História de um Homem

Foi por este tempo que Nietzsche lhe falou no seu "Also Sprach Zarathustra"12:

"Repara, ó meu amigo, na solidão!

Onde termina a solidão, aí começa o mercado.

Longe do mercado e da glória, tudo o que é grande se retrai.

Foge da solidão! Inumeráveis são os pequenos e os miseráveis. Salva-te da sua invisível vingança. Contra ti, todos eles desejam vingar-se.

Sim. Os vis são prudentes.

Pensam muito em ti na sua pequena alma - tu lhes deste motivo a suspeitas!

Punem-te por tua virtude. E no fundo não te perdoam senão teus erros.

O teu orgulho taciturno irrita-os. A sua miséria arde contra ti no desejo de uma vingança invisível.

Aquilo que em ti é grande não faz senão torná-los mais desejosos de fazer o mal".

Depois destes conselhos, Nietzsche punha a nu toda a sua revolta:

"Parece-me agora o mundo obra de um Deus sofredor e crucificado.

Aquele Deus que eu criara era a louca obra de um homem, como são todos os deuses.

Aquele outro mundo está muito bem fechado para os homens. Aquele mundo humano e desumano é um nada celeste; e o útero do ser não fala absolutamente ao homem.

Na verdade, é muito difícil provar que o Ser é; mais difícil fazê-lo falar.

Não escondas mais a cabeça na areia das coisas celestes, mas levanta-a com liberdade: uma cabeça terrestre que cria o sentido da terra.

A guerra e a coragem realizam coisas maiores que o amor do próximo".

Na sua descida involutiva, o nosso personagem ia-se habituando a esta outra orientação que lhe oferecia visão diferente e dava novo sabor às coisas.

Assim via os homens e a vida - não mais colocando-se no alto dos céus, mas da própria terra e, naturalmente, tudo lhe parecia diferente. No profundo de sua nova miséria, compreendeu que ia precisar de terrível coragem para viver assim sem Deus, sem a doce música espiritual do Evangelho, sem esperança, sem poder pedir auxílio, no meio de uma realidade impiedosa. Certamente, a figura de Lúcifer tinha sua grandeza e sua beleza, um Lúcifer revoltado que ousa, sozinho, desafiar o universo. Já não era o tempo dos doces sonhos. Era preciso dar-se aquela coragem amarga e terrível, de saber viver por si, entre cegos perdidos no universo. Não era homem para apiedar-se de si mesmo e pedir socorro. Preferia ir até o fundo, enfrentando o problema sem acomodamentos. Precisava fazer, com urgência, para si mesmo, uma filosofia objetivamente sólida que o orientasse na realidade. Precisava fundar outras bases objetivas para nova verdade que explicasse este mundo, uma verdade mais resistente e concreta que a outra destruída, uma verdade que pudesse, afinal, não mais desmoronar. Fora desiludido; queria agora coisa segura, sólida - uma realidade de ferro, materializada em fatos, indiscutível, universal e sempre presente, sempre válida e aceita pelos seguidores de todas as verdades. E onde encontrá-la senão no mundo dos fatos, na realidade da vida? Só a verdade biológica representava, ao menos na terra, a linguagem universal, entendida por todos, permitindo entender-se, mesmo com os animais; uma verdade finalmente aceita por todos, verdadeira, sempre aplicada aos seres, vivida por todos, mesmo pelos que a ignoram, ou não crêem nela, ou a negam. Esta era, finalmente, a verdade do consenso unânime imposto pelas leis da vida. Era a indiscutível. Era preciso fazê-la contar pela voz dos fenômenos que a exprimem no ambiente terrestre. Só essa podia ter a solidez que apenas a aderência experimental à realidade pode dar. Só com esse método mais universal poderia medir tudo e explicar a conduta dos homens, religiosos ou ateus, de todos os homens, fossem quais fossem suas afirmações teóricas. Desejava compreender por quais razões biologicamente verdadeira tinha o homem, que ele agora observava, agido assim. As delicadas construções espirituais do céu não resistiram. E desta derrocada queria compensar-se com a conquista de solidez sobre a terra. Já que tinha de limitar seu campo, queria, ao menos, resultados seguros. E a terra tinha a ciência materialista, já orientada neste sentido, objetiva, experimental, concreta, utilitária. Sem mais imersões no imponderável, já agora negadas à sua cegueira, como à de seus semelhantes, a sua verdade não podia já ir além dos resultados oferecidos pela percepção dos sentidos. Tinha de se limitar a ouvir a voz dos fenômenos, para que estes lhe revelassem o próprio significado e com ele a verdade terrestre que continham, porque neles ela devia estar sempre presente. Devia agarrar-se às manifestações dos fenômenos e da vida, porque certamente elas exprimiam as suas leis. Podem existir, também, outras leis, mas esta é, sem dúvida, a lei do ambiente terrestre, a sua verdade. E encontrou a realidade biológica, impiedosa, bestial, lei de luta pela vida, de seleção dos mais fortes; encontrou-se diante dos instintos primordiais da animalidade, os motores elementares da existência: a fome, o amor, a evolução para a conservação individual, como para a conservação da espécie. Era uma verdade bem magra, esquematicamente animalesca, mas indiscutível. Certamente, era triste esta mutilação de quem reduz todo o seu ser à sua própria estrutura animal. Mas, não era esta a realidade da vida? Não era vão tentar a superestrutura do ideal? Não era essa a hora da degradação involutiva?Ele poderia ter-se retraído e permanecer no centro morto de seu espírito, ali se deixando extinguir sem reagir, em triste depressão e renúncia à vida. E em verdade, foi esta a primeira tendência de seu espírito, logo depois dos casos descritos. Viveu, depois dos golpes recebidos, um período de anulação que o teria levado à morte se não tivesse sobrevindo um irresistível instinto de vida. Tinha de reviver, senão mais no céu, ao menos sobre a terra, não importa se diferente. E seguir um período de renovação, mesmo em sentido inverso. Ao abatimento da morte seguiu-se, então, a reação da vida; à resignação do vencido, a revolta de Lúcifer. Tudo era lícito, menos renunciar à vida. Não era hora das virtudes passivas da paciência, mas das virtudes ativas da força. "Quero viver!" gritou ele. E sua vida foi um grito de revolta. Aliás, não tinha escolha. Se desejava sobreviver, não lhe restava outro caminho. Não era esta a hora das trevas? Portanto, coragem! Precisava suportar até o fim a prova da animalização. Quem iniciara este suicídio espiritual? quem o provocara? Ele procurara-o, ou desejara-o? Tudo estava disperso, condenado, repelido - tudo o que era o melhor de sua alma e que ele dera pelo bem.

Suas intenções tinham sido alteradas; os seus livros, acusados; a voz mais alta e verdadeira de sua vida fora negada e sufocada. Semeara sobre terra envenenada; atirara seus trabalhos, suas dores, seu sangue, na lama. Não podia mais. Não lhe era possível deter as conseqüências, impedir as reações. Desenvolvia-se nele um drama terrível, superior às suas forças, drama do qual ninguém se ocupava, ninguém via e no qual ele morria. Um turbilhão gigantesco arrastava-o, mais forte que sua vontade e sua resistência.

Que o mundo era inimigo, ele o sabia; mas que Deus o abandonasse assim, quando estava naquela exaustão e sozinho! Não possuir forças para se voltar para Ele, não poder salvar-se - isto estava acima da sua compreensão e das suas forças. A suprema ironia do mal vitorioso ria-se em torno dele, enquanto se desmoronavam as ruínas do edifício espiritual construído com tanto trabalho e tantos anos de sacrifício. O último foi de vida gritava: "Quero viver! Não posso morrer!" Este era o delito de sua revolta. Com certeza Deus, sempre presente, observa, vigilante, o fundo destes desesperos. Mas ele não o sabia. Se o inferno existisse sem a sensação de Deus, que inferno seria!

Jamais se procura tanto a Deus do que quando se está perdido; jamais Ele é tão afirmado, do que quando é negado; jamais está tão presente, do que quando parece ausente.

Aprofundou-se lentamente, por sucessivas demolições, enquanto Cristo ficava longe de suas sensações, na glória dos Seus céus. Ao contato da dura realidade humana, as passadas visões tinham-se pulverizado. No seu novo estado, perguntava se verdadeiramente elas tinham existido, se não teriam sido unicamente criações de sua fé. Assombrara-o o súbito abandono do alto, a inesperada cegueira e a observação de que, quando já não tivera forças para subir até Deus pela própria tensão da fé, Deus desaparecera de suas sensações. Perguntava a si mesmo: "Se os caminhos da fé podem assim fechar-se, se tais realidades estão na dependência do meu estado nervoso, da minha capacidade de percepção, existirão elas objetivamente ou são as condições que as criam? E quando a minha força de percepção vem faltar elas logo desaparecem, que valor probatório pode ter uma realidade experimental que a cada momento está sujeita a desaparecer? Naturalmente, não são os nossos sentidos, os objetos que percebemos, mas é certo que sem esses sentidos, os objetos, ao menos para nós, não existem e a dúvida, nesses momentos, é a justificada. Tratando-se de coisas menos garantidas do que habitualmente, menos valorizadas pela experiência de todos, a dúvida é mais plausível". E concluía: "A fé é uma ilusão ótica pela qual vemos como reais as projeções das criações de nosso pensamento. As verdades estão em nós e não fora de nós. Por isso, existe aquilo em que cremos, mas apenas porque acreditamos. Os conceitos em si não existem; são vibrações de pensamento no cérebro humano. Os ideais não existem: há pessoas que acreditam neles. O homem realiza inutilmente o esforço de criar com a fé uma realidade diversa da horrível realidade da terra, porque o projeto de construção que ele antecipa com sua fantasia, o modelo em torno do qual trabalha, é tão alto e inacessível, tão cercado de obstáculos da resistência da terra rebelde, que não se realiza nunca. Na prática, nada cria, nada move".

Uma dúvida o atormentava sobretudo, natural conseqüência do seu novo ponto de vista: a sublime utopia do Evangelho é aplicável na terra, ou ter-se-ia enganado, sacrificado inutilmente a sua vida e teria, talvez, de recomeçar do princípio? O problema não interessava a ele somente, mas tinha um âmbito muito mais vasto. Por que o irreduzível contraste entre o Evangelho e os instintos animais do homem, expresso nas leis biológicas? Será o Evangelho antibiológico? Como se poderá pretender que a lei do céu seja aplicável na terra, onde existe a matéria humana e não o espírito angélico, onde os instintos, o corpo, as exigências do ambiente, as leis da vida, tudo é tão diverso? O mundo guiava-se por outra tábua de valores, por cima da qual está a força, ante a qual todos se prostram e que tem o seu decálogo, no qual é condenada a resignação, a miséria dos fracos e é exaltada a revolta, virtude dos fortes. Condena-se a fraqueza, pecado capital e condena-se o Evangelho, refúgio dos vencidos... A paciência e o perdão são tolices supremas... Os dois mundos tinham cada um o seu sistema completo, que se contradizem. Ele perguntava se os ideais espirituais não seriam antibiológicos, antivitais, um verdadeiro suicídio no plano animal; se seria absurda e impossível a pretensão de os realizar no ambiente terrestre e se não seria suprema utopia a tentativa de transplantar a ordem de valores, construídos para o céu, a um ambiente criado para a terra. Não faltava claro a inconciliabilidade congênita, a revolta da matéria contra o espírito? Não lhe mostrava a realidade prática que, em lugar de se compreenderem e fundirem, os dois princípios lutavam para excluírem-se? Tudo lhe dizia que o Evangelho é uma linda, mas irrealizável utopia.

A tal ponto descera no mundo, que assumia e fazia sua toda aquela psicologia. Só assim poderia compreendê-lo, metendo-se antes de tudo, na sua posição, no seu ponto de vista, que justificava seus atos e considerações. Precisava viver no mundo, com o mundo, tornar-se mundo. Sua posição atual tinha uma lógica impiedosa que, em conseqüência dos últimos acontecimentos, não podia ser diversa. De resto, essa lógica seria a mesma que, prolongando-se inexoravelmente, deveria, mais tarde, salvá-lo. Ele podia ser tudo, menos um preguiçoso inerte e hipócrita. Era o tipo indômito no espírito. Esse tipo não se pode imobilizar. Poderá ceder, mas não renunciará à própria atividade. Não era um homem de acomodações, já o dissemos, nem para se conformar a vegetar. Já vimos que o céu lhe fora fechado por muitas forças contrárias e convergentes para aquele resultado. Não lhe restava, para sobreviver, outra escolha senão seguir a experiência do mundo - ou seja, a da força e da vontade.

Dada a derrocada imprevista de suas superconstruções espirituais, a sua reação tinha de ser, por força, inferior. Importava que ele trouxesse em si mesmo o princípio da reação, que é o princípio da vida, aquele que faz o homem vencer no plano da matéria como no plano do espírito. Os que possuem este princípio de vida sempre se salvam e isto é uma riqueza de recursos, uma potência congênita que supera os vagalhões da tempestade e guia ao sucesso. Vale mais uma alma pronta e ativa do que cem almas inertes. A primeira cairá em todas as crises, de que as segundas sentirão o dever de se escandalizarem, mas se salvará. As outras, com suas práticas metódicas, permanecerão no pântano onde o espírito morre. As almas ardentes, feitas de tempestade, se têm os grandes vícios e as grandes fraquezas, têm também os grandes recursos. E se são capazes de muito pecar, são capazes, também, de muito amar e muito subir.

A primeira reação, dirigida ao plano inferior muito escandalizou os métodos bem-pensantes, mas foi para ele o meio de alcançar a segunda reação, de que aqueles jamais seriam capazes. E esta o salvou, reconduzindo-o ao bem, muito mais alto do que antes.

O destino prepara-lhe essa prova, que era de novo gênero, e ele aceitou-a, como aceitara todas as outras. E não só aceitou, como utilizou-a. Encontrou ocasião de observar este mundo, para compreender-lhe bem a estrutura, estando dentro dele, depois de o haver observado sempre de longe. E ele, que sempre figurara como um fracassado, procurava, por instinto, o pontos débeis para vencê-lo, já agora com maior competência. Assim, aquele mal se transformaria em bem. Se as adversidades o prostravam, nem por isso ele se transformara em outro. O tipo de um homem não pode ser profundamente mudado por circunstâncias exteriores. O tipo não se destrói. E já que, por agora, não podia viver segundo a lei do céu, ele se enquadrou na lei do mundo, para ver se assim lhe seria possível viver. Se o sistema precedente havia dado tão tristes resultados, não lhe restava senão modificá-lo. E concluía que a vida, embora horrorosa pelas adversidades e pesada pelos trabalhos, superamentos e provas, é sempre uma experiência muito interessante. Embora brutal, sempre era digna de ser vivida. E já que era necessário entrar no mundo onde não existia piedade para os fracos, mesmo mártires, e onde a revolta é condição de vida, o seu grito foi: "Rebelião".

Colocado no mundo, olhava agora todas as coisas com um senso diverso e tornava a fazer, de um ponto de vista prático, a pergunta: Seria o Evangelho antibiológico? A ação das religiões, julgadas através da realidade biológica, parecia-lhe desastrosa. A realidade biológica deseja a seleção do mais inteligente, ativo e forte em todos os campos. Ora, o princípio religioso da bondade, que na origem tinha uma sadia função biológica, criadora de coesão social, transformara-se, à força de desvios, acomodações e, digamos mesmo, traições humanas, num sistema protetor que, possibilitava o pacífico crescimento dos ineptos, dos fracos, dos parasitas. Olhava tristemente o lânguido exército, a tépida corte de seguidores que a chama original dos mártires, por eles também imolados, não conseguia mais agitar nem inflamar. Praticado na terra, qual melancólico sonho, esse reino dos céus foi falsificado para enquadramento de débeis acomodados. Repugnava-lhe a virtude mutilada da ação e reduzida ao negativo; a bondade abastardada; a indolência; a religião transformada em sinecura hereditária. À sombra protetora daquela bondade se conseguira suprimir o trabalho da luta, que é a base do progresso da vida, e se pudera operar uma seleção inversa. Assim modificadas, as religiões invertiam suas funções e resultados. E ele perguntava a que criação do estranho tipo biológico se chegaria depois de algum tempo, se se continuasse nesse caminho. Afligia-se ao ver tão poderosas forças espirituais, assim falseadas, falirem e deformarem-se até se tornarem o oposto do que deveriam ser. Só a salutar reação das leis biológicas, inferiores e condenadas, poderia sustar esse adormecimento, desalojar os parasitas, agitar o lodo, para evitar a putrefação.

Tentara falar, mas a sua voz, perturbadora dos adormecidos, fora sufocada. A palavra estava, agora, com as leis da vida. Pois que é absurdo tentar matá-las com a preguiça. A vida sabe se defender e insurgir-se; solta seu brado de guerra, que afasta as incrustações antivitais que sufocam o progresso. A esta lei sujeitam-se todos os que vivem sobre a terra. Quando o espírito trai a sua missão e se degrada no ócio, então as leis inferiores da terra são chamadas para lhe dar uma salutar lição. Então, a terra é mobilizada para despertar, com a dor, o apetite das coisas do céu. Quando o espírito se afoga na forma e a religião é um convite para vegetar; quando se exalta a obediência para que seja mais fácil o comando do homem sobre o rebanho - são sem dúvidas salutares todas as tempestades que sacodem os ângulos mortos da vida e trazem tudo à luz da luta, à luz do sol. Então, o espírito que renunciou à sua supremacia verdadeira, não conseguindo libertar-se das leis da terra, a esta se liga, colocando-se em seu nível, indefeso diante da lei do mundo, que o macera até à sua primitiva pureza.

Nessas comprovações, ele encontrava a explicação da inconciabilidade prática entre a lei do céu e as leis da terra. Se o Evangelho era elevado demais para ser aplicado ao mundo, o mundo estava baixo demais para ser erguido até o Evangelho. Compreendia o homem e compadecia-se dele. Como pretender que este superasse as leis biológicas? No mundo, a luta salutar e esclarecedora adoece na preguiça; a coragem tem a sua sombra na astúcia; cada virtude tem uma irresistível tendência para enfraquecer.

Ao lado do triunfo do vencedor está a miséria do vencido. É natural, por isso, o parasitismo e a busca das posições protetoras. É natural a presença dos fracos e é natural que, na luta sem tréguas de todos contra todos sobre a terra, a miséria se refugie onde puder, inclusive nas religiões. Como se poderá pretender aplicar a tais seres a lei dos santos, dos super-homens heróicos? Que se poderá conseguir de uma tal aplicação, senão adaptações, seres híbridos, naturezas contorcidas, mentiras? Como poderá a massa fornecer certos heróicos superamentos, como se poderão pedir certos sacrifícios supremos a quem não é forte e maduro? Como pretender que num mundo onde tudo é ataque e defesa, a piedade não venha a ser utilizada como elemento de defesa.

Todavia em meio a tantos contrastes, contrafações e traições ele não podia deixar de admirar a sublime ingenuidade e a coragem do espírito que, descendo do céu, pretendia, inerme, desdenhando os meios humanos, impor-se a este mundo infernal de força e de miséria; não podia deixar de admirar aquele espírito tanto mais que, muitas vezes com tão estranhos meios, conseguira vencer. Haveria pois, no espírito, uma arma, uma força secreta, um método de luta que, apesar de tudo, lhe permitia vencer? E como o mundo, mestre nas lutas, não percebera o novo meio de lutar? Fazia tais perguntas, agora que estava no mundo, e assumia seus pontos de vista, suas dúvidas e suas incertezas. Agora, que estava no mundo gostava de revirar a face da verdade que já conhecia para contemplar o lado oposto. Com isto exercia controle sobre si mesmo, conseguia um equilíbrio mais seguro e consciente, de modo que a sua nova verdade fosse para sempre temperada e fortalecida pela vitória sobre todas as tempestades. Nesta revisão e nestes contrastes, não encontrava contradições nem renegações, mas um cumprimento de um dever - o dever de continuar a vida a qualquer preço, de consolidar, se possível, a sua posição, tornando a encontrar o Eu mais profundo de si mesmo. O dever de corrigir eventuais excessos e de compensar concessões eventualmente unilaterais, com outras, tomadas do ponto de vista oposto. Sua natureza era muito rica de valores espirituais para que um contato com o mundo pudesse apagá-las e substitui-las. Momentâneo admirador de Nietzsche, não cairia no trágico epílogo: a louca exaltação do super-homem ao qual fugiram todas as verdades. Nada desta unilateralidade havia em sua natureza rica de contrastes, pronta a perceber todos os aspectos das coisas.

Algo aprendia agora, abrindo os olhos para a realidade humana do mundo. Aprendia que, onde tudo é luta, é natural que a força tome para si todas as coisas, e que o Evangelho seja considerado como verdade pelos fracos que nele se amparam e como mentira pelos fortes que o repudiam. Aprendia que o tão condenado egoísmo é necessário e que o altruísmo, tão exaltado, é individualmente uma utopia e um prejuízo. Compreendia que as virtudes são coisas para serem recomendadas e exigidas do próximo, pois constituem um ótimo meio de submetê-lo e explorá-lo, mas não são as coisas que se pratiquem, porque só trazem sofrimento e limitação. Compreendia a utilidade da astúcia, do apego aos bens, da elasticidade de consciência, do ataque e da defesa. Aprendia que aquilo que se exalta em público é apenas uma atitude, a qual, como o louvor, procura-se compensar e mesmo incitar, enquanto traz utilidade. Compreendia agora muitos embustes, o jogo dos bastidores e muito do mecanismo secreto da vida social, tão agradável, vista de fora, com sua distinta aparência. Persuadira-se também que é idiotice iludir-se com esta realidade infernal. Que em verdade, aqui em baixo, Deus está longe, tão longe que não se pode ver. Sua ação custa tanto para se mostrar no fundo destas trevas que, praticamente, é como se Deus não existisse e assim se explica como tantos podem viver como se Deus nada fosse. A cada passo, neste mundo a matéria nega o espírito, a terra é vitoriosa sobre o céu, a experiência é contra a fé, a realidade esmaga o ideal. Que lhe pedia o mundo? Além da mentira das palavras, que coisa, realmente, lhe pediam todos? Que ganhasse riquezas e as acumulasse, porque só o rico é respeitável. Ser besta de carga, ávida e impiedosa; ser máquina de fabricar dinheiro. A gente só compreende e admite o triunfo sobre a terra. Os triunfos do céu não se vêem, não se compreendem, nem se admitem. São sonhos de exaltados. Enquanto ele se consumia em tais afirmações, era um ocioso; enquanto não dava provas de saber vencer no mundo, obtendo o sucesso por qualquer meio, era um imbecil. No fundo, diziam-lhe que atirasse fora do supérfluo, demolisse o espírito, se tornasse normal, entrasse na fila, se tornasse homem do tipo em série, como os outros que vivem na terra e não no céu. Enquanto ele não tivesse adquirido todos os defeitos, as culpas, as fraquezas, as baixezas humanas - seria visto como suspeito. A tentativa de evasão, não se podia admitir e gerava desconfiança. Isso não era fraternidade na miséria, mas declaração de superioridade e desafio. Era pretensão de estar subordinado a outra lei, para se eximir da lei de todos, era soberba imperdoável e ofensiva soberba. Para ser compreendido, admitido e tolerado no mundo, tinha que fazer suas as leis da terra, onde a revolta é virtude; devia operar um processo inverso àquele já realizado na ascensão mística: o processo de bestialização.
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12 - “Assim Falou Zaratustra”. (N. do T.)

Por um ano viveu este drama, fazendo seu drama do mundo. Tentara a arriscada aventura por uma questão de lógica excessiva, mas em plena consciência. Recordava o passado e sentia que ele não podia estar completamente destruído. Não compreendia ainda como poderia ressurgir. Sentia que agora, com respeito ao céu, estava cego e que seu espírito se dirigia para outros pontos. Compreendia e perdoava ao mundo muitas coisas. Trocara de posição; pretendia, porém, arar mais fundo no sulco da vida. Sofria e trabalhava com o espírito. Seu sofrimento era mais fundo e mais maduro. A descida aos estratos inferiores da evolução, de onde sempre emerge a vida que ascende, se o embrutecia, também o fortalecia, alimentava o seu ideal, robustecia-o na escola da luta, reforçava-o ao contato com a força, muitas de suas ingenuidades e de suas simplicidades caíam. Achava que o homem nem sempre era mau e nunca o era pelo prazer de fazer o mal pelo mal. O mundo dera-lhe respostas rudes, impiedosas, mas razoáveis e honestas. Havendo necessidade e dever de viver, ao que se pode agarrar a conservação individual senão ao próprio egoísmo, desde que o altruísmo não passa de retórica? Portanto, o egoísmo é necessário para completar o dever de viver, logo, não é culpa - é dever. Inicial no mundo a aplicação individual e integral do Evangelho é caminhar para a morte certa. Como se pode viver em oposição ao ambiente e em contínua revolta à lei dominante? A ferocidade dos outros impõe a ferocidade própria. O reino do Evangelho não pode ser senão uma conquista coletiva. Os pioneiros isolados não podem fazer mais que ficar despedaçados. Com isto justificava-se a si mesmo por sua queda, mas procurava também justificar o mundo pelo delito de não ter, depois de vinte séculos, aplicado quase nada do programa de Cristo. Assim compreendia como o belo sonho do céu tivesse permanecido estéril para a massa, justamente porque, dado o estado de coisas humanas, aquele sonho seria integralmente irrealizável. O homem normal não é, certamente, o herói possuidor de força sobre-humana, em especial se tomado isoladamente, para erguer a pesada lei da matéria até os rarefeitos planos do espírito; a lei da justiça biológica, que é a do mais forte, para a transformar na lei da justiça evangélica, que é o Bem comum. E estas leis, naturalmente fortes na ação, não se deixam anular. Onde a conservação individual está presa ao egoísmo, o altruísmo é absurdo e impraticável. É bem árduo querer fazer um acordo entre o Evangelho antibiológico e a vida terrestre antievangélica. Se o Evangelho for a lei do futuro, isso não impede as condições irreconciliáveis do presente. Por isso, Renan, em sua Vida de Cristo, pôde dizer que "o ideal, bem no fundo, é sempre uma utopia". E Platão disse: "Sem loucura não haveria nada de belo e de grande no mundo".

Cristo bem compreendera que o acordo não seria fácil, tanto que o seu Evangelho toma uma posição clara: é desafio permanente ao mundo, inconciliável inimigo... Jamais foi declarada uma guerra mais terrível e profunda, sem possibilidades de paz, como essa movida por Cristo sob a amorável forma de suas boas-novas. Neste encontro entre o céu e a terra, entre o espírito e a matéria, entre o bem e o mal, entre o Evangelho e o mundo; deste titânico embate Cristo e Judas são dois protagonistas, os representantes das duas leis e das duas vidas que demonstram o assalto das potências contrárias em forma de drama vivido. Tratava-se de duas leis inimigas e a luta era inevitável, o encontro fatal. E a relação é a mesma do caso atual. Quem vencerá? Quem está com a razão?

Cada um dos antagonistas tem os seus recursos, as suas armas, a sua lógica, a sua justificação. Judas, em seu plano, é uma força, representa uma psicologia, uma lei, e, em certo sentido, um direito. E daí, a sua capacidade de agir. O drama é todo baseado na posição inversa do ponto de partida. Judas via as coisas do ponto de vista da terra e Cristo, do ponto de vista do céu. Partindo desta base, é lógico que Judas se considere traído por Cristo, tanto quanto Cristo se poderia considerar traído por Judas. Se as metas eram opostas, era fatal o encontro das forças e a tragédia da traição. Judas aspirava a uma grandeza terrena e por isso seguia Cristo. Quando percebeu que o Mestre não trazia senão bens espirituais, quando descobriu que a grandeza que se poderia esperar de Cristo não era terrena, mas apenas celeste, então Judas se desiludiu e, na sua lógica, sentiu-se no direito de se considerar traído e, portanto, de se vingar, restituindo a traição recebida. Esta é a psicologia do mundo, que deseja alcançar os seus fins e não admite outros. A base da traição é esta anteposição de uma finalidade a outra e esta diferente valorização das coisas. Se o mundo compreendesse o maior valor do céu, seria absurdo, para ele, continuar a olhar para a terra. Mas não o compreende porque ainda é involuído, está no plano animal, é o bruto que espera sua redenção.

Aí está o drama da terra, que cumpre a sua lei. Cristo foi, em verdade, crucificado. Mas alcançada a meta, as coisas se transformam. Judas mesmo, a besta cega, compreende que sob os despojos do homem que ele acreditava haver morrido, há um outro ser, que não está morto, mas que vive sob uma lei muito diversa, que lhe dá o triunfo. Judas percebe que a terra, que para ele era tudo, não era para Cristo senão um lugar estranho, como se Cristo tivesse outra pátria e fosse de outra raça. Ante esta descoberta, Judas ficou atordoado. Viu o Crucificado na ignomínia triunfar na glória. E esta transformação misteriosa apavora-o. Vê que Cristo, com a morte, realizou totalmente o seu sonho e que ele, Judas, ficou abandonado no fundo, porque o verdadeiro traído e vencido é ele, transformado em instrumento cego nas mãos de quem desejara trair. Ele, Judas, sem o compreender, representara naquela paixão a parte pior e fora um dos fatores fundamentais e necessários para que chegasse o triunfo agora concluído. Primeiramente, traíra, mas vencendo a seu modo. Depois, fora derrotado. Não fizera dano senão a si mesmo e daí o seu desespero suicida. A sua lógica é férrea até ao fim e isto demonstra que, tal qual ele era dado o seu tipo como premissa, a conclusão era fatal, tanto mais que a sua vontade livre, dando um impulso suplementar à vontade fundamental do seu temperamento, revalidara-a e reforçara de tal modo que o arrastaria até ao fim. Arrepender-se teria significado mudar de rota, trocar de natureza, entender o valor do céu - o que ele jamais compreendera, e não sabia absolutamente compreender. Ao contrário, ávido como era, procuraria salvar qualquer coisa e conhecia os caminhos para isso, porque Cristo sempre lhe dera o exemplo do perdão. Eis o resultado de tal jogo de forças. No fundo, porém, o dominador foi Cristo, que compreendia Judas, ao passo que Judas não compreendia Cristo. Isto mostra que Deus domina o mal repassando-o e apertando-o nos confins do bem. Livre, Judas estava entregue aos impulsos do seu tipo, a um destino "seu", que continha os germes que se deveriam desenvolver e foi, tal como era, utilizado. Mas houve um momento de livre arbítrio, de hesitação, no qual Judas vacilou. Por um átimo, a paixão de Cristo dependeu dele. Um átimo de liberdade, suficiente para estabelecer a responsabilidade, mas não capaz de suspender a paixão, pois que naquele fermento de povo de traidores em breve haveria uma fileira deles.

No fundo, está é a posição da terra perante o céu. Judas é a voz da terra que acusa e mata; Cristo é a voz do céu que vence, mas depois da morte, isto é, depois que as forças interiores foram libertadas para alcançar sua finalidade. Estranha vitória, para a terra que não o compreende. A lei da terra é a lei de curto alcance, de realizações próximas e pequenas. A lei do céu é, ao contrário, de realizações afastadas e vastas, tanto que há tempo até para o abandono de Deus. O mundo desempenha a parte ignorante, do pressuroso logrado. Realiza depressa, mas de forma instável, quando não é pura ilusão. O céu vai sem pressa, seguro através dos insucessos momentâneos, lento porque profundo. O mundo acredita ter vencido, mas perdeu; o alvo que pensa ter alcançado lhe escapa das mãos e a vitória se esboroa. É esta uma característica dos métodos satânicos: a instabilidade do equilíbrio e a precariedade dos resultados. Trata-se de um método de construir que não se rege por si, baseado na força; assim que esta o abandona, ele desmorona. Trata-se de um método desarmônico, isto é, isolado do funcionamento orgânico do universo; método do egoísmo, isolado do amor universal; uma dissonância que faz centro em si mesma em vez de ter como centro Deus que é a harmonia universal.

A terra parece em ruínas, no céu; o céu parece em ruínas, na terra. Ambos se renegam reciprocamente. O céu, na terra, não pode existir senão como negação da terra; só será positivo quando no próprio céu. Aqui ele tem que se submeter à reação, à vingança das forças humanas. A terra é o campo de batalha onde as duas forças se encontram. Primeiro vence a terra. Quem desce a ela, tem que sofrer esta prova. Aqui o céu está em casa alheia; deve se submeter às leis locais e aceitar os erros que lhe são impostos. No entanto, ele triunfa, não na terra onde desfaleceu; a compensação realiza-se no céu do qual a terra não percebe senão um reflexo. A grande luta da humanidade está nesta invasão apocalíptica que o céu deseja operar na terra e contra a terra, luta que se chama redenção. Os grandes campeões desta batalha são os santos. Por estas poucas palavras se vê quanto o problema de sua afirmação é mais complexo do que parece nas ingênuas e simplistas narrações de suas vidas.

Parece grande pretensão querer vir praticar na terra a lei do céu; adaptar ao homem comum esse manto feito para espáduas muito diferentes. Se há seres superiores que aqui descem, como vindos de um outro mundo e de uma outra raça, eles devem ser aprisionados, ao menos enquanto estão vivos, por esta realidade humana. Eles não a ignoram; ao contrário, devem sofrê-la. Superam-na, mas devem atravessá-la. O nosso personagem aplicava tudo isto a ele próprio. A sua fuga, afinal fora apenas uma tentativa de evasão. Mas, fugir é um luxo para os grandes senhores do espírito, um direito apenas dos mártires. Não estava ainda maduro e não podia fugir. Era e devia ser ainda inexoravelmente prisioneiro da realidade humana. A nossa vontade pode alguma coisa dentro dos limites dados da estrutura e posição daquele organismo de forças em ação e desenvolvimento que é o destino. Não se pode fazer tudo totalmente só pela vontade; de outro modo, adeus ordem do universo. O santo não se improvisa. E o martírio não se fabrica por vontade própria - seria um suicídio. Certos epílogos rápidos e gloriosos presumem uma preparação profunda e orgânica, a maturação de um destino: são a conclusão de uma vida e não de seus ensinamentos. Por isso podem ser rápidos.

Ele se perguntava por que razão e por que justiça a paixão de Cristo - e não era o único caso - pudera se exaurir numa labareda violenta de poucas horas, ao passo que seus sofrimentos e de tantos outros simples mortais, duravam mais de meio século. A razão é que Cristo concluía, ao passo que ele e os outros estavam começando e um incêndio não pode lavrar como lavra um estilicídio13 cotidiano.

Por isso, não lhe tinham chegado ainda os meios para se sacrificar por sua idéia. No entusiasmo da primeira hora, se os meios se tivessem apresentado ele os teria aceito. Mas é raro que a imitação de Cristo se possa fazer na terra de forma tão rápida. E então, não sendo possível manter longamente certas tensões heróicas, nem o esforço de certas posições de projeção para fora da terra, em direção ao céu, nem lhe tendo sido dada a possibilidade de sair por meio da morte - pois que certas atitudes arriscadas não se poderiam resolver de outro modo - ele tivera que se precipitar. O desenvolvimento dos germes teria fatalmente recomeçado mas por agora era preciso impedi-lo. Certos heroísmos, já completamente aquecidos por sua chama inicial, não resistem na terra, não se podem prolongar definitivamente. O ideal não se pode manter abrasado num indivíduo por mais de meio século, porque queima o organismo, e para se alimentar precisa de combustível do sucesso ou de reações que excitem a vida.

A astúcia moderna, que compreendeu isto, já não comete o grosseiro erro de exaltar um homem e valorizar sua idéia só pela força da perseguição. Não comete o erro de criar o mártir, que nas fileiras alheias será sempre um maravilhoso estandarte, uma força criadora que o inimigo não se cansará de aproveitar em proveito próprio e contra os outros. Hoje evita-se perseguir abertamente, porque isto seria criar mártires e dar força ao inimigo. Prefere-se destruir em silêncio. Assim o ideal se extinguiria em suas mãos, como aconteceria a qualquer um que se tivesse encontrado em suas condições e, como ele, não tivesse merecido a solução rápida e conclusiva.

A civilização moderna, voz da terra, tem um sistema muito seu para sufocar o espírito. Não o combate frente a frente; não o nega, mas observa-o. Não lhe diz: "Tu não existes", porque isto seria um reconhecimento do direito à defesa. Diz-lhe: "Eu existo, apenas eu", e assim o suprime sem o matar. Aturde-o com os rumores externos, com distrações contínuas, com o dinamismo mecânico e vazio que lhe dá a ilusão de fazê-lo viver, mas que em verdade o deixa morrer. Rouba-lhe cada minuto do tempo que ele tem para refletir, para se encontrar a si mesmo. Arranca-o da solidão para atirá-lo no vórtice das metrópoles. Não lhe dá tréguas. E a vida exterior exige, de fato, toda a nossa atenção. Não nos podemos deter nas margens. Nos raros momentos de paz percebemos que há dentro de nós um estranho descontentamento, uma insatisfação amarga, um vazio e uma fome, uma tristeza que a civilização não admite porque não tem meio algum para a curar. O mundo desistiu de se opuser deste problemas do espírito, tão importantes em épocas que hoje se chamam de primitivas, atrasadas. Parece que o homem perdeu completamente o sentido das coisas espirituais, tanto que nem mesmo as discute e nada se preocupa com elas. Esta é a solução mais radical, ou seja, a supressão do problema, a extirpação das qualidades necessárias para o enfrentar. O mundo preocupa-se com outras coisas. O seu gênio construiu a máquina e agora está certo de que com ela ganhou mais um escravo que lhe torna mais cômoda a vida. E a máquina é quem manda e se faz servir. O homem criou a máquina, mas não criou ainda o juízo para servir-se dela, o que é muito mais difícil. E corre, freqüentemente só por correr, para servir à máquina que corre.

O homem hoje se preocupa com a situação das massas. Os problemas individuais e aristocráticos não mais interessam. Hoje a evolução é em superfície e a conseqüência natural é que se tenha de renunciar a evoluir em profundidade. O fermento do progresso não ataca somente alguns pioneiros; ataca a massa enorme dos povos. É um movimento vasto e superficial. A civilização está em grande desenvolvimento e seria grave erro ignorar-lhe a importância. Trata-se de um grande trabalho social dirigido a grandes fins coletivos e que merece todo o respeito. Isso não se pode considerar senão como um rumor oceânico de fundo. Diante da maré enchente de massas humanas deve ser lícita a sobrevivência, embora isolada e por exceção, de indivíduos que se fizeram por si e que pensam por si. E este livro não é senão a história de um aristocrata do espírito, de um solitário que se rebela contra todas as correntes do seu tempo, para não ser esmagado pelo número, para não ser submergido e anulado pela multidão. Justamente hoje, que se fabrica e se valoriza o homem em série, este tipo fora de série poderá se tornar uma interessante raridade. É claro que tais experiências de caráter aristocrático, conduzidas em profundidade, não são para a massa, que, por sua natureza, é rude e grosseira. Certas provas são observadas por muito poucos. Os direitos e deveres do rebanho são proporcionais à sua capacidade e não são iguais aos de um ser isolado. É natural que a massa não possa ser individualista; tentá-lo seria criar a anarquia e o caos. Por isso, nem mesmo ela tem o direito de o tentar. Mas, quem é mais individualista que os chefes, e quem mais totalitário que o individualista? E que homem será mais detestado e mais imitado que o homem fora de série? A lei biológica é sempre a mesma: seleção dos melhores e abandono da multidão amorfa para os inconscientes. Esta história é a reação, com funções equilibradoras, do individualismo contra a multidão, da minoria contra a maioria - uma reação contra a classificação como tipo ideal, do indivíduo normal de valor duvidoso, uma reação contra a uniformidade mecânica moderna que invade até os valores espirituais - uma reivindicação da liberdade interior que pela lei da vida é sempre inviolável, filha que é unicamente do próprio destino. Este livro é, portanto, a exaltação da liberdade do espírito contra a escravidão da matéria e é também reação contra os tempos. É uma luta e um desafio. Mantém-se em forma elevada e abstrata, justamente para colocar distante desses problemas o vulgo ignorante e ávido de se imiscuir e demolir. Poderá não interessar, mas contém elementos que hoje a sociedade pôs de lado ou esqueceu; conceitos atrofiados hoje, mas que poderão ser úteis amanhã, quando as concepções dominantes se demonstrarem, pela amplificação do horizonte, insuficientes para resolver todos os problemas da vida.

Pode acontecer que a sobrevivência destes poucos seres aos quais as leis da vida confiam a conservação do sutil fio da espiritualidade, para que não se destrua e se perca orgia de forças; pode acontecer que o trabalho silencioso destes poucos seres isolados, incompreendidos e condenados, seja um dia considerado como providência e salvamento em tempo de naufrágio entre os preciosos tesouros conquistados pela civilização.

É inútil discutir. Cada força deseja o seu desenvolvimento, que se processa completamente independente da compreensão humana. O pensamento das leis da vida exprime sem discutir, por assomos, não com demonstrações e arrazoadas, mas com fatos. O mundo é uma realidade concreta; cada um de seus pensamentos se revela em forma de ação. Não se diz - vive-se. Obedece-se sem pedir explicações. As leis da vida fazem-se obedecer e não se preocupam de fazer-se compreender. E cada um vai pelo seu caminho, com seus riscos e suas metas instintivamente, irresistivelmente, com suas boas razões para segui-lo, mesmo que não o compreenda. O mundo vai pelo seu caminho, tentando a sua grande aventura épica e sanguinária.

O nosso personagem ia, também ele, solitário, por sua estrada; cumpria, também ele, o seu destino.


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13 Estilicídio: gotejar de um líquido.

 

Cristo disse14:

1. "Felizes os pobres de espírito. Ai de vós, ricos, que neste mundo mesmo encontrais consolo!
2. Felizes aqueles que choram, porque serão consolados!
3. Felizes aqueles que têm fome e sede de justiça, porque serão satisfeitos!
4. Felizes os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia!
5. Felizes os de coração puro, porque verão a Deus!
6. Felizes os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!
7. Felizes os perseguidos pela justiça, porque deles é o reino dos céus!"
E o mundo responde:

1. "Os pobres são os vencidos. Nós, os ricos, somos os vencedores da vida. A riqueza é a felicidade que se espera, porque é o justo prêmio por lutar e vencer.
2. Desgraçados os que choram. Os vencidos merecem desprezo. Não há piedade para os fracos. A vida deseja os fortes. O mundo pereceria se, graças à piedade, fosse reduzido a um asilo de ineptos.
3. Aqueles que têm fome e sede de justiça nada conseguirão esperando-a de braços cruzados; devem procurá-la à força. Sobre a terra reina a justiça férrea e feroz, que se curva ao mais forte, ao que soube merecer sua posição pela coragem, arriscando e trabalhando; reina uma justiça que não deixa lugar aos fracos, aos sonhadores, aos idealistas inconseqüentes.
4. A terra não é lugar de misericórdia. Estas piedades desequilibram as sadias leis da vida, levando a uma seleção de ineptos, de vagabundos e hipócritas. As sadias leis biológicas devem afastar estes parasitismos misericordiosos que detêm a vida e a levam à degenerescência.
5. A vida pertence aos fortes e não aos puros. Aos que vencem nada se pergunta, porque eles têm razão; aos que perdem pergunta-se tudo, porque eles estão errados.
6. A lei da seleção não deseja os pacíficos, mas os lutadores e vencedores. Assim, realmente, fala a natureza no instinto feminino da escolha sexual.
7. Sobre a terra, a justiça é o triunfo do mais forte. Os perseguidos, enquanto não se revoltam e vencem, estão sempre errados. Na terra não existe respeito pelo céu. Não se respeita aquilo que está fora de nossa experiência e da possibilidade da nossa ação".

Assim responde o mundo. E poderia ainda ajuntar: não fomos nós que fizemos a lei que impera sobre a terra. Está escrita em nossos instintos, que nasceram conosco; está escrita sobre toda a vida em nosso planeta. Portanto, pelo menos em nosso plano, esta lei não exprime a vontade e o pensamento de Deus?

Quem tem razão? Por que o céu desmente a terra e a terra continuamente desmente o céu? E Evangelho diz: "Ama o próximo como a ti mesmo". Mas o mundo, na realidade, aplica este outro princípio: "Destrói o teu próximo, se não queres que ele te destrua". Como será possível conciliar sistemas tão opostos? Não é apenas um problema do Evangelho e do mundo, mas o problema do destino do nosso personagem, que empenhara sua vida na aplicação integral do Evangelho. Ele procurava uma solução para o problema que se lhe apresentara assim que enfrentara a psicologia do mundo. Estava neste contraste a grande batalha de sua vida, assim como nele estava a trágica luta entre Cristo e a realidade biológica, as duas grandes verdades contrárias. Bem sentia as titânicas dimensões, a vastidão apocalíptica da batalha. Ousar contra a lei suprema da terra, desafiar as leis da vida do planeta - afigurou-se-lhe a mais gigantesca aventura que um homem poderia empreender. E assim vivia o maior drama já concebido pela mente humana - o de Cristo em sua paixão, o de Dante na Divina Comédia, o de Goethe no Fausto; um drama cujo epílogo estava no céu, o desenvolvimento sobre a terra como um desafio e a substância era a humana destruição de si mesmo, para elevar mais alto a própria ressurreição.

Ele tudo ousara e jogara na palavra de Cristo. Se fosse derrotado, aquela palavra seria desmentida, ao menos no seu caso.

E agora revivia plenamente aquele motivo central do seu destino, na hora trágica e intensa em que era disputado pelas duas vidas, cada uma delas ansiosa por chegar às suas conclusões.

Quando Cristo e Pilatos se encontraram, as duas verdades se fitaram em silêncio, desafiando-se. Pilatos perguntou a Cristo o que era a Sua Verdade15, porque a sua própria ele a conhecia. Era a verdade biológica, prática e concreta, que lhe dizia: "O teu chefe é o imperador, o vencedor pela força, aquele que manda, o único que tem sempre razão. Obedece-lhe, e conserva teu posto. Além disso, há uma ordem social e tu, que a representas, não a podes subverter. Não tem sentido a verdade de quem vive fora do mundo". Pilatos era, simplesmente, um homem prático, e teria compreendido Cristo se Ele lhe tivesse falado com a linguagem do mundo. Naturalmente, nem mesmo esperava pela resposta, que Cristo não deu. Nem um nem outro falou e a verdade não passou desta pergunta. Mas os dois responderam com fatos e conclusões diversas. Os fatos e não as discussões são as respostas mais sérias; uma vez determinados, temos que lhes assumir a responsabilidade e suportar as conseqüências. Cada um seguiu o seu próprio caminho, alcançando sua meta diferente. Era inútil explicar, mesmo porque não seria possível compreender. Assim situadas nos antípodas, as duas verdades se acusavam mutuamente de extrema ignorância. Pilatos não pretendia, realmente, dar fim ao mártir, coisa sem importância, embora com o pior dos significados para ele e seu ambiente. Pilatos é o verdadeiro símbolo do mundo que se baseia no cálculo utilitário, não admite o ideal, considerando-o loucura. E o ideal não tem outra resposta senão o silêncio e o martírio.

Ante estas afirmativas mudas e terríveis, a terra continua a exprobar ao Evangelho a ignorância das condições de fato, tão adversas ao homem que, se este quiser sobreviver deverá saber dobrá-las ao seu próprio domínio. Em tal ambiente, uma bondade que vá além da função feminina da proteção de sua prole - é antivital. A direção da vida está confiada ao homem - conquistador sem escrúpulos e sem piedade. O martírio, conclusão lógica da vida do pioneiro evangélico, é um absurdo, antibiológico e anti-humano. A verdade é vencer. Seu eu for generoso, o meu vizinho me arruinará; a minha bondade será tomada como fraqueza e a minha derrota será o seu triunfo. Sobre a terra não se admitem outras verdades senão as que são úteis para viver e vencer. E o Evangelho, de início, desarma o homem e manda-o combater na terra sem armas. E isto, tendo pela frente lutadores violentos, sem escrúpulos e que espezinham seus próprios deveres - significa morrer. O ideal evangélico poderia ser realizado se, durante alguns anos, fosse mantido em condições especiais, à custa de uma contínua tensão espiritual, com o alimento de um grande sacrifício. Mas, não podendo se reger continuamente por leis opostas, depressa cairia, arrastando consigo o seu primeiro autor ou intérprete. Esta é a verdade dos falidos e a terra não a aceita.

Eis o mais rude ponto do drama do Getsêmani. Talvez, naquele momento, Cristo sentiu todo o absurdo biológico de sua lei sublime, a sua imensa distância da verdadeira natureza humana, a sua inaplicabilidade à terra, tal como esta é. O supremo martírio não seria, séculos afora, uma suprema derrota? A realidade da vida não terá neutralizado muitos sacrifícios; não terá sido vão o esforço para levar o homem ao alto, através de impossíveis superamentos? Havia fartos motivos para a dúvida, a dúvida humana mais atroz, que pode assaltar o gênio, o herói, o santo - justamente às portas do holocausto supremo. Porque tal é, em verdade, a realidade da vida que eles contam superar. E depois de tanta dor, em lugar de recompensa, eles receberão indiferença e condenação. Mas de quem é a culpa por ser a lógica da terra tão diferente da lógica do céu? Chegou o momento de enfrentar o problema e resolvê-lo.

A lógica da terra se exerce através de "três leis" que todos vivem, inclusive os que as ignoram e as negam, e que se encontram presentes sempre e em qualquer lugar como linguagem universal da vida. Essas leis não são somente uma norma; são uma imposição concreta que fala e obriga à obediência através dos três instintos fundamentais: a "fome, o amor, a evolução".

A "fome" é a lei fundamental que preside à conservação individual, que implica, impõe e justifica o egoísmo a que está confiada a função básica da vida: proteger-se contra tudo e sobreviver a qualquer preço. A vida funciona por unidades egocêntricas que jamais abdicam. Aumentando, a fome se torna o centro de todos os outros apetites e o egoísmo o centro de todas as aspirações. Esta é a primeira, irrevogável e fundamental posição da vida, que é egocêntrica e afirma: "eu sou".

O "amor" é a segunda lei, continuação e complemento da primeira. O egoísmo cinde-se e se prolonga em outro instinto, que preside à conservação da espécie. Aqui, o indivíduo não luta para proteger a si mesmo, mas para proteger seus filhos. É a segunda posição da vida, já não individual mas social, nascendo a família como primeiro núcleo, e partindo do menos para o mais - família, cidade natal, região, nação, raça, humanidade. E a coletividade humana, posição egocêntrica mais vasta, afirma: "nós somos".

A "evolução" é a terceira lei. Como a segunda não aparece depois de satisfeita a primeira, também a evolução não pode atuar senão depois de satisfeitas as duas primeiras. Esta lei, a última a aparecer, continua, completa e coroa as duas precedentes. Segundo ela, o indivíduo não luta pela sua conservação, nem pela da espécie. Superando o problema da proteção, trava-se a batalha da seleção do melhor, para que a espécie atinja formas de vida sempre mais altas. É a terceira posição da vida, posição coletiva, dinâmica, que diz: "nós avançamos". É, portanto, a lei da evolução, seleção e expansão e por meio dela a humanidade se mantém em marcha pelos caminhos do progresso.

Estas três leis correspondem às três dimensões do espaço - linha, superfície e volume. São como os três planos de um edifício: não se podem edificar os andares superiores sem ter edificado primeiro os de baixo. Os três instintos correspondentes surgem e agem sucessivamente, sempre após a satisfação dos precedentes que são a base. O primeiro é mais importante que o segundo e este mais que o terceiro. Com isto, a natureza demonstra a solidez de seu sistema de construção. Assim o instinto mais alto desponta após a saciedade do precedente. Atendido o imperativo inferior, passa-se ao superior. Satisfeita a fome, satisfeitas todas as necessidades egoístas da conservação do indivíduo, obtido o bem estar, passa-se à procriação. Então a exuberância demográfica faz pressão, nasce a necessidade de expansão material e se fazem as guerras e as revoluções. Logo, o homem, que é tão impiedoso e ávido na conquista da riqueza que lhe custa tanto trabalho, tudo desperdiça durante a guerra, tornando fundamental pagar tributo em benefício da seleção. Assim progride e a ascensão se completa na expansão espiritual representada por novas formas de convivência, de pensamento, de civilização. Satisfeitas as necessidades de conservação do indivíduo e da espécie, levanta-se, exigindo satisfação, o instinto de progredir para servir a uma necessidade mais alta, situada no ápice do edifício, onde impera a lei da evolução.

O instinto do progresso, sendo o último aparecido, ou seja, biologicamente de formação mais recente, é, naturalmente, o menos radicado em profundidade e, por ser menos sólido, é o que mais depressa cai às primeiras dificuldades. É quando a vida se apressa por reequilibrar-se mais em baixo, na posição mais elementar e mais estável das leis inferiores, pois que a natureza antepõe a segurança da conservação ao risco da seleção.

A essas três leis correspondem três formas de luta: pela defesa pessoal; pela defesa da família e pela expansão material e espiritual. Correspondem ainda a essas leis três principais órgãos do corpo humano: o estômago, o sexo e o cérebro, com suas funções - digestão, sentimento e pensamento. A cada função corresponde um instinto e uma voluptuosidade específica que pode levar ao excesso e criar um vício.

O cérebro, com o sistema nervoso, é realmente o órgão da evolução, o órgão condutor que, como antena sensibilizada, escruta em torno e se atira adiante tentando novas experiências. Ao espírito pertence o poder, a conquista, o futuro, mas igualmente o risco e o cansaço de vencer a resistência do passado conservador.

A atuação destas leis depende de um impulso que se manifesta como instintivo desejo de satisfação e de um contra-impulso que é o sofrimento causado pela insatisfação. Alegria de um lado, dor do outro. E por este sistema, a natureza consegue fazer-se obedecida por todos. Ela premia com a alegria a obediência ao impulso que leva à vida e pune com a dor a desobediência, os abusos, os excessos e tudo quanto põe em perigo a vida. Alegria e dor, refinando-se, afastam-se da animalidade. E para cada ser são fundamentais e instintivas as funções do plano onde, segundo a sua fase de evolução, se equilibra o centro de sua vida.

As três leis correspondem ainda três egoísmos de amplitude diversa, igualmente sagrados, imperiosos e importantes em seu próprio plano, porque presidem à defesa de um dado tipo de trabalho e à consecução de uma diversa função biológica. O homem preso à primeira lei, nada percebe além da defesa de si mesmo; está encerrado numa casca de pequeno egoísmo pessoal. E isto é necessário para que ele possa viver. É um direito que se respeita.

Quando o homem se eleva à segunda lei, o seu egoísmo dilata-se até abranger a sua família de tal modo que, diante do egoísmo mais restrito da primeira lei, parece altruísmo mas é uma ampliação capaz de cobrir um campo mais vasto. Quando, afinal, o homem passa a viver no plano da terceira lei, o seu egoísmo se dilata ainda até abranger o próprio grupo; depois, a nação, a raça, e finalmente toda a humanidade. Cada tipo de egoísmo é, em confronto com o precedente, uma dilatação, e como altruísmo é visto pelos homens dos planos inferiores.

Eis porque o altruísmo se considera virtude. Porque é superação, dilatação da consciência individual, ascensão evolutiva. É um processo de expansão e liberação daquela casca do egoísmo restrito onde ainda o homem superior vê confinado o homem inferior. A passagem de um tipo de egoísmo para um mais vasto, isto é, a sua dilatação no seu relativo altruísmo, é cansativa. Nessa fadiga está o valor da virtude da qual o conceito, o valor construtivo, a lenta graduação são exigências da lei ao longo do eixo central da vida que é a evolução. O cansaço do retorno de Deus pelos caminhos do progresso tem de ser nosso. É o sacrifício do eu quando rompe a casca do egoísmo individual, que dolorosamente se abre e se dilata em altruísmo. O retorno a Deus é conquista de felicidade que não se pode alcançar senão através de renúncia e sacrifício, ou seja, a demolição do separatismo egoísta para a comunhão evangélica. Os homens da primeira lei já tentam, identificar-se no egoísmo familiar que supera o individual. Eles amam egoisticamente, sem elevações altruísticas. Ao contrário, o homem da terceira lei se vê em toda a humanidade, sente o seu eu nos seus semelhantes, em cuja defesa e bem-estar encontra a própria defesa e bem-estar. A essa defesa ele se entrega com a mesma espontaneidade e energia com que o faz o homem da primeira lei na defesa de si mesmo, pois que seu semelhante é ele próprio e, por isso, merecedor de proteção a todo custo.

Por aqui se vê que compacto organismo de interdependência é a vida. Quando uma criatura se eleva, separando-se dos seus irmãos que ficaram, a lei o impele, pelo instinto, a voltar-se para eles, para ajudá-los a elevar-se consigo. As três leis são como três fases, três etapas contíguas de evolução, que o homem tem de percorrer na trabalhosa ascensão. E quanto está mais próximo de Deus e da realização em si do pensamento de Deus, o homem da terceira lei! E aí está a profunda significação do conceito evangélico: "Ama o próximo como a ti mesmo". É uma ordem dada ao homem para que alcance e viva na terceira lei, difícil e cansativa, porém mais vizinha da ordem e do amor, que é Deus. E isto é suficiente para se formar a moral na qual é virtude o poder evolutivo e vício a tendência para regredir, afastando-se de Deus, em direção involutiva.

Da gradação de fases e de leis se deduz e conclui que o ideal e o Evangelho não podem encontrar campo senão no ápice da evolução, ou seja, nas mais recentes conquistas biológicas, menos consolidadas na assimilação humana especialmente nas zonas de maior risco e maior incerteza, aquelas em que o misoneísmo dá segurança. É um plano verdadeiramente nobre e excelso. Mas sobre a terra dominam pelo número os homens da primeira e da segunda lei. O domínio da maioria que procura se realizar não tolera o homem da terceira lei - um rival que lhe disputa o campo da vida. É natural que este seja incompreendido e perseguido, porque sua missão é soberba e suprema. Mas o seu destino é o martírio e ele terá que correr todos os riscos. Se fracassar em seu ideal, ninguém o lamentará.

Se isto for verdadeiramente útil ao progresso, então o sangue do mártir se espalhará no mundo como chuva fecundadora e a luz do espírito iluminará a terra e a seu tempo a sementeira germinará. Eis a posição do Evangelho na terra. Que fio frágil sustenta essa vida! Não é ainda senão fraca semente caída dos céus sobre a terra nua e exposta a todos as intempéries.

No entanto, essa semente é uma realidade futura e nenhum centro dinâmico luta com maior energia pela sua realização. Cada ação deve ser seguida por uma luta que tem função de eliminar os incapazes, exigindo a resistência que é a garantia do valor íntimo. E enquanto o céu e a terra lutam como inimigos, o fio da evolução liga-os e uma lei de complementariedade os atrai e, afinal, mesmo se combatendo, um cairá nos braços do outro.

Este foi o nó fatal do Getsêmani: amor e dor. Os que superam a terra só podem esperar a morte na cruz, mas a sua suprema função biológica é a exploração do futuro e sua obrigação a de ditar ao mundo a nova norma de vida. Sua missão é inderrogável. A superioridade implica, pela lei do equilíbrio, tremendos deveres. Entre as lutas da terra, a que se supera a todas é essa entre o divino e o humano, pela qual o céu quer e deve imiscuir-se e fundir-se na terra rebelde. A terra revolta-se. Mas trata-se de sublime e irresistível violação. Na descida violenta do espírito sobre a matéria há qualquer coisa do mecanismo da fecundação. O gênio e o santo descem das inacessíveis alturas para atirar-se ao lodo, ao mar de dor e de miséria; o divino se abaixa até o humano; o absoluto vem chorar no relativo. É esta fatalidade que esmaga e oprime o escolhido, até à cruz.
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14 - Mateus, 5:3-10; Lucas 6:24. (N. do T.)
15 - João 18: 37-38. (N. do T.)

 

Assim, ele entrara no mundo, decaído, mas livre e consciente para conhecer toda a verdade, qualquer que ela fosse, em todos os seus aspectos. E assim continuava a avançar na vida, sem temores nem preconceitos e em plena sinceridade. Desta sinceridade terá o mundo rido como de um sistema de ingênuos. Mas isto era, também, uma força. Esse era o seu método retilíneo e ele não o mudaria e aqui se revelava e sobrevivia o seu tipo inflexível, caído na terra, mas não pertencente a ela e que jamais poderia aceitá-la definitivamente. Aqui ele era sempre um estrangeiro, em exploração. Olhava o mundo francamente, de frente. Se o mundo tivesse uma verdade a dizer-lhe, seria constrangido a dizê-la. Se era mentira, ele a desmascararia. Aceitava, fazia sua a lei do mundo para a experimentar seriamente, mas também para atirar à face do mundo o resultado de sua experiência, se esta não fosse digna de um homem. Ele devia experimentar tudo e tudo saber. Estava, já agora, disposto a agarrar desesperadamente pela gola as leis terrestres e dissecá-las a fundo. Exigia a mesma sinceridade que oferecia. Assim poderia encontrar a significação do mundo para justificá-lo, ou por seus pontos débeis e suas contradições, acusá-lo e condená-lo. No entanto, aprazia-lhe a luta apocalíptica pelo ideal, mas queria a franqueza honesta e corajosa. Teria considerado respeitável a fera em seu ambiente, desde que esta desse provas de coerência. Mas jamais lhe perdoaria a vileza de defraudar a sinceridade sob falsas aparências. Estava pronto a desmontar, consciente e honestamente, todas as suas construções e conquistas, pronto a perder a cabeça no suicídio espiritual, pronto para tudo. Mas metera-se com o Evangelho. Sua vida tinha sido uma experiência do Evangelho. Se ele tinha de cair, também o Evangelho devia cair e, caindo este, cairia também tudo quanto ele continha: justiça, bondade, fé, religião, ideal. Então, adeus tudo. Adeus tudo, se tivesse que haver mentiras. Ou honestidade, ou nada. A cruz é um símbolo supremo e terrível. Olha-se de frente e com seriedade. Se for um símbolo falso, que caia. E que haja a coragem de o fazer cair abertamente, mas que isso jamais resulte da vileza e da mentira. Esta, no reino da força dirigida, embora para a violência, mas dirigida, é incoerência e a incoerência é violação, é traição de todas as leis, tanto da terra como do céu. Seria vileza e vergonha imperdoável sobre a terra. Se a cruz é um símbolo falso, tenha-se a coerência de fazê-la cair honestamente. Mas se é um símbolo verdadeiro, ai do mundo! Ai, sobretudo, dos responsáveis espirituais pelo mundo! Não é lícito mentir diante da cruz, não é lícito mentir diante dos mártires que o seguiram.

Ele procurava, mas encontrava não a coragem da revolta; mas a verdade, espremida, explorada, falseada até se tornar irreconhecível; o bem tão pervertido até se tornar mal; o sumo espiritual da vida manipulado até se transformar em veneno. Observava, aterrorizado, a dissolução moral do mundo, o seu método de falsificação do ideal, de traição ao céu. O fato de ter querido observar a vida por trás dos bastidores havia demolido nele todas as ilusões. O mundo não era senão simples representação de coisas nobres e virtuosas, de exaltações convencionais, de acordos tácitos não revelados aos ingênuos. Não era possível entender-se com duas linguagens tão diversas: a sinceridade e o fingimento. As verdades que ele dizia eram recebidas como mentiras, ao passo que ele tomava como verdades as mentiras dos outros. Não havia possível entendimento entre quem procurava o ideal com seriedade, e o mundo que dele fazia um estandarte para seus desígnios, para com ele conseguir vantagens materiais. Ele não compreendia por que, sobre este terreno de utilidades, era sempre vencido enquanto os outros saíam vencedores; as mesmas coisas, assim diversamente tratadas, produziam efeitos opostos.

Era tomado por ingênuo. Se ousara dizer qualquer coisa, sua simplicidade provocara escândalo, sua sinceridade era ofensa. Não se gosta de ouvir certas verdades que devem permanecer ocultas. E pensou quanto seria útil para ele aprender um pouco do lindo jogo das pessoas respeitáveis. E pensava isto não com espírito de sátira, mas com profunda amargura. Não pretendia dar a estes julgamentos valor absoluto. Tratava-se simplesmente da impressão que as coisas lhe faziam, vistas de sua posição. Eram inconciliáveis com o seu temperamento, e ele reagia, eis tudo. Sua reação era lenta, complexa, profunda. Tinha que demolir com consciência e pela consciência, conservando íntegras a honestidade e a justiça. Mas sentia já indistintamente que não poderia resistir a esse ambiente por muito tempo, adaptando-se e esquecendo o seu passado; que com o tempo não poderia fazer menos que reagir a esta nova realidade tão inferior aquela já conhecida; que, dado o seu temperamento e os precedentes, seria inevitável uma nova revolta e, depois, uma ressurreição. A nova experiência que ele acumulava atravessando o mundo das trevas não viria justamente para devolvê-lo, com maior impulso, com maior vigor, em direção à luz?

Sentia no mundo um conteúdo inaceitável que, decerto, já formava dentro dele, ainda claramente declarada, a base da revolta. O primeiro impulso para a sua nova transformação não era tanto a atração do alto, mas uma invencível repugnância pelos métodos do mundo, uma repulsa pelo inferior. Realmente, nada lhe parecia mais inaceitável e insuportável do que a falta de sinceridade e de retidão. Ademais, sentia que era inútil acusar, pretender reformar, ou pedir, porque o mundo desejava seguir pelo seu caminho e estava bem equipado para isto e bem armado para defender a sua vontade. E, se era impossível dobrá-lo, entenderem-se, e se ele também não podia dobrar a si mesmo, que lhe restava senão voltar-lhe as costas?

Continuando sua exploração, observou como a sociedade funcionava segundo esquemas que cada geração deixa para a seguinte e nos quais se enquadram todos os homens e o seu trabalho. No âmbito destes esquemas, as categorias sociais, políticas, religiosas, militares, econômicas, as distinções e agrupamentos que, pelas mais disparatadas razões, unem ou dividem os homens, dentro desses recintos artificiais devem-se acomodar os tipos biológicos mais diversos, cada um com sua capacidade e que podem também, estar em irreconciliável contraste com a posição socialmente ocupada. E então nasce a luta entre o esquema e o homem, entre o tipo verdadeiro e a roupagem falsa, luta em que cada um deles procura dobrar o outro: o esquema procurando transformar o homem segundo o modelo prefixado; o homem procurando transformar o esquema e adaptá-lo ao seu próprio temperamento.

Dada a possibilidade que sobre a terra tem o homem de disfarçar a sua verdadeira personalidade e dada, também, a impossibilidade de conhecer sua verdadeira natureza, os esquemas são forçados a considerar apenas as aparências, as formas, sob as quais é sempre possível ocultar qualquer substância. Daí, os mais estridentes contrastes e contradições. E ele percebia que caíra no reino da forma, onde dominam os esquemas. Dedicou-se, pois, a ir direto ao indivíduo, sem tomar em conta os esquemas; procurar o homem e nada mais, prescindindo, absolutamente, de sua posição e aparência exterior; decidiu demolir todo o edifício da catalogação social, libertar o tipo das vestes que o envolvem e disfarçam, e sem dar nenhuma importância às transformações da forma, conseguir alcançar a substância.

Este era o método do espírito e ele verificava que na terra o que reinava era o método da matéria. Quanto mais o ser é involuído, tanto maior importância dá à forma, à aparência exterior; quanto mais é pobre em valores reais, mais procura se proteger com o manto de valores fictícios. Subir conduz à luz o verdadeiro eu interior, tornando-o, ao mesmo tempo, mais digno de poder aparecer. Assim, para fugir aos enganos e alcançar a realidade, ele não considerou mais a forma e o esquema; não deu mais atenção à veste exterior do homem.

Procurou arrancar a máscara das coisas, as formas fictícias sob as quais tudo se esconde na terra. Compreendia que, onde a luta é motivo fundamental da vida e o universal meio de realização, é necessário o egoísmo, é necessária a mentira. Quem não tem força, se não recorrer à astúcia, ficará sem defesa; e um ser indefeso, sobre a terra, está liquidado. Portanto, é indiscutivelmente muito mais útil apresentar-se como cheio de virtudes. A palavra raramente diz alguma coisa; raramente diz coisas dignas de serem ditas e quase sempre serve para esconder, em lugar de exprimir o pensamento. O ilusionismo faz parte do armamento protetor da natureza. Mas ele, que sentia a elevação dos ideais horrorizava-se com esta profanação, com esta inconsciência que pretendia pôr o céu a serviço da terra, considerando as coisas mais preciosas e elevadas como vulgares meios de proteger a vida. Repugnava-lhe a triste necessidade de reduzir tudo, até o céu, ao plano humano; de usar tudo, sem distinção, em função da luta pela vida.

Grande inconsciência, mas também grande miséria, esta triste necessidade. A luta universal e impiedosa invade tudo, exige e se impõe a tudo. E aqui ele compreendia a significação e a lógica da imperdoável mentira. Mas que pavoroso terreno inseguro e escorregadio, que realidade de duas faces, que miséria o ser constrangido a tais meios para sobreviver! Que inconsciência, para poder ter a coragem de realizar tais profanações. A mentira pareceu-lhe a exaltação mais irrespirável da terra, a que tornava a sua atmosfera mais impura e sufocante. Agoniava-o o método tortuoso, a realidade inconsciente que se desfazia facilmente, o mundo feito de ilusões. Neste terreno, em tal atmosfera de falsidade, devia o homem trabalhar, penosamente, procurando realizar-se. Devia fazer da desconfiança um hábito e uma qualidade e neutralizar, a cada passo, a astúcia traiçoeira do seu vizinho. Que terrível e infernal peso e que paradisíaca libertação pode emergir em plano mais alto, de sinceridade e de fé! Temeroso, olhava este mundo de aparências, o fazer-se e desfazer-se daqueles mutáveis e fictícios vultos das coisas, sem poder acreditar em mais nada sobre a terra.

Que respondia o mundo a estas suas acusações? Primeiro, isto: "Vós acusais-nos de mentirosos, mas vos esqueceis de que na terra o regime não é de justiça e de verdade, mas sim de luta, onde a mentira é uma arma de ataque e defesa. Tudo isto caminhará para a justiça e a verdade e será um recurso para conquistá-las; mas são coisas longínquas e estão hoje ausentes da realidade da nossa vida. É absurdo pretendê-las. E se vós exigis a nossa sinceridade neste mundo, não pode ser senão para nos tirar nossas defesas e deixar que, assim, sejamos mais facilmente vencidos".

E respondia ainda: "Somos os involuídos, ainda não redimidos. E quem nos dá força para transformar a vida, levando-a, dos estridores da luta às harmonias evangélicas? É inútil o convite, ou a ordem do céu. Quem poderá transportar estes densos invólucros de matéria até aquela rarefeita atmosfera? Quem poderá afinar a nossa rústica sensibilidade ao ponto de podermos perceber a evanescente realidade daquele elevado mundo? Cada um é feito para o seu meio. Vós, anjos, não sois feitos para a terra e estarão mal aqui em baixo, como nós não somos feitos para o céu e estaríamos mal lá em cima. Nós somos inferiores. E aqui temos a nossa animalidade, à qual nos sabemos adaptar e que temos a força de suportar. Vós podeis ter os olhos voltados para o alto, mas nós estamos presos à terra e nosso olhar tem que estar voltado para baixo. Quem nos julga egoístas, impiedosos e agressivos dá provas de uma grande ingenuidade e ignorância da realidade da vida. Mas o ambiente terrestre não é um paraíso de alegrias gratuitas: é um mundo de forças inimigas, onde nada se obtém sem violência e imposição. O anjo tem razão, porque vai partir. Mas, se tivesse que ficar aqui, teria que se transformar ou seria eliminado. Estas são as condições reais e é inútil procurar suas causas. É verdade que tudo isto é bem rude e tem sabor de punição. É verdade que se o nosso destino é chegar a Deus, isto significará sempre um pavoroso trabalho. Condenação e trabalho não impedem que o nosso egoísmo feroz seja, dada a vida humana e seu ambiente, uma necessidade normal. Esta punição e abjeção, se não determinadas pela justiça divina, quem sabe por quais culpas nossas, já que nascemos hoje e morremos amanhã sem nada saber, decerto fazem parte do fatal determinismo inerente ao destino humano e são um tremendo peso que cumpre carregar pois que, depois de vinte séculos, parece que nem mesmo o holocausto de Cristo conseguiu libertar-nos. Portanto, se se tenta transplantar para a terra as coisas do espírito, estas, na atmosfera imprópria, fenecem rapidamente e são levadas a morrer. São demasiado delicadas e sutis para serem percebidas, demasiado leves para terem peso entre gente de sensibilidade de ferro, em meio à feroz realidade. As leis biológicas não são um princípio abstrato, mas sim uma vontade concreta que exige obediência.

Seguir o evangelho significa rebelar-se a essa vontade e expor-se à vingança daquelas leis, que na terra dominam e imolam quem as viola. Ai de quem não as respeita! Será triturado. Todos as suportam e aplicam, inclusive os teóricos que pretendem dominá-las e superá-las. Não é culpa nossa se o Evangelho e o mundo são inconciliáveis. Não podemos, para cumprir o dever de aplicar o integralmente o Evangelho, eliminar o dever de viver. Não temos direito ao suicídio. Para se realizar qualquer coisa sobre a terra é preciso, primeiro a força, depois a astúcia; a bondade vem por último. A bondade é o meio mais inadequado em um ambiente onde se trata de agir e não de amar e sonhar e com ela aqui na terra nada se faz. Temos que nos realizar primeiro na terra e depois no céu. O contrário é absurdo, nem há margem para semelhantes experiências. Temos que nos ater ao positivo: fugir à dor, procurar a alegria e nesta conseguir, rapidamente, o prêmio da luta. É preciso que o bem seja útil. Os resultados longínquos e hipotéticos não interessam. Aqui é preciso viver, não cair. Os que caem são arrastados. A luta é árdua e não sobram energias para ajudar aquele irmão que caiu, porque ele é sempre um rival e a piedade por ele rouba-nos a vitória. Na terra não há lugar para o Evangelho, não há possibilidade de fraternidade nem de altruísmo. O que surge é uma só coisa; lutar e vencer. Sob todas as máscaras e sob todas as modas do tempo, esta é a única substância estável, que jamais muda. O que nos vindes contar? Não. Não nos metais nos vossos ideais altruísticos. Desejais destruir e enganar a natureza? Ela não pode admitir a piedade onde se desenvolve a luta pela seleção. A justiça, então, se obtém não pela piedade dos superiores, mas pela rebelião egoísta dos inferiores ou seja, não por amorosa conduta evangélica, mas por extorsão, porque a luta é contínua e apenas os mais fortes conseguem vitória. A realidade biológica não tem interesse algum no prolongamento da piedade maternal além de sua funções protetoras da maternidade. Proteger além destes limites é anti-seletivo. A vossa lei é fraca e só produz ineptos. A nossa justiça é férrea, inexorável e cria fortes. A lei biológica não pode aceitar o Evangelho. Em nosso mundo, a piedade e a bondade não funcionam, ninguém paga o sacrifício e não há espaço para os ideais. A lei suprema é: agir por si mesmo, sabendo bem que não se deve pedir auxílio, que não se encontrará piedade, porque o nosso vizinho está, mais empenhado do que nós. Não nos resta senão negar todo o auxílio e não ter piedade. Esta é a nossa justiça. O nosso mundo é um vórtice que nos impele e a todos arrasta. Isolar-se, rebelar-se, é impossível. E nos agarramos desesperadamente ao vórtice, com todos os meios e alegrias, repelindo a dor como podemos. Por que faríamos esforços por resultados longínquos, quando temos que lutar pelas necessidades imediatas? Pelos caminhos do Evangelho, o cansaço é próximo e o resultado hipotético e longínquo, e por isso é natural que a natureza evite tais caminhos. Ela é positiva, utilitária, econômica, prudente. Não admite riscos; se alguns loucos despendem energias perseguindo ideais e resultados incertos ela não tolera o cansaço que deixará o homem extenuado aos pés de um sonho.

A natureza, que está no instinto, faz suas contas e exige o pagamento tangível, seguro, na terra, para si, para viver. Não lhe interessam os pagamentos de após morte, aquele abismo de trevas além do qual a vida humana não vale nada. Talvez sejamos cegos, mas somos feitos de bom senso prático, somos positivos. O céu não pode existir sobre a terra. O além é um mistério; não se fazem os sacrifícios heróicos, exigidos pelo Evangelho, por um mistério.

Sim! Passam às vezes por aqui esses estranhos seres chamados santos, com os olhos sempre postos no alto. Que coisas verão eles lá em cima, não sabemos. Talvez seja um outro mundo, com outros fenômenos e outras leis; não os podemos negar "a priori", mas não o conhecemos. Suas realizações ideais estão longe demais para que possam ser tomadas em consideração. Fogem completamente à nossa experiência, e o que está fora desta é para nós praticamente inexistente e não interessa à vida. Visto dos planos biológicos, o ideal se afigura muito diferente e não pode ser avaliado senão em relação ao seu proveito utilitário, de acordo com o que possa render em nosso plano. É natural, pois, que tudo seja revirado, falseado, explorado. E realmente, aqueles superiores seres do ideal, são perseguidos pelas leis da terra, são incompreendidos e maltratados, porque estão deslocados. A maioria tem razão em repudiar estes seres que saem do plano normal da vida. Em vez de viverem como os outros, na luta e na miséria da terra, pretendem ser exceção e com isto eximir-se aos trabalhos que são o quinhão de todos. Quem superou as divisões humanas se torna expulso de uma vida feita de divisões. O universal não é normal, não é compreendido, não é permitido. Aqui na terra, o relativo impera no seu reino e condena o absoluto. Que importa se a inteligência do gênio, sublime instrumento de música divina, não possa ser usada como bastão de ataque e defesa?

A culpa é do gênio, por ser um anormal. Na terra ele está só, ou quase, e quem está só não tem razão e quem não tem razão está fora da lei e pode ser impunemente destruído. De resto, a superioridade se paga. Que ele se normalize, desça à fossa comum da miséria e da ignorância e faça seus os instintos primitivos de todos. E se não souber fazer isto, e morrer, pior para ele. Dele nos riremos. Não nos interessa o espírito, mas sim o estômago. Se Deus está com ele, por que não desce à terra para o defender? Isso são luxos, utopias. A terra é feita para os involuídos, para nós, que somos muitos, e não para eles, que são tão poucos. Talvez sejamos inferiores, grosseiros e mereçamos desprezo, mas estamos em nossa casa, temos a nossa lei e somos proporcionados ao nosso ambiente, ao passo que aqui na terra eles não o são. Tendo isto em conta, somos bem feitos e não desejamos nos refinar e enfraquecer. Não podemos confraternizar com seres de outras raças. Se eles exauriram suas provas aqui e superaram nosso mundo, tanto melhor para eles, e que se vão.

Nós não o superamos. As nossas provas são aqui na terra e devemos ter a força e a coragem de as afrontar. Hoje o nosso Deus não pode ser ainda a bondade, mas é a força. Este é o reino da matéria e a matéria só obedece à força. Aqui, os que sonham coisas ideais são verdadeiramente imbecis.
E o mundo me responde ainda: Nós não somos apenas involuídos, isto é, seres que vós, das alturas do vosso espírito, tratais como inferiores: somos, também, desgraçados. Vós nos condenais, mas conheceis, superseres julgadores de vós anjos sentados em vossos tronos de glória — conheceis a infinita miséria de nossa dor?

Não somos apenas involuídos. Estamos ainda esmagados sob o peso de mil trabalhos e nossa natureza humana está acorrentada à matéria, aprisionada em cárcere de ferro. Aqui não há margem para doces sonhos nem para contemplações. A realidade é dura - se não se luta, morre-se. Aqui os fatos provam a todo momento que o ideal é sonho e a realidade é dor. A nossa posição humana de desgraça, o grande peso da expiação - tudo isso nos dá direito a certas reações desesperadas, a certas horríveis descidas que negam o céu porque, no limite das forças tudo se abandona, mesmo o ideal, para que se possa ter um pouco de repouso. No alto há muita potência, muita justiça, muita bondade, muita felicidade. Aqui na terra há muita miséria, muita injustiça, muito mal, muito sofrimento. Temos a dor que, mesmo quando nos atormenta, pesa sobre nós como ameaça. Conhecerá o céu esta miséria dos desesperados? E não é fácil a libertação porque ela destrói de preferência aqueles que trabalham para o bem e procuram salvar-se, na esperança de poder deixar a terra. Se é cansativo ficar, é mais árduo sair. E por isso, pouco se tenta fazê-lo. Esta dor é um direito terrível de levantar a cabeça envilecida e impõe respeito. Ela é a expiação que nobilita o condenado e justifica a sua baixeza. Sobre este lado de que se diz que somos feitos cai continuamente uma chuva de fogo. Pouco mais sabemos. O conhecimento nos foge. Somos cegos. Olhamos em vão o mistério e nada vemos. A única coisa que verdadeiramente sabemos é que somos condenados a sofrer com a vida. E aquele Deus que é a razão e causa de tudo, esconde-se numa abstração vertiginosa e inatingível".

Ante estas respostas, o nosso personagem tomou-se de profundo sentimento de piedade. E, então, compreendeu quão mais vasto é o significado do Evangelho; desceu da cátedra, esqueceu-se de si mesmo e da sua posição de combate e compreendeu que só quem se eleva pelos outros e com os outros é que sobe verdadeiramente. E voltou-se para seus semelhantes de braços abertos. O mundo dera-lhe a sua grande lição. A nova experiência não fora feita em vão.

 

Estranho ser o super-homem, envolto em terrível tragédia de incompreensão e de martírio, destinado a ser odiado pelos homens normais, inferiores, egoístas, invejosos e rivais; odiado porque detestamos quem destrói o que nos parece superior. Aceita-se o que se pode desfrutar. O gênio é sobretudo sensibilidade e isto é sinônimo de sofrimento. Todo mundo parece refletir-se no espírito superior; tudo encontra eco em seus nervos e em seu cérebro - como se eles fossem órgãos nervosos e cerebrais do ser coletivo. Ou a antena com que o super-homem explora o futuro, o centro da síntese consciente da humanidade, o extremo limite das dores e dos esforços de toda a vida terrestre. É como se o super-homem fizesse seu todo o cansaço da ascensão do mundo, bem como todos os seus perigos e sofrimentos. O ser superior, o gênio, seja ele pensador, herói, chefe ou santo, não tem atrás de si senão um rebanho brutal que desconfia, destrói, rouba-lhe a tormentosa conquista que, no entanto, lhe reprova. Tem diante de si a vertigem do mistério e o dever de explorá-lo. Ninguém o ajuda. Todos o consideram anormal e o condenam porque ele não compartilha do gosto e opiniões dos demais. Debate-se numa terrível inaptidão para viver como os outros, que o olham com suspeição. Mas ele é um hipersensível e não pode senão viver em plano mais alto e enxergar mais longe. Quando se é de tal tipo, tem-se irrevogavelmente uma missão e se está fatalmente destinado ao martírio. Isso é certo, pelas leis da vida, para todos os que subiram àquele nível. Não lhe resta, então, outro caminho senão a do heróico triunfo do mártir. É inútil querer recuar.

A humanidade, que alimenta a sua vida e deve o seu progresso às conquistas do gênio, já fez notar, historicamente, que não o protege nem o encoraja, nem mesmo o deixa trabalhar em paz. O que costuma fazer é condená-lo e persegui-lo. Ela é, portanto, uma ladra daqueles atormentados produtos a que, num regime de justiça e não de violência e de usurpação, não teria direito. O sistema pelo qual a grande massa dos medíocres trata os homens superiores, a quem tanto devem, é sempre o mesmo: indiferença ou perseguição. Depois, tarde demais, compreensão, exaltação e desfrutamento. Mas nada de auxílio nos momentos úteis. Assim deve ser, porém, porque o inferior ignorante deve ser arrastado para cima mesmo contra sua vontade, para que o gênio nada deva à sua imbecilidade e, afinal, porque a missão que o gênio cumpre nutre-se sobretudo de luta e martírio.

Serão tais seres felizes? Em confronto com a fácil e alegre inconsciência de uma existência vegetativamente satisfeita, a sua vida é muitas vezes uma pavorosa sensação de viver, cheia de ânsia e de tristeza. Uma inteligência maior não pode se manter iludida pelas miragens comuns e traz consigo novas necessidades, uma grande insaciabilidade e um cansaço oriundo de mais vastas indagações. A inteligência é um dom que cria para os outros, e não apenas fonte de prazer para o seu possuidor. Somente os tolos acreditarão o contrário. A inteligência é apenas uma posição de vanguarda para um trabalho de vanguarda, mais difícil, mais forte, mais perigoso e de mais pesado dever, porque é mais consciente que os outros. Se o gênio tem uma felicidade, ela é diferente da comum, cansativa e heróica, produzida principalmente pelo poder da criação. Neste poder está a desforra daquela alma que, no plano humano é abatida, sozinha e sofredora. Neste poder está a sua ressurreição, seu triunfo, sua justificação. Mas a insatisfação das coisas humanas não se estagna num estéril pessimismo, não parece como negativa amargura, mas se torna agente de reação, impele para subir e descobrir. Só os insatisfeitos são levados a criar. E essa angústia, que os normais chamam de loucura, conduz a um trabalho que termina sempre por encontrar alguma coisa que servirá para todos, inclusive para os ociosos e ignorantes que julgam e condenam. O gênio trabalha, pois, sobretudo, para os outros. Essa é a sua missão, a sua felicidade. Para si mesmo, é um infeliz; não lhe é dado conforto algum, apesar de tanto o necessitar e merecer. Tem diante de si imenso trabalho; sabe que sua vida é um martírio, e sabe também que lhe está confiado o progresso do mundo. Gostaria de ter mil braços para trabalhar, mil bocas para falar, não podendo deter-se na autocompaixão, coisa insignificante, que para os outros merece tanto cuidado e proteção. A sua alegria é criar; criando, ele esquece o próprio tormento. Sabe que faz o bem e, se o presente o compreende, lança sua voz às gerações futuras, porque sabe que suas palavras serão recolhidas. Sua comunhão com os próprios semelhantes é comunhão de sacrifício e de dádivas.

Às vezes o gênio oferece o trágico espetáculo de um ser que parece do outro mundo, descido a uma terra que não é a sua, caído aqui embaixo, onde fica se debatendo desesperadamente com as asas mutiladas, ferindo-se e sangrando ali, onde para os outros a alegria é tão fácil. Fecha-se, então, num isolamento carregado de tristeza e aí canta, cheio de melancolia, uma estranha melodia de arrebatamento que jamais se cala, de fome que jamais se sacia, de tristeza que não tem consolo. Este canto de dor é o mais profundo canto da vida, é a música mais intensa e sutil, que piedosamente nos embala ou tragicamente nos abate. O homem comum fica do outro lado a ouvi-lo, sentindo que naquele canto um raio desce do céu e o véu que cobre o mistério foi arrancado ao sangrento cansaço do gênio.

Mas há também a tragédia oposta, a tática do humano para alcançar o ideal. Ao lado da fatalidade desejosa de que o alto se faça humilde para se tornar acessível, há uma outra fatalidade, que persegue o humano com toda a sua impotência em direção ao inacessível divino. É estranho: o mundo, detesta e combate tudo isto, no entanto se sente dominado por uma instintiva atração, por um pressentimento de futuro que o deixa fascinado. A matéria odeia o espírito, mas depende dele. O inferior detesta o superior e rebela-se contra ele, mas sente a sua força e acaba por obedecer-lhe. É o que ordena a invencível lei da evolução.

Pois se o mundo se rebela; se a realidade biológica impede os passos rumo ao ideal; se a terra é ambiente absolutamente inadequado às afirmações do céu, mesmo assim percebem, por um instinto em formação, ainda confuso, a superioridade do espírito. Mas que canseira a do espírito, para dominar a matéria! E que impotência a da matéria para seguir o espírito! A maior luta do mundo é travada contra si mesmo para vencer a atração que o impele irresistivelmente para o espírito. O ideal evangélico é um enigma para o homem, porque lhe repugna, lhe é difícil, cansativo e, ao mesmo tempo que um convite, uma censura muda, uma ordem: e esse ideal se lhe apresenta como atração e repulsão, contradição de forças que, por caminhos opostos, o agita e interessa. Há para o homem, naquelas doces palavras desarmadas, uma ordem irresistível como uma ameaça.

A grande tragédia humana está se aproximando deste dualismo: reconhecer no íntimo a superioridade do ideal e não o saber realizar; sentir a sua grandeza e beleza e convencer-se da própria impotência, o que gera a aversão e a revolta; compreender que existem formas mais altas de vida que se podem viver, e que são inacessíveis; ver de longe o céu e não poder alcançá-lo; conceber na mente o sonho, mas não ver senão a própria miséria. No fundo da utopia do ideal há esta grande paixão humana de não o poder realizar.

Todos sabem que a vida humana é a que o homem deseja, mas ninguém sabe desejar acima da animalidade, porque elevar-se, isoladamente, para o mais alto é martírio e do martírio se foge. Cada um de nós espera que o vizinho o faça, como o vizinho o espera de nós. E se um homem de exceção o tenta sozinho, todos se encarniçam em destruir esta insuportável vergonha de todos. A guerra que se move aos que realizam o ideal mostra que os homens o sentem, até demais. Nada o ofende mais do que a visita de um ser que se empenha em ensinar e que já conquistou aquelas virtudes que ele receia jamais poder alcançar. Desta ofensa nasce uma guerra que, se é vingança da impotência, é-o cheia de lágrimas. Assim, com um suspiro nascido do coração, o homem volta as costas ao arriscado impulso do ideal que pretende revolucionar a vida para melhorá-la e, preguiçosa mas seguramente, contentando-se com os velhos costumes, recai na solidez das leis biológicas conservadoras, econômicas e prudentes.

Homem e super-homem não são nesta batalha senão os atores movidos por forças profundas. A verdadeira guerra se trava entre as duas fazes contíguas da evolução; cada semente enfrenta a luta para germinar e cada vida para vir à luz. Sem dúvida, o passado sempre criou muito e representa o caminho mais experimentado e seguro, de resultados peneirados na aplicação prática, cujas vantagens o presente desfruta. Mas se estas normas construídas pelo passado são um guia, são, também, uma mentira e uma prisão. Os princípios foram recobertos por tantas incrustações, desviados por tantas adaptações humanas que já não se reconhecem. A alma humana continuou do mesmo modo a se desenvolver concebendo novas necessidades a ponto de não poder mais cingir-se aos antigos moldes. Se o passado representa segurança e o novo, ao contrário, representa risco, o progresso há de tal modo amadurecido tantas coisas que a pressão destas acabará impondo o desmantelamento daquela cômoda segurança, a tarefa da destruição do velho e a coragem e o risco da construção do novo. E um dia aparecerá a necessidade de se romper a velha casca protetora, porque a vida transborda de seus limites.

Assim, cada geração tem a vantagem de se utilizar das construções dos seus ancestrais e sente o ímpeto de se superar, destruindo e reconstruindo. A substância do fenômeno está sempre na fatal maturação evolutiva e na pressão interior do progresso que deseja romper e realizar-se. E então, finalmente, agarra-se a mão que o gênio inutilmente estendeu e se procuram avidamente, como elementos vitais, os progressos brotados de seu tormentos e que o homem, na sua louca agressividade inconsciente, não conseguiu destruir; e com essas centelhas se ilumina o caminho das ascensões humanas. Só então se cumpre a missão do gênio.

É, assim, compreensível a posição do problema evangélico ante o mundo e a razão do contraste entre terra e céu, colocando a questão não em forma racional e abstrata, mas biológica e prática.

Assim o nosso protagonista se orienta claramente, em plena consciência diante de sua última experiência no mundo e dessa compreensão tirara todo o possível rendimento da nova prova. Ele tinha agora diante do seu olhar as duas realidades: a do céu, que conhecera primeiro, e a da terra, que agora compreendia. A vida real apresentava-se-lhe como um duplo jogo; duas visões opostas que, exprimindo-se em linguagens diferentes, não se compreendiam. De um lado, o jogo curto do materialismo, hedonista e epicurista, que se apoia no passado, escolhe os caminhos da animalidade e os resultados imediatos, como o gozo, o bem-estar, a expansão no plano da matéria. De outro lado, o jogo longo do idealismo altruísta, que se apoia no futuro, escolhe o caminho do espírito e a realização longínqua, sacrificando a isso o presente, não se expandindo na terra, mas sim no céu. Em nosso mundo a vida oscila entre estes dois extremos. Míopes ou presbitas esbarram em dificuldade; cada vantagem é paga e compensada.

O jogo curto leva a vantagens imediatas e tangíveis. O resultado está próximo e é alcançado subitamente. É um método positivo, concreto, humano, o preferido pelas pessoas práticas. Conquista-se apenas o que se vê e já existe realmente sobre a terra. Mas este jogo tem um defeito grave: acaba-se com a morte, quando tudo desmorona deixando apenas as cinzas da ilusão. E mesmo antes disso, quantas traições, quantas lágrimas, que íntimo sentido de vacuidade nos resultados com tanto trabalho conseguidos! Por fim não resta na alma senão uma triste amargura de insatisfação, uma pavorosa sensação de vazio, a certeza da inutilidade dos esforços realizados. O secreto instinto da evolução deixa-se prender pelo desespero final que é a herança de todos os que viveram inutilmente, isto é, sem progresso, sem evoluir.

O jogo longo é de resultados longínquos e de realizações demorada. Conquista bens imperecíveis, mas colocados fora da terra, num mundo que foge aos nossos sentidos. Compreende-se como dever ser construído com sabedoria e sofrimento, ao passo que os que gozam e vivem no ócio desperdiçam a vida e se destroem a si mesmos, o que é uma desvantagem, porque aquela conquista custa graves sacrifícios e lutas na vida presente. O instinto secreto da evolução satisfaz-se com as conquistas realizadas - mas quantos riscos e sacrifícios, que cansaço e que tensão em toda a vida!

Seja qual for o caminho escolhido, não há uma saída gratuita que nos livre do trabalhoso dever de evoluir. É inútil procurar animalizar-se. Há na alma humana uma necessidade instintiva de melhoramento, um irresistível sentido de insaciabilidade que fatalmente estimula e impele. E os caminhos terrestres são cansativos e inseguros. E então valerá a pena sacrificar a consciência e tanto trabalho por um resultado tão incerto? Sim! A moral biológica do mais forte, sempre vencedor, é viril e grandiosa; mas quantas tristezas, quantas traições, quanta miséria atrás da cena; que vís explorações, que instabilidade implica o sistema da força! Isso se reduz a uma luta sem tréguas.

Destas considerações devem ter nascido na Idade Média ideais de pobreza absoluta, de renúncia a tudo, que, do ponto de vista humano, são os ideais do desespero. Quanta paz dá à alma o Evangelho com sua confiança em Deus, ante esta atroz lei biológica que desencadeia todos os apetites, sem lhes garantir a satisfação! A que preço se vence! Que fadiga é a vida! E que desilusões se recolhem! Então a dificuldade move o instinto do progresso que estimula as tentativas de evasão do pestilento pântano terrestre. Então se realiza o esforço para elevar-se a qualquer custo. É assim que nos nosso tempos loucos de sapiência, doidos de dor, desesperados no bem-estar, torturados nos gozos, esta pobre humanidade, insatisfeita de tudo, armada até os dentes para defender a sua insegura posição, agita-se sem repouso em busca de caminhos mais altos, mais civilizados, mais dignos.