História de um Homem

Quantos lerem este volume, crendo encontrar nele o mesmo Ubaldi dos seus livros anteriores, ficarão desiludidos. A cada novo livro ele transforma e renova a sua personalidade. Cada um dos seus volumes é um documentário daquilo que foi, real e espiritualmente, de uma fase de sua vida. Inútil, portanto, procurar-se nestas páginas as mesmas proposições e atitudes dos seus trabalhos precedentes. É necessário desde logo este esclarecimento, para que o leitor não seja enganado e porque os mal-entendidos são detestáveis. Nada existe aqui de mediunidade, biosofia, espiritualismo e semelhantes. A personalidade do autor, que nunca fez parte de nenhum grupo nem se ligou a qualquer escola, permanecendo sempre livre, no seu desenvolvimento, independente, atinge agora, completamente renovada, outras afirmações. É horrível repetir-se, permanecer-se estagnado em determinado campo. Somente quem se renova, vive. A constante especialização no particular poderá ser materialmente útil, mas é paralisia do espírito.

A precedente tetralogia, em que o Autor, partindo da matéria e chegando ao espírito, percorre o caminho que vai da Terra ao Céu, a tetralogia representada pelas Mensagens Espirituais , A Grande Síntese, As Noúres, Ascese Mística, é um edifício completo, uma fase superada, um período encerrado. Ocorreu, depois, no espírito do Autor uma crise terrível, necessária para uma renovação, um completamento e uma continuação, coisas que, sem tormentas e crises, não podem acontecer. Aqui Ubaldi reaparece, depois de um silêncio em que passou pelos dolorosos sofrimentos que esperam os que seguem os caminhos do ideal. Antes, ele era um teórico e sonhador, podia dizer-se. Mas agora, ele já bateu a cabeça na realidade da vida humana, e não o é mais. O golpe foi duro para ele, e destruiu aquela fé ingênua e simples que lhe fazia dizer tudo com franqueza, sem a astúcia das prevenções humanas. Avalie-se, pois, este livro, também por aquilo que o Autor teria podido dizer, mas que preferiu calar. Desencadeou-se naquela alma, partindo do homem, uma grande tempestade, que terminou ante a face de Deus. Ele não se lamenta de tudo isso, pois sabe ter vislumbrado uma novidade importante, embora através da amarga experiência, sabe que aprendeu a conhecer o homem, e porque fez uma nova e grande descoberta: ou seja, que as conquistas espirituais, como a matéria e a vida, os sofrimentos, refinam e purificam o espírito, não o abatem. Está satisfeito porque, com o seu ideal, atravessou um período de morte, ressurgindo mais forte do que antes, e a sua fé renasceu ainda mais profunda, mais consciente, mais sólida. Ele oferece as páginas escritas com o sangue do seu tormento ao mundo cético e sábio, que sabe o que faz porque conhece a vida e não se importa, rindo dessas paixões e afirmações ideais. Mas ele conhece, por sua vez, as leis que regem esses fenômenos, e sabe que o riso, a incompreensão que lhe volta as costas, a indiferença e a desaprovação, que não é de uma classe social, mas a expressão do homem comum de hoje, devem naturalmente estar na vida de quantos segue o caminho da redenção humana, indicado por Cristo. Sonhos de grandeza, vitalidade expansiva, conquista vitoriosa, e ainda potência de gênio e de domínio sobre a natureza, todas estas grandes a admiráveis coisas não podem suprimir aquela lei do sacrifício individual, que pertence, ela também, à vida, e que o homem de hoje, perseguindo os ideais abraçados, teria de fato muita vontade de esquecer. É crime, porém, trair o ideal, qualquer que ele seja, quando por ele tantos mártires se sacrificaram. Chamado trágico e desesperado, mas quem sabe compreenderá; chamado feito numa hora histórica e solene, pleno de sua força e do seu desejo de dar, a quem sofre, fé e esperança em coisas sempre mais altas.

Este volume não é autobiográfico. Traduz, entretanto, as experiências do Autor, e reflete estado do espírito reais, por ele realmente sentidos, ou, pelo menos, idealmente vividos. Como sempre, atrás de cada palavras há uma real vibração de vida espiritual, um verdadeiro tormento de paixões, há freqüentemente uma experiência vivida, uma prova enfrentada e superada, uma dor suportada talvez ainda um caminho percorrido, um pouco do trágico e doloroso caminho da vida seriamente vivida.

Não obstante esta renovação, os princípios dos volumes precedentes não são aqui negados. Ao contrário, eles são revigorados, porque, desenvolvendo-se agora sob outra visão e com diferente estado de espírito, ou seja, com ceticismo demolidor, ressurgem mais belos e mais fortes, com uma fé menos ingênua, com menor simplismo, com um senso mais trágico, de angustiada humanidade. Dessa maneira, o leitor reencontrar nestas páginas a personalidade de Ubaldi, mais completa, amadurecida através de novas experiências, levada a uma nova fase que, se é a continuação lógica das precedentes, assemelha-se às vezes ao reverso, tão violentos foram os golpes e a desordenada tormenta que a envolveu. Aqui o autor se debruça sobre o abismo infernal da vida estúpida do mundo que ele descobre. Por um momento as náuseas o sufocam e o terror o paralisa, mas as forças do espírito são poderosas, e o equilíbrio, por fim, se restabelece. A concepção evangélica, que parecia vacilar, resplandece de novo, mais luminosa do que antes, consolidando-se nas provas superadas e já agora definitivamente triunfante.

O tipo de leitor a que estas páginas se dirigem é diferente, e os mesmos princípios são apreciados aqui de outro ponto de vista, de maneira a desconcertar, talvez, o observador superficial, ainda apegado às perspectivas anteriores. Este pretende ser um livro forte, de colorido humano, marcado por violentos contrastes, um livro real e atual, não mais olimpicamente pensado na paz do Céu, como A Grande Síntese, mas tragicamente vivido nas lutas da terra. A mesma verdade é aqui diversamente observada. Aquele é um livro de clara visão da verdade, contemplada na paz serena de um ser tranqüilamente situado fora das competições terrenas . Este é, pelo contrário, um livro escrito por quem vive na terra, imerso na sua psicologia, fazendo própria a alma infernal do mundo, por quem viveu as suas dores, e lutando e sangrando, as descreve. É natural que a mesma realidade da vida, não observada na paz das alturas, mas na luta e no tormento da terra e expressa às vezes com a psicologia do mundo, vista assim de um ângulo diverso, ofereça-nos diferente quadro. Mas desta vez era necessário descer ao mundo das realidades humanas e falar também a outra categoria de pessoas, àquelas que vivem planamente a vida; era necessário falar com a sua própria linguagem e segundo a sua maneira de pensar, mesmo a quantos haviam até agora sorrido e dado de ombros, como se faz ante a ingênua e impraticável utopia de um idealista sonhador. Era necessário falar, desta vez, não somente aos eleitos, capazes de intuir e de crer, já amadurecidos, videntes, sensíveis às provas da razão, às explosões do sentimento, ao fascínio do belo e do bem, já encaminhados e ávidos de maiores ascensões espirituais. Era necessário, agora, falar também aos cegos e surdos, colocando-se no seu próprio nível, para fazer-se compreender, falar aos insensíveis, ligados à matéria como a sua única forma de vida, aos involuídos, aos inertes, aos rebeldes, aos negadores sem fé e sem esperança. E para fazer compreender-se era necessário tornar-se um deles, fazer própria a sua cegueira, a sua revolta, a sua cruz. Esta nova voz não podia mais descer do Céu, límpida e melodiosa, mas devia, penosamente, sair do inferno, áspera e fatigada, não mais de anjo e sim de condenado. Quando o homem do mundo ouvir esta linguagem mais facilmente abrirá ouvidos e compreenderá. Quando, desta vez, ouvir falar alguém que mostra conhecer a realidade da vida, com todas as suas mentiras, maldades e traições, ele mais facilmente se persuadirá, e não lhe será mais tão fácil sorrir com ceticismo, acusando de ingênua e incongruente utopia o idealista sonhador. De resto, é natural que assim apareçam, na terra, as coisas vistas do Céu. É necessário, então, vê-las na própria terra. Questão de perspectiva. E, por fim, tudo se mostra mais real do que antes. Os mesmos princípios, antes só teórica e racionalmente afirmados, atingem aqui diferente potência, quando ao invés de descer do Céu, emergem ensangüentados do inferno terrestre. E uma verdade que resiste a esta prova humana de lama e de sangue, adquire a força que antes não tinha, ao menos sobre a Terra, e pode então proclamar-se mais alta, pois também aqui, experimentalmente, provou a sua realidade.

Nesta nova posição, o autor espera ter encontrado outra maneira de fazer o bem. E nisto consiste a continuação, o completamento do seu passado, o seu progresso. Talvez, fosse necessário um livro de verdadeira experiência espiritual, como especial reação a certos romances estrangeiros, livros de inconscientes, feitos para demolir aquilo que de mais elevado o homem possui, conquistado à custa do sacrifício dos mártires e da ruína de tantas vidas, feitos para enfeiar-nos e envenenar-nos a existência, roubando-nos a fé no bem e a esperança no futuro, livros, enfim, desapiedadamente demolidores e sutilmente maléficos, que o povo avidamente devora. Quem, como esses livros, tudo nega, mutila e mata primeiramente a si mesmo. Esta História de um Homem diz, pelo contrário, a cada passo: Sim! E quem afirma, constrói, cria, reencontra a vida que a negação lhe rouba. A criação é uma afirmação. Deus é o Sim. Satanás, o Não.

Desta vez o Autor fala a um mundo de estridores infernais, e deve usar uma linguagem de contrastes e de tormenta, de luta e de revolta. Estamos, agora, não mais no Céu, mas verdadeiramente na Terra, na dura realidade da vida, numa atmosfera baixa e tenebrosa, que a luz custa a rasgar, e onde os seres lutam e sofrem. Uma guerra de todos contra todos impera sem tréguas, impedindo a serenidade de contemplação superior. Toda energia está empenhada nas rivalidades humanas, na necessidade se sobrepor-se. Tentar evadir-se é inútil. Em tal mundo, o céu, lugar de ventura, não pode parecer senão uma utopia. Todos, mais cedo ou mais tarde, fazem esta dura experiência. O Autor, também, devia e quis fazê-la, mas não para se sepultar com ela, e sim para ressuscitar, ao final, e indicando a todos as vias da ressurreição. O mal não é aqui invocado para demolir, mas para construir, com a finalidade do bem. Este livro foi escrito numa pausa arrancada a essa incessante tensão infernal, numa trégua brevíssima, roubada à inquietante necessidade do trabalho e da luta pela vida. O próprio autor sofreu a dura lei de todos, a vida humana imersa na matéria, o espírito invadido pelas suas impiedosas necessidades. A experiência e a superação que ele nos descreve são as que o mundo também, seja embora por mil maneiras diversas, deverá realizar. O relato tem, portanto, significado e interesse, universais, pois no seu caso particular vemos agirem-se as leis universais da vida, que guiam a todos. Trata-se, nestas páginas, de um Céu visto pelos olhos críticos e positivos do homem que conhece a luta da vida e conhece a dor, vista com a mentalidade objetiva da ciência e do bom senso, através do critério prático e realista como realidade do amanhã, em que se acordam o conceito científico da evolução biológica e o conceito religiosos da redenção cristã, um céu, enfim, que a própria razão nos indica como o lógico e necessário porvir da humanidade.

Embora não sendo autobiográfico, este livro foi, entretanto, realmente lutado e sofrido. Foi escrito, de fato, em quarenta dias, como uma explosão. Quiçá a vida real se apresente, às vezes, mais trágica e desapiedada do que esta, imaginada pelo autor, e a certos indivíduos negue também a consolação dos últimos anos, que, na sua grande fé na vitória final de quem luta por uma idéia, o autor não pode deixar de concedê-la ao seu protagonista. Mas o princípio não é abalado e a tese não resulta menos válida por isso. Talvez não haja tempo no presente volume, para se demonstrar tudo aos céticos. Há neste livro muitas teorias. Sua principal demonstração será dada pelo fato de que elas foram vividas e aplicadas, concluindo na própria vida. Essa demonstração saltará sempre, igualmente evidente, da logicidade do desenvolvimento do conjunto, da ardente fé revelada pelo autor, da objetividade com que a experimentação é conduzida na história aqui narrada e, por fim, da excelência das conclusões. Este é um livro escrito numa hora de espasmo mundial. É verdade que são excelentes e santas as teorias pregadas, talvez mesmo com fé e convicção, no campo religioso e civil. Mas este livro não se firma em teorias. Quer, pelo contrário, ter a coragem de olhar no seu íntimo a realidade biológica, aquilo que de fato o homem é, e não aquilo que acredita ser ou desejaria ser, ou só excepcionalmente o é. Não é verdade, porventura, que estamos numa época construtiva e de grandes audácias? Pois bem, então é necessário termos esta grande coragem de olhar tudo face a face, sem nos iludirmos e sem mentir.

A hora presente, mesmo a despeito de todos os míopes e de todos os fracos que a maldizem, é ampla e vigorosa, exigindo-nos largueza de visão e a coragem dos fortes. Esta não é a hora da tranqüila e prazenteira psicologia mozartiana, do anjo que fala aos felizes, que são pouquíssimos; não é a hora dos doces equilíbrios da beleza, mas é a hora da humana, trágica e potente psicologia beethoveniana, feita de luta e de tormenta, de fadiga e de dor, que fala aos sedentos de felicidade, que são em maior número. É a hora dos impetuosos e fortes sentimentos da criação. Este é o estilo do presente livro, dado pelo espírito de nosso tempo, que é essencialmente beethoveniano; não rossiniano, mas wagneriano; não rafaélico, mas miguelangesco; não ariôstico, mas dantesco; não barroco, mas revolucionário, napoleônico, ferreamente retilíneo, novecentista. Tantos, como formiguinhas presas à terra, não vêem senão as pequenas coisas vizinhas, e assim se perdem em considerações de somenos, sem imaginarem o gigantesco quadro de conjunto, que torna apocalíptica a hora presente. Tantos não sabem, como tantos não sabiam, às vésperas de revolução francesa, o que hoje se prepara, e se lhes explica, eles não compreendem. Mas quem o sabe, treme, exulta, vive de febre, e, também, de esperança. Este livro é um grito, lançado sobretudo aos pósteros e aos que hoje os antecipam, é o grito de fé do homem novo que espera, para poder viver a nova civilização do terceiro milênio, não mais a passada civilização da força, nem a hodierna civilização do dinheiro, mas a do espírito. Desta era e para ela, sobretudo, fala o nosso autor, sabendo que só então poderá ser plenamente compreendido. Fala hoje para preparar por enquanto os espíritos, para apontar problemas e soluções, para dar a sua contribuição à maturação do homem novo da nova civilização. Se o autor fala alto e solene, é porque sente que nos encontramos, realmente, numa grande curva biológica, em que o homem primitivo, ignaro e feroz, está para sair da sua menoridade e se prepara para novas formas de vida, nas quais, cansado de ser uma inconsciente marionete, guiada por uns poucos instintos, viverá na lógica, na potência diretora, na consciência, liberdade, bondade e justiça do espírito.

Este é um livro de reação ao mundo atual, ao homem que se fez inerte, egoísta, falso e bestial, no seio da chamada moderna civilização, e o seu escopo é torná-lo melhor, dando-lhe novamente, em primeiro lugar, luz, fé e esperança, dando-lhe uma direção ao desencadeamento das forças primordiais. Reação que pode ser talvez brutal, mas a linguagem enérgica pode ser um bem, quando o espírito não escuta mais, habituado as fórmulas rotineiras de advertência. Por detrás dessa forma, a substância e evangélica. E o mundo, ao chegar ao fundo da sua atual e trágica experiência, terá certamente fome dessa substância e procurará reencontrar as coisas do espírito, sobrepondo-se à sordície da matéria, venerada hoje em particular, e de fato até à idolatria. Pobreza e dor serão salutares, por despertarem as almas, e este livro os prepara, pois nele, mesmo das profundezas do inferno, é sempre o céu que se olha. Nele é sempre seguida, seja embora por vias diversas das precedentes, o mesmo objetivo evangélico, que é a meta constante, e jamais desmentida, do autor.

Se neste livro se fala com energia e se enfrenta corajosamente a realidade humana tal qual é e não como será ou deverá ser, a franqueza não é usada somente para condenar, mas também para compreender e para ajudar. Por detrás de uma forma áspera está o cumprimento de um missão de bem. Nele está compreendida a trágica paixão do homem que sofre para se libertar, subir, redimir-se da animalidade. O autor a sente e a vive, porque é também seu aquele afadigado anseio pelo ideal e a humana impotência para atingi-lo em cheio. Para convencer e impulsionar em direção à saída, ele se apega às verdades biológicas, que não são questões religiosas, de filosofia, de classes sociais ou de opiniões particulares, e portanto motivos de discórdia, mas verdades aceitas por todos, porque todos as aplicam, não importa se acreditem ou não, se as professem ou não, e no-las atiram ao rosto com a energia da desesperação, pois a crise do mundo é de fato desesperada. Para despertar e convencer, ele se apega também a estas verdades mais compreensíveis, porque tangíveis e próximas, que todos tem ao alcance da mão, encontrando-as a cada passo, na realidade da vida. Nenhuma via despreza, para chegar ao seu escopo, que é o bem. Se por momentos, com áspera linguagem, desnuda a humana baixeza, afronta, logo mais, e racionalmente resolve os problemas. Com o senso do amor e de uma compreensão profundamente humana, aproxima-se fraternalmente do homem, para estender-lhe a mão e ombrear-se com ele, sob a mesma cruz e sobre o mesmo caminho das ascensões humanas.

Aqui se trata do espírito. É bom esclarecermos logo, para evitar mal entendidos. Aqui o espírito não é concebido no sentido materialista, como o é por alguns, em determinada mística moderna. O espírito, para o autor, não é um órgão ou uma função da vida animal, posto a serviço desta, somente para que ela triunfe, nas lutas da existência terrena. O espírito, por ele, é qualquer coisa de muito maior, qualquer coisa que pertence, além dos limites da vida humana, ao absoluto e à eternidade. É verdade que o materialismo hoje se requintou a ponto de alcançar o campo do espírito. Não é mais, a não ser para alguns retardatários, o materialismo grosseiro e negativista de cinqüenta anos atrás. Mas a sua substância e os seus resultados podem ser os mesmos. A colocação materialista dos problemas do espírito não pode ser aceita pelo autor, que sabe muito bem existir, além do mundo terreno, todo um outro mundo. Ele o conhece tão bem, que faz viver nesse mundo o seu protagonista, do princípio ao fim, e no-lo mostra tão vivo e operante, que serve de exemplo e de aviso aos que o conheceram e esqueceram, e de demonstração aos que o ignoram. Entendamo-nos logo. Não é o espírito o servo da vida terrena e humana, mas esta é o meio de que se serve a vida do espírito, que tem outros objetivos e outros limites. Este livro o demonstra bem claramente. O espírito é qualquer coisa que supera todas as humanas afirmações utilitárias, e a moral do autor não admite que ele seja reduzido a simples instrumento de conquistas materiais.

Tudo isso não impediu o autor de compreender o sentido da atual hora histórica e admirar o seu titânico esforço construtivo, que ele sempre sustentou e secundou. Ele quer somente manter-se no equilíbrio da verdade universal de todos os tempos, não desejando limitar-se a um dado ponto de vista, como é necessário para quem se vê arrastado pela força das circunstâncias, em todo momento ou situação histórica. E a ação das circunstâncias é hoje de tal maneira titânica e urgente, que mobiliza tudo, inclusive o espírito, absorvendo-o em si mesma. Mas o autor não pode olvidar os objetivos distantes, e se dirige também às gerações futuras, que, colocadas em condições diversas, por certo, pensarão diversamente e de outras afirmações necessitarão. Ele não pode senão completar e antecipar, com uma visão que às massas de hoje poderá parecer utopia. E aqui está esboçado um ideal que, hoje, não é atual para a maioria, mas talvez o seja amanhã. Entre a concepção que este livro oferece e os tempos presentes não há antagonismo; trata-se apenas de uma posição diversa, no caminho da evolução. O autor compreende muito bem e admira o esforço dos povos para se organizarem em novas ordens sociais, o esforço da ciência para descobrir os segredos da natureza, o esforço coletivo do trabalho para dominá-la e utilizá-la. Mas roga que se compreenda, também, o esforço do homem isolado, que conquista outro tanto, perigosa e utilmente, pelas vias do espírito. Estas serão hoje, talvez, vias de exceção, muito complexas para que a ciência os compreenda e o homem comum as siga, mas justamente por isso mais interessantes, pois representam determinado tipo, entre os tantos caminhos do porvir. Quase sempre o futuro é utopia somente enquanto não se torna presente, e aqui é antecipada uma fase que, se hoje pode parecer absurda, amanhã poderá ser normal. Devemos bem compreender que o autor não destrói ou condena, mas apenas previne. A sua atitude não é, pois, uma evasão do mundo humano, que no seu plano ele deve aceitar, mas um complemento do mesmo, com visões mais vastas e longínquas.

Ele mostra-se, assim, de pleno acordo com a hora presente. Ninguém mais do que ele respeitas os sacrossantos direitos e trabalhos do homem sobre a terra. Mas ele não pode deixar de olhar mais longe e mais alto, de lembrar que há, antes de tudo, um outro mundo no Céu, que é a meta da caminhada neste. Ele não pode, portanto, limitar-se a conceber o espírito como instrumento exclusivo da luta terrena, escravizando aos fins da matéria, mas tem necessidade de lhe traçar, neste livro, os objetivos maiores, que se encontram além da Terra e da vida terrena. Este complemento é necessário e útil. Acreditamos ainda que as perspectivas de certas audaciosas e inusitadas superações, a narração de certas experiências fora do comum, possam ajudar os espíritos, seja por lhe mostrar a afinidade entre as metas próximas e aquelas mais altas e distantes do porvir, - que o homem, um dia, mais civilizado, deverá chegar a compreender e começar a viver, - seja porque tudo isso dá um senso profundo de orientação à vida e sobre ela projeta um útil e fecundo princípio de ordem, uma confortante esperança, uma luz que satisfaz e guia a razão, rumo a realizações sempre mais nobres e boas. A visão daquilo que é moralmente mais elevado é sempre uma lição de sabedoria, e portanto só pode ser benéfica. Não poderá jamais prejudicar a alguém o relato de uma experiência de vida, em que o motivo feroz e desapiedado da luta brutal se eleva ao motivo do amor evangélico, o sentido da existência é elevado a plano mais alto, e a ascensão nos rumos do bem individual e coletivo é proclamada através do exemplo experimentalmente efetuado.

O autor não renega, neste livro, a realidade humana. Demonstra, antes, tê-la compreendido e vivido, e nem sempre a condena, mas sabe também compreendê-la, compadecer-se dela, e para ela se volta, para a auxiliar, segundo o evangélico "ama o teu próximo". Mas não pode deixar de lhe fazer brilhar à frente as supremas finalidades do espírito, que são a chave da redenção. Ele se mantém em de equilíbrio. De um lado aceita a moderna concepção biológica do espírito ( A Grande Síntese ), e faz deste, não uma unidade abstrata, isolada, estranha à vida, mas fundida na realidade humana e na unidade orgânica do todo, ele sente a fecunda colaboração entre espírito e matéria. De outro, ressalva, entretanto, a finalidade superior daquela fusão e colaboração, finalidade que se encontra no espírito, inteiramente acima das menores e contingentes finalidades relativas, filhas do momento e situadas no plano da matéria. Este seu livro é justamente uma equilibrada chamada das finalidades últimas, no campo das finalidades próximas, compensando assim as concepções unilaterais, que tudo procuram reduzir ao ponto de vista humano, em função da utilidade da vida terrena e transitória, em detrimento e sufocamento do ponto de vista super-humano, divino e eterno.

O mundo atual aspira a dominar, e isso é justo no seu plano. Mas, para dominar, precisa tornar-se melhor e, tornar-se melhor, não lhe basta a simples concepção utilitária do espírito. É lhe necessária uma concepção mais vasta e orgânica, que supere os limites deste simples rendimento prático e imediato, sobre o plano humano e terreno. Para vencer na vida, para ter um objetivo, uma razão e o direito de vencer, e dar um sentido à vitória, é necessário que veja também as metas distantes e super-humanas do espírito. Estas não poderão tornar-se suscetíveis de aplicação imediata, porque o mundo está ainda atrasado. Mas somente elas podem dar-lhe uma orientação segura. A concepção puramente utilitária permanece egoisticamente isolada no funcionamento orgânico do universo. E, no caminho da evolução, é como um instrumento quebrado ou um órgão mutilado, ante a visão das grandes linhas e das metas longínquas.

Por isso, no presente trabalho, mesmo que o protagonista nem sempre seja vitorioso, apresenta-nos o modelo ideal de um homem que busca, num trágico esforço, elevar-se, em clara oposição ao tipo normal, com bem diversas qualidades, estaticamente ligado à terra, e que deseja, por si mesmo, somente por força do número, torna-se o modelo da vida. A este tipo biológico, hoje normal, o autor opõe e indica um novo tipo de homem, que luta desesperadamente para se tornar superior e melhor, projetando-se inteiro na direção do futuro. As leis da seleção, já agora atuando no plano psíquico, parecem tender justamente para a formação e a normalização daquele tipo, hoje de exceção. A moderna descoberta científica da energia e o seu domínio, conduzindo o mundo da fase estática da matéria à fase dinâmica do movimento, introduz o homem, desde agora, no limiar daquela nova civilização do espírito, de que o irrequieto dinamismo do tipo "900 é já um primeiro, embora elementar, degrau. Este tipo de homem novo é hoje uma concepção biológica aristocrática e individualista, que entretanto não se encontra em antagonismo com os hodiernas concepções socialistas, niveladoras e coletivas, porque é justamente ao serviço dos demais que o protagonista coloca as suas qualidades e conquistas. Este livro é um desafio ao mundo, mas a favor do mundo, a quem mostra um tipo ideal, ante o qual o melhor que se pode fazer é voltar-se para ele, e que, se pode ser melhor, faz com isso perdoável a sua superioridade. Ele, se é rico em bondade, em tenacidade, em espírito de altruísmo e sacrifício, demonstra e utiliza essas qualidades, não egoisticamente para si, mas no que elas representam de alto valor coletivo, no que elas têm de necessário à formação de mais compactas unidades sociais.

Isso poderá provocar as fáceis acusações de orgulho. Mas o protagonista nos mostra, nestas páginas, o trabalho antes do triunfo, o martírio antes do sucesso. E este se expande no Céu, longe da Terra, da qual, dessa maneira, não prejudica nem perturba os interesses. Nesta obra se demonstra como o primeiro atributo de toda superioridade são os seus correspondentes deveres, como tudo é conquistado e merecido, são severas e justas as leis do progresso, que grandes compensações coroam esses esforços de superação, e que coisa profunda, série e grande é, ainda no caso mais doloroso, a vida. Tudo isso é altamente moral. Este livro quer ser um estímulo a todos, no caminho da superação. Seja para os menos elevados, aos quais se dirige, assumindo quase sempre a sua forma psicológica, seja para os mais avançados, através de sua substância e das suas conclusões evangélicas, e aos quais deseja guiar, como aos primeiros. O livro está, nesse sentido, sobre as linhas da evolução, constituindo uma força que age segundo as mais poderosas correntes da vida. Talvez seja ele uma expressão instintiva e inconsciente, manifestada através da sensibilidade do autor, do impulso biológico criador, que é próprio da natureza, ora ativa, sobretudo, no campo psíquico-espiritual. O livro encontra-se, portanto, entre as boas forças criadoras, que guiam a Deus, e não poderá senão despertar, no íntimo das consciências sadias, uma vibração de aprovação e de sincera adesão. Se a certos momentos as palavras são enérgicas e a advertência poderá ser calorosa, por trás delas, entretanto, não há qualquer interesse a ser defendido. Com toda a franqueza, trata-se tão somente de um ser sincero, que não se permitiu outra riqueza, além da coragem de dizer a verdade. O autor se sentirá, por isso mesmo, satisfeito, e se considerará recompensado do eu trabalho, se puder constatar que, com esse livro, ainda melhor atingiu a finalidade dos precedentes. Se verificar, enfim, que, instigando a subir, rumo a formas mais elevadas de vida, conseguiu fazer um pouco daquele bem que é a sua aspiração mais ardente.

No seu último volume, que precede a este, Ascese Mística, o autor, no último capítulo, "Paixão" , concluiu com estas palavras: (....) A hora é intensa para todos. Não se pode parar. Preparada pelo tempo, ela se precipita. Tenho medo de olhar. (....) Rasga-se então diante de mim a visão da terra e do céu... a terra treme convulsa, no pressentimento de uma catástrofe sem nome. (....) Vejo um turbilhão de forças que se projetam sobre a terra, e vejo a terra abalada, convulsa, submersa num mar de sangue. Tétrica é a hora da paixão do mundo. E parece, sem esperanças. O círculo se estreita, se estreita, e logo estará fechado, e será tarde para fugir ao seu aperto. A mão do Eterno empunha o destino do mundo, estão prontas a se desencadearem as forças para o choque fatal. Avizinha-se a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Bem-aventurado quem, então, não tiver vivo sobre a terra. ...Já disse há tempos: preparai-vos, preparai-vos, mas não me ouvistes. Breve, será tarde demais. O drama está próximo, eu o percebo... Naquele momento, senti tremer a terra. ... Dentro de mim, está a visão do real. Senti, realmente, a terra tremer". Se esse livro, publicado em 1939, claramente predizia, como iminente, o atual cataclisma mundial, o presente volume, História de um Homem, continuando o caminho seguido em Ascese Mística, conclui, ao invés, da seguinte maneira, no testamento espiritual do protagonista ( cap. XXX ): "Estudai sobre o grande livro da dor; aprendei a sofrer, se desejais subir. É bom que o mundo sofra, para que possa corrigir-se e avançar. (....) sem dor não há salvação. A esta lei fundamental não se foge. Mas depois da paixão e da cruz, há a ressurreição e o triunfo do espírito. Aceitai, portanto, o batismo da dor, a expiação que purifica, porque esta é a única via de redenção. Deixo-vos o aviso de que na necessária paixão do mundo está a aurora da nova civilização do espírito." Este novo volume, publicado em 1942, escrito em meio de já anunciada tormenta, encerra-se, portanto, com o anúncio da aurora de um novo dia. Depois da destruição, a reconstrução: depois da dor, a alegria de uma vida mais alta; depois da necessária paixão da guerra, desponta a nova era do espírito.

É este, portanto, o livro da ressurreição, que se anuncia no final porque não pode chegar, para um, como para todos, senão depois de percorrido o necessário caminho da dor purificadora. Se este é o livro da prova e do sofrimento, do angustioso aperto entre as garras do mal, é também o livro da esperança, do triunfo do espírito e do bem. A trabalhosa elaboração da ascensão é aqui impulsionada, para o indivíduo, na história do protagonista, e para o mundo, na consciência da sua atual e apocalíptica experiência. Ao contrário da cena de terror e de paixão com que se encerra Ascese Mística, o presente volume conclui invocando o chamado, das entranhas das maturações biológicas, o homem novo, consciente no espírito, e anunciando e saudando a alvorada da nova civilização do Terceiro Milênio. Natal, 1941.

O universo é ordem, ou caos? O universo é ordem. Isto é o que me dizem a ciência, a história, e tantos anos de observação e de experiência. Cheguei à conclusão de que o universo é um funcionamento orgânico em marcha para determinada meta; que todos os fenômenos se encandeiam segundo uma lei, em cujo âmago sinto o pensamento e toco com as mãos a vontade de Deus presente e atuante. Assim concluí, com a segurança que me deram trinta anos de estudo, de experiência e de dor.

Se desta verdade universal desço a verdades mais particulares e mais próximas, mais relativas e mais tangíveis, descubro que a vida do homem e do planeta que ele é agora chamado a reger, correspondem a uma ordem particular e a um funcionamento orgânico, cuja meta é indicada por estados sempre mais perfeitos a atingir, cuja lei é o progresso. Verifiquei, afinal, que a lei do nosso planeta é progredir em todas as formas; evoluir sempre, em todo sentido, é a idéia dominante. A evolução é uma soberba e incessante marcha de todos os seres da terra, do mineral à planta, ao animal, ao homem, ao gênio: a marcha em direção a Deus.

Descendo sempre mais no particular e relativo, sempre mais próximo e tangível para nós, descobrimos que o homem está à frente do movimento. A sua lei é a seleção do melhor, conseguida através da luta.

Homem e mulher, masculino e feminino, são os ministros desta lei, que no particular se bifurca em dualismo que é também complementação. Como tudo, também esta unidade humana é dada pela fusão de duas unidades, menores e inversas. Em posições e movimentos inversos e complementares, elas fecham o mesmo circuito. O homem diz: eu sou a vontade, a força, a conquista, a vitória. Eu sou o senhor. Não há outro senhor além de mim. Submeto a mulher para que me dê filhos fortes e vencedores, como eu. A mulher diz: eu sou a beleza, a bondade, o amor, a conservação. Eu sou a esposa e a mãe. Não há, nisto, outra mulher além de mim. Escolho o homem forte para que me dê filhos fortes e vencedores como ele.

Dois são, portanto, os grandes motivos da vida humana: o macho e a fêmea. São opostos e se atraem. Dividindo, embora, entre si, o campo da vida, liga-os o recíproco fascínio. Bastam estes dois motivos para cantar-se até às últimas notas a sinfonia da vida, num entrecho e numa compensação contínua. Cada um desses dois princípios é uma afirmação em si mesmo, mas uma negação em frente ao outro, um vácuo que aspira ao oposto, desejoso sempre de se encher com a oposta afirmação, e assim se precipitam um no outro, saciando-se apenas ao fechar-se na sua soldadura com a metade oposta do circuito. Nenhum dos dois é superior ou inferior. A mulher domina como o homem. Não importa se a primeira se afirma calando e negando, o segundo gritando e comandando. O princípio feminino tem tanto o que completar, quanto o masculino. Ambos reinam igualmente, mas através de formas e tarefas contrárias e complementares. Mas cada um dos dois se sente isolado no seu reino incompleto, e deseja completar-se revertendo-se ao seio do oposto. A fragilidade da bondade, o altruísmo do amor são potentes como a força da conquista e o egoísmo do domínio. Cada qual tem as suas armas: armas opostas e complementares, feitas não para se combaterem mas para se abraçarem. Entre essas armas não pode existir rivalidade, porque não tendem a se evoluir, mas a se ajudar. O princípio masculino faz parte do feminino, o pressupõe o compreende e o completa. Cada ser humano nasce no seio de um desses princípios, carrega-o em si mesmo e o representa. Cada um deles existe e tem sentido somente em função do outro. Opostos apenas para se unirem, eles dividem o trabalho e as opostas funções da vida: criar conservando, acumulando, proliferando, e criar destruindo, renovando, selecionando; sempre fundidas as opostas posições na mesma função de criar. A mulher, como a terra, é conservadora e fecunda, ou seja, apta à formação e proteção do material primitivo da vida; o homem, como o ar e o sol, é ativo e fecundante; é como o martelo que forja, o dinamismo que seleciona e renova. A primeira metade do ciclo, criadora da quantidade, resta inútil, se não se completa com a segunda, criadora da qualidade. A mulher vale quanto vale o homem, e este quanto a mulher. Cada um dos dois tem a sua função e missão, de cujo cumprimento é sumamente cioso. O homem é assim invejoso de qualquer outro que tente superá-lo na sua tarefa de seleção; sente nele o rival, e cioso de sua função evolutiva, acusa-o de soberba e velhacaria. A mulher é também invejosa de qualquer mulher que tente superá-la na sua tarefa de proteção e conservação; sente nela a rival, e, ciosa da sua função de amor e reprodução, acusa-a daquela desonestidade que atraiçoa a missão de mãe. Nenhum dos dois suporta que outros lhes usurpem ou os superem, na função que têm o direito e o dever de realizar, porque nela está o objetivo da sua vida e a realização de si mesmos, porque no obedecer ao comando da Lei está a maior alegria, e não obedecer é a maior dor que o ser possa provar.

Ambos desejam a mesma coisa, a vida; expressam a mesma lei, criar; um dizendo: sim; a outra dizendo: não. A lei faz que se unam os contrários para o seu mesmo objetivo. A satisfação do indivíduo está no cumprimento do instinto, ou seja, na obediência ao comando. E o homem, quanto mais ignaro e primitivo, mais cegamente obedece, quanto menos evoluído, menos emancipado do determinismo originário da matéria. Nos momentos históricos do regresso involutivo, o homem canta a liberdade, acreditando que se liberta. Mas não se livra senão do trabalho de evoluir, submetido às superiores leis sociais que lhe impõe ordem, disciplina, virtude. Não se livra senão para tornar a criar, mais cegamente, a serviço das mais elementares e férreas leis da vida, inscritas no instinto.

Peregrinei pelas longínquas e abstratas filosofias do absoluto. Mas a que agora me interessa é esta filosofia específica e prática, mais próxima de nós do que os princípios abstratos, relativa a pequena, mas traduzida em ações; objetiva e concreta, aquela que a cada passo se encontra na realidade humana vivida, aquela que cada homem, mesmo sem compreender, pratica.

Na raiz da vida humana encontra-se este mecanismo. Ele implica rivalidade, luta, enfim, seleção. Assim, guerra e amor são as duas funções fundamentais desses dois termos: masculino e feminino. O amor protege e cria, a guerra destrói e mata. Inversa complementação, mesmo nos efeitos. Nela se cumpre, em equilíbrio, o ciclo, e se completa o circuito da vida e da morte. Assim, na morte, condição de vida é a vida, e na vida, condição de morte é a morte.

É inútil discutir. A lei biológica assim ordena, quer e age; não se corrige, não se burla, mas apenas se cumpre. A guerra e o amor são o binário sobre o qual avança a vida. É inútil pergunta-se: por que assim, e não de outro modo? O fato é que assim funciona o nosso mundo. O fato é que os objetivos impostos, certamente por uma inteligente vontade oculta, são assim atingidos: continuação e seleção. Pois que com esse fim é protegida pelas supremas defesas e conservação individual, tanto como a coletiva e a evolução da espécie. O mundo veio até aqui, chegando ao estado atual, porque aqueles objetivos foram atingidos.

Tudo isto é luta, risco, fadiga imensa. E no que resulta? Na seleção, no progresso. A significação do processo está na evolução. Fazer, pois, um homem, uma nação, uma raça sempre melhor, este é o resultado que a lei biológica quer. O materialismo ateu não compreendeu que a sua evolução significa justamente criação no espírito. Assim avança o mundo. Este é o significado do poder de comando que o instinto revela.

O nosso mundo social é um campo onde se chocam forças diversas, que na sua oposição desejam elidir-se, e assim se corrigem. É necessário reconhecer que na sua disposição há profunda sabedoria, pois desse caótico coexistir emerge, não destruição ou desordem, mas a construção de uma ordem sempre mais perfeita. O progresso verificado no mundo consiste precisamente na passagem da desordem primitiva ao estado de ordem que progressivamente se realiza. O progresso é um progresso de harmonização. Assim o Universo caminha para Deus, que é harmonia, ou seja, realiza cada vez mais a manifestação do Seu pensamento.

Assim nascem e renascem, sempre mais perfeitos, por evolução orgânica, mas agora sobretudo psíquica, os homens, as nações, os povos, as civilizações, a humanidade. Assim, povos e civilizações, como os homens individualmente, crescem, envelhecem, decaem, morrem e renascem, para completar, partindo de bases sempre mais elevadas, construídas com os materiais precedentemente conquistados, ciclos sempre mais altos.

A luta é portanto necessária, útil, é lei da vida, fundamental, criadora, inevitável. A harmonia divina não se pode realizar na Terra senão através desse grande esforço, preço da redenção humana, condição da vinda para a Terra do reino dos céus.

Desta luta, uma forma, no mais baixo plano humano, é a guerra. Nela sempre nos encontramos, porque a ela está confiada a evolução do mundo com a supressão do involuído, do parasita, do inepto. Ela é, por certo, a forma primitiva da luta, própria da fase não evoluída em que o homem dito civilizado ainda se encontra. E enquanto, pela evolução, aquela forma não puder ser superada, a luta, que será sempre necessária, deverá subsistir naquela mesma forma. Até hoje a guerra é lei inexorável, como parte integrante da zona de determinismo do destino humano, e isso porque ela está no passado biológico da humanidade. Até, portanto, a neutralização desse passado, pela superação, a guerra será uma fatalidade biológica. E isso porque a luta é o meio de que dispõe a natureza, para conseguir seleção e progresso. Não é a luta o que se pode suprimir, mas somente as suas formas mais atrasadas. Mas estas não podem ser superadas enquanto o homem não tenha aprendido por si mesmo, com a sua fadiga, a superá-las. Cada humanidade tem as leis biológicas que merece.

Sob pena de trair o supremo escopo da vida, que é o de subir, a forma de luta que é a guerra não pode ser abandonada enquanto o homem não tenha aprendido a transformá-la em formas superiores de luta, dirigidas a fins superiores. É necessário que a humanidade tenha primeiro a força de transportar-se, inteira, para um plano mais alto. Hoje, a guerra e o amor se equilibram no recíproco esforço corretivo. Se esta força do amor, que conserva e multiplica, não fosse corrigida pela destruição seletiva e reconstrutora da guerra, terminaria igualmente na estagnante podridão da morte. Não basta multiplicar os homens, com o amor. É necessário refazer os povos, com a guerra. Proteger e prolificar não podem ser mais do que um meio para tingir o fim, a que só a luta conduz: destruir para reedificar.

A verificação destas leis levou-me à conclusão de que a vida é e não pode ser senão dura, séria, útil; que ela não é uma alegre excursão de gozadores, mas um trabalho sério, dirigido sobre o plano orgânico de leis biológicas, rumo a objetivo elevado e preciso. Cheguei à conclusão de que é inútil tentar evadir-se, na inconsciência e nos prazeres fáceis, a este necessário esforço de evolver, a esta lei de progresso que está escrita em nosso sangue e em nosso destino humano. Quem tenta evadir-se é inexorável e terrivelmente punido pela invisível Lei. Quantas coisas invisíveis têm tremenda força!

Sob tais conclusões, estabeleci uma vida dura, séria e útil. A utilidade não é aquela que comumente se entende, ou seja, a das vantagens materiais: é a conquista dos valores morais, que não se vêem e que regem o mundo. Estou convencido de que cada um pode escolher os próprios objetivos, independentemente da opinião dominante entre os seus semelhantes. Estou convencido, também, de que a verdadeira verdade é simples, a que serve para a vida; que é inútil o complicado e erudito filosofar, pois o que importa é viver aquela verdade, antes de professá-la e pregá-la. Assim tenho feito e vivido seriamente.

Não pretendo que a minha verdade seja absoluta, nem que se deva impô-la a alguém. Esta é a minha experiência. Os outros façam, a seu modo, a sua. Cada um recolhe para si o resultado do seu sistema. Uma experiência conduzida honestamente, com convicção, objetividade e seriedade científica, sempre merece respeito. Uma hipótese de trabalho que, após trinta anos de controle, corresponde ainda aos fatos, resolve os problemas e resiste à experiência de uma vida, deve conter qualquer coisa de verídico. Passei pelas verdades particulares - rivais, em luta entre si, filosofias e teologias - mas o sólido, qualquer coisa de objetivo, sempre presente, inderrogável e convincente, não o encontrei nas construções da psique pessoal, que não são mais do que elevação a sistema do próprio temperamento - um caso biológico - mas encontrei-o na observação do funcionamento orgânico do universo. Na convicção de que somente este nos pode exprimir o pensamento de Deus, na forma por que ele se realiza, e pelo qual, sem dúvida, tudo é dirigido e guiado, eu o deduzi dos fenômenos de todo gênero. E nestes, que estão sempre presentes, eu o vi continuamente em ação, como recôndito motor, que é para mim uma realidade objetiva, inegável, porque sempre funcionando. Tudo, a cada momento, dele me fala. Deste pensamento e desta realidade tenho vivido. No caos das conclusões humanas, dissonantes até à oposição, apeguei-me a esta realidade biológica, isto é, a esta realidade de vida. Deixei-me guiar pela sábia voz da natureza, que aquela realidade nos indica a cada passo. Todo o meu ser, das zonas inferiores às superiores, dela se tem nutrido, como de uma fonte divina. Se me tenho proposto inusitados objetivos e tentando experiências a que os outros fogem ou ignoram; se tenho caído e às vezes falhado; se perigosamente tenho vivido e duramente sofrido, tenho, sem dúvida, trabalhado em harmonia com a criação. Se o progresso é um processo de harmonização com o pensamento de Deus, atuante no mundo, e vai do caos à ordem, eu, depois de haver baseado a minha vida numa concepção universal de ordem absoluta, consegui trazer para o meu destino essa harmonia e essa ordem, não obstante tudo. Assim lutei e venci o caos e o mal, que podem aparecer em dado momento da vida individual e coletiva, mas dos quais triunfa aquele que possui as bases do equilíbrio, a orientação fundamental e a chave do funcionamento fenomênico. Decidi-me assim a marchar, creio-o, na direção fundamental da vida, que não é a de vagabundear ou gozar, mas a de lutar para conquistar e ascender.

 

Ele nasceu como nasce um homem qualquer, num ambiente comum e insignificante. Nascer é coisa tão simples e natural que parece, de fato, não merecer atenção. Em geral, ninguém se surpreende com as coisas mais maravilhosas da vida. Entretanto, naquele feto que vem à luz, há abismos de sabedoria e de mistério, do ponto de vista orgânico, como do espiritual. Aquele organismo humano teve de percorrer longo caminho, para se transformar naquilo que é, ao nascer. Não era, no princípio, senão minúscula célula, o ovo humano fecundado, e teve de recomeçar desde a origem a sua existência, retornando até as raízes da árvore genealógica da vida, ou seja, a uma forma unicelular, como a da alga ou da ameba. Transformou-se depois, lentamente, em pluricelular, em esfera de células. Só à força de multiplicações e diferenciações, tornando-se sempre mais complexo, chegou à forma humana completa. Em nove meses, recapitulou toda a escala biológica evolutiva da qual descende, e que precedeu e amadureceu a sua forma atual. E só então pôde vir, completo, à luz. Esta indiscutível verificação é de fato surpreendente e nos mostra quão gigantesco trabalho o imenso passado teve de realizar para atingir as formas presentes. Mostra-nos que ciclópico feixe de forças faz pressão sobre aquele feto, para que o impulso não se detenha e a vida continue.

O retorno, a necessidade de se refazer desde o princípio, resumindo o trabalho realizado, antes de prosseguir, como para reter o impulso ante a nova tarefa construtiva, corresponde à lei universal dos ciclos fenomênicos, da qual não é mais que um caso particular. Para cada fenômeno avance na evolução, é necessário a consolidação das suas bases, resultante da repetição e revisão do passado2 .

Tudo isso o ser realizou sem nada saber. Pouco do presente, nada do passado e nada do futuro. Tanto assim, que só por último chegou à formação da consciência, única que pode saber e compreender as coisas. Há, portanto, um princípio diretivo e inteligente, que tudo guiou, com lógica, economia e técnica que nos aturde, e que não se encontra no ser, ignorante de quase tudo. Ora, não se compreende como a ciência darwiniana e haeckeliana, que descobriu aquela verdade, tenha desembocado no ateísmo, quando o materialismo é a mais profunda demonstração da existência de Deus. Demonstração cientificamente sólida, muito mais do que as filosóficas, teológicas, abstratas e racionais.

A comprovação de que o organismo humano repete a sua história, que claramente nos mostra, dos primeiros até aos últimos graus, o desenvolvimento biológico, diz-nos ainda outra grande coisa: fala-nos também do parentesco, e portanto da fraternidade, de todos os seres e da comunhão de destino biológico entre o indivíduo e o gênero humano. O indivíduo traz em si, na constituição celular, na estrutura orgânica, nas diretrizes do seu instinto, uma experiência e uma sabedoria, não somente individuais, mas que pertencem à raça. Ele possui em si mesmo qualidades que são coletivas, patrimônio de todos, e que a economia da natureza o faz encontrar já realizadas, ao nascer, com grande poupança de esforço criador, prontas para a imediata utilização nas necessidades da vida. O feto insignificante resume e sintetiza a espécie, traz em si o passado, e sobretudo, ainda em germe, o futuro. Aquele ser é uma força cósmica, a vida, força que não se pode deter. Repetiu, no seu desenvolvimento vibratório, a história genealógica da humanidade; percorreu de novo o caminho da formidável ascensão que, dos unicelulares às amebas, aos invertebrados, aos peixes, às feras, aos pitecóides, aos antropóides, conduz ao homem, sempre pela mesma lei. Esse homem, que tanto caminhou, não se pode deter, e a sua vida presente não pode ter outro significado senão o da continuação daquele caminho. A cegueira imperdoável do materialismo consiste no fato de não perceber o íntimo motor espiritual deste crescimento e, portanto, a diretriz da continuação daquele ilimitado, incessante e irrefreável vir a ser da espécie. O erro nasceu do desejo de persistir na precedente visão unilateral da evolução puramente orgânica, que não é, ao contrário, senão o efeito do desenvolvimento de um princípio espiritual. Que nos indica a história da civilização humana: a construção orgânica e, mais especialmente, a psíquica? Pois aqui se torna evidente, ressalta e domina a psíquica, atuante sobretudo no campo nervoso e espiritual. E acreditamos seja cientificamente sólido e persuasivo considerarem-se as conquistas espirituais e morais como construções biológicas. Somente assim elas adquirem um significado orgânico, em conexão com o desenvolvimento da vida.

É verdade que o moderno materialismo foi constrangido, quisesse ou não, a avançar e orientar-se nos rumos do espírito. Este é uma força tão poderosa e evidente em a natureza, que não poderia permanecer perpetuamente sem ser visto. E já é grande progresso, em face do velho materialismo ateu. Mas, apesar disso, a ciência não vê ainda senão os primeiros sinais do espírito, ou seja, aquilo apenas que se pode ver do plano material em que a ciência se mantém. E isso não é suficiente. Para compreender a vida e vivê-la seriamente é necessário, ao invés, uma integral concepção do espírito. Mas demos tempo à ciência materialista, para ascender segundo aquela lei fatal de evolução, por ela mesmo afirmada, e chegará ao espírito, de maneira jamais vista na história, efetiva, sólida e completa. Só então se poderão lançar as bases da nova civilização do terceiro milênio, que, se não quisermos retroceder à barbárie, não poderá ser outra senão a do espírito.

Seria absurdo que aquele impulso evolutivo, que se faz do ponto do vista orgânico, tão evidente no feto, até o seu nascimento, depois se detivesse, justamente quando começa a vida individual. E se aquele impulso, que é lei da vida, como de todos os fenômenos, não se pode deter, logicamente o seu prosseguimento não pode assumir, como os fatos, de resto, confirmam, senão a forma psíquica. E assim, ainda aqui notamos que o homem recapitula, na infância, repetindo todos os graus de desenvolvimento, não mais a história orgânica, mas a evolução espiritual já feita, que é a própria substância da história da vida, nesta fase superior que a humanidade atravessa. E como o feto só se apresentava completo na vida orgânica, depois desta repetição do seu passado nesse plano, assim a consciência do jovem se apresenta amadurecida, na vida psíquica e espiritual, somente depois de idêntica repetição desse passado, em plano superior. Concluindo, o significado biológico da vida humana, na sua madureza e velhice, não pode ser outro que o da formação de uma personalidade sempre mais completa, através de provas, dores, lutas, de todas as experiências úteis para o progresso espiritual, individual e coletivo. Se o homem nasce organicamente no ato do parto, o homem, espiritualmente, é um feto em gestação, até a sua maturação juvenil, e só então ele nasce consciente para a vida, e se prepara para a continuação do trabalho criativo e sem fim, do seu próprio espírito. Nascendo, o nosso homem se apresentara, portanto, à vida e eis o que o esperava. Eis em que sentido ele orientará a sua existência, que apenas começamos a narrar.

Trata-se de uma experiência realizada contra a corrente hoje seguida pela maioria. As teorias, os ideais pregados não têm importância, a menos que sejam também vividos. As simples palavras, biologicamente, têm pouco valor. Tratar-se-á de uma reação e de uma rebelião contra o mundo, em nome dos mais altos valores do espírito, ao qual se dá, aqui, uma sólida base biológica, e portanto científica, lógica, persuasiva. Não é mais tempo de nos iludirmos. O método corrente de viver e de conceber a vida está completamente errado. O mundo está hoje, de fato, fora do caminho. Esta afirmação não se encontra apenas na mente de algum vidente isolado, que seria fácil não ouvir ou fazer calar, mas está nas próprias leis da vida, a que ninguém jamais poderá fugir. No comum, o homem obedece cegamente ao instinto de crescer. Instinto elementar, que se inicia na célula e exprime a vontade fundamental da criação, que é a de evoluir. E atira-se ao crescimento como um louco, egoisticamente, caoticamente, isoladamente, desesperadamente. O princípio do crescimento é justo, mas o homem normal não tem a mínima idéia de um método racional para o seguir. Só um método que nos harmonize com as diretrizes dominantes no funcionamento orgânico do universo poderá ser satisfatório, ou seja, sem dispersão de energias, levando-nos a um resultado substancial útil. A vida do homem de hoje é um convulso agitar-se, para se apoderar do mais que possa, de todos os lados e por qualquer meio, para si e para os seus. É uma luta desesperada, sem método, sem critério diretivo, sem consciência das leis que dirigem, pela vontade divina, a vida. Naturalmente, com esse louco sistema, não pode o homem atual senão colher desilusões. Há uma desilusão, que é quase normal, ao fim da vida, e que depende toda de nossa má posição diante dela. Comportamo-nos, freqüentemente, a este respeito, como verdadeiros inconscientes.

A primeira pessoa que encontramos na rua sabe muito bem que o problema fundamental da vida consiste no próprio bem-estar material. Sonho supremo, último horizonte, além do qual se encontra o paradisíaco Nirvana do repouso. Daí a luta sem escrúpulos para atingi-lo, egoísmo ilimitado, adoração ao supremo deus dinheiro. Em que coisa se transforma uma sociedade de tais indivíduos? Um campo de batalha, onde quem se distrair é atropelado; um inferno, e isso do nascimento à morte, por toda a vida, sem nenhum descanso. Esta é a realidade. O resto é exceção, ou sonho ou hipocrisia. Assim, o mundo criou a voragem do próprio suicídio, sem ter força de fugir dele.

Ninguém sabe explicar como, em meio a tão decantada civilização, em meio à riqueza e ao bem estar dos povos civilizados, a vida contenha ainda tanta dor e tão amaras desilusões, a ponto de espantar aquele que não seja um inconsciente. A razão é esta. Que o homem não vive só de pão, que não basta, para satisfaze-lo, que ele tenha saciado os instintos da fome e do amor, porque ele possui outro instinto, tão fundamental como aqueles, que é o instinto do progresso. Este é menos concreto, mas nem por isso menos poderoso do que os outros, porque preside ao cumprimento das mais altas finalidades da vida. Ele é, também, o instinto de satisfação mais difícil, e por isso o homem procura eximir-se de cumpri-lo, sem compreender quão profunda é a desilusão que lhe resta, seja embora vagamente, na sua consciência, por essa recusa ao cumprimento da vontade das maiores leis da vida. Essa desilusão é uma vaga, impalpável, íntima dor, que ele não compreende mas que tem de suportar, como inevitável reação da Lei, que assim castiga qualquer traição. A sociedade moderna está envenenada por esta dor, que não se sabe onde se localiza, mas que se encontra em todas as coisas, porque os nossos atos, muito freqüentemente, constituem uma rebelião às leis da vida.

Não obstante o absurdo do arrivista sistema moderno, há alguns que vencem. E quando vencem e saciam o ventre, regalam-se nos prazeres sensuais, pavoneiam-se de honra e de poder; justamente então eles sentem, amaríssima, essa desilusão que não está nas coisas humanas, mas somente na sua maneira de utilizá-las. E espantam-se, então, de não encontrar pela frente senão um grande vácuo no espírito, espantam-se de perceber, justamente quando pensavam ter conseguido tudo, que nada conseguiram. Nada a invejar-se, portanto, destes esplêndidos vencedores, internamente roídos pela desilusão. A sua felicidade é só aparente, eles bem o sabem, é uma felicidade traída, como é justo caber aos traidores das leis biológicas. Não se pode impunemente trair o instinto fundamental da vida, do qual os demais instintos não são mais do que instrumentos. A vida impõe o trabalho de evoluir. Trabalho que custa tão grande esforço que, preguiçosos, desejaríamos esquivar-nos de faze-lo. Para não ouvir a voz da consciência, que nos adverte, tentamos aturdi-la por todos os meios, procuramos não compreender e esquecer os fins supremos para os quais nascemos, precipitando-nos, assim, de queda em queda, cada vez mais abaixo, até à desesperação. É inútil tentar fugir. É inútil que a nossa civilização cientificamente refine a sua sabedoria, na arte do prazer que envenena, do estupefaciente que atordoa, da astúcia que se esquiva, da força que se rebela. Do ponto de vista científico como do religioso, a vida deve ser evolução, ascensão, ou seja, esforço de redenção. Não há prazer, estupefaciente, esperteza ou força humana que nos possa subtrair a esta lei fatal. Se não nos lançarmos de boa vontade pelo caminho da ascensão humana, rumo ao divino, fá-lo-emos constrangidos pela desesperação. É justamente a isto que o mundo de hoje chegou, e tem de faze-lo, não mais pelo amor, mas pela força. Ao final do segundo milênio, para a civilização européia, esta é a única diretriz possível, para continuar a viver.

Este livro deseja expor outro sistema de vida, no qual não importa enriquecer, conquistar poder, honras, prazeres. Não se dá nenhum valor àquela dispersão de trabalho para a produção de coisas tão relativas e aleatórias; mas se dá, pelo contrário, todo o valor à construção moral de si mesmo. Este livro deseja demonstrar como se pode fazer da vida um grande edifício, sem se tocar em dinheiro ou honrarias, e até mesmo combatendo estas coisas. Em nosso mundo pensamos que a felicidade esteja num lugar, quando está noutro, ou seja, não nas vantagens do oportunista, mas na ordem, na harmonia com o próprio vizinho e com as leis da vida e de todo o cosmos. A verdadeira felicidade, que nos satisfaz, não está fora, no plano material, mas dentro de nós mesmos, no plano moral. Não em nos revestirmos de roupagens fictícias e passageiras, mas na construção de nós mesmos, na aquisição de qualidades que são bens imperecíveis, eternamente ligados à nossa personalidade. Não se pode negar quantos esforços a terra se impõe, entretanto que rendimento eles dariam, se fossem mais bem orientados! É verdade que a vida é uma experiência que se tenta. Mas que desperdício de energias, quando não se sabe que direção se deve dar aos próprios esforços! Passam-se, assim, vidas inteiras completamente desperdiçadas, vidas cujo resultado se resume em compreender que tanto trabalho foi inútil, e que a direção devia ter sido outra. Assim os destinos se desenrolam estupidamente, perseguindo quimeras, e não se encerram senão numa triste colheita de amarguras. Assim se consomem existências inteiras, em inauditos esforços para a conquista daquelas coisas que são os produtos secundários do nosso trabalho, não tendo substancialmente outro valor que o de instrumentos transitórios e relativos. É inútil gritar, depois, que a vida é "vanitas vanitatum"3 . Quando todos os princípios estavam errados e foi traído o instinto mais alto, o divino comando a que não se pode fugir.

Quão diferente é a conclusão para quem trabalhou satisfazendo aquele instinto e obedecendo àquele comando! Que alegria brilha através das necessárias dores da vida, que messe de íntimas satisfações, adoça e premia o esforço da ascensão! Então não se colhem, no fim, desilusões, mas se compreende a grande utilidade e a potência construtiva da dor. E, embora sofrendo, se louva a Deus, porque uma íntima satisfação do espírito nos convence de que não perdemos tempo e os verdadeiros objetivos foram atingidos. Uma sensação interior, que não pode enganar-nos, uma satisfação instintiva, não obstante tudo, nos assegura que não lutamos e sofremos em vão, e que qualquer coisa de imponderável e imperecível se encontra em nós conquistada por nós, merecida, e, portanto, realmente nossa, para sempre. Contudo, quantas vidas restam traídas pela preguiça, pela ignorância, pela teimosia de não querer compreender e seguir os verdadeiros fins da vida!

A ciência e a razão têm prometido vários paraísos na terra, mas eles não foram realizados. Dizemos isto, não para combater ou subestimar o imenso passado e o esforço atual, heróico e justo, do mundo, para se colocar numa nova ordem, mas para acrescentar-vos que a nova civilização, que não pode ser senão a do espírito, não poderá efetivar-se antes, cada qual, individualmente, não modificar a sério a sua concepção e o seu sistema de vida. Se o mundo não se transformar, de fato, através de cada um dos seus componentes; se, não somente em palavras, mas também na realidade da vida, não se inaugurar, em vasta escala, uma nova tábua de valores, uma nova civilização não se formará. Assim como hoje se ri do senso de honra da Idade Média, que consistia em passar a fio de espada os inimigos, assim os séculos futuros haverão de rir de alguns dos nossos conceitos de respeitabilidade e de honra, baseados na riqueza, nos títulos e nas posições sociais, filhos da egoísta luta individual. O problema da felicidade, - logo se deverá compreender -, não se resolve com o bem-estar material, mas somente atingindo, além daquele, um elevado grau de consciência, de que aquele não é mais do que meio. Enquanto fizermos da riqueza um fim em si mesmo, ela continuará envenenada e envenenará quem a possuir. A felicidade não é uma forma de abastança, mas uma íntima satisfação do espírito, um equilíbrio moral, "uma harmonia individual na harmonia cósmica". O homem possui também, indiscutivelmente, um espírito que não pode iludir-se e satisfazer-se somente com vantagens e gozos materiais. Além destas aquisições há todo um outro mundo, com mais vastos horizontes. O espírito sente por instinto, a necessidade de orientação conceptual, de finalidade das ações, de coordenação dos seus próprios esforços para a meta de si mesmo no todo. Sente a necessidade de realizar qualquer coisa de sério e imperecível, para quando tiver chegado ao fim da vida. Se o homem não possui também estas coisas imponderáveis, sente-se freqüentemente, sem saber como explicar, insatisfeito, infeliz.

Enquanto o mundo se ocupar das construções materiais, antes das construções espirituais, e não se ocupar destas como coisas principais, a vida será desperdiçada, as leis biológicas serão traídas, e será insensato, nesse regime de insensatez, pretender colher felicidade ao invés de desesperação. Pode-se sorrir com ceticismo e expulsar o enfadonho pregador dessa verdade, mas o dilema é hoje tremendo: ou criar uma nova civilização ou retornar à barbárie. As leis da vida exigem e fazem pressão para resolver dois milênios de preparação e de espera, e não há lugar para a inconsciência dos que dormem ou gozam. Se não houver o esforço para se criar uma nova civilização, a barbárie de substância, não importa se envernizada de civilização mecânica, será uma punição para todos.

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2 - Ver A Grande Síntese, do mesmo autor, cap. XXVI: “Estudo da trajetória típica dos motos fenomênicos”. (N. do A.)

3 - Vaidade de vaidades.

 

Quem escrevia assim?

O protagonista deste relato, o homem cuja história narramos. Com aquelas suas palavras o individualizamos e apresentamos.

Mas, para melhor compreender, é necessário narrar ainda.

A história desenvolve-se na hora titânica e apocalíptica que, como um rasgo no céu, aparece cada vez mais lampejante, sobre a outra metade do século XX, prenúncio da hora ainda mais grave. Esta história é um pouco a história de todos os espíritos sensíveis e amadurecidos, que têm uma vida individual profunda e própria. Neste espírito, espelho refletor de todas as luzes do seu tempo, refletem-se em parte e as grandes tempestades ideológicas que o século vinha maturando. Nascido nos fins do século XIX, ele tinha visto, depois, realizarem-se ao seu redor as maiores transformações políticas, sociais, intelectuais, espirituais e científicas. Crescido entre velhas ideologias, em ambiente de província, intelectualmente restrito, tinha visto a vitória do automóvel, do aeroplano, do rádio, e assistindo profundas mutações no campo cultural. Muitas vezes, fora obrigado a mudar a própria orientação e renovar as suas conclusões. Num mundo em evolução assim tão rápida, ele, ágil de mente e de corpo, havia-se renovado ainda mais rapidamente. Apreciara o frenesi de dinamismo, o esforço de ascensão. E sentia-se satisfeito de ter nascido em hora tão intensa e interessante, para a sua ânsia vertiginosa de renovação, para as suas tentativas de elevação, tormentosas e, embora por momentos, frustradas. E lançou- se no turbilhão, não para girar como tantos, em torno de si mesmo, num torvelinho inútil, mas para compreender o sentido profundo daquele turbilhão e dele tirar o mais elevado proveito. Tinha a completa sensação daquela hora histórica, grave e solene, e a vivia toda, avançando e fremindo, para realizar-lhe o significado mais real, eterno, ou seja, a trabalhosa ascensão do homem rumo a melhores formas de vida. Ergueu a cabeça ante os adormecidos, em que tropeçava, na sua luta para salvar os valores morais do mundo e conquistar entre eles os mais elevados. Foi asfixiado, desprezado, incompreendido. Vida de fadiga e de desgastes, mas vida de ascensão interior e de conquistas espirituais, profundamente concebida, além de todas as formas; aderente à substância, vida de laborioso silêncio criador, de fé, e não raro de desespero e de sangue. Ele foi, assim, um lutador, e lutador no mais elevado campo que é o do pensamento e da ascensão moral. Algumas vezes caiu, foi traído pelo ideal e pelos homens, traído até ao desprezo, ao ridículo, à desesperação; viveu, na solidão, horas trágicas, não vistas e não compreendidas. Mas a idéia alta e reta não é o caminho do sucesso fácil. E embora possam rir os gozadores, facilmente triunfantes, ele quer para si a vida séria, com sério objetivo. E se ao mundo apareceu falido, estava muito satisfeito com a própria consciência.

O nosso protagonista é assim um símbolo, uma idéia, que, vivida, transforma-se em realidade, uma experiência realizada, em cujo seio se atormentam e amadurecem, ainda, tantos outros espíritos ousados.

Sobre o fundo longínquo da cena está a multidão anônima, rumorejam as grandes massas amorfas, instintivas, ignaras, inconscientes, o grande povo, vaga entidade para a qual devemos dirigir-nos, obedecendo ao antiquíssimo ensinamento evangélico e ao novíssimo ensinamento das mais recentes concepções sociais. A multidão é uma das forças que se movimentam neste enredo. Aqui, ela é um indistinto rumor de fundo, imenso como o do mar, um som coletivo, resultante de muitos pequenos sons, um vago som confuso, que não se sabe de onde nasce porque vem de todos os lados, nem de quem procede, porque provém de todos. Entretanto, ela é uma força que toma, às vezes, forma de pensamento definido e de vontade decisiva, e, em certos momentos, tudo transforma, impondo-se à história. Aqui, a multidão aparece como termo de comparação, como elemento de resistência, de misoneísmo, como inércia em face da força, como a grande terra polo negativo, sobre a qual o verdadeiro homem, polo positivo, caminha, sozinho, rumo aos seus objetivos, tão distanciados das multidões de hoje. Ele é uma idéia, uma vontade que reage à psicologia coletiva e contra a qual esta reage. Veremos aqui se formarem os circuitos de ressonâncias e o seu dispersar-se em dissonâncias, ouviremos acordes e discordâncias. Ouviremos sintonizações com outras forças do imponderável.

Neste trabalho encontraremos freqüentemente citados o mundo e o homem comum. O mundo tem aqui o sentido evangélico de lei humana da terra, inferior, contraposta às mais altas leis do Céu. Por homem comum, ou normal, ou qualquer, entendemos o tipo dominante, modelo em série, com a sua psicologia uniforme. Esse, não há dúvida, existe na prática. É o homem da rua, o que constitui o público anônimo e amorfo, um tipo a que se reduzem todos os outros, no momento e pelas exigências da normal convivência social. É o homem da mediana cultura dos jornais, simplista, restrito aos elementares impulsos animais, envernizado de alguma erudição e educação; o homem que vegeta, luta pela mulher e pelo amor, pelo necessário e pelo supérfluo, permanecendo no campo material. É o homem que pensa por si e pelos seus, movido pelos instintos fundamentais da vida, incapaz de vibrar ante as altas paixões do espírito. O homem que não sabe caminhar senão em rebanho, que não sabe pensar senão em si, que não sabe fazer senão aquilo que todos fazem. Ele é feito de muitos homens diversos, de muitos tipos de gradações. Ele é como a expressão pública dominante, à qual todos se equiparam, pelas necessidades da vida prática, nas relações sociais. Homens, até mesmo, de alta percepção, homens de todos os níveis, assumem, pela necessidade prática, a expressão desta psicologia dominante, que resume os traços do maior número prevalecente. Ela é um meio de se entenderem, é a unidade monetária das trocas e contatos comuns, um ponto prático de referência. É a psicologia das ruas, comum a todos, como um hábito que todos devem adquirir quando descem à rua. É a psicologia corrente, que faz a opinião pública e o uso, a que todos se adapta, para poder existir: a religião, a imprensa e todas as derivações da vida pública.

Mas se ela constituirá, freqüentemente, o ponto de referência, a substância deste trabalho situa-se em outro plano. Para os negadores do espírito, que pela sua própria cegueira se sentem autorizados a lhe negar a existência, será uma prova, muito mais convincente do que tantas argumentações, a narração desta vida, vivida no seu próprio mundo, no meio deles; vida do princípio ao fim em plano lógico e orgânico, dirigido, não às conquistas efêmeras, mas a outras, situadas inteiramente no espírito, dotadas de potência e lucidez. Aquele tipo de homem, hoje comum, contrapõe-se aqui um tipo de homem novo, para cuja formação luta este livro com toda a energia com que foi concebido. Homem novo, lutador viril do ideal, não mais inconsciente, do qual ninguém, por mais necessitado de evolução, pode desconhecer o valor e a utilidade, na senda do progresso, e cuja formação, nesta hora histórica, que alvorece no limiar do terceiro milênio, é uma necessidade vital, se a civilização não quiser precipitar-se na morte.

Assim, não se encontrarão neste volume os habituais motivos passionais, nem os costumeiros enredos de ficção, com tipos que se movimentam fisicamente em vários ambientes e em várias circunstâncias. Se personagens e fatos se apresentarem, isto será, somente, para dar forma ao movimento de correntes de pensamento e de vontade, dar vida tangível ao entrechoque de idéias e de forças, pois que estes são os verdadeiros personagens da narrativa. Esta será assim, mais rápida, mais sintética; os fatos serão reduzidos à sua pura substância. Para isso, deixaremos de lado os acontecimentos mais comuns da vida do nosso personagem, aqueles que o fazem assemelhar-se aos demais. Não é interessante, segundo pensamos, a referência às coisas que todos fazem, que todos sabem, que todos dizem, e que são, até mesmo as narrativas, sempre repetidas.

Numa hora, justamente, em que tudo se torna coletivo, e não se pensa nem se age senão em massa, sem espírito próprio, o nosso protagonista permanece solitário, como se estivesse fora do seu tempo, talvez por havê-lo compreendido demasiado; é um rebelde, decidido a viver a todo custo a sua própria vida. Por certo, alguns temperamentos e alguns destinos não se escolhem, e estão muito acima da própria vontade. Ele não quer nem poderá aceitar e suportar o pensamento alheio. Quer aceitar a sua experiência da vida, sozinho, diante das forças cósmicas. Quer permanecer sempre ele mesmo, um desenvolvimento lógico, dirigido a um objetivo próprio, conscientemente escolhido, seguido tenazmente até o fundo. Cheio de disciplina, ferreamente ligado ao dever, mas observador e árbitro de tudo, e, ao menos no seu íntimo, lá onde somente se pode sê-lo, livre, independente de tudo e de todos. Assim coordenou as forças de sua tormenta, em meio à tormenta do mundo.

O seu tempo lhe oferecia um pensamento caótico. O mundo estava abalado pelo entrechoque de tantas verdades diversas, dividido entre o desmoronar de edifícios milenares e a tensão construtiva de novos valores, em todos os setores humanos. O seu tempo era um campo de batalha de grandes maturações, em que o passado, solidamente firmado, mas justamente por isso ossificado, resistia, com grande força da inércia, ao novo que irrompia da velha casca e fremindo de vida. O nosso homem encarou profundamente a grande luta em que a civilização jogava a sua cartada suprema, e entregou-se todo, de alma e corpo, à preparação do advento da nova civilização do terceiro milênio. Assim, o solitário fundiu a sua vida na substância do seu tempo, consciente disso como poucos, vidente e atuante, e como poucos preocupado pelos destinos do mundo. Distante do inútil burburinho, ausente da hora fácil dos direitos e da colheita, preferiu estar presente no trabalho silencioso, na hora do dever, do esforço obscuro da semeadura. Assim viveu muito mais ligado aos seus semelhantes do que podia parecer, pois preferiu envolver-se nas suas dores, mais do que nos seus triunfos. Assim, e não de outra maneira, quis ser, a qualquer custo, mesmo a preço de decepções e de desprezo. Preferiu uma vida de luta, a fim de permanecer sempre coerente consigo mesmo. Quis ser um verdadeiro homem, vivendo a sério. Esta nota fundamental de honestidade, qualquer seja o erro que ele tenha podido cometer, nunca o abandonou. Não pactuou jamais com o mundo, contra a sua consciência. Teve de andar contra a corrente, a corrente real, não aparente, antes bem oculta, das ações humanas. Foi por muitos considerado um imbecil. Por isso, não querendo nunca reduzir-se à vileza de uma traição aos seus princípios de retidão, viu-se constrangido a ser um solitário.

Se o leitor não ama um ideal, se não tem paixão pelas coisas mais elevadas e santas da vida, se não sabe vibrar nestes dramas do espírito, se não tem vivido ascendendo através da dor, se não compreendeu a gravidade do nosso tempo, se não sente, enfim, a necessidade de fugir à cotidiana miséria da vida, não poderá interessar-se por histórias como esta. Aqui, não encontramos amor senão por Deus e pelos que sofrem, nem paixão senão pelo bem. Este não é um livro de vida fácil, que se rebaixa, mas o livro da vida dura e severa, que constrói e se eleva. Quem aqui procura, para o seu deleite, qualquer vaidade literária, quem gosta somente de curiosidades para distração, quem pensa encontrar aqui, repetidos, os motivos que costumam mover os homens e as suas paixões, largue o livro. Quem não tem buscado e seguido, na luta e na dor, as ásperas vias da ascensão, caminha na vida sobre outros trilhos. Cada um tem os seus, e vai para onde quer. Largue o livro, mas lembre-se de que, em qualquer posição social ou espiritual em que se encontre, participa também da narrativa, chamada história de um homem, mas que é na realidade, a história de todos os homens.

 

Ele havia nascido na mística Úmbria4 , em fins do século XIX, quase à sombra de São Francisco, figura que se agigantou no seu espírito. Penúltimo de numerosa série de filhos, não esperado viu-se no mundo como por engano e provocou atenções especiais. Nascera numa tarde de agosto, na simplicidade, de uma casa simples, num velho bairro de ruas estreitas, enquanto a turma dos irmãos, para dar paz à casa, tinha saído a passear. E assim como nascera, viveu, longe das vãs complicações da riqueza, livre da escravidão de tantas exigências. Feliz de quem nasce na simplicidade, onde não falta o necessário mas não se é escravo do supérfluo, onde a vida, que em tudo sempre deseja crescer, partindo o humilde, tem espaço para subir. Que caminho resta a percorrer a quem já nasceu feito, rico e poderoso, senão decair? A vida é um vir-a-ser e não se pode parar. Um caminho é necessário. Se não se puder fazê-lo em ascensão, termina-se por faze-lo na descida. Essa é lei fatal da vida. Haveria um remédio: livrar-se logo o privilegiado da sua posição de privilégio, da injustiça que pesa sobre ele reclamando justiça, livrar-se logo do débito contraído para com os semelhantes ao nascer em posição favorecida, débito do qual as justas leis da natureza exigem o pagamento. Mas livrar-se é muito difícil, seja para o bem nascido, que cresce enfraquecido pelas facilidades da vida, que não lhes ensinam desde cedo a luta, seja pelos pais, que o amam. Essa desgraça de haver nascido já feito não merece, portanto, como se costuma fazer, a nossa estúpida inveja, mas antes direito à nossa benévola piedade e ao nosso auxílio.

Feliz, pelo contrário, quem nasce com a riqueza do espírito, que mais facilmente se encontra e se desenvolve na pobreza das coisas humanas. Os tesouros da terra podem ser perdidos, mas não os do Céu. Em meio à barafunda das incertezas humanas, há aquela maneira incrivelmente segura de investirmos as nossas riquezas nos valores imperecíveis do espírito. Estas primeiras referências são feitas aqui, justamente por exprimirem o tom fundamental que dominará esta história, em todo o seu desenvolvimento. Desde o princípio, oposição absoluta entre espírito e matéria, luta dos princípios morais contra o utilitarismo do mundo. Desde o princípio é mostrada aqui, bem clara, a inversão evangélica dos valores humanos. Neste relato veremos desenvolverem-se os ásperos sucessos dessa trágica batalha, nem sempre vitoriosa. Essa história de um homem está, portanto, em perfeita harmonia com a substância do Cristianismo e com a revalorização das forças do espírito, hoje, sob certos aspectos, abertamente sustentada.

Como todos, ele trazia em si as notas da sua raça; a característica úmbrica, assinalando o tipo geral italiano. Diz-se que os antigos romanos possuíam o dom da vontade e do equilíbrio, os toscanos o da expressão e os umbros o da intuição. Assim, o lugar do nascimento e o tipo da sua gente, taciturna, sóbria, trabalhadora, já esboçavam um pouco o seu destino.

Também a hora, o dia, o mês, o ano, as constelações, diz-nos a astrologia, influem no destino de um homem. E seria absurdo negá-lo "a priori", por simplismo ou ignorância materialista. A radiestesia, ciência das vibrações de todas as coisas, inclusive o homem, transmitem e recebem, está apenas nascendo. E já está séria e cientificamente justificada a desconfiança de que existem muitas coisas sutis, no Céu e na Terra, inegavelmente reais, embora imponderáveis. Certamente, em meio a tudo isso que existe, o homem transmite, e sobretudo recebe, uma quantidade infinita de vibrações, das quais se ressente, mesmo que a sua atual insensibilidade não lhe permita percebê-las com clareza.

Não importa saber que nome o protagonista recebeu ao nascer. O leitor lhe dê um nome qualquer, o que mais lhe agrade. O verdadeiro nome do homem não é dado pelos registros sociais, mas pelo seu tipo, pelo seu destino, pelas suas obras. O nosso personagem aqui se encontra como um soldado anônimo da vida, no qual poderá encarnar-se quem o quiser. É um tipo a que só se poderá dar um nome, ao fim do seu caminho terreno.

Assim ele se encontrou a viver nesta terra, imenso campo de exploração, qual força progressiva num mar de forças em ação. Em torno dele vibraram efeitos de próximas e remotíssimas causas, de que não tinha conhecimento. Para esse recém-nato, o mundo apareceu como trevas, em que a centelha espiritual, concentrada no eu, deve, por si, aprender a ver. A infância se lhe mostrava incerta e temerária, e cada hora, cada passo, era uma conquista. Indagar, explorar, experimentar, é o seu desejo e a sua tarefa. Ele aprende primeiro as grandes palavras da vida: "mamãe", que é a gênese, "eu", o centro da consciência; "quero", expansão e concentração no eu; "por que", a grande pergunta a que nunca poderá dar a última resposta, mas que contém a busca sem fim de Deus. Aprende a caminhar, porque, materialmente e moralmente caminhará toda a vida. Mas sabe chorar desde que veio à luz, porque a dor já o tomou em suas garras e não o largará mais.

Mal nasce, começa, para a criança, a se desenrolar um fio, inicia-se a marcha que será batida, até a morte, pelo ritmo inexorável do tempo. Mas nem o fio se desenrola, nem a marcha avança ao acaso. A consciência da criança é semente que se desenvolve e se expande, mas é germe que traz em si todas as características fundamentais da futura personalidade. As notas centrais já estão dadas, e não se mudarão mais. Isso acontece com todos os germes vegetais e animais. Vem depois a educação a que a criança é submetida, e a que se adapta ou reage, segundo os casos. Intervêm depois as forças externas, as exigências dos outros seres, as imposições da convivência social, os freios morais do dever e da virtude, que se sobrepõem ao instinto. E o tipo originário, qual o construíra a sua história biológica, para se adaptar, mais ou menos, enfrenta todas as pressões, um pouco se transforma, um pouco aprende a mentir e a esconder o seu verdadeiro eu; algumas forças externas se dobram ante a sua vontade, por outras termina dobrado. Com o seu eu originário, com as qualidades boas e más, com os recursos e as deficiências, ele deve saber chegar até o fim, abrindo caminho num mar de forças que o circundam, e que de todos os lados fazem pressão para o invadir. Cada uma, à sua própria semelhança, lhe diz: "eu" e "quero", e não encontra a paz enquanto não se realiza a si mesma. Assim começa a vida, que é luta, e, da maneira como está biologicamente implantada em nosso planeta, não pode ser senão luta sem tréguas para o forte e para o fraco, para o evoluído e para o involuído. Verdadeira escola, ai de quem a ela se exime. Ai dos jovens a quem os progenitores, por excessivo e muito prolongado afeto, que exagera as funções protetoras da criança além dos limites naturais, entregam os meios fáceis de se eximirem à luta. Certas educações cômodas e fáceis são pagas, depois, duramente. Não é possível eximir-se; é necessário exercitar-se cada um no seu plano, no seu nível, segundo o tipo fundamental dado pelo nascimento. A luta não é violência e subjugação senão embaixo. E em todos sabem subir. Nem leis nem religiões puderam agir tão profundamente para civilizar o fundo bestial da natureza humana. Mas, para quem quer e sabe, há formas superiores de luta viril e generosa, que não são a condenação à animalidade, mas a afirmação da mais alta potência no espírito. Neste campo é necessário aprender a lutar. A luta é lei da natureza, necessária, e não está no poder humano evitá-la. Mas aquilo por que somos responsáveis é a forma de luta, forma que nos cabe escolher, segundo aquilo que somos, sobretudo segundo aquilo que queremos e sabemos nos tornar. "Diz-me como lutas e por que lutas, e eu te direi quem és".

Temos falado do destino. Há realmente um destino, e em que sentido? A vida é um encadeamento de causas e de efeitos, que se pode perquirir, remontando muito aquém ao momento em que o indivíduo nasce. Assim os filhos são uma conseqüência dos pais. Mas, ao nascimento, aquele fio comum que se transmite de geração a geração torna-se particular, próprio de cada um, e se chama "eu". Destaca-se do "eu" anterior, do qual muito depende, e conserva-se distinto dos eus sucessivos, nos quais, aliás, continua e quase sobrevive. Ora, naquele "eu" que é estritamente nosso, a parte que é conseqüência do passado, isto é, a constituição fundamental do germe, do qual deriva o tipo de personalidade está, já então, fora do nosso livre-arbítrio. Para nós, ao menos, que o possuímos na forma já cristalizada, definida na entidade germe, ela é qualquer coisa já então solidificada num tipo. E dessa forma, sem qualquer inquirição, o recebermos ao nascer. Não iremos mais fundo, neste trabalho. Algumas mentes se perturbam, ao ouvir falar de reencarnação, e não se tem o direito de perturbá-las. Certas salutares ignorâncias serão respeitadas. Salutares, porque a humanidade está ainda muito selvagem para ser posta a par de certos conhecimentos. E quem os possui faz bem de não divulgá-los, porque eles não podem e não devem ser concebidos senão por quem os mereceu, ou seja, por quem os conquistou através da maturação. Sem isso, eles não podem ser compreendidos nem admitidos. Aqui se fala, portanto, simplesmente do passado da hereditariedade fisiológica e psíquica, e esta não se pode negar, porque a ciência a toca com as mãos.

Há, indiscutivelmente, na nossa personalidade, uma zona de determinismo. Ela se encontra no fundo do nosso destino, é o instintivo, indiscutível subconsciente, que às vezes se impõe à nossa vontade, antes que a própria consciência desperte. Mas, sobre este fundo hereditário, em todos os sentidos possíveis, filho do passado, eleva-se uma zona de livre-arbítrio, um campo de novas e livres construções, porque o "eu" se forma e se reforma sempre, sem jamais se deter, e se constrói especialmente através de explorações e experiências que atravessamos neste ambiente terreno. E é justamente para a sua construção, ao menos no que respeita ao tempo da vida humana, que nós a atravessamos.

Por destino não devemos portanto entender um cego fatalismo, um fato inexoravelmente imposto, mas um impulso anterior, que se pode e que está em nós corrigir. Ao passado cristalizado podemos opor a força da nossa vontade presente, que pode retificar a trajetória daquela massa, que não caminha somente pela inércia, mas guiada pelo impulso da nossa atual, inteligente e livre vontade. Se isso implica uma zona de relativa, transitória irresponsabilidade, que só o é no presente, porque o subconsciente é filho do passado, não viola, entretanto, a zona muito vasta de responsabilidade consciente do presente, sempre livre nas suas correções e criações5 . E se devemos admitir, sob pena de nada compreender ou de acusarmos de injustiça o Criador, um passado nosso, livre e desejado, mesmo que ele hoje se apresente fixado em forma de determinismo, está claro que, na realidade, a responsabilidade abarca todo o nosso destino. O destino humano, momento do eterno e necessário vir-a-ser, é portanto o desenrolar de uma luta entre determinismo e livre-arbítrio, entre o passado que quer resistir e o presente que deve corrigi-lo. E a balança da justiça pende segundo uma responsabilidade no presente ligada a uma fatalidade, e segundo uma liberdade que, para vencer, deve, agora, quebrar a resistência do determinismo, que está no próprio destino

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4 - Foligno, próxima a Assis, cidades da Úmbria. (N. do T.)

5 - Para uma exata compreensão do subconsciente, ver Ascese Mística, do mesmo autor, parte I, cap. XIX e XX. (N. do A.)