou a criação e em que consistiu. Procuremos agora compreender como ocorreu a revolta e como se deu. Começamos aqui com as dúvidas, as dificuldades, as críticas. Aqui principia a revolta contra a teoria da revolta.

Resumamos. Os conceitos desenvolvem-se presos numa concatenação estritamente lógica. Deus deve ser tudo. Se algo existir além Dele, que não esteja em função Dele e que não dependa Dele, então Deus não é mais Deus. Esse algo poderia ser Seu inimigo. E isto destruiria a Sua Onipotência. Nasceria daí um dualismo que destruiria a Sua unidade.

Se, pois, nada pode existir fora de Deus, Ele teve de criar dentro de Si mesmo. Isto significa ser a criação derivada da própria substância de Deus. Nós podemos criar coisas novas tomando uma substância fora de nós, porque somos uma parte no todo. Mas se fôssemos tudo, teríamos de retirar a substância de dentro de nós mesmos.

Não podemos admitir ser esta substância divina de natureza material, mas apenas espiritual. Ora, a não ser que admitíssemos ser Deus de natureza material, o que não poderíamos compreender e não saberíamos como o nosso universo, constituído em grande parte de matéria, possa ter sido o resultado direto desta primeira criação – a espiritual. Assim, uma parte de nosso universo, o espírito, pode representar uma derivação direta da substância divina, mas não, de certo, a outra que é matéria. Entre Deus e a matéria há um abismo. Como preenchê-lo? Dá-se aqui uma mudança de natureza, só explicável com a intervenção de um fato novo, ocorrido depois, e tão grave que chegou a mudar as características da primeira criação originária-espiritual, nas de uma segunda, que tem qualidades opostas. Espírito e matéria, com efeito, sempre foram contrapostos um ao outro como dois extremos irreconciliáveis. E eis aqui despontar novamente, como acima notamos, a necessidade lógica de um fato novo, sem o qual não poderemos jamais justificar, diante de Deus, a constituição de nosso universo, se o considerarmos um produto da primeira criação espiritual. De fato, como poderia um universo, cindido em tal dualismo, ser a emanação direta de um Deus, cuja primeira qualidade é justamente – e não pode deixar de ser – a sua oposta, ou seja, a unidade?

Eis que a lógica impõe esse fato novo. Qual teria sido ele? Não pode ter sido o acaso, excluído pela perfeição do Criador e de Sua obra. Não pode ter sido o capricho de Deus, outro absurdo inaceitável. O fato novo devia representar a continuação da concatenação lógica, sempre respeitada até agora. A teoria da revolta e da queda representa a continuação desta lógica. O problema é compreender todos os elementos que constituem o fenômeno. É o que procuraremos fazer agora, nesta segunda parte, da análise e crítica.

Comecemos estabelecendo o valor desses elementos. Essa teoria da revolta e da queda torna-se, muitas vezes, inaceitável porque não se conhecem aqueles elementos e nasce uma confusão acerca do estado real das coisas. O problema, pois, para responder a todas as objeções, consiste em explicar e esclarecer todos os pontos de vista, as causas e o desenvolvimento do fenômeno. Mas tarde voltaremos à argumentação e então responderemos mais extensamente a cada uma das dificuldades que nos foram lançadas por outros ou por nós mesmos procuradas. As objeções giram em torno dos temas da perfeição de Deus e de Sua obra, que seriam motivo bastante para que fosse impossível ao sistema desmoronar; dos temas da onisciência de Deus, mediante a qual Ele podia ter impedido a ruína a qualquer momento. Surge, então, o problema da liberdade do ser, de sua desobediência e o problema de seu conhecimento, acrescentando-se que, sendo esta criatura perfeita, porque constituída de substância divina, ela não podia errar, mesmo porque, conhecendo o futuro, devia conhecer as conseqüências do seu erro. Esta segunda parte é dedicada à solução destes problemas e de outros semelhantes.

Observemos inicialmente as características do sistema, a fim de descobrir os precedentes que podiam constituir o terreno sobre o qual teria podido desenrolar-se a revolta. Da primeira criação espiritual nasceram muitos elementos distintos. Assim, no seio do sistema eles adquiriram individuação própria, de tipo egocêntrico, à semelhança do próprio modelo, Deus. Não foi criada a substância espiritual que os constituía, porque esta era a substância incriada de Deus. O que foi criado, como coisa nova, que dantes não existia, foi a distribuição diferente dessa substância, ou seja, as suas individuações particulares, isto é, as criaturas como seres distintos. Devemos a este fato, como todos os seres criados, podermos dizer “eu”, e como tal existir.

Ora, vimos que se essa tão grande pulverização do todo podia ameaçar a sua unidade, o perigo foi vencido com o equilíbrio do processo divisionista com o processo oposto, em virtude do que a primeira criação resultou num sistema orgânico, onde todos os elementos do sistema foram imediatamente enquadrados numa ordem e disciplinados por uma lei. Deus tornou-se centro do sistema e permaneceu situado no topo da hierarquia. Esse lugar lhe cabia de pleno direito. As criaturas, que lhe deviam a vida, não podiam existir senão em função Dele, devendo-lhe perfeita obediência. Estas eram, logicamente, as bases nas quais devia apoiar-se a vida de todo o sistema, tanto quanto de cada elemento componente. Estas eram as condições indispensáveis para que a criação não se desfizesse em desordem, despedaçando-se no caos.

 Então, Impunham-se, dois imperativos categóricos: primeiro, a presença de uma lei emanada de Deus, reguladora da ordem; segundo, absoluta obediência a essa lei por parte da criatura. Estas são as regras fundamentais indispensáveis para dirigir qualquer unidade coletiva, seja molecular ou astronômica, seja fisiológica ou social, unidade constituída em forma orgânica. Encontramo-nos logo diante da necessidade lógica de uma obediência absoluta. A necessidade da colaboração numa ordem perfeita era tanto maior, quanto o sistema era perfeito e devia funcionar na perfeição. Que desastre, pois, resultaria à mínima desobediência e desordem!

Mas seria possível uma desobediência? Começam aqui as objeções. Num sistema perfeito, composto de elementos perfeitos, não é concebível uma possibilidade de erro. O grau de perfeição que a ordem possui, devia torná-lo invulnerável, pois estava isento de qualquer defeito. Como tal, o sistema devia permanecer inviolável, acima de qualquer risco.

Mas, observemos com maior atenção. Se as criaturas, sobre as quais pesava o perigo de uma desobediência, eram perfeitas porque constituídas de substância divina, elas possuíam uma perfeição relativa. Eram perfeitas em relação à sua posição na hierarquia, e a função que deviam executar no organismo. Em si mesmas, em relação às suas posições, eram totalmente perfeitas, mas não o eram diante da perfeição de Deus, a única absoluta. Esta é a conseqüência lógica da estrutura hierárquica do sistema, o que dava lugar a uma subordinação de posições no todo, tanto como função a executar, quanto como perfeição ou como conhecimento. Com relação à sua posição e função a executar, as criaturas possuíam em grau perfeito as qualidades necessárias e o completo conhecimento. Mas não possuíam as qualidades do Ser Supremo, e diante de Deus não sabiam tudo. Daí a necessidade da aceitação de algumas partes da Lei apenas por obediência, nos pontos que seu conhecimento não atingia, como acontece com as células dos tecidos musculares que obedecem às células nervosas, embora todas juntas obedeçam ao “eu” central do ser.

Era nessa relatividade da perfeição como do conhecimento, – conseqüência direta da estrutura hierárquica do sistema – que se aninhava a possibilidade de erro. As criaturas podiam errar todas as vezes que, fora do campo que lhes fora preestabelecido, se aventurassem nesse espaço desconhecido; todas as vezes que houvessem procurado ultrapassar os limites impostos pela obediência à ordem da Lei; todas as vezes que elas tivessem querido exagerar o próprio egocentrismo, indo além dos limites de suas funções e de seu conhecimento relativo.

Dada a estrutura orgânica do sistema, não podia ser concedido a cada elemento componente o conhecimento absoluto, que só podia caber a Deus. O mesmo ocorre em nosso organismo, no qual cada célula sabe e executa o seu trabalho e não pode entrar no campo de trabalho e de conhecimento das outras células, de outra natureza, adaptadas a funções diferentes. Cada uma, em perfeita obediência, permanece no seu posto diante do “eu” central, que dirige todo o organismo. Em cada sistema orgânico há necessidade absoluta de todos trabalharem de comum acordo. Todos os elementos sabiam disso, conheciam o dever e a utilidade imediata da obediência. Mas sabiam também que acima de cada um, acima de si, na hierarquia, havia alguém que sabia mais, até chegar a Deus que sabia tudo. E o egocentrismo em que se baseava a sua individualidade, é, por natureza sua, expansionista e depois centralizador. Cada um teria podido permanecer no posto a si designado, em sua perfeição e conhecimento relativos, limitados, mas completos em relação à posição ocupada e ao trabalho a executar. As posições mais altas eram mais ricas de poder, mas também de deveres, e todas igualmente dignas e honrosas. Só assim, todos coordenados, pode existir um belo edifício, onde os menores tiram proveito do poder e sabedoria dos maiores.

A hierarquia não constituía uma injustiça. Representava apenas uma distribuição de funções e de trabalho. Com relação à própria posição todos eram igualmente perfeitos, sábios e poderosos. Obedecendo a essa ordem, todos aproveitavam essa distribuição de trabalho, ajudando-se reciprocamente. Tudo podia assim funcionar com perfeição, se fossem respeitadas as regras estabelecidas. Podemos constatar quanto sejam verdadeiros estes princípios, porque ecoam em nosso mundo, onde tudo caminharia na perfeição se fossem aplicados. Mas a verdade é haver necessidade absoluta de respeitar a ordem estabelecida, pois ela é indispensável ao funcionamento de qualquer coletividade organizada. Por isso, havia uma lei do Sistema e como primeira condição, o dever de obedecer-lhe com perfeita disciplina.

Mas, se de um lado, existiam elementos que impeliam à manutenção da ordem, de outro lado havia elementos que impeliam em direção contrária. Se havia de um lado, para o ser, uma zona de conhecimento completo com relação à própria posição na hierarquia e à função a executar, além dessa zona, havia para cada um, também uma zona que em relação a eles era de ignorância, onde a criatura não podia penetrar, por incompetência, falta de conhecimento e aí era possível o erro. A obediência do ser fazia parte da disciplina compreendida no Sistema de ordem, na qual estava construído todo o organismo do Tudo-Uno-Deus. O ser possuía a sua zona de domínio próprio. Estava assinalado o limite além do qual não podia passar. Além dele estava a zona tabu, proibida, que, por obediência, devia ser respeitada. Isso tudo não constituía uma imposição caprichosa ou irracional do Chefe, mas era uma conseqüência lógica e necessária da estrutura do Sistema; não era uma prisão ou escravidão do ser, pois este permaneceu tão livre, até lhe ser possível desobedecer: era apenas uma medida de defesa para sua própria vantagem.

Entretanto, permanecia sempre diante dos olhos das criaturas essa zona inexplorada, na qual, em verdade, não se deveria entrar, mas que, de fato, escapava ao seu domínio não se sabendo o seu conteúdo. Podia representar uma zona de domínio ainda maior e uma vantagem a conquistar. Esse impulso de autocrescimento, que impelia a explorar o desconhecido para ampliar o próprio domínio, derivava da própria natureza do ser, criado à imagem e semelhança de Deus, como individuação egocêntrica, e portanto tendente ao expansionismo. E era esse o impulso fundamental do ser.

Entre esses impulsos contrários, a criatura estava perfeitamente livre apenas cabendo-lhe a escolha. Tendo-a criado de sua própria substância, Deus lhe havia transmitido as mesmas qualidades que lhe eram próprias, e em primeiro lugar a liberdade. Essa também foi uma condição lógica e necessária na construção do Sistema. Baseava-se esta na ordem e na disciplina, mas numa disciplina espontânea de seres livres e convictos, e não naquela escravidão forçada ou inconsciente de autômatos. Sendo livre a criatura, a obediência devia ser o resultado de uma escolha livre, que concluísse numa adesão espontânea à ordem da Lei, expressão da vontade de Deus. Sendo livre o ser, ele devia obedecer espontaneamente, mas podia também não obedecer. Ninguém o podia impedir. Permanecia tudo em poder da livre aceitação da criatura.

Tratava-se de uma verdadeira prova de verificação, de modo a só poderem vir a participar definitivamente do Sistema os seres que a tivessem superado. Os elementos que não tivessem sabido superar o exame, deveriam aprender a lição de forma mais dura e forçada, para atingir o estado perfeito em que tinham sido criados e em que teriam podido permanecer, se tivessem obedecido. Tratava-se como de um segundo curso, mais lento e cansativo, para os mais duros e rebeldes, a fim de os trazer ao porto de salvação. Condições necessárias, dados os elementos em jogo, como vimos. Doutra forma, como teria podido a bondade de Deus obrigar todos a salvar-se, sem violar a liberdade individual? Este segundo curso ou queda, não foi portanto, um erro, por defeito, mas uma possibilidade prevista, deixando à liberdade da criatura o pleno direito de escolha. Esse respeito à liberdade da criatura, Deus a tem, porque a vê em Sua própria natureza, e foi elevada a um grau tão alto, que Deus respeita essa liberdade até mesmo no rebelde que quisesse permanecer para sempre rebelde. Só por último destruindo-lhe a individualidade com a perda da substância que a constitui. Somente voltando a substância a Deus, é possível a eliminação definitiva do eterno rebelde, sem violar o princípio de liberdade.

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Estamos no momento decisivo. Vimos os impulsos que estavam em ação. O ser estava no meio, a fim de realizar sua livre escolha. Qual das duas forças contrárias teria vencido, tomando a supremacia? O conflito está no seu auge e o ser envolve-se num turbilhão.

Os seres foram criados do tipo “eu sou”, menores mas do mesmo modelo de Deus. No centro de cada um domina o egocentrismo. No espírito de disciplina, na consciência da Lei, na obediência a Deus, o ser devia achar a força para resistir ao impulso expansionista do próprio eu. Na livre aceitação do limite, o ser devia achar o freio que o mantivesse em seu lugar. Ele devia reconhecer, espontaneamente, que era menor diante do Chefe, colocar-se na sua posição devida à escala hierárquica, subordinando-se como menor ao maior, pois isto é indispensável a uma coletividade orgânica. Eles conheciam esse seu dever, viam que a disciplina era necessária para o bom funcionamento do todo, conheciam a lei que ordenava obediência e sabiam que essa Lei exprimia o pensamento e a vontade de Deus.

Mas havia mais. Os seres sabiam que esse mesmo “eu” que ansiava expandir-se, como existência individual autônoma, fora um dom de Deus. Esse dom, de existir como “eu” distinto independente, fora-lhes dado gratuitamente por Deus, por um ato de Amor. Antes da criação existiam como substância, mas desta ainda não havia nascido a sua individualidade, que agora os constituía, tornando-as criaturas existentes como tais. Para gerá-los, Deus os havia tirado de um estado em que eles, como indivíduos, não existiam, constituindo-os com a própria substância. Para poder fazer isto, fora necessário subdividir-se em tantos “eu” menores, por ato de Amor; a Divindade quisera como que despedaçar-se em tantos infinitos fragmentos, aos quais, por um ato de altruísmo, comunicava a sua existência, o próprio existir. Amor infinito. Nascidos do Amor e do sacrifício, primeiros elementos da criação, e por isso também primeiros elementos da redenção (Cristo), o qual reconstrói o que estava destruído, esses infinitos seres em que a Divindade se havia pulverizado, tinham o dever sagrado de obedecer, como dívida de gratidão.

Mas, se num primeiro momento, o Tudo-Uno-Deus se havia como que dividido em tantos elementos, num segundo tempo, para não se dispersar, os havia retomado em unidade, reconstituindo-se em forma orgânica, na ordem de um Sistema do qual aqueles elementos constituíam o que, em nosso organismo, são as células. Feito isto, era necessário que eles se mantivessem aderentes à ordem estabelecida, em perfeita obediência à Lei. Da criação nascera u‘a máquina perfeita. Mas tudo precisava ficar em seu lugar.

Tudo isso pode justificar a agravar a culpabilidade, mas não suprime a possibilidade da desordem, não eliminava os impulsos que constituíam as tentações, instigando-os ao abuso. Sem dúvida, além do limite imposto pela lei, havia um conhecimento e um poder maior. A criatura não os possuía. Por que não conquistar, também, tudo isso? Não eram livres os seres? Por que não experimentar? O eu, de acordo com sua natureza, fazia pressão internamente, na direção expansionista. Eis a tentação, o impulso que devia traí-los: uma exageração do eu. Isto foi chamado de orgulho. Era a natureza do seu “eu” que os havia de trair.

Mas os seres não sabiam o que havia além do limite. Aqui residia o perigo. E era justamente esse desconhecido que mais os tentava. Ele estava além de seu conhecimento. Podia ser também uma grande conquista, e por que perdê-la? É verdade ter Deus, com Sua Lei, traçado o caminho da obediência. Mas Deus teria podido fazê-lo para impedir-lhes esta conquista, reservando-o só para Si. O homem continua hoje também a fazer raciocínios semelhantes, e ninguém se pergunta de qual modelo tenha nascido essa sua forma mental. Assim, não sabendo os seres o que havia além daquele limite, fizeram uma suposição que não foi verdadeira. Foram punidos pela desilusão e pela ruína que se lhes seguiu. Dessa forma, colocaram-se fora da ordem, fora do Sistema, do qual se acharam automaticamente expulsos. A ruína não foi o Sistema, pois como obra perfeita de Deus, este não podia arruinar-se, mas foram eles que se precipitaram no Anti-Sistema, no qual tudo se emborcou. Assim caíram os elementos rebeldes, mas não a obra de Deus, que permaneceu inviolável. Não será este o significado profundo, oculto na simbólica narração da Bíblia, de Adão e Eva tentados pela serpente, que já era anjo rebelde e decaído, a fim de comerem o fruto proibido, e depois expulsos por sua desobediência do paraíso terrestre?

Os seres rebeldes enganaram-se quanto ao resultado de sua revolta, mas sabiam que era uma revolta contra a ordem. Seu erro e culpa foi de querer substituir a ordem, chefiada por Deus, por outra ordem chefiada ao invés, pela criatura. O movimento assume exatamente a forma de inversão. Explica-se dessa maneira o emborcamento de todos os valores que ocorreu no Anti-Sistema. Trata-se, portanto, de erro culposo, cometido, abusando da liberdade concedida por Deus. A reação que se seguiu, não foi apenas o último elo de uma concatenação lógica, de um exato desenvolvimento de forças, como efeito proporcionado à causa, mas também um fato merecido, segundo a justiça de Deus.

A culpa dos seres desobedientes foi querer possuir uma utilidade ainda maior do que derivava do manter-se disciplinados na ordem. Por isso, foram lançados fora. Como vemos, tratou-se de verdadeira expulsão do paraíso. O Anti-Sistema foi o produto de uma expulsão do Sistema, e por isso continuará desenvolvendo-se até agora a concatenação lógica, acompanhando o processo da queda e do reerguer-se, até ao fim, até à recuperação de tudo, restituído ao estado de perfeição originária.

Pela Divindade onisciente e previdente, o Sistema era munido de impulsos inibitórios ou freios contra o erro. Mas tudo isso, para não atentar contra a liberdade do ser, foi deixado em seu poder, à sua livre escolha; conforme o resultado, alcançado em perfeita liberdade, ficaria decidido, como após um exame, quem poderia ou não continuar pertencendo ao Sistema. Também isso era lógico. Era necessário ter aceito livremente uma ordem, à qual ninguém poderia obedecer à força. Com a sua obediência o ser devia dar provas de que aderira plenamente, de que quisera empenhar-se na manutenção da ordem. Doutra forma o sistema teria sido um amontoado de escravos, com a revolta ocultada em seu íntimo. A aceitação, demonstrada com a obediência, era a resposta lógica e necessária por parte do ser, expressando também o pensamento deste, resposta que Deus tinha o direito de exigir de um ser livre de aceitar ou não aceitar.

Ora, a resposta não foi igual para todos os seres. Uma parte ficou do lado da ordem, no Sistema, e outra parte lançou-se à desordem e, com isto, para fora do Sistema, rompendo as filas da disciplina. Esta parte, acreditando conquistar sabedoria e poderes, ao ultrapassar os limites da Lei, acabou achando-se perdida fora da Lei. Os primeiros escolheram o impulso centrípeto, unitário, dirigindo-se para Deus; os segundos escolheram o impulso contrário, centrífugo, tendo como centro o seu egocentrismo, para expansão deste contra Deus. Então partiu-se em dois o Sistema: em Sistema e Anti-Sistema, dando origem ao dualismo. Mas veremos agora que, ao invés de dizer: o Sistema se dividiu – implicando a idéia de um estrago – é mais exato dizer: o Sistema permaneceu perfeitamente íntegro como era, de estrutura inviolável; enquanto o Anti-Sistema foi produto da expulsão feita dos seus elementos rebeldes.

Uma vez iniciado este movimento, de afastamento, a desintegração da parte corrompida, expulsa do Sistema, continuou rápida e automaticamente, à maneira de uma desintegração atômica ou em cadeia. E tudo, como vimos, precipitou-se do estado de puro pensamento no estado de energia e, finalmente, no de matéria. Nas galáxias, na qual da energia nasce a matéria, está o mais profundo inferno do ser, tendo atingido o máximo da descida involutiva, e daí começa o estafante caminho da subida para Deus.

 

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Com estes esclarecimentos, não terminaram as dúvidas e objeções. Oferecendo uma visão mais pormenorizada, respondemos a muitas delas. Para responder a outras continuemos a observar.

Objetam-se: mas Deus, sendo onipotente, não podia impedir a queda e, com isso, todas as dolorosas conseqüências resultantes? Em geral, fazemos da onipotência uma idéia de arbítrio, de capricho que pode tudo, mesmo contra a lógica e a ordem da Lei. Nós mesmos, quando invocamos a liberdade, procuramos “obedecer” à lei escrita em nossos instintos. A onipotência de Deus não pode ir contra a lógica e a ordem da Sua Lei, porque se fosse contra ela, iria contra Si mesmo. Então a nós, filhos da revolta, pode parecer que Deus não seja onipotente.

Deus não podia impedir a queda sem violar o princípio da liberdade. Tinha construído um Sistema de ordem, em que cada impulso tinha uma função. A perfeição não pode ser senão determinística. Sendo perfeito o Sistema criado por Deus, ele se nos apresenta com as características de fatalidade. Num sistema perfeito, não se admitem oscilações de incerteza que derivam do livre arbítrio e da possibilidade de escolha. Chegamos, assim, a um conceito de Deus que se avizinha da abstração a que está chegando a ciência moderna: ou seja, um Deus inteligência e pensamento, um Deus Lei, que dirige, de dentro, todos os fenômenos. Então, para não contradizer a Si mesmo, o próprio Deus não podia sair da fatalidade, da concatenação lógica, representada pelo desenvolvimento das forças depositadas no Sistema, nem podia romper os liames que fatalmente prendem e fazem o efeito proporcional à causa.

Cada elemento ocupava no Sistema o seu devido lugar quanto a conhecimento e poder. A onisciência e a onipotência só podiam pertencer ao Chefe, elemento máximo e centro do Sistema. Cada ser havia recebido todo o necessário, de acordo com a sua posição e função. Além do mais, se não quisermos cair no absurdo, temos de admitir Deus como justo. Ora, não se pode negar o fato concreto, por todos conhecido, da presença do mal e da dor em nosso mundo e o fato do quanto custa emergir deles com a evolução. Se Deus é justo, tudo isso deve ser merecido. Termos sido criados, sem permissão nossa, para sermos condenados a achar a felicidade através de um caminho tão duro, sem termos merecido essa condenação, não é obra de justiça que possa ser atribuída a Deus.

Com a criação, estabeleceu-se um pacto, como um contrato de consentimento bilateral, entre a criatura e Deus. A esta Deus dera uma existência individual própria. Antes da criação, aquela criatura não era criatura, mas apenas uma substância não individuada como criatura. A lógica do organismo nascido pela criação impunha a criatura se coordenar no seio daquele organismo, com todos os elementos componentes, sem o que o Sistema não podia existir nem o organismo funcionar. Era indispensável cada um permanecer no lugar do seu dever. Como Deus aí executava a sua função suprema de direção, assim deviam estar todos os elementos componentes do Sistema, em suas posições subordinadas. Era lógico e fatal, diante de tudo isso, que a parte que rompera o pacto fosse expulsa do Sistema, pelo fato de numa ordem perfeita, não poder subsistir a mínima desordem.

Isto ocorreu de parte da criatura e o remédio foi possível, isolando a parte doente da parte sã, para esta não adoecer e tudo arruinar. Permaneceu de pé a parte sã, intacta; e a isto se deve que a parte enferma poderá curar-se, reentrando, após a cura, no Sistema. Mas imagine-se o que ocorreria se a desordem, ao invés, tivesse partido de Deus. Dir-se-á ser isto impossível. E no entanto é o que se pretende, quando se diz que Deus não deveria ter permitido a queda. Ora, na ordem da Lei, dados os princípios nos quais se baseava, isso teria sido uma revolução e uma tirania. Então Deus mesmo teria forçado o Sistema a uma revolução não periférica, centrífuga (revolta do povo), mas centrípeta (abuso do tirano) – uma revolução ainda pior do que a realizada pelas criaturas. Isto porque, partindo de Deus, teria feito desmoronar-se não apenas uma parte do Sistema, que se teria podido expelir dele, mas teria feito desmoronar todo o Sistema. Enquanto no primeiro caso tudo é remediável através de Deus e pelo Sistema, permanecidos íntegros, no segundo caso a queda teria sido irremediável, porque, tendo a rebelião atingido o vértice, teria arrasado o próprio Deus e tudo teria desmoronado irremediavelmente com Ele, sem outra possibilidade de recuperação.

Aí está, pois, o que ocorreu na revolta e na queda. Dessa forma, indiretamente respondemos a muitas dificuldades que apareciam contra a teoria da queda. Então, as posições hierárquicas se emborcaram, e quem estava mais no alto caiu mais em baixo, ou seja, quem estava mais próximo de Deus foi projetado mais longe até o maior de todos os rebeldes, que devia estar mais próximo de Deus e se tornou o chefe do Anti-Sistema. Este último, porquanto entre os maiores, era sempre menor que Deus, e necessariamente maior deve ter ficado também na queda. Isto significa existir entre os dois chefes, Deus – do Sistema, e Lúcifer – do Anti-Sistema, uma diferença de grau em tudo, significando ser o bem mais forte do que o mal, e, na luta entre os dois, a vitória final só pode ser do primeiro.

Assim, o Sistema permaneceu de pé, representando a possibilidade de recuperação e o ponto de apoio da redenção, que de outra forma seria uma palavra sem explicação e um esforço sem meta. E o Sistema ficou em pé, como o mais forte, como era indispensável para poder reabsorver, em seu seio, o Anti-Sistema. Um desmoronamento absoluto, ao invés de desmoronamento parcial, não teria oferecido nenhuma possibilidade de recuperação.

Pudermos ver, desta maneira, neste capítulo – vencendo todas as objeções que pudemos encontrar a respeito deste assunto – que Deus fez tudo otimamente e não teria podido fazer melhor. Quanto mais observamos, mais devemos convencer-nos de ser perfeita a obra de Deus.

Nesta verificação, executada nesta segunda parte de análise e de crítica, ao invés de conseguirmos demolir a teoria da queda, fomos achando dela sempre novas confirmações.