História de um Homem

 “Na morte está a vida”

Com o correr dos anos, cada vez mais ele se destacava da Terra. O grande rumor do mundo, o ensurdecedor fracasso da vida humana, brutal explosão de instintos primordiais, diminuíam sempre à distância. Lentamente, afastava-se da imensa e violenta maré. Os contrastes caíam. Ele se ia, fugindo às leis da Terra para entrar no domínio de leis de um mundo diferente e mais alto. A luta serenava, a dissonância se harmonizava, a vida se pacificava numa doçura suprema. O inferno ficava lá em baixo, impotente para subir acima do seu nível. Ele observava o seu assalto perder todo o poder à medida que a matéria se desfazia. As forças abandonavam-no lentamente. Era obrigado a deixar o trabalho em solidão e silêncio. Chegava a hora do merecido repouso. Mas, onde parecia estar a morte, ele prelibava a sensação da nova vida que o esperava. A irmã morte lhe trazia a maior alegria: a libertação, pela qual tanto lutara e que tanto havia demorado. A prova fora longa, tenaz, inexorável, mas o navegante sem repouso, o peregrino do amor e da paixão, chegava finalmente ao porto! Desfaziam-se-lhe todos os nós do destino, caía a sua dor. Sentia iminente o desabamento dos valores do mundo que o perseguira, onde fora um vencido, e via aparecer e realizar-se para ele a lei do céu. Ao dia dos outros, que fora a sua noite, sucedia agora o seu dia, que era a noite dos outros. Com o gradual enfraquecimento do corpo, o dia se fazia mais claro. À medida que o organismo se abatia em prostração profunda, acendia-se-lhe no espírito uma luz cada vez mais intensa. Todas as suas sensações lhe confirmavam a realidade da mais alta continuação de si mesmo, da ressurreição além da Terra e da morte.

Ao invés da sensação de despenhar nas trevas, acentuava-se nele o pressentimento de horas intensas. No entanto refazia os momentos mais férvidos de sua ascensão mística, a inolvidável recordação de suas visões, e lhe parecia que aqueles vértices de- veriam agora fundir-se para se projetarem, num único arremesso, para a última realização – a mais profunda e sintética. Com a morte, sentia avizinhar-se um grande acontecimento espiritual, que seria a suprema etapa, síntese e conclusão de sua vida; um acontecimento espiritual de há muito prometido pela consciência, assegurado pelo instinto, garantido pela razão, incluído na lógica do seu destino e talvez desejado pela lei da divina justiça.

E preparava-se interiormente com fé intensa, com devoção e humildade, com trepidante expectativa de alegria sobre- humana, como um sacramento íntimo, em que se resolviam sua vida e seu destino. E já intuía que, naquele momento supremo do ajuste de contas, teria cumprido a suprema dedicação e consagração a Deus. Um sinal viria do alto, o sinal invocado e esperado como prêmio único. Chegaria como um segredo de amor e de unificação, rematando-se uma vida de fidelidade e sacrifício. Intuía que, naquele momento supremo, ele estaria a sós com Deus.

Recolhera-se a uma casa de campo. Todos de sua família estavam ausentes. Um dia, sentiu-se desfalecer, e a morte pareceu-lhe realmente muito perto. Depois, aconselharam-lhe chamar um médico e tratar-se. ―Para que servirá isso?‖, pensava. Como poderia tolher as leis da vida? Para que trazer para junto dele o supremo incômodo da ciência da matéria, justamente no momento de maior importância para o espírito? Porque chamar estranhos para ouvir palavras de vão encorajamento na cortês mentira que, por uma piedade mal entendida, sustém procura assegurar que a morte ainda está longe, quando ele bem sabia que o contrário é que era certo e que isso lhe era agradável?

Já se habituara a falar de si mesmo com as forças da natureza, como se habituara a falar sinceramente de si com Deus. Não desejava ter a seu lado senão o calor sincero dos afetos e dentro de si o calor da prece.

Por alguns dias, voltaram-lhe as forças. Depois recaiu. Uma tarde, depois de breve passeio, voltou para casa, arrastando-se. Era um dia de maio, tranquilo e cheio de sol. O ar estava quente, e o crepúsculo era chuva de ouro. Deitou-se, pensando que, para morrer, não é preciso mais que ter Deus e paz na própria consciência. E ele que, desde algum tempo, vivia no regime vegetariano, sentia-se esvair tranquilo e lúcido, sem o tormento dos fenômenos tóxicos.

Levantou-se um pouco no dia seguinte. Depois, não mais. Na tarde do terceiro dia depois de sua recaída, estava sentado no leito, apoiado a vários travesseiros e, através dos vidros da janela, via o sol descer lentamente sobre as colinas, refletindo o seu esplendor no rio que serpenteava pelo vale. Quanta paz na natureza! Quanta paz em sua alma! Quanto esperara e sonhara este último repouso, e como lhe era grato recordar agora o longo trabalho, as numerosas quedas e ressurreições e todos os conflitos de uma vida de dor, de luta, de contrastes. Quantas vezes o haviam maltratado, mesmo sem compreenderem, incapazes de proceder de outro modo! Quanto o haviam feito sofrer injustamente, decerto por incompreensão. Quão seguros, enérgicos e armados de justiça eram os seus juízes. Recordava quantos o haviam espoliado porque era desinteressa- do, insultado porque era humilde, explorado porque era generoso. Tinham-no privado até do fruto do seu trabalho; tinham-no expulsado de sua própria casa; e riram-lhe na cara porque não quisera revoltar-se e defender-se.

Talvez fossem inocentes, e não podia julgá-los. A superficial justiça humana estava do lado deles. Talvez fossem simplesmente a expressão de forças involuídas e inconscientes, que ele, por sua única culpa, merecera encontrar em seu destino. Talvez não fossem maus e só lhe pareceram assim porque não os compreendia, e, no fundo, a culpa era sua, porque ele é que era diferente dos outros. Que podiam emanar e dar de si senão o que eram e o que tinham dentro de si? Tinham culpa de ser involuídos? Não seria, ao contrário, um destino de expiação que formara aquele caminho de dolorosa incompreensão?

E então repetia as grandes palavras de Cristo: ―Pai, perdoa- lhes, porque não sabem o que fazem‖. E acrescentava: ―Senhor, perdoa-me, porque não os compreendi e tomei por maldade o que era apenas imaturidade‖.

O tempo resolvera os dolorosos antagonismos, deixando em sua alma, como benéfico resíduo, qual nova riqueza, a luz de ter compreendido os seus semelhantes e a doçura de havê-los perdoado.

Com a alma em paz com todos, repousava e orava. A descida ao mundo estava completa. Em seu espírito tudo era, agora, profunda harmonia. Entregava a Deus a obra de sua vida, repetindo a frase habitual: ―Senhor, sou o teu servo e nada mais peço senão isto‖. Dissera-a por toda a vida, ao fim de cada dia. Repetia-a agora, ao fim da mais longa jornada terrestre. E acrescentava a grande prece: ―Senhor, perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós as perdoamos aos nossos devedores‖. Seu pensamento final era de amor; sua última palavra, de perdão. A inveja das rivalidades humanas não se apossara jamais de sua alma. Jamais se ligara a alguém com tais sentimentos, e nada o prendia aqui em baixo. Procurara sempre perdoar aos que o haviam feito sofrer e lhe haviam pagado o bem com o mal, pois acreditava que o perdão era a primeira qualidade dos verdadeiros seguidores de Cristo. Este perdão evangélico não é, como talvez se acredite, uma fraqueza encobrindo impotência e covardia. É consciência da ordem e da lei de Deus, a cuja sanção não se foge. E, quanto menos o homem reage, usurpando a Deus o direito de julgar e punir, passando assim para a parte dos devedores, tanto mais as leis reagem em sua defesa. E quão mais potente que a nossa não é a ação de Deus! Cada injustiça sofrida é um grito que chega a Deus, muito mais eloquente se a vítima se cala.

O ditado “a melhor vingança é o perdão”‖ pode assumir assim um sentido terrível para quem foi perdoado. Mas quem compreende isto? E, no entanto, são simples e lógicas leis bio- lógicas, de resultados utilitários. Iludem porque são leis pacientes. ―”Deus não paga aos sábados”‖, diz-se. Mas pacientes apenas enquanto esperam para destroçar na hora da morte. E ele, que tanto tinha perdoado, morria tranquilo. A pacificação universal e total do seu ser, a profunda harmonização no amor fraternal de Cristo, sintonizava-o com o ritmo paradisíaco dos céus, que já se abriam para absorvê-lo em ritmo de suprema felicidade.

Já o seu olhar se afastava da Terra. Agora, que o seu trabalho humano estava terminado, a descida ao mundo reanimava a ligação, deixando-o livre para se elevar aos céus, que a hora suprema lhe abria. Na morte está a vida. Verdade, a um tempo, tanto do mundo biológico como do espiritual. Em cada caso, na economia do universo, a morte é uma ressurreição. E ele preparava-se para a sua ressurreição. O que havia de humano em sua vida estava agora morto e destruído, e tudo continuava vivo e presente, indestrutivelmente estampado na experiência de sua alma. A sufocante atmosfera da Terra estava agora muito longe. Ele trabalhara nela com todas as forças. Agora que os vínculos do destino se soltavam, ele podia reencontrar o seu verdadeiro mundo no espírito. Aquela realidade terrestre, atravessada com tanto sacrifício, aparecia-lhe agora afastada e irreal como um sonho. E a sua longa vida estava vivida e encerrada. Quantas recordações, quantos caminhos, quanto trabalho, quantas dores! Tudo se cumprira. Mas nada fora inútil, porque tudo se lhe estampara na alma, elaborando-a. Repetia: ―” Entrego às tuas mãos, Senhor, o meu espírito”‖.

E já um estranho sentimento de libertação e leveza o invadia, um acentuado sentimento de expansão, nova capacidade sensorial, na qual lhe aparecia a realidade do céu em forma sempre mais clara e mais estável. À medida que a velha vida morria, a nova surgia. Desde muito, quebrara suas ligações com o mundo; a separação era fácil, límpida, natural, tranquila.

Assim, estava em paz, adormecido, quase esquecido de si mesmo, como entre a vigília e o sono, como entre a realidade da Terra e a realidade do céu. Sua consciência oscilava entre as duas sensibilidades, entre os dois mundos, na soleira do além.

No aposento havia a paz solene da tarde; na casa, um respeitoso silêncio dos familiares. O sol continuava a descer sobre as colinas em frente, espelhando-se no rio e escondendo-se, às vezes, nas nuvens. Um alegre chilreio de pássaros saudava a tarde. Pelos campos estendiam-se em paz as longas sombras do crepúsculo; pelos prados e bosques perpassava um frêmito de primavera. Depois do repouso hibernal, o grande mecanismo da vida se punha novamente em marcha no trabalho grandioso e solene, que ele ouvira agitar-se com irresistível fervor de renovação. A matéria era tomada num ritmo mais rápido de trocas e obedecia às ordens da Lei. Ouvia as grandes vagas progressivas do imenso concerto da ascensão de todas as coisas, do átomo à nebulosa. Também ele seguia, embora de outro modo, a sua primavera. E tudo – a sua sensação e a voz do universo – lhe falava da indestrutibilidade do ser na sua eterna ressurreição. Ante esta visão, elevava em seu coração um hino de gratidão a Deus, pela maravilhosa harmonia da criação.

Chegado ao alto desta contemplação, o seu pensamento reencontrava Cristo; reaparecia-lhe a visão daquela triste tarde de inverno, quando tanto o sentira próximo. Revia o Cristo de tantas faces, curvado sobre as infinitas dores do homem, junto a cada dor com uma sua face consoladora diferente. Ouvia não mais o regiro imenso da terra e do céu, mas a voz toda humana que lhe dizia: ―”Ama o teu próximo”‖, supremo desejo de Cristo na luta das paixões. E as duas visões cantavam para sua alma arrebatada a mesma música divina. Um concerto harmonioso e potente se elevava de todas as coisas e o arrastava num êxtase sobre-humano.

Permaneceu algum tempo nesse estado, enquanto a maturação do fenômeno, independente de sua vontade, sacudia o seu instinto, fazendo-o sentir a vívida expectação de algo de novo, imenso, decisivo, aquilo que o pressentimento e a razão já lhe haviam prometido para o momento da morte. Aproximava-se-lhe uma realidade nova, ainda indefinida, misteriosa. Uma luz se avizinhava, num canto de beleza e força supremas. Tudo era incerto e velado, parecia estar no meio de uma nuvem de trevas que o confundia, que o impedia de ver. Uma in- capacidade e um peso que não conseguia superar e vencer.

Assim ficou por longo tempo. O sol continuava descendo no crepúsculo tranquilo. Tocou, finalmente, o cume da colina e, quando as nuvens preguiçosas se dispersaram, seu último e límpido esplendor alcançou o moribundo em plena face. Entre o sol e o olhar houve como que uma cintilação de ouro. Ele podia olhar o sol, agora parado, sem incômodo. E olhava, pensando: quantas vezes já se pôs, e quantas vezes ainda irá pôr-se no tempo?

Brilhará ele algum dia sobre uma humanidade mais civilizada e melhor? E tu, Cristo, quando triunfarás, realizando o Teu reino sobre a Terra?

Enquanto assim pensava, de ideia em ideia, indo do sol a Cristo, pareceu-lhe que o esplendor do astro se fundia nos reflexos do rio, incendiando-o. Na sua sensação, já agora unicamente interior, a ideia do sol e a ideia de Cristo se fundiram em um só esplendor. Sentia nos olhos e na alma acender-se um incêndio de luzes, que, avançando do céu, penetrou no aposento, iluminando-o. As duas realidades, vistas com os olhos do corpo e com os do espírito, sobrepunham-se. A luz que invadira o aposento começou a delinear-se e definir-se, e todo ele, olhos e alma, se concentraram nela, para lhe decifrar o aspecto que, sempre sob forma de luz, ia-se delineando. Estupefato, incerto e anelante, assistia ao progressivo definir-se da forma e da ideia. Evidentemente, já não estava só. Ali estava uma maravilhosa realidade de pensamento, de afeto, de vontade e de forma, que o atraía com bondade e força, inundando-o de suprema alegria. Estendeu os braços num esforço supremo e, depois, deixou- se abater sobre o colchão, extenuado pela violência das sensações. Aquele pensamento olhava-o intensamente, aquele afeto penetrava-o, aquela vontade arrebatava-o. E aquela forma as- sumira lineamentos precisos. Reconheceu-a então. Mas jamais a divina visão lhe aparecera com tanta força e clareza. E então,

contemplando-a com os olhos e com a alma, exclamou:

– Cristo, Senhor!

E assim ficou longo tempo. Seus lábios não tinham força para se mover, mas entre a visão e ele, quem tivesse sentidos espirituais capazes, teria ouvido se desenvolver um breve colóquio:

— Cristo, Senhor! – repetia ele.

— Reconheces-me? – respondia a visão.

— Reconheço-te, Senhor.

— Lembras-te?

— Lembro-me.

— Quem sou eu?

— Tu és Cristo, o filho de Deus.

— Tu me amas?

— Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que te amo 19 .

— Pedro, estás extenuado. Teu caminho está completo. Repousa em mim. Pousa tua cabeça sobre o meu peito e repousa 20 .

Aqui, a visão se dilatou. Apareceram as margens do lago de Tiberíades, as doces colinas da Galiléia, a noite da paixão, o triunfo da ressurreição. E tudo ele, agora fora do espaço e do tempo, reviu intensamente, detalhadamente, não com o sentido da nostalgia para com a inalcançável realidade longínqua, como em vida, mas com um sentido de paz e felicidade. Via como aqueles que, terminando um trabalho e um novo roteiro, chegam à própria realização 21..

Daquele esplêndido sonho em diante ele já não ficou na Terra. Sua visão continuou nos céus. Como o ocaso, morrera na visão de Cristo.

Seu corpo ficou inerte sobre o leito. A sua alma, levada na visão esplêndida, tantas vezes pressentida, compulsiva e inutilmente procurada em vida, jamais conseguida senão na hora da morte, voltou-se para trás apenas um instante para lançar um olhar distraído ao corpo que fora a sua prisão, mas também companheiro e instrumento de sua trabalhosa tarefa de redenção. Agora, porém, que não servia mais, não interessava mais. Como um eco, chegava-lhe a recordação do que ele escrevera:

― “Morta entre as coisas mortas está a tua dor lá em baixo – inútil utensílio largado lá em baixo, na praia deserta de uma triste vida. Mas o seu futuro está aqui, e a alma o observa: seu trabalho, sua criação e sua glória”‖.

Libertada do corpo, a alma se atirara àquele incêndio de luz que tomara a forma de Cristo. Tudo ele percebia, agora, mais profundamente que antes, qual sutil sensibilização nova que lhe centuplicasse a ressonância com as vibrações do universo. Percebia que elas investiam para ele vindas de toda a imensidão do infinito. E sentiu então o incêndio de Cristo se elevar, como coluna de fogo, para o céu. Para ele, que estava fora do espaço, aquilo significava o afastamento, o distanciamento qualitativo das infernais vibrações da Terra. Uma alegria suprema. O estridor da desordem ficava em baixo, na densa atmosfera da qual ele se livrava, penetrando em outra mais sutil, límpida e rarefeita. Percebia-as menos nitidamente à medida que iam ficando a distância; em breve não eram mais que um eco, uma vaga recordação. A coluna de fogo atraía-o. Seguindo-a, ele foi levado para fora. Percebeu confusamente que leis novas se manifestavam em torno de si, leis pertencentes a um mundo novo, no qual entrava agora.

Sentia a formação de equilíbrios ainda ignorados, segundo outros princípios, que lhe permitiam deslocar-se e elevar-se não no espaço, mas em qualidade de vibração, que se refinava, se aprofundava, se harmonizava sobretudo, levando-o da dor à alegria, do choque de dissonâncias contraditórias a uma paradisíaca sinfonia de vibrações harmônicas. Deste modo, atingiu o auge, libertou-se, transformou-se e reapareceu em dimensões de vida superiores à nossa concepção humana, se- guindo a luz de Cristo.

O seu corpo foi sepultado com simplicidade e pobreza. Se poucos se haviam preocupado com ele durante a vida, ninguém se preocupou com ele na morte. O silêncio, que ele tanto amara, estendia-se sobre a sua campa. Nada se via do lado de fora; para o mundo, nada existira. Nada se escreveu no mármore sob o seu nome, mas o seu corpo teve a honra suprema da pobreza; os seus funerais não foram profanados pelas declamações, e a sua morte não serviu de pretexto para expressão da vaidade de ninguém. Isto era o máximo que se podia obter do mundo. Assim, mesmo depois que ele restituíra à terra o que a terra lhe emprestara, o seu corpo foi salvo da mentira das honras humanas. Um manto de infinita paz se estendeu sobre os pobres restos de uma vida trabalhosa

Foi sepultado como o desejara, no seu humilde cemitério do campo, no declive de uma colina, sob a face do sol. Em torno estavam as grandes árvores amigas, pensativas como ele e que tão bem conhecia; estava a natureza honesta e sincera e as criaturas irmãs, que ele tanto amara. Ao lado havia uma capela onde tanto rezara, envolta no odor dos pinheiros, rica de pobreza e simplicidade, adornada de solidão e paz. Ele gozara largamente desse esplendor espiritual, que falta muitas vezes às ricas e ornamentadas basílicas, talvez pagãs e profanas na sua espetacular grandeza, a ponto de constituírem ofensa ao sentimento religioso. Acima, do alto, continuava a observar o movimento imenso dos céus. Falava em silêncio a grande voz de Deus.

Assim passou sobre a terra este homem comum, de quem narramos a história. Passou como tudo passa, uma forma no relativo, aplicação vivente do absoluto, ou seja, da substância que existe nas leis da vida. A ele, que tinha verdadeiramente sofrido e trabalhado no cumprimento de sua missão, a justiça de Deus concedia a evasão final à dor na paz completa. Os que lhe tinham querido fazer mal, só lhe haviam feito bem. Sem carrasco não há martírio; sem destruição não há reação; sem dor não há criação. O mal é contido e guiado entre os confins e os fins do bem. Ele respeitara, como era seu dever, as experiências dos outros, seus erros e suas dores, na aprendizagem e na evolução.

Não culpara os outros pela involução, insensibilidade e ignorância das leis da vida. Perdoara sempre. E conhecera, por experiência, a grande força redentora da dor. Cumprira o seu de- ver de ajudar os outros, de acordo com a experiência mais severa e mais verdadeira. Seguiu Cristo. Construíra a sua vida sem dinheiro, nem honrarias, independente e livre destas forças.

Eis a substância de seu testamento espiritual:

Aprendei na escola do trabalho – o primeiro direito da vida.

Perdoai sempre.

Estudai no grande livro da dor. Sabei sofrer, se quereis subir.

Que o trabalho, o perdão e a dor vos tornem irmãos.

É preciso que o mundo sofra, para que possa corrigir-se e avançar.

O cálice da redenção que Cristo nos deixou, por Ele bebido primeiramente, não é taça de prazeres ou de inércia, mas de martírio.

O exemplo do Seu sacrifício diz a todos que, sem dor, não há salvação.

Ninguém pode fugir desta lei fundamental.

Mas, depois da paixão e da cruz, virá a ressurreição e o triunfo do espírito.

Aceitai, portanto, ajudando-vos e amando-vos, a escola do trabalho e o batismo da expiação, que purifica, porque é o único caminho de redenção pela dor.

Deixo-vos o aviso: na necessária paixão do mundo está a aurora da nova civilização do espírito.

Assim passou ele, como tudo passa. O mundo continuou a cometer erros e a pagá-los. Continuou a seguir o seu sistema e a sofrer-lhe as consequências. Continuou a cometer loucuras, a abusar e, portanto, naturalmente, a sofrer. A sua liberdade, de- terminada por Deus, tinha que continuar inviolável. Todavia, ainda uma semente fora semeada, um pequeno impulso que se unia aos outros em direção à ascensão, que é libertação da dor.

Ainda um exemplo fora dado para que aquela liberdade se mantivesse – um exemplo mínimo diante do exemplo imenso de Cristo. Servia para recordar ainda uma vez a significação da dor, o esquecido sentido do Seu divino sacrifício, que é o de traçar o caminho, sem o que não há redenção, nem ascensão. A linguagem é rude, mas honesta. Quem é sincero e conhece as justas leis da vida e do progresso não pode falar de outro modo. O homem é livre, mas há uma lei pela qual ele é responsável. Se quer superar a dor, tem que aprender a se coordenar os ca- minhos desta lei, que é o pensamento e a vontade de Deus.

A semente caíra e jazia esquecida sob a terra. Mas, nela, a tensão de toda uma vida concentrara a força que agora fazia pressão, procurando expandir. Era um germe pronto para o desenvolvimento; era uma invocação de vítima que pedia resposta; era uma oferenda colocada no seio de Deus para o bem do mundo.

Essa semente caíra do holocausto de uma vida ofertada com tenacidade, paixão e sacrifício levados até à morte, para ajudar o nascimento da nova civilização do espírito. A potência do sacrifício de que ela se gerara e nutrira torná-la-ia imensamente fecunda.

A semente ali estava, esquecida no seio da terra, entregue às forças das leis da vida, que depois a retomariam, incitando-a a se desenvolver; ajudando-a, utilizando-a, porque é fatal, não obstante toda a inconsciência e resistência do mundo, que a ascese se cumpra. É lei de Deus que o espírito vença a matéria, a luz vença as trevas, a alegria vença a dor, o bem vença o mal, Deus triunfe sobre Satanás. É fatal que esteja cada vez mais próxima e acabe se realizando a vinda do reino dos céus à Terra.

FIM

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19 Compare-se este diálogo com Mt., 16:16 e Jo., 21:17 (N. do T.)

20 Quem vive da forma e da letra e não no espírito não poderá penetrar o sentido dessas palavras. (N.do A.)

21 Para ser bem compreendida esta cena deve ser ligada com a cena final do volume Ascese Mística. Aquele livro, em seu último capítulo, ―Paixão‖, no qual está claramente profetizada a última guerra, culmina com o holocausto no sacrifício da cruz. Esta História de um Homem culmina, porém, com a ressurreição da morte e o triunfo do espírito.

Além da cruz, atinge a ressurreição. E enquanto a Ascese Mística prenunciava dor e a paixão da última guerra mundial, este livro prenuncie prepara o novo homem do III Milênio – o homem da nova e triunfante civilização do espírito. (N. do A.)