A moral é um instrumento de evolução enquanto procura educar o homem para uma forma de vida mais elevada. Para realizar esta ascensão, o ideal, antecipando o futuro, toma forma concreta em normas de conduta com o objetivo, através de longa repetição, de fazer o indivíduo assimilar hábitos e com isso enriquecê-lo de novas qualidades, de modo a transformá-lo num tipo biológico mais evoluído.

Ora, pode acontecer um choque entre a vontade superior do homem que quer fazê-lo evoluir, e a inferior que resiste, porque rebelde a realizar o esforço que aquela vontade exige para sua própria transformação. Temos uma luta entre o alto e o baixo, isto é, entre dois planos de evolução, um mais avançado e outro menos, o primeiro fazendo pressão para impor-se ao segundo, que ao contrário, quer ficar nas suas velhas e seguras posições, sem o esforço de criar o novo e o risco de aventurar-se no desconhecido. Quem tem razão? Cada uma das duas situações está certa em relação ao seu ponto de referência e é errada perante o outro. Se o evoluído, com o ideal, quer fazer avançar a vida perigosamente, o involuído deseja, ao revés, conservar as posições mais seguras, conquistadas no passado. A moral assume a tarefa de disciplinar a transformação evolutiva, de maneira a ser possível realizá-la. Deste modo, a moral está no meio, entre os dois focos, e é campo de batalha onde se dá o choque entre as duas vontades opostas.

O contraste resulta evidente em nosso mundo. Aqui a realidade biológica, em pleno vigor, impõe sua lei, bem diversa do ideal, proclamada pelas religiões. Porventura, não pregam estas que é necessário sermos bons? No entanto, o choque surgiu logo que apareceu o homem, pelo menos de acordo com a Bíblia. Caim mata Abel. Caim é mau, mas sobrevive. Abel é bom, mas morre. A moral religiosa promete justiça, remetendo-a para o misterioso além-túmulo. A moral biológica, imediatamente e de fato, recompensa Caim com a vida e condena Abel com a morte. Desde o início da humanidade, vê-se que fim têm os bons. Ao idealista a outra moral, não restando outra coisa senão compensar Abel com luz celestial e punir Caim com trevas e terrores. Mas permanecem os fatos que, inversamente, dizem: "não ser tão bom ao ponto de deixar-se matar pelos maus". Em suma, a moral inferior defende mais a vida do que a superior, que, com altruísmo e renúncia, pede que nos sacrifiquemos pelo ideal. Como pretender que a vida a aceite sem reagir por legítima defesa? Não é o martírio o fim natural das grandes bondades? Cristo é uma lição.  Assim se explica como o involuído se defende do ideal como se fosse um inimigo; assim se entende por que o transforma em hipocrisia, procurando todas as escapatórias para se evadir. Se isto acontece, deve ter a sua razão de ser. Iniciada com os mandamentos de Moisés, porventura não constitui a moral para o primitivo uma série de constrangimentos? Não lhe limita a liberdade? É natural, pois, que ele se rebele. Estes mandamentos insistem sobretudo no "não fazer". Pressupõem o indivíduo que quer fazer o mal e lhe proíbem; falam a um rebelde que querem constranger à obediência. A sua atitude é a do domador.

Penetrada, assim, a moral no plano humano, ela se encontrou em um regime de luta e se enxertou nesta, fazendo-se instrumento dela. Absorveu-lhe as qualidades e tornou-se um meio de domínio e uma arma de defesa dos interesses da classe sacerdotal e aristocrática. Temos uma moral levada ao nível da vida terrena, guiada pelo instinto de conservação e utilizada em favor da vantagem egoísta de cada um. Com isso o involuído toma a sua desforra, isto é, ao reagir, corrompe o ideal, em vez de ascender, desfrutando-o para os seus próprios fins utilitários. Ele se justifica com o fato de que na Terra fica dominado quem não é forte e hábil para saber-se defender com a revolta ou a mentira, ou quem, porque é bom e honesto, cede em favor do próximo. Consoante a moral da vida, não há senão duas posições: a do forte, que vence e comanda e a do débil, que, vencido, deve obedecer. Impondo-se à força, o primeiro expande-se e se satisfaz à custa do segundo; e este, suportando por bondade, retrai-se e renuncia a favor do primeiro. Então, a moral serve para os fortes em prejuízo dos fracos, ou seja, para impor deveres e renúncias a estes últimos, para vantagem daqueles. Em regime de plena moral, triunfa a lei do mais forte, a da Terra, ficando o ideal aqui invertido e vencido.

Isto é inevitável em um mundo de rivalidades, onde a vantagem de um se paga com o dano do outro. O resultado de tudo isso é que a moral, imersa em nossa realidade biológica, reduz-se a um meio para dominar; que bondade e honestidade se tornam defeitos que a vida pune, enquanto força e astúcia são virtudes que ela recompensa. Eis que, perante a realidade da vida, muitas qualidades proclamadas pela moral são atributos negativos, antivitais, ao passo que revolta e egoísmo são valores positivos, vitais. O homem religioso não luta; a vida o deixa cair entre os vencidos; a própria fêmea, que na escolha sexual expressa leis da natureza, repele-o. A religião pode tornar-se não um oásis de super-homens, mas um refúgio de instintos que nela procuram proteção mascarando sua fraqueza sob um manto de virtudes. Até para pecar é necessário iniciativa, coragem, expor-se a riscos e consequências, mas do que para não fazer coisa alguma. A moral, então, é feita sobretudo para domar os fortes, que sabem lutar para sobreviver e resistir às restrições à sua expansão vital, e a eles deveria dirigir-se, antes que aos fracos, já por sua natureza submissos, necessitados de defesa. Estes são simples, de boa fé, acreditam com facilidade, enquanto a luta pela vida exige astúcia, desconfiança, sobretudo para com aqueles que os aconselham a crer. Para este ingênuo rebanho de crentes seria mais conveniente uma moral de tipo oposto, não restrito, mas vigorosa, não uma escola de sofrimentos, mas aquela que ensinasse a desvendar todas as velhacarias humanas. Além de virtude, honestidade e fé, uma escola que os habituasse a descobrir todos os truques de falsa moral, torcida a seu serviço pelos mais hábeis para enganar os bons, de maneira a salva-los, iluminando-os sobre o que na Terra constituem as autênticas verdades da fé. Esclarecer, afastar as trevas da ignorância contra a falsa religião, mostrando qual é a verdadeira espiritualidade. Mas quem fará essa escola a esses pobres honestos? Eles devem aprender à sua custa, porque o interesse da classe dominante é esconder, ensinando a moral que mais lhe convém. Se o rebanho for iluminado, descobre o jogo e, então, adeus às posições de domínio! Assim se cultiva a boa-fé das massas, para que fiquem obedientes. Esta é a verdadeira moral da Terra, e, muitas vezes, com este objetivo é usada a mais alta moral do céu.

E este segundo tipo de escola que procuramos fazer agora, nesta parte final da Obra, em defesa dos honestos de boa-fé facilmente enganados pela velha moral. Mas a iniciativa não é nossa. Estamos, portanto, de pleno acordo com os tempos, porque é exatamente agora que a nova geração está se levantando contra aquela moral do passado. Antes, nós o iniciamos quando esta estava em pleno poder e, portanto, tinha toda a razão. É  certo que tais explicações não podem agradar a quem tem interesse que o belo jogo fique escondido e continue. Mas os tempos mudaram, e ele não governa mais. Então, é caridade cristã esclarecer os ingênuos, mesmo que os interessados se rebelem contra isso, com gritos de escândalo, porque terminada a boa-fé, perde-se a clientela. Trata-se simplesmente de abrir os olhos dos bons para que não se deixem enganar. Os primeiros volumes da Obra transbordam de boa-fé, que o mundo pode achar ingênua. Mas ele não poderá rir-se desta segunda parte que lhe descreve os truques. No final da sua vida o autor teve de imergir na dura realidade, pelo que agora, nestes últimos volumes, já pode mostrar as coisas vistas tanto em relação ao céu, como em relação à Terra. E pode fazer isso não só respeitando as verdades já enunciadas e demonstradas, mas também denunciando as deformações com que elas são representadas no mundo. Enquanto se exalta a fé, a experiência da vida ensina a não crer, porque tudo está coberto de enganos. Diz-se que a verdade, muitas vezes, não é mais do que uma mentira que ainda não foi descoberta. De fato, no mundo, atrás de cada afirmação procura-se a coisa que poderá estar escondida, e não se fica tranquilo enquanto não se descobre a verdade.

O leitor não encontrará nestes volumes finais o estilo dos primeiros. Entre aqueles e estes decorreram muitos anos de dura experiência. Mas isto foi útil, porque permitiu completar o quadro, fazendo ver também o outro lado da medalha. Passar da posição de rico à de pobre faz compreender muitas coisas que de outro modo não se poderia entender. Quando não se é protegido por meios econômicos e por uma posição social, a vida torna-se outra. Quando se possuem os meios para pagar, tem-se sempre razão, mesmo que se erre; todos se inclinam e louvam, mesmo que se seja um idiota. Ora, isto não é verdade, quando não se têm os meios para pagar; então, se descobre o verdadeiro rosto do homem. Por exemplo, Teilhard de Chardin tinha margem para sonhar, porque era protegido pela sua Ordem. Sem isso a vida o teria liquidado. O ideal, então, é um desporto reservado aos ricos. No caso oposto ele deve fazer-se de ferro para travar no mundo a sua dura batalha. Assim, aos sublimes amores do espírito sucede o terror da realidade, às visões celestes, a crucificação. Isto tudo se compreende quando, depois do sonho inebriante, trespassa a própria pele a queimadura em contato com o que é de fato a vida.

Nestes últimos livros devemos mostrar também este outro lado da verdade que o mundo esconde, porque para os astutos é contraproducente iluminar os bons. Ora, que há de estranho nisso? A lei da vida não é porventura a que manda devorarem-se reciprocamente? Esta é a realidade que constatamos. Primeiro eliminam-se os mais débeis. Depois se faz a guerra entre os fortes e, por último, também estes se matam entre si. Quantos delitos e quanta dor! Esta é a vida em nosso nível de evolução. Mas não ser ingênuo não quer dizer que a bondade deva desaparecer. Ver e compreender não significam que acabe a fé, porque se continua a crer, embora com os olhos abertos, isto é, não engolindo cegamente mistérios, mas controlando-se aquilo que se julga corresponder à verdade. O idealista não deve ser um ingênuo. Todo o trabalho feito nesta Obra foi para se chegar a crer, mas através da razão, com uma fé positiva, aderente à realidade. Tudo é verificado, levando-o em contato com esta. Ao contrário, a comum tendência humana é declarar-se infalível, resolvendo dúvidas e problemas com afirmações próprias de caráter absolutista, impostas à fé dos outros, assegurando-se, assim, a sua verdade e justificando a autoridade que deles emana. Um idealista completo deve ver também o lado oposto à verdade, o lado anti-ideal, feito de trevas e negação.

É assim que esta última parte não contradiz nem renega a primeira, mas a confirma, quando procura estigmatizar a imoralidade que o mundo esconde debaixo da sua moral. Esta é uma renovação de estilo e de conteúdo expositivo, em virtude do modo diferente de vida do autor, nesta sua fase final, no país denominado "Coração do Mundo e Pátria do Evangelho", atendendo ao desejo de outros leitores que vão se beneficiar com isso. Mostra, finalmente, também o lado da sombra do fenômeno e não somente o da luz, completando-o.  Dizia um astrônomo que  no cosmo a luz é exceção, as trevas são a regra. Este nosso trabalho não é agressivo, nem de critica com o objetivo de demolir, mas movido pela boa intenção de acompanhar, com a finalidade de fazer o bem, a mensagem esclarecedora dos nossos tempos.

Observemos, por exemplo, o que é na realidade a virtude da beneficência. Para poder fazê-la é necessário ter os meios isto é, ser rico. Mas, honestamente, apenas à força de trabalho, é difícil tornar-se rico. Então, não se pode fazer beneficência se não se foi primeiramente desonesto para poder enriquecer. O próprio Evangelho diz que se dê aos pobres o supérfluo. Entretanto, para dar aos pobres é necessário antes chegar a possuir. E evidente que não se pode ser generoso se, inicialmente, não se acumulou fortuna. O pobre tem mais em que pensar do que fazer beneficência. Ele está suficientemente oprimido pela sua própria luta, para poder encarregar-se à dos outros e ajudá-los. Assim, a virtude da beneficência permanece um luxo dos ricos, um embelezamento reservado para lhes servir de adorno, é qualidade vedada aos pobres, juntamente com a sua recompensa no paraíso, o que, ao contrário, os ricos esperam como benefício adquirido por direito. Para aqueles que souberam enriquecer, com a vida abastada, que a beneficência não altera, há o paraíso merecido e a gratidão que lhes é devida pelos pobres que não souberam ficar ricos. Por isso, dando pouco em comparação com aquilo que tem para gozar, o rico resgata-se do seu pecado de origem. Embora este seja necessário, deve ser perdoado, porque, sem ele e sua riqueza, não se pode fazer beneficência.

Hoje este elástico jogo de compromissos foi substituído por direitos calculados do trabalhador. O pobre não confia mais no beneplácito de quem possui e já não se adapta a servir de instrumento para outros, para que eles possam ir para o paraíso. O pobre, nos países civilizados, simplesmente conquistou com as suas forças o direito de ser ajudado. A beneficência foi no passado um modo de ir vivendo com pouco incômodo. Amar o próximo é outra coisa, é superar as distâncias para se avizinharem, enquanto a beneficência é o ato de quem está no alto e, lá permanecendo, se digna olhar para baixo; é humilhação para quem está em baixo e aí continua. O pobre não sabe o que fazer com  o rico que empobrece para se irmanar com ele, porque  tem necessidade de bens e não de amor E, quando não existe coisa alguma para se apossar, esses heroísmos não lhe servem para nada.

Observamos em outros casos as contradições da velha moral. Na vida dos santos, são exaltados, ou, pelo menos, não são condenados atos que para um mortal comum são considerados culpa. Por exemplo, São Francisco abandona o pai e a mãe, esta última inocente da perseguição paterna, para aventurar-se pelo mundo a fora. A Igreja exaltou o santo enquanto lhe servia para sustentar o Latrão em decadência, como se compreende da visão do papa Inocêncio III no afresco de Giotto em Assis. Mas à Igreja não interessou de modo algum o caso da mãe, que ficou solitária na velhice, sem o direito de ser assistida pelo filho. Cristo, também, para discutir com os doutores aos doze anos, não se importou de maneira nenhuma com o pai, nem com a mãe que ansiosamente o procuravam. Serão estes, porventura, exemplos a seguir? Outros poderiam ser citados.

Por outro lado, na Terra, ideais, princípios, moral são utilizados para finalidades humanas. Observamos que isso se verifica em todos os campos, tanto em relação ao Cristianismo, como ao Comunismo, tanto para os conservadores, como para os revolucionários. Por exemplo, que objetivos diferentes da santidade se prestaram as Cruzadas! Tudo é utilizado para servir ao que mais convém: guerra, negócios, carreiras, conquistar posições, dominar, desabafar instintos etc. Esta é a realidade basilar, que depois é coberta de santas finalidades. O grande iniciador de cada movimento, com os seus métodos e princípios, em pouco tempo é posto de lado. Isto correu com Cristo, como com Karl Marx. Depois, por necessidade adaptação à realidade, surge o revisionismo, conhecido pela Igreja. Assim, católicos e protestantes se dividiram, para um destes dois grupos construir um Cristo de acordo com as suas próprias necessidades, que eram diferentes. Com Karl Marx e Lenine, russos e chineses fizeram o mesmo.

No âmbito do Cristianismo, para poder falar da ajuda de Deus, primeiro, na realidade, é necessário vencer. Só depois, sobre este fato positivo, como interpretação da vitória, pode-se construir o milagre. Uma guerra vitoriosa pode constituir a prova de que Deus se colocou do lado do vencedor. Deste modo, uma guerra feita em nome de Deus estava destinada a vencer. Naturalmente isso é verdadeiro, quando se verifica de fato e quando existe quem nisto acredite, deixando-se sugestionar por quem lança tal ideia para sua vantagem, ou a aceita por interesse próprio. Se se vence, então, indubitavelmente, o resultado foi desejado por Deus. Se se perde, foi porque não foi desejado por Ele, e com isso se justifica a derrota. Com tal forma mental, na Idade Média, papas e antipapas se excomungavam reciprocamente, inclusive os imperadores. Assim aconteceu com Henrique IV, que humilhado em Canossa, foi obrigado penitenciar-se. Também a Alemanha, na Segunda Guerra Mundial, tinha apregoado o "slogan": "Deus está conosco". Se ela tivesse vencido, isto seria tido como verdadeiro.

Estes poucos exemplos, escolhidos ao acaso, podem parecer uma crítica malévola. Desejamos, pelo contrário, assegurar-nos de que tudo fique bem sólido para que resista a esses ataques. Estamos no fim da Obra e procuramos sacudi-la, para que aquilo que não seja forte e seguro caia e fique o que resiste e que, portanto, é feito para durar. Este é um controle, uma verificação, um exame de consciência, uma auto-análise, para demonstrar que a Obra não é um ingênuo idílio espiritual fora da vida. Até agora, entretanto, vistas num lampejo de fé, as teorias saíram consolidadas deste processo demolidor. As eternas verdades tomaram nomes científicos e, sob esta nova veste, permaneceram as mesmas. Destruir a hipocrisia não é contra, mas a favor da religião. Mesmo que isto possa soar a escândalo, surge uma religião mais pura e resistente, para maior glória de Deus. Para poder compreender bem um fato é necessário observá-lo sob todos os ângulos, não somente daquele positivo do bem, mas também do lado negativo do mal, não só da parte elevada espiritual,  como também daquela material e utilitária. A grande preocupação do passado era matarem-se uns aos outros e fazer filhos. É necessário agora que a do futuro consista em pensar e compreender.

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Antes de observarmos mais de perto o problema da crise da velha moral, vejamos de que revolução mental e social esta transformação deriva, de que fenômenos substanciais emerge até se concretizar em nova ética. Qual é hoje a posição do homem da rua, do tipo mais comum, que forma a maioria? Vivemos num período que, no seu conjunto, do ponto de vista da espiritualidade, se pode chamar colapso. Os ideais eram antigamente uma forma de hipocrisia útil para cobrir a realidade com um belo manto. Parecia que salvar as aparências era o suficiente para se ficar satisfeito. Salvava-se a coisa mais importante, que era poder, honrosamente, realizar as suas próprias conveniências. Hoje, em um mundo de mentalidade mais positiva, não se perde mais tempo com esses jogos complicados e que não chegam a nenhum resultado, porque escondem, mas não eliminam o mal, dando-se primazia ao caminho mais rápido e produtivo de enfrentar os problemas e resolvê-los. Então, dado o uso que se fazia dos ideais, prefere-se hoje colocá-los de lado, para olhar a realidade como ela é, abertamente, com plena sinceridade, para compreendê-la e procurar remédio para os males com uma conduta diversa, mais iluminada, evitando erros e os respectivos danos. Libertamo-nos das superestruturas que não servem à vida e que lhe impedem o caminho. Paralelamente à decadência da fé religiosa, corresponde a da fé política. Não é esta ou aquela fé que decai, mas a atitude para conceber qualquer uma. Perante tal onda de realizações práticas, tudo é dominado pela indiferença e pelo agnosticismo.

Hoje, ao sonho para alcançar ideais de metas longínquas se substitui a chã realidade de uma civilização de consumo. Temos, assim, de um lado, a pesquisa de um resultado real e mediato, como levantar o nível econômico. Do outro, um cansaço crônico de todo o idealismo, agora gasto por um longo e mau uso. O homem fez-se mais prático, quer melhorar de fato e subitamente as suas condições de vida. Com auxílio da ciência e da técnica, ele possui os meios para chegar lá. E para esta finalidade concreta, e não por um ideal de honestidade, é por um princípio utilitário de maior rendimento que, hoje, não se gosta mais de perder tempo escondendo-se atrás da hipocrisia.  Trata-se apenas de libertar-se de um estorvo.

Este processo de renovação penetra em tudo, inclusive nas religiões. E hoje um fenômeno universal que penetra todas as formas de vida, individual e social. Aumentou o sentido de crítica, de autocontrole, de responsabilidade. A ciência, com as suas conquistas, criou uma forma mental realizadora sobre a qual as vagas promessas incontroláveis e dirigidas ao futuro não são mais tomadas em consideração.

O nosso tempo fez-se racional e quer coisas positivas. Por isso, os ideais não são tomados em consideração. A técnica oferece metas diferentes utilitárias, de atuação imediata, sem sonhos e demoras. Dessa forma estão se realizando o que é mais convincente. O novo ideal é o do bem-estar material, da elevação do nível de vida, tornado mais fácil e seguro. Progresso bem diferente do espiritual, programa pequeno, burguês, mas concreto, terreno, acessível. Restringem-se, assim, os grandes horizontes do espírito, e a estes se preferem outros mais limitados, porém com mais vantagens reais. Tudo isto é conveniente e se aceita. As pessoas se cansam menos, faz-se uma vida mais cômoda e segura, mesmo que para isso o homem sacrifique a sua personalidade e se reduza a elemento anônimo de uma multidão imensa, economicamente enquadrada e valorizada sobretudo como consumidora de produtos. Mas para o indivíduo, ainda que esteja espiritualmente destruído, não falta nada, e o tremendo problema da vida para ele está resolvido, embora ao nível mais baixo de animal satisfeito e protegido. Até ele pode, com certeza, poupar-se da fadiga de formar a sua própria personalidade, porque a sociedade já lhe fornece confeccionada e pronta com as instruções; para uso, pré-fabricada conforme determinados modelos, de maneira que nada há mais a fazer do que endossá-la e servir-se dela. Isto é comodismo, simplifica e facilita, ao mesmo tempo que enquadra todos numa ordem, resolvendo, assim, o problema da convivência. Destarte, entra-se no rebanho, e alma e corpo tornam-se massa. Se isso oferece vantagens, não há razão para que a vida, que é utilitária, não se lhe adapte.

Mas tudo possivelmente responde aos mesmos fins e não constitui senão uma fase de transição, um primeiro passo necessário para poder depois, socialmente, evoluir até ao estado orgânico. Provavelmente a vida executa de propósito — e faz parte dos seus planos — esta absorção do indivíduo na coletividade, porque tende a realizar para a humanidade um tipo de existência social unitária, à qual pode permitir conquistas que, no estado atual de separatismo e luta, não são possíveis. Não podemos admitir, dada a lógica da vida, que o prejuízo de tal anulação da personalidade por penetração num tipo de vida em série, mecânica, possa ficar definitivo e improdutivo, exaurindo-se em si próprio. Por esta mesma lógica devemos, ao contrário, acreditar que se trata apenas de um momento transitório, que depois deverá abrir-se em direção a outro modelo de existência no qual o homem voltará a afirmar a sua individualidade. Isto sucederá atrás de uma revalorização do sujeito, cujo rendimento pessoal será maior do que aquele que se pode alcançar com o sistema separatista vigente, isto porque ele terá ao seu lado, em harmoniosa colaboração, o apoio de uma coletividade orgânica, enquanto hoje ele se encontra em luta contra todos. Em um mundo de rivalidades falta a contribuição das forças amigas: a coordenação, a confiança, a segurança, qualidades necessárias para poder dar o rendimento máximo ao trabalho humano.

Hoje o ideal do homem comum, quanto a programas de salvação eterna, se reduziu ao mínimo. Está limitado à distribuição de bens de consumo: ter casa, comida, ordenado, pensão, satisfazer os seus interesses privados. Ao homem comum não interessa, de fato, as grandes coisas que estão fora do seu alcance. Seguir o caminho de menor resistência, com o método da imitação, adquirir segurança evitando fadigosas iniciativas, resolver o problema da vida com o menor risco e maior comodidade possível, procurar a vantagem própria, indiferente a todo o resto: este é o programa normal. O homem médio já se preocupa bastante com seus afazeres, observando com total indiferença como os grandes, que estão por cima, resolvem os seus; goza com as suas dificuldades, diverte-se com o espetáculo que lhe oferecem religião e política. O espírito, tomado a sério, exige e incomoda. Então, para não mentir, prefere-se colocá-lo simplesmente de lado. Resolve-se a questão espiritual suprimindo-a, por se adotar uma atitude insensível a seu respeito.

A tendência geral, mesmo para os pregadores de novos evangelhos econômicos, é desembocar no aburguesamento feito de bem-estar, ainda que se no início a sua posição revolucionária o condenasse. Mas as revoluções se estancam, o seu impulso acaba mergulhando-se no comodismo, passam a ser os seus ideais ganhar muito dinheiro e com isso uma posição social; os esfomeados naturalmente se detêm quando alcançam o bem-estar que os sacia. Esta é a lei do fenômeno, igual para todos. Depois de feito um esforço, a vida quer descansar para lhe gozar o fruto. O belo ideal é risco e fadiga, longínquo de atingir e, no fim, não resta senão o cansaço. Envelhece-se e não se realizou quase nada. Então, a evolução, apesar de ansiosa por subir, para, a fim de que quem a seguiu possa tomar fôlego e avaliar as suas forças. A vida, econômica e utilitária, calcula tudo isso. As revoluções se acalmam até o ponto em que acumulam energias necessárias para realizar os novos movimentos que a esperam. A vida coloca de lado as sublimes aventuras evolutivas, dobra-se sobre a pequena realidade terrena e, em vez de enfrentar para superá-la, a ela se adapta, contentando-se em fazer dela, de momento, seu único fim. O grande ideal fica no estado de sonho e nostalgia da alma, porque é difícil realizar subitamente aquilo que está no alto, aquilo que não deixa nunca de exigir reais sacrifícios e fadigas, aquilo que, em vez de pagar imediatamente, só promete que o fará, mas não se sabe quando, como e onde. Não se vive só de esperanças. Então, vai-se embora, apagando-se a grande luz do espírito, e nos tornamos crianças, a quem restam apenas os seus brinquedos terrenos.

No fundo, esta adaptação à realidade significa a grande renúncia do indivíduo de se tornar super-homem, resignando-se, assim, a permanecer homem-animal. No entanto, tal adaptação tem as suas virtudes: ele é tranquilo, conveniente, racionalmente utilitário, sem o desespero dos renunciadores, nem menos triste, dir-se-á, porque sem consciência da perda que tudo isso representa. Acaba-se vivendo em paz sob um céu sem Deus, tendo uma vida cômoda, bem calculada, mas sem superações, sem esperanças, desinteressando-se de tudo o que não seja vantagem imediata. Assim, ocupando-se em produzir em vez de conhecer. Com o sacrifício do espírito se paga o bem-estar material. Para evitar tal suicídio, a salvação e sabedoria, juntamente com o bem-estar, consistiriam em não se entregar à preguiça, efetuando outro trabalho, neste caso a ascese evolutiva, depois de tal preparação suscetível de uma retomada. Para explicar como isso possa acontecer, apresentemos um exemplo tomado do mesmo progresso tecnológico. Este criou os calculadores eletrônicos, que, poupando muito trabalho mental, podem parecer um convite ao ócio. Existe, no entanto, um fato contrário. Sucede que, permitindo resolver muitos problemas anteriormente incompreensíveis, demasiado difíceis, essas invenções enfrentam hoje outros mais complicados ainda, tornados, assim, acessíveis, de modo que o resultado não é o ócio, mas trabalho novo mais complexo, com ampliação de horizontes.

A verdade é que a vida calcula e economiza as suas forças permitindo repousos, porém os utiliza como fases transitórias, intercaladas no seu contínuo desenvolvimento. Ela existe como tendência constante em direção a um fim a alcançar e vale enquanto é adotada como meio para realizar os seus objetivos. Se lhe retirarmos isto, ela se esvaziará de todo o conteúdo, corrompendo-se e extinguindo-se. O necessário repouso para retomar depois o caminho é uma coisa; a inércia, que não quer mais avançar, é outra. Por isso, é inevitável que amanhã a evolução retome no seu turbilhão a humanidade, no plano espiritual, em maior escala e maior conhecimento que no passado, quando ela tiver resolvido o fatigante problema animal das necessidades materiais. A vida é um organismo no qual aquilo que não funciona para o fim prefixado não tem direito d existir. Portanto, gasta-se e morre, já que ela o lança para fora da sua corrente. O inútil é por fim eliminado.

Estes fatos justificam a presença da dura lei da luta pela vida, enquanto ela impõe uma incessante atividade para a conquista evolutiva. Essa luta obriga a uma constante experimentação de tipo proporcionado ao nível biológico no qual vive o indivíduo. Se ela ao grau animal-humano é destruição e construção no plano físico, todavia com isso representa uma escola que leva à aquisição de novas qualidades que desenvolvem o ser mentalmente.

Ora, o fato de se ter alcançado, em alguns países, um alto padrão econômico pode implicar o perigo de paralisar a função  vital daquela lei de luta pela vida, com tristes consequências. O fenômeno não é novo e verificou-se, historicamente, nas aristocracias adaptadas ao bem-estar. E esta é a tendência atual. Higiene e Medicina se encarregaram de proteger a saúde. As guerras não pedem mais ao indivíduo coragem ou qualquer ato de valor, porque a defesa não será mais individual, porém nacional, confiada a uma tecnocracia de especialistas. A organização social poderá garantir a segurança econômica. Muito trabalho será confiado às máquinas, e a automatização economizará toda a fadiga. Não faltarão alimento, repouso, meios de transporte, comodidades. Tudo isso pode representar para os povos não preparados para disso fazer bom uso uma mudança imprevista, perigosa na medida em que pode conduzir a adulterados sucedâneos, em vez de levar a mais altos tipos de trabalho. A História nos mostra qual o fim das aristocracias ociosas e adormecidas nos prazeres. A vida as arrasta na dura, mas vital corrente das experiências a que conduz a luta pela sobrevivência.

A existência é feita de tensão constante dirigida para o futuro. Quando o repouso cumpriu a sua função de retemperar as forças, se se prolongar muito, envenenará. Vemos isto também no plano físico, em nossa vida quotidiana. Quem estacionar demais ao longo da estrada da evolução é corroído pelo grande vendaval do tempo, que continua a correr sem parar. Terminado um esforço criador, é necessário encontrar outro, mais avançado ainda no campo da criação. Tudo isso está expresso nos instintos da própria insaciabilidade dos nossos desejos. A vida é feita para avançar; é uma estrada na qual todos estamos caminhando; é uma pista, e nós somos os veículos. Os que não marcham devem ser colocados de lado, fora do caminho para não se tornarem um obstáculo, a fim de que não sejam atropelados.

Com os povos e as classes sociais acontecem o mesmo. Os esfomeados assaltam os saciados, os pobres atacam os ricos para os eliminar, se estes se deixaram enfraquecer. Assim são todos arrastados no turbilhão da vida, que quer experimentar para avançar. E, se os povos pobres encontram o bem-estar, a vida subitamente os investe em capital biológico, isto é, como acréscimo de população. Mas é lei econômica que o aumento da quantidade de um produto lhe diminui o valor. O homem vale cada vez menos até ao ponto em que, com a multidão, se torna um embaraço — isto leva às guerras — E, quanto mais aumentar ó bem-estar, mais crescerá a população e com isso as lutas armadas. No último conflito mundial, com todos os estragos havidos, a população do mundo no seu total, aumentou. Pode ser que a vida queira restabelecer o equilíbrio com a arma mais decisiva: a guerra atômica. O progresso atual a impede de usar os seus habituais expedientes, como a fome, as epidemias etc. Como se vê, encontramo-nos perante um encadeamento de leis biológicas a que ninguém pode fugir e que estabelecem o tipo e os limites dos nossos movimentos. Neste pano de fundo se verifica o fenômeno tomado aqui para exame: a crise da velha moral.

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Observemos agora essa crise no seu aspecto mais vivo, no seio da religião mais difundida no Ocidente, o Catolicismo. Ela é confirmada por um fato novo e significativo: a atualização por parte da Igreja, tão tradicional e conservadora. Os conceitos acima referidos mostram-nos as remotas razões biológicas do fenômeno no atual momento histórico. Vejamos as recentes consequências no terreno da moral religiosa.

Este desejo de modernização por parte do grupo eclesiástico dirigente é devido a um instinto de sobrevivência que a isso o constrangeu, porque, sem  esta necessidade, ele teria ficado com muito gosto nas velhas posições, agarrado aos velhos métodos. Assim, esta atualização é um índice seguro, revelador das profundas transformações que sucedem em nossos tempos.  Certamente se trata de novos fatos decisivos para que eles possam ter tido a força de mover o imóvel, de vencer resistências radicadas por milênios, já prescritas por longuíssimo uso aprovado pelas vantagens obtidas.

Uma primeira mudança é automática e vem do exterior, não por decisão de autoridade que se atualiza, mas por imposição de impulsos cuja influência ela não pode deixar de sofrer. O fato expressa os novos tempos e diz respeito ao problema das vocações religiosas, ponto nevrálgico para a organização eclesiástica. Veremos depois o da confissão. Tanto a elevação do nível de vida, quanto abrirem-se novos caminhos para resolver o problema econômico influem sobre as vocações. É certo que, na prática, vocação e situação são conexas. Muitas vocações nascem tendo em vista condições econômicas. Acontece que, quando se consegue encontrar mais facilmente essa situação noutro lugar, não há mais razão para que deva nascer a vocação que lhe é conexa. O sacerdócio assegurará a vida futura, mas isso não evita que o indivíduo não deva primeiro cuidar da vida presente.  Assim, o problema básico de mais urgente solução é a conquista de uma posição social.  Esta antigamente era oferecida pela igreja com o seu poder temporal e burocracia estatal. O sacerdócio era emprego e carreira seguros. Hoje temos, entretanto, uma sociedade secularizada e técnica. E, portanto, por esta outra via, e não pela eclesiástica, que se é levado a procurar a referida posição.

Os fatos confirmam o nosso ponto de vista. Resulta que setenta por cento do clero provêm da classe operária e de camponeses. Por causa das novas condições de vida já mencionadas, as vocações na Itália diminuíram numa proporção que vai de 752.000, há cem anos, para 50.000 nos dias de hoje, enquanto a população aumentou de 12 para 53 milhões. Se isto aconteceu depois de ter perdido o poder temporal, o que sucederia se a Igreja perdesse o poder econômico? Quantas vocações restariam? O homem tornou-se mais prático e prefere as vantagens terrenas às do além. É natural que se imaginem e se escolham carreiras mais rendosas e que custem menos renúncias. Pensa-se que violar a castidade é considerado um sacrilégio. Pertencer a algumas ordens religiosas significa não poder possuir, comprar, vender, creditar. O sacrifício é real, o ganho é duvidoso. Assim, o fator utilitário não pode deixar de influir nas vocações. Em nosso tempo crítico e positivo, perante resultados tangíveis, o problema da alma salvar-se e santificar-se, tornou-se muito menos importante.

Existe, pois, o fato de que o público hoje se tornou menos ingênuo. Por isso, percebe se o sacerdote com a sua conduta entra em contradição com os princípios que professa, pretende que este os aplique e que ao menos prove com fatos que neles acredita verdadeiramente, o que é coisa diversa de ser um bom empregado na administração eclesiástica. O fiel faz-se mais critico e exige dos pastores que pelo menos pratiquem o que pregam. E isto porque o que pregam lhes serve. Para o fiel significa que eles se colocam ao seu serviço para lhe fazer gratuitamente o trabalho espiritual. Ora, quem, para chegar a uma situação eclesiástica, deve ter desenvolvido o esforço de superar muitas dificuldades, tendo depois de ser sobrecarregado de renúncias e de disciplina — e tudo isso nem sempre é bem retribuído — não pode arder de santo zelo para salvar almas, muitas vezes indolentes e que gostariam de ser servidas em nome de santos princípios. É humano, portanto, que o sacerdote se limite ao exercício das suas funções, como faz qualquer bom operário na sua profissão, tendo feito bem quando cumpriu o próprio dever. Surge, assim, uma ruptura entre rebanho e pastor, cada um dos dois tentando resolver os seus próprios problemas.

Hoje se procuram outras técnicas de apostolado, nova estratégia de proselitismo religioso, contanto que não se perca a clientela necessária para viver, feita de almas para salvar. Assim, vão procurá-las nas fábricas, nas profissões, nas praças etc. É um ótimo serviço de massa para salvar a instituição para a qual o indivíduo não pesa. Entretanto, se este quiser salvar-se, terá de fazê-lo por si próprio.

Até há pouco tempo, as vocações não eram submetidas ao controle da moderna investigação psicológica. O próprio sujeito de boa-fé podia enganar-se sobre a verdadeira natureza dos seus sentimentos ocultos no subconsciente. Este, através da memória de experiências passadas, conhece bem a luta desesperada pela sobrevivência; esconde, portanto, a sua verdadeira razão de agir para que, a qualquer custo, a vida seja garantida. Hoje se constatou, através da Psicanálise, que fracassa grande parte das vocações. Estas no passado tinham preeminência e cumpriam o prejudicial trabalho de corrupção interna da religião. Eram elementos que depois se dedicavam a um trabalho bem diferente dirigido a outra finalidade — e, por seu mérito, hoje tão avançada — do castelo das acomodações, da hipocrisia, de uma doutrina escondida, aninhada dentro da verdadeira, para invertê-la segundo as próprias conveniências.

Nos dias atuais, uma nova penetração psicológica entrevê muitas coisas que a ignorância do passado deixava encobertas. Os rígidos conservadores se puseram a caminhar depressa para se atualizar, dado que hoje o mundo corre veloz. Este vai adiante, e a Igreja, inspirada por Deus, chega depois. As mudanças são estabelecidas e impostas pelo mundo. Eis que muitas afirmações absolutistas, lançadas, antigamente, em momento de euforia, hoje insustentáveis, são cobertas com o silêncio, esperando que. a poeira do tempo as oculte sob o véu do esquecimento. Atualmente, se deve usar a prudência ao assumir uma obrigação, porque se observa que tudo pode mudar de um instante para outro, e depois será difícil manter o compromisso. Em matéria de verdade, sopra um vento de relatividade. Exige-se, portanto, menos por princípios de autoridade e se concede mais como respeito às consciências. Não se sabe se as verdades de hoje serão válidas amanhã e se se imporão novas atualizações.

Presentemente, se todos quiserem encontrar um lugar em nosso mundo, devem ser úteis e cumprir uma função na coletividade. Se a Igreja não encontrar ou reencontrar motivos que a tornem socialmente útil, ela poderá ser colocada, silenciosa e cortesmente, de lado, como se faz com os velhos para os deixar morrer. A Igreja pôs-se a investigar estas causas, através do apostolado, na classe operária, mostrando-se como pode ser simples, sincera, pobre, mais espiritual e menos formal. Isto com o beneplácito divino. Por outro lado, a Igreja tem de prestar contas às massas, porque estas, com a força do número, comandam tudo. É necessário, portanto, prover as suas exigências, porque provoca descrédito cometer erros, quando será necessário um expediente para remediá-los, mesmo que tenha sido guiado por Deus. Toda obrigação equivocada pode levar à necessidade de que seja refeita desde o principio, com uma fatigante atualização, como sucede presentemente. É difícil não cair em contradições, ficando-se imóvel, onde tudo se transforma, porque na realidade, a tática humana explora o desconhecido. Somente não se pode errar quando se trabalha numa atmosfera de infalibilidade, e cada decisão fica estabelecida para séculos. A fé dos primeiros tempos hoje desapareceu, passando a haver nos pastores e no rebanho uma linguagem que não se entende mais. O mundo conhece muito pouco Cristo, sepultado debaixo de dois milênios de Igreja e Catolicismo. Desenterrá-Lo é difícil. As superestruturas se substituíram ao original, e somente Cristo pode resolver os problemas em que hoje a Igreja se debate.

A verdadeira dificuldade da Igreja não é só atualizar-se, mas reencontrar Cristo, depois de dois mil anos de História. O mundo se adaptou ao Catolicismo, afeiçoando-se ao próprio comodismo, que, por intermédio de longa elaboração, conseguiu conciliar-se com a salvação, tendo o subconsciente coletivo absorvido e fixado tudo isso, de tal modo que hoje resiste a tão grandes revoluções. Precisamente porque os valores espirituais estão em crise, se faz necessário salvá-los. Sem eles morremos. Não se trata de atualizações. A doença é mortal e exige o cirurgião. Aproveitando o silêncio de Cristo, o homem fez aquilo que lhe veio à cabeça. Realmente, para atribuir-se poder e tornar eternas as suas posições terrenas, ele assumiu, em termos de absolutismo, sérias obrigações no passado. E agora como renovar-se, para atender às exigências da evolução? Eis que mistura o divino com o humano, aquele colocado ao serviço deste, quando as posições terrenas se tornam insustentáveis, compromete também os princípios absolutos usados para defendê-lo. Se ali estivesse Cristo, não seriam necessárias atualizações, porque a Igreja, em vez de por último, teria chegado em primeiro lugar, mesmo nestes tempos de busca da renovação. Para o indivíduo que quiser tomar a religião a sério, no caso de haver hesitação entre Cristo e a Igreja, a preferência deve ser por aquele, a fim de salvar-se com Ele, embora respeitando esta última.

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Outro ponto nevrálgico do Catolicismo com tendência à atualização é a confissão. Procura-se adaptá-la aos nossos tempos, de maneira que possa incluir a nova forma mental que se está constituindo, seja como responsabilidade moral, seja como conceito de culpa. Se existe uma pátria de confissão na sua forma atual, isto ocorre porque ela satisfaz uma necessidade humana, que é procurar apoio, receber conselho, tranquilizar a consciência, encontrar proteção e segurança, particularmente perante o mistério do além. Nem todos têm a capacidade de autodirigir-se, assumindo a responsabilidade das próprias ações. Existe, então, o desejo de se recorrer a alguém, em quem se possa descarregar suas aflições, realizando consigo este labor. A Psicanálise, hoje, está em voga, porque busca a mesma finalidade e realiza o mesmo trabalho. Existe afinidade entre Psicanálise e confissão, tanto que esta foi chamada a "Psicanálise dos pobres". Hoje, para atualizar-se, tende-se a uma confissão menos formal e mais inteligente, com menos estereotipada aplicação de fórmulas e mais iluminada penetração psicológica, com menos preceitos e mais psicanálise.                        

E, contudo, necessário reconhecer que o sistema preceptivo foi no passado, e pode ser ainda, o mais adaptado para o povo ignorante, desprovido de uma consciência com a qual possa orientar-se e de sentido de responsabilidade. A tal tipo de homem não se pode conceder liberdade e autonomia, sendo mais conveniente enquadrá-lo na mecânica de regras formais. Tais indivíduos são irresponsáveis, porque, inconscientes do dano que as suas ações podem produzir nos outros, são capazes de compreender somente em função do seu próprio prazer e sofrimento. Eles são orientados apenas pelo medo do seu sofrimento e pela esperança dos seus gozos. Mas, desta maneira, também se domesticam os animais, mas não se resolve casos de consciência, nem se elimina o pecado. Permanece intacto o instinto em busca de desabafo, conquanto torcido pelas adaptações, escondido atrás da hipocrisia.  O pecado fica, mas tolerado como um mal inevitável, que serve enquanto útil para provar a misericórdia de Deus, tão bom que perdoa; ou para justificar a existência do clero; ou para satisfazer o próprio pecado. Mas, se o problema foi assim solucionado no passado, não é mais deste modo resolvido no presente, nem o será no futuro, porque a moral mecânica se torna cada vez menos aceitável quanto mais o homem evolui. Diminui sempre mais o número dos tipos a que o atual sistema das confissões se adapta, restringindo-se às classes menos evoluídas.

Como hoje se posiciona a confissão relacionada ao passado, já que os novos tempos a puseram em crise? Atualmente, existe o fato de que nasceu outra psicologia, mais positiva, feita de duas qualidades básicas: mais sinceridade e maior sentido de responsabilidade. Somos mais retilíneos. Mesmo que isso possa parecer abuso, há mais pureza, mais honestidade, o que não constitui afastamento de Deus. Ora, a confissão para a moral é importante, porque implica o problema da consciência, culpa, escolha entre o bem e o mal e respectiva responsabilidade, conduta e suas consequências individuais e sociais. Hoje se está realmente formando uma nova ética, que não tem nada a ver com as religiões, pronta para resolver o problema da convivência moral, reguladora das relações no seio da coletividade.

Até agora esses problemas do Catolicismo foram resolvidos formalmente, método usado no século XVI. Saído do Concílio de Trento, aquele século absolutista acreditava sistematizar tudo, concretizando formalmente a moral, codificando-a em normas exatas, reduzindo-a a elencos de pecados.  Isto era simples, proporcionado ao escasso desenvolvimento mental dos tempos, acessível à primitiva necessidade mais de um domador de paixões que de um psicólogo da espiritualidade. Tinha-se, assim, uma moral feita de regras exteriores, às quais bastava obedecer para libertar-se de qualquer esforço de análise e de qualquer responsabilidade. Uma ética de superfície incomoda menos do que outra penetrante em profundidade, que vincula mais, porque chega à substância e permite menos evasões. Mas, quando falta aquele sentido sutil, necessário para dirigir com inteligência a própria conduta, sabendo-se ajuizar o valor dos próprios atos, não se pode deixar de cair na superficialidade do preceptismo. Foi assim que este nasceu e funcionou como método mais acomodado à forma mental do fiel subdesenvolvido, a quem se pedia apenas uma obediência mecânica. À consciência incapaz se substituiu o formalismo, isto é, uma moral cristalizada, reduzida a uma lista de preceitos e de culpas. A futura ética será completamente diversa. Sem preceptismo e juízos que assumem o peso da responsabilidade, cada indivíduo será ele próprio o seu juiz e tomará sobre si as suas responsabilidades5 sem pensar em fugir delas, porque ele já não é mais tão inconsciente que acredite se possa defraudar a lei de Deus fugindo às suas sanções, isto é, que, uma vez feito o mal, se possa evitar pagá-lo. Sobre este fato indiscutível os julgamentos dos homens, mesmo em nome de Deus, não têm nenhum poder; sobre tais fenômenos eles não podem trazer nenhuma modificação.

É verdade que o velho método oferecia vantagens. Ele facilitava o trabalho de julgar. Até o penitente lhe encontrava a vantagem. Ele podia resolver os problemas de consciência facilmente, com regras sobre o fazer e o não fazer. Tudo era simplificado com a lista dos pecados, tendo ao lado de cada um as instruções para o uso e o não uso. Assim, o formalismo moral deixou raízes, porque era conveniente para ambas as partes, colocadas tacitamente de acordo, satisfeitas pela conveniência comum. Fixou-se o método do preceptismo, que concordava com o comodismo do clero e com o dos fiéis. Tudo isso triunfou, porque oferecia ainda outra vantagem ao pecador: o formalismo. Este permanece na superfície, sem penetrar em profundidade, deixando aberta a cômoda via das escapatórias e da hipocrisia, já que permite perfeita conciliação entre a observância das formas e a inobservância da substância. Pode-se, assim, enganar a lei e ao mesmo tempo mostrar-se virtuoso. Desta tão enganosa solução os fiéis não deixaram de aproveitar. De fato, para eles a grande preocupação, no terreno da moral, era encontrar a forma de fazer prosseguir a própria vantagem mostrando, ao mesmo tempo, perfeito cumprimento das leis. A sapiência consistia em ter encontrado a maneira de salvar as aparências, para fazer boa figura, apresentando-se como cumpridores da lei, enquanto em substância se fazia o contrário, satisfazendo os próprios instintos. Antigamente, não se atacavam os problemas de frente, para resolvê-los. Procurava-se, ao contrário, a evasão. As próprias leis não eram feitas para solucioná-los, mas em favor dos seus autores e para que os outros as observassem. Em suma, o que em realidade se fazia atrás das aparências era, em ambos os lados, a mesma luta pela sobrevivência. Legisladores e súditos eram simplesmente rivais. E, com o mesmo método, buscavam ambos a máxima vantagem em favor próprio. A imposição autoritária, a desobediência, a hipocrisia não eram senão diversos expedientes para alcançar o mesmo fim no mesmo plano. Deste modo, aplicavam a mesma lei da luta pela vida. Segundo esta, não havia razão para que tais métodos não fossem usados. Biologicamente, tudo se explica e se justifica.

Hoje, no entanto, verifica-se um fato novo: exige-se por parte de quem deve aceitar a moral: sinceridade e honestidade. Isto não porque os indivíduos tenham ficado melhores, mas porque se tornaram menos ingênuos, menos dispostos a se deixarem cair no engano e a aceitarem o jogo dos oportunistas. Atualmente não se admite mais o sacrifício sem lhe controlar a utilidade, mesmo que ele seja apresentado como coisa sublime. Tais métodos são herança do passado e nos pertencem. Se a Igreja quiser atualizar-se, deve libertar-se desses inconvenientes, embora isso venha sendo sustentado há quatro séculos, o que não se aniquila tão facilmente. Ora, quando se enfrentar a moral com a consciência mais iluminada dos novos tempos, em lugar de se usar a velha preceptística, o pecado e a confissão tornar-se-ão outra coisa. O pecado tradicionalmente entendido e medido com a regra da antiga doutrina está em crise, ainda que não ocorra o mesmo com o problema da consciência. Outrora, a virtude consistia em resistir às tentações, em, simplesmente, não fazer. Hoje o problema moral se coloca de modo positivo com o respeito ao bem, em vez de se pôr em defensiva contra o mal, isto é, faz-se consistir no cumprimento do dever em relação aos outros elementos da coletividade. Surgem, assim, pecados diversos dos tradicionais, a confissão toma para exame diferentes valores e entra em outros terrenos, sobretudo no social A culpa não consiste tanto em ter ofendido a Deus, que não sofre com isso, mas em ter prejudicado o semelhante. É inegável a relatividade do conceito de pecado, variável conforme tempo e espaço. Isto prova que ele existe não em função de Deus, caso em que deveria permanecer sempre e, em qualquer lugar, invariável, mas em função do homem, que o constrói em relação a si próprio, diverso, consoante a época e os lugares, de acordo com as suas condições da vida.

Até agora o maior conteúdo da confissão era o sexo. Ao concentrar-se a atenção do clero sobre este particular aspecto da moral e ao formar uma mentalidade sexófoba, não é estranho que a castidade da classe sacerdotal tenha tanta força. Esta é necessária, em virtude da luta pela sobrevivência do grupo eclesiástico, verdadeiro exército que não pode ir à guerra com crianças e senhoras, nem com elas pode desperdiçar as suas riquezas. Uma necessidade humana de se refazer, à custa de alguém, do sacrifício que tem de suportar deve inconscientemente ter levado o clero, como por um sentido de justiça, a considerar o sexo também para os outros como pecado. Apesar de não o ser, foi considerado como tal por causa de problemas circunstanciais. Podemos, assim, explicar-nos as razões daquela forma mental e por que, além do sexo, não se tenha dado tanta importância a muitas ações graves praticadas em prejuízo do próximo, deixando-as passar em silêncio, como se fossem lícitas. É natural, portanto, que a moral se tenha feito mais exigente, porquanto, embora tenha aumentado o sentido de responsabilidade, a paciência dos oprimidos diminuiu. Fala-se da abertura de direitos e deveres, enquanto os prejudicados em todos os campos reclamam e impõem justiça mais do que antigamente. Hoje é muito menos tolerado o mal contra o próximo, porque se está muito menos disposto a suportá-lo.

Nasce, assim, o pecado de caráter social, o que causa dano aos outros, enquanto passa para segundo plano o do sexo, que não é pecado quando não prejudica ninguém. Hoje o ponto de referência em função do qual se mede a culpabilidade não é um teórico mal teológico, mas o que os outros sofrem com as nossas ações, o que é real. Pensa-se em quem deveria ser punido, conforme a justiça, como no caso da freira de Monza. Todavia, não foram de fato condenados os diversos culpados responsáveis, isto é, a família, os costumes daqueles tempos, aprovados pelas autoridades eclesiásticas, enquanto foi selada a fogo a última consequência, e aquela pagou por todos. Esta era a moral de então, estes os resultados a que pode levar o preceptismo. Os verdadeiros culpados ficaram impunes, tendo caído na armadilha o ser mais débil, destruído por ter procurado satisfazer um instinto da natureza, que ninguém tinha o direito de impedir-lhe.

Com a nova forma mental tornam-se problemas de consciência e entram no confessionário muitas culpas comerciais, políticas, sociais, frequentes na sociedade do passado e não condenadas pela religião, que ficava satisfeita com o formalismo da sua preceptística. Eram culpas das quais o penitente não pensava em acusar-se, tampouco arrepender-se e corrigir-se; nem o confessor pensava em propô-las, para não entrar em matéria considerada fora da sua competência, respeitando, assim, o silêncio do penitente e evitando o assunto delicado dos interesses. Este, por seu lado, não admitia que o confessor se imiscuísse nos seus negócios e comércio. Por isso, reconduzia-o ao seu terreno espiritual, dizendo: isto são coisas que se fazem fora da Igreja, não competindo ao clero ocupar-se delas. Evitava-se a sua intervenção e fazer de tais coisas um problema de consciência. Interessava ao clero ser indulgente numa questão espinhosa. Não intervindo, não chamava a atenção sobre negócios que não se podiam fazer, com exceção quando ele próprio comerciava, que, sem prejuízo, podia concentrar a atenção sobre o sexo, atividade mais facilmente ocultável sob uma castidade oficial que permitia colocar-se do lado da virtude. Tudo isso convinha também ao penitente, que aproveitava esta tolerância, respeitando em troca os negócios do clero, ou seja, o mesmo respeito que este tinha pelos do penitente.

Assim, o sacerdote foi repelido para dentro da Igreja, para que fora dela não incomodasse. A religião ficou, em parte, separada de um setor realista da vida: a luta econômica — renunciando a discipliná-la e dominá-la. Teria a Igreja podido fazê-lo? Sim, se apenas se tivesse colocado, como era de sua competência, na sua verdadeira posição: a espiritual, sobrepujando a luta do mundo. Mas existia o fato de que se estava na Terra e não no céu. Era inevitável, pois, que a Igreja tivesse de travar aquela luta, se quisesse sobreviver. E nela estava imersa como todos. Então, não podendo mudar as leis da vida terrena, a fim de não evidenciar a contradição entre teoria evangélica e fatos, e, para salvar ao menos as aparências, não lhe restava senão o caminho da hipocrisia, levando a crer que fazia aquilo que realmente não praticava — e, na verdade, não podia fazê-lo — porque na Terra é contrário às leis biológicas do atual nível evolutivo animal-humano. Neste plano, que nada tem de evangélico, a lei é a rivalidade e a luta, sendo, portanto, antivital renunciar à própria vantagem em favor dos outros.

É certo que o Evangelho aponta para o centro da questão, mas isso não desloca a realidade de que aqui vigoram leis biológicas que estão nos antípodas daquilo que ele proclama. Nem se pode pretender que homens, filhos deste mundo, tenham a capacidade de inverter as primeiras em favor dos segundos. Esta tentativa custou a vida a Cristo, que com seu sacrifício não conseguiu nada, porque são as leis da Terra e não as do céu que por enquanto continuam a dominar o mundo. Todavia, a hipocrisia representa uma primeira tentativa de aproximação. É já um modo de atuar, dado que não se tem ainda a força de aplicar integralmente; é um malfeito inevitável; uma primeira fase indispensável de penetração por parte do ideal, destinada a ser superada por evolução.

Dizíamos, entretanto, que o principal domínio da confissão é o sexo. Não é necessário romper o segredo do confessionário para ver como é feito o mundo. O fato de que antigamente se fazia escondido aquilo que agora se pratica a descoberto não desloca a questão. Se hoje o problema do sexo fosse posto em discussão, também deveria sê-lo o do tribunal regulador de suas funções em muitos países. Mas, presentemente, a Igreja encontra-se perante algo novo. Aqueles velhos tipos de pecado passam para o médico e para o psicanalista, e são tomados em consideração outros diferentes do agora examinado. Falamos acima de pecado de caráter social. A tendência atual é olhar sobretudo culpas que prejudicam o próximo e não perder mais tempo com as que não fazem mal a ninguém. Há ainda o fato de que vivemos uma fase de masculinização, na qual os pecados de tipo feminino, como são os do sexo, são julgados com a forma mental do macho, a quem só interessa a luta para a conquista. É assim que assumem importância os pecados de tipo masculino, como dinheiro, furto, exploração, injustiça etc., isto é, aqueles de caráter social que interferem no problema da convivência, os que trazem dano, contra os quais todos se defendem, enquanto é mais raro que o sexo tenha tal conteúdo. Dada a nova unidade de medida usada para julgar, o sexo é culpa menos importante do que qualquer pecado de caráter social.

Eis que também o confessor terá de se atualizar tendo em conta este novo tipo de pecado. Hoje se procura tanto a liberdade. Mas ela significa livre desabafo dos próprios instintos, de tal modo que para a fêmea quer dizer liberdade no sexo e para o macho liberdade de assaltar para apossar-se e dominar. O instinto para se satisfazer procura a liberdade até ao abuso, violando a disciplina. A função do confessor moderno é levar disciplina responsável e consciente a este novo setor masculino da moral, enfrentando-o em profundidade, dando a importância que merece ao do tipo feminino, quando não acarreta consequências danosas individuais ou sociais.

É natural que as espécies fundamentais de pecado sejam de caráter econômico, ou bem sexual. Elas correspondem aos dois impulsos fundamentais da vida que visam à conservação do indivíduo e da raça, dois fatos imprescindíveis que implicam a urgência de procurar os meios para viver, como os da procriação. Se a satisfação destas necessidades não for reconhecida como um direito, será inevitável que o indivíduo procure igualmente realizá-la, mesmo que isto seja declarado culpa. Mas esta, ao contrário, será de quem declarou como tal aquilo que é uma necessidade a que o indivíduo deve sujeitar-se, porque estas são as leis da vida. Tais problemas não se resolvem com a tolerância, com a qual se busca remediar a sua má colocação. O novo moralista, para poder exigir que os outros cumpram o seu dever, tem de cumprir primeiro o seu de reconhecer o direito á vida. Se ele não se colocar num terreno de justiça, não poderá pretender obediência.

No passado o legislador pensava em primeiro lugar em si próprio, e as relações com quem dele dependia eram impostas num regime de luta recíproca, na qual vencia o mais forte e hábil e não a justiça. Depois, para viver tranquilamente, suavizavam-se os ângulos com as acomodações, apesar de tudo necessárias, para tornar menos fatigante a convivência. Deste sistema nasceu uma moral fragmentada a cada passo, como desejava o penitente, ao lado de outra teoricamente íntegra, como pretendia o moralista. É certo que deste modo ficavam satisfeitas as suas opostas exigências. Nem a outro resultado podia conduzir o choque entre duas vontades contrárias. Porém é também verdadeiro que assim se chegou a uma mistura de pecado e perdão em incessante contradição, perante um problema eternamente insolúvel, mas que tem significado na medida em que é destinado a solucionar-se. Destarte, em vez de aplicação da lei, se chegou à sua contínua violação, a que se opôs o paliativo de uma constante reintegração do arrependimento e do perdão, o que não resolve, porque deixa abertas as portas a novas violações. Mas a outras consequências não se podia chegar, colocando a questão nos termos acima expostos, isto é, sem reconhecer os direitos do indivíduo. É natural, então, que este se defenda com a desobediência.

Mas tudo está previsto. Temos, assim, uma confissão feita por reincidentes e para estes. É certo que ela fracassa no seu objetivo. Mas deste modo o penitente fica contente, porque ele pode satisfazer-se, mesmo que seja com uma veste de pecador. Reconhecendo-se tal, tem a vantagem de poder continuar a pecar, optando pelo que mais lhe convém. Por outro lado, o clero também fica satisfeito, porque o confessionário é frequentado. É verdade ainda que o penitente devia descobrir um meio que o permitisse viver a seu modo, ou seja, continuando a pecar. Encontrou-se, então, o método das evasões, do pecado ocasional, repetido com regularidade, mas não premeditado, não expressamente desejado, praticado por incidente. E com isso o penitente ficou satisfeito. Chegou-se, por seguidas adaptações, ao sistema conveniente para todos, dos pecados contínuos, de poderem ser salvos por ininterruptas lavagens purificadoras nos confessionários muito concorridos. E tudo vai bem, porque a Igreja mantém a sua autoridade sobre as consciências e o pecador tranquiliza a sua alma com uma penitência que muito pouco lhe custa. Ao mesmo tempo ele goza da vantagem de poder descarregar, com um ato formal de obediência, a sua responsabilidade sobre a autoridade julgadora, o que é uma ilusão, ou de poder fugir à fatal necessidade de pagar as consequências das próprias ações. Em suma, veio-se a ter, certamente sem premeditação, por sucessivas acomodações, uma obra-prima de moral elástica que sabe conciliar os opostos: a salvação e a incessante repetição do pecado. E não é difícil encontrar uma solução que satisfaça todos ao mesmo tempo. Também nisso as leis da vida demonstram a sua sabedoria.

O resultado de tudo isso é uma observância formal que salva as aparências e, em substância, uma hipocrisia na qual naufraga a sinceridade, o sentido de responsabilidade, a consciência do mal cometido na ilusão de fazê-lo francamente. Hoje, às avessas, estas são exatamente as qualidades que é necessário desenvolver, para se chegar a compreender que, independentemente de qualquer clero ou religião, existem leis positivas, como as da ciência, às quais ninguém pode escapar e pelas quais o mal feito automaticamente recai em forma de reação punitiva sobre quem o praticou. Esta será a moral científica de amanhã, sem hipocrisia, acomodações ou possibilidades de evasão. Infelizmente, construiu-se no passado um sistema de simulação tido como sabedoria, habilidade do saber viver, e hoje o herdamos bem radicado nos hábitos. É uma falsidade de linguagem e de costumes contra a qual as novas gerações lutam para varrer tudo, aparecendo escandalosamente atrevidas, porque não representam mais a tradicional farsa, escondendo o mal sob um manto de virtudes. Abrem-se as janelas e entra o ar puro, mesmo que este seja de tempestade que levanta turbilhões de poeira, rompe as delicadas teias de aranha, fazendo estremecer os velhos adormecidos. Esta ventania entrará também nos confessionários, que, se quiserem sobreviver, terão de atualizar-se. Mas não é um mal para as almas o escândalo de descobrir a realidade. Se esta se mantiver escondida, elas poderão muito mais facilmente se corromper.

Chegara-se, assim, a dar um sentido de virtude à assexualidade e de culpa à fundamental função da vida confiada ao sexo. Se isto, espiritualmente pode representar uma tentativa de superação da animalidade perante a natureza, que exige a continuação da espécie, por outro lado é antivital e, portanto, biologicamente imoral. Esta identificação do sexo com culpa é contra a moral da vida, que, pelo menos no atual plano humano, é a moral de Deus. Sucede que, dada a estrutura do organismo em que não podemos deixar de viver, não nos podemos evadir do nível terreno, a não ser por longa evolução. Biologicamente, não é qualificável com característica de superioridade a frigidez, que na natureza representa um fato negativo, pertencendo mais ao patológico. Quando, pois, a castidade não é assexualidade, ou frigidez atribuída ao indivíduo, mas se verifica por pressão imposta, então ela é obrigada a manifestar-se em formas contorcidas contra a natureza. A castidade é útil para o interesse do grupo de quem protege a conservação, mas não o é para o tipo comum do indivíduo. Ela é inútil para os frígidos, que através dela nada podem sublimar, porque nada têm para isso; é perigosa para os eróticos, que são levados a contorções e aos sucedâneos, em vez de sublimação. Isto pelo fato de que tal solução é mais fácil de alcançar e porque a vida a prefere no nível humano, uma vez que ela costuma escolher a via de menor resistência, requer menor esforço. A castidade é adequada e dá resultado somente para os maduros à superação, podendo, então, ser coisa sublime. Mas é aplicável apenas a uma exígua minoria. Assim, usada em larga escala por pessoas não maduras, ela só serve para a sobrevivência do grupo, porque para o indivíduo ou é frigidez, ou hipocrisia, quando não se resolve em desvios, o que faz dela sempre uma qualidade negativa.

Este conceito de sexo-pecado coloca nas próprias origens da vida um sentimento torcido, porque só pelo fato de se ter nascido se é pecador. O surgimento de tal psicologia se explica pelo desejo, mesmo que inconsciente, por parte do clero de se atribuir, com a sua castidade oficial, uma posição de superioridade, base de domínio sobre a massa dos pecadores não castos; compreende-se, também, com a devida necessidade que ele tinha de justificar, e assim tornar necessária a sua presença como salvadora de almas Todos deviam ser filhos da culpa para que fosse imprescindível o trabalho de quem depois viveria à custa de redimi-las. Deste modo, o sexo tornou-se um mal tolerado porque indispensável para se ter filhos Mas ele pode constituir uma necessidade também, independentemente disso, para quem não pode, ou não considera conveniente ter filhos. Chega-se à hipocrisia de dizer que se casa para cumprir o dever de procriar. Seria interessante observar quem teria tanto zelo de cumprir esse dever só por imposição de uma moral, se não existisse a atração sexual. Se assim fosse, teriam o mais alto sentido ético tantos inconscientes pobres que geram, sem medida, filhos destinados à fome. Por isso, os castos, porque frígidos foram vistos como virtuosos, e os hipereróticos como grandes pecadores, dignos de toda a condenação. Para tentar superações a cargo de imaturos, torceu-se e aviltou-se o amor; ao se forçar a evolução produziram-se estados sexuais patológicos aberrantes.

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Estes são os frutos da velha moral e da forma mental que a construiu. A nova moral resultará de um grau de consciência mais desenvolvido que traz à luz muitas contradições e danosas consequências. Continuemos a observar as duas morais nos seus contrastes e implicações nesta hora de transição em que o mundo evolui da primeira para a segunda. O advento de uma nova moral não é fato isolado, mas conexo com a profunda renovação que se esta verificando em todos os campos, através da maturação psicológica produzida pela passagem de uma fase evolutiva a outra superior. É o tipo mental que muda, com todas as suas consequências. Devemos, então, adaptar estas considerações ao pano de fundo deste fenômeno maior. O pecado de caráter social não é senão um dos aspectos da atual transformação.

O grande fato moderno é que a nossa vida se socializa. Antigamente, a unidade máxima de organização coletiva era a família. Esta, hoje, parece desfazer-se, porque o seu grau de unificação se torna secundário, portanto menor, incluído noutro maior: a sociedade. É natural que a unidade maior, tornada agora principal, absorva no seu seio a menor e que esta lhe fique subordinada. Nesta nova unidade é maior a amplitude e o grau de organização coletiva dentro do qual se estabelece a convivência, porque o tipo unitário não é mais o pequeno núcleo familiar, mas a sociedade, que agora de estado de rebanho passa ao orgânico de núcleo social. Isto não significa que a família desapareça como unidade, mas é absorvida na mais vasta unidade coletiva. O fato encontrado na base de tudo isso é o desenvolvimento da consciência, hoje tornada capaz de abranger uma unidade social mais extensa em vez de apenas um grupo familiar. Com a compreensão de mais amplas relações, o ser humano começa a sentir-se ligado também a quem não é seu parente de sangue. Nasceram, assim, vínculos acima do nível da carne. Isto quer dizer progresso, não só como amplitude de campo, mas também como complexidade de estrutura. Aqui vemos como agora se aplica o princípio das unidades coletivas, demonstrado noutro lugar.

Tudo isso implica outras transformações, envolvendo outros aspectos da vida. Um destes é a atual emancipação da mulher. O problema fundamental para todos, como vimos no que respeita às vocações do clero, é a situação econômica. Isto acontece também com relação à mulher. Antigamente, para uma jovem essa situação se resolvia com o matrimônio; hoje o mesmo problema se soluciona com o trabalho. Outrora, o sonho era o marido, hoje é a profissão. Eis que agora a vida para a mulher, que representa a metade do gênero humano, assenta em outras bases. Disto derivam grandes deslocações. A sua existência não fica fechada entre as paredes domésticas, reduzida a ser um apêndice do homem, seu único sustentáculo, mas se amplia na sociedade com uma função importante, como é a de quem trabalha, estando, portanto, conexa com a produção, fato que se encontra na base da vida. Então, a mulher se coloca ao nível do homem, economicamente independente, auto-suficiente, tornando-se um elemento socialmente válido, que se enxerta com o seu peso próprio na organização coletiva. Encarrega-se de novas atividades e responsabilidades, mas conquista também liberdade e, com o trabalho, a possibilidade de desenvolver-se como inteligência, o que não acontecia quando a sua função era somente a de serva ou de instrumento de prazer para o homem, ou de servir para criar os seus filhos.

O grande fenômeno a que hoje assistimos é um processo universal de socialização, que se verifica para toda a humanidade, ainda que com programas políticos opostos, processo que influencia tudo: a moral, a religião, a família, o desenvolvimento mental, a atividade produtora etc. Trata-se de novo modo de conceber a vida sob princípios diversamente orientados, conduzindo a outra moral, tema aqui tratado com a devida precisão. A velha moral era empírica e instintiva; a nova é racional e controlada. No primeiro caso, o indivíduo era movido por impulsos do subconsciente, guiado por atrações e repulsões, simpatias e antipatias; no segundo, é conduzido pelo pensamento e pela lógica que enfrentam os problemas para resolvê-los. A segunda é a moral mais evoluída de quem conhece e raciocina; a primeira é a impulsiva do primitivo irracional e inconsciente, arrastado pelos instintos. A moral sexual era até ontem desse tipo, mas já está passando do tribunal do confessor e dos mexericos da opinião pública para o juízo competente do médico, do psicólogo, do sociólogo. A unidade de medida do pecado não será estabelecida de acordo com as reações do subconsciente instintivo, mas consoante um critério social baseado no dano que esse pecado acarreta ao próximo, isto observado com lógica positiva. É assim que nasce outro tipo de pecado: o social, que vai da evasão fiscal à imprudência ao volante, baseado no respeito que se deve ao próximo, não o prejudicando, o que representa uma forma positiva de amá-lo conforme o Evangelho. Eis um Cristianismo racionalmente utilizado para chegar, como exige a hora histórica, a um estado social orgânico, feito de uma ordem sempre maior. Trata-se de um modo inteligente e calculado, mas também de ser bom. Temos uma ética cristã, civil, em vez de religiosa, que leva a uma disciplina que é perda de liberdade, conquanto também seja vantajosa, porque, se limita a minha liberdade, restringe igualmente a de outrem a quem é vedado causar-me dano.

Sendo uma expressão de vida, a moral sobe com a evolução daquela. Assim, codificada pela religião, temos a moral do nível Moisés, que permanece ainda no plano animal do "não matarás", "não roubarás”, isto é, do delinquente. Depois, com a religião de Cristo, temos a ética do tipo Evangelho, que sobe um degrau mais alto, o do amor, do "ama o próximo como a ti mesmo" Agora, com a ciência e o despertar intelectual moderno, passa-se a uma moral cérebro e pensamento, situada num plano ainda mais alto, o do conhecimento, consciência e responsabilidade. Estas três fases da progressiva evolução da ética correspondem a três tipos de civilização dos quais são o produto: 1) a da força bruta, do primitivo; 2) a do amor, que com a bondade procura domesticar aquela força; 3) a da inteligência, que com o conhecimento busca iluminar e dirigir racionalmente aquele amor.

O valor de cada uma dessas posições não se pode julgar equitativamente senão em função do momento histórico em que aparece da fase evolutiva que representa e do trabalho que deve realizar. Não se pode, portanto, culpar o Cristianismo por alguma das suas atitudes agressivas para com a animalidade e para com a parte inferior do homem, maneiras de fazer penitência que nos parecem ferozes. Ele devia enxertar-se no primeiro tipo de civilização e fazer o trabalho de transformá-lo no segundo. Assim se explica a psicologia do inferno, hoje cada vez menos persuasiva, a exaltação das torturas físicas do mártir como meio de santificação, a repressão em vez da educação dos impulsos naturais, os métodos brutais de espiritualização. Tudo isso se justifica, se se pensar naquele tipo de homem que dirigia então a religião. E explica como tais sistemas estão perdendo calor, quanto mais o ser humano amadurece para entrar no terceiro tipo de civilização. Hoje, usar aqueles meios para desenvolver o espírito seria contraproducente. A religião deve descobrir outros, se quiser ser útil à sociedade.

A velha moral pertence ao segundo tipo de civilização. Enquanto ela prega o amor, deve lutar contra a ferocidade. Disto derivam muitas contradições que com o tempo se vão eliminando. Hoje se começa a compreender que não convém desperdiçar energias positivas para o bem, para atormentar o sistema nervoso com contrariedades e renúncias, quando aquelas energias devem servir para trabalhar e produzir. A nova moral é racional, utilitária, vital, e não negativa, opressiva ou antivital. São eliminados os sacrifícios improdutivos. Em compensação pensa-se mais no próximo, para não o prejudicar, do que egoisticamente em si próprio para salvar-se. É um regime de maior ordem, liberdade e bem-estar, mas também de maior trabalho, responsabilidade e deveres. Mudam assim os pecados. Antigamente, conforme a religião, não era culpa encher o mundo de filhos doentes, esfomeados e delinquentes. Hoje se pratica o controle da natalidade, mas se assume a responsabilidade da educação dos filhos; os pais adquirem o direito de defender o seu sistema nervoso de inúteis renúncias, mas assumem o dever de trabalhar ambos para o grupo familiar. Para a religião, era lícito outrora viver de rendimentos, do trabalho do próximo, sendo ociosos, parasitas da sociedade. Era justo fazer-se de patrão, em nome da autoridade marital e paterna, sobre mulher e filhos. Era permitido casar por interesse e não por amor, fazendo do matrimônio um mercado. Muitos outros pecados não eram como tais considerados, mas abençoados pelo clero e santificados com os sacramentos. No entanto, aquela moral era santa para o grau de evolução do segundo nível. Ela tornou-se, porém, injusta e inaceitável, quando se alcançou o grau de evolução do terceiro nível.

A grande diferença entre a velha e a nova ética é que a primeira é preceptística e, portanto, obrigatória, mas irresponsável, enquanto a segunda não é mandamental, porém livre e responsável. Para a primeira bastava a forma, para a segunda importa a substância. É assim que para a primeira não é necessário ter alcançado o grau de consciência exigido pela segunda. No passado a velha moral tratava só da observância formal da lei (farisaísmo), e cada um se sentia satisfeito em consciência quando tinha cumprido o que era necessário para obter a sua salvação pessoal. Além desta finalidade egoísta, o resto pouco interessava, mesmo que prejudicasse o próximo. O indivíduo não sabia sequer pensar que existisse um bem e um mal, além do seu, de que devesse ocupar-se. Vivia-se num regime de luta no qual a morte dos outros constituía a própria vida, ao contrário. Perante uma forma mental como esta, não pode funcionar senão uma moral preceptística, armada de taxativas sanções punitivas, porque este é o único meio persuasivo que o primitivo entende, o qual, ferindo-o pessoalmente, pode induzi-lo a comportar-se bem A ele nada interessa do próximo. Se ele é bom, não o é por amor aos outros, mas a si mesmo, para obter a salvação própria. Esta é a fase em que inferno e paraíso são necessários para dirigir o homem. E a este se torna bem compreensível a ideia de um Deus-patrão que castiga o servo desobediente.

A nova ética é a do indivíduo consciente do mal que pode fazer ao próximo, procurando, portanto, não praticá-lo. Eis que a moral não é mais uma formal observância da lei (farisaísmo) com objetivo egoísta, mas está ligada à consciência de um estado de ordem coletivo e à utilidade de enquadrar-se nele, no seu próprio interesse. Do farisaísmo, isto é, do formal cumprimento da lei, passa-se ao Evangelho, que é substancial aplicação de um princípio de amor. Por isso, o farisaísmo, em vez de perfeição, foi julgado hipocrisia.

O ponto de referência da nova moral não é um código frio feito por Deus para os seus fins, e que Ele impõe, porque, sendo o mais forte, tem o direito de comando. Tal concepção mosaica era proporcionada ao desenvolvimento mental daqueles tempos. O ponto de referência da nova ética é o bem do próximo, porque os outros fazem parte do mesmo organismo a que pertence cada indivíduo, de modo que, se este, mesmo que seja em perfeita observância da lei, prejudicar aqueles, está causando dano também a si próprio. O progresso mental dos nossos tempos levou a um conceito social da vida humana, antes desconhecido. Tal princípio unificador, coletivista, enunciado pelo Evangelho há dois mil anos e, então não compreendido, hoje, por maturação biológica, está-se tornando realidade.

Assim, se a velha moral era individualista e separatista num mundo de seres isolados, cada um encerrado no seu egoísmo, hoje a nova ética é de tipo coletivista unitário. Atualmente, assistimos a um grande fenômeno biológico, segundo o qual as células dos indivíduos isolados, até agora dispersas, se reúnem para se construírem em organismo social, o que significa alcançar uma forma de vida mais progressista. Por isso, a nova moral exige que o homem veja no interesse coletivo o próprio benefício; compreenda que evitar o prejuízo dos outros é afastar o próprio dano; alegrar o próximo é fazê-lo a si mesmo; cumprir o próprio dever é utilitarismo egoísta.

O resultado das duas morais são opostos. A primeira deixa os indivíduos separados, inimigos, em estado de guerra; a segunda os confraterniza para que colaborem em paz, isto é, propõe-se realizar a grande obra de fundir elementos humanos, hoje ainda ávidos de se sobreporem uns aos outros. Da nova moral nasce outro tipo de santidade, ou seja, a que não corre apenas atrás de miragens egoístas, mas se projeta em direção ao próximo para ajudá-lo a viver. Assim, o santo não é mais aquele que se isola para tratar da sua própria evolução, mas o que se oferece, colaborando com a dos outros. Antigamente, mesmo sozinho caminhava-se para Deus. Hoje, o trabalho é elevar os indivíduos até que se tornem evoluídos. Presentemente, ao lado do santo, tem valor também o cientista, igualmente útil no meio social, porque ampliar a inteligência vale tanto quanto desenvolver a bondade. Com a nova ética, ao método do irresponsável, que, uma vez praticado o mal preocupa-se, sobretudo, em fugir ao pagamento da pena, substitui-se o sistema do responsável, que não pensa em enganar o legislador. Portanto, não faz o mal, porque sabe que isso é tentativa inútil, porque não se pode fugir ao castigo. Ter a ilusão de que isso seja possível é coisa que só pode pensar o homem da velha moral, ignorante das leis da vida.

Com a nova moral, a confissão deve assumir uma função educadora para a vida social, deve constituir um meio para desenvolver a consciência e o sentido de responsabilidade, e não um tribunal perseguidor de culpas à base de artigos de código e listas de pecados. Isto é, dissecar a vida, em vez de ajudá-la a progredir. É certo que pode ser o primitivismo dos fiéis o fato que impõe a necessidade de usar tais métodos. Mas precisamente por isso é necessário educar o penitente a compreender a lógica da nova moral. A aplicação dos velhos processos a um indivíduo maduro pode colocá-lo na situação de querer decidir, preferindo ir parar no inferno como pecador a seguir as velhas regras, cumprindo um ato lícito para a religião, mas que para ele é mau, ou realizando outra coisa que para a religião é culpa, mas que para ele é justo. Por exemplo, um indivíduo que por temperamento não pode sujeitar-se a um regime de castidade, pode renunciar ao egoísmo de sua salvação extraterrena usando o controle, isto é, não fazendo mal a terceiros inocentes, incapazes de se defenderem, como os filhos a quem lhe é impossível dar saúde, educação e alimento. O que hoje mais interessa na vida social é a honestidade, a grande virtude de não prejudicar o próximo. E existem infinitos meios de fazê-lo, considerados lícitos. Honestidade, em todos os campos, é a coisa mais necessária, porque é nela que se fundamenta a convivência. A vida se baseia demasiadamente na luta, posição que está nos antípodas. A religião cumpriria uma grande obra, se conseguisse levar o mundo, pelo menos um pouco, para um estado É de retidão, do qual ele tem extrema necessidade. Pelo contrário, prevalece excessivamente a convicção, escondida nas palavras e expressa em fatos, de que o maior pecado é ser honesto, porque este é esmagado, enquanto a vida favorece os desonestos.

Se esta é a forma mental da maioria, que pode a religião fazer contra isso? É uma complexa multidão de seguidores a se opor a que, realmente, se faça da religião uma coisa séria, sem escapatórias. Estas são muito cômodas. Com elas se pode fazer ótima figura de santa pessoa e, no entanto, agir como lhe convier. A própria preceptista habituou os fiéis a este sistema. São, portanto, eles mesmos que não querem renunciar às vantagens que lhes oferecem. Já estão viciados, aprenderam a mentir, acham vantajosa a hipocrisia e não tencionam mudar de método. Trata-se de hábitos seculares, profundamente assimilados. Preferem a tradicional lista de pecados, o cumprimento formal, os quais evitam indagações que perscrutem a fundo as suas vidas e possam descobrir outras coisas. Rebelam-se contra isso como se fora uma intromissão. Quando, entretanto, cumprirem o dever de se acusarem de acordo com as regras, não reconhecerão ao confessor o direito de imiscuir-se em outros assuntos. Consideram tais métodos um direito adquirido por longo uso, passado já à prescrição. Portanto, não admitem que lho seja tirado. Defendem-no, mesmo que isso vá contra a consciência. Continuam a preferir a velha moral mecanizada, fornecida em pílulas com instruções para o seu uso.

Falamos acima de penitência fácil, por intermédio da qual com um mínimo incômodo se sacia o pecado confessado. À parte o fato estranho de que a oração, que deveria ser uma forma alegre de se elevar até Deus, em vez de prêmio, seja usada como pena expiatória, como castigo espiritual, o sentido de responsabilidade da nova moral faz compreender que confissão e penitência não eliminam o malfeito, que as consequências são inevitáveis, e é necessário pagá-las. E, portanto, ilusão acreditar que se pode comodamente fazê-lo desaparecer com estes meios, ou seja, não pagando. Mas a evasão é aliciante, porque fácil e vantajosa. Logo, por que não aproveitar? Com a nova moral, acabou-se a ingenuidade e se compreende que, se não quer sofrer, é preciso não fazer o mal, e quando feito, não há salvação, deve-se pagá-lo. A verdadeira absolvição é uma só: o pagamento.

Como se vê, trata-se de duas formas mentais completamente diversas com as quais se enfrenta a moral. No passado havia muita religião, mas em substância ela era pouco ética. No futuro haverá uma moral mais evoluída, porém em forma menos religiosa. Em suma, diminuir a religião reduzida à hipocrisia e, com a sinceridade, aumentar a ética. O Cristianismo atual sobreviverá, se souber tornar-se útil à vida, acompanhando a transformação neste segundo tipo de moralidade. De outro modo, será colocado de lado entre as coisas inúteis. Podem-se ver hoje as duas faces do problema, porque nos encontramos em fase de transição, na qual o velho e o novo estão presentes, contemporaneamente. Já existe uma tendência para se adotar uma moral de verdade, e não apenas fazer bela figura exibindo princípios teóricos de retidão. Através de cálculo correto, ficou comprovado ser mais conveniente assumir tal posição.

Com o velho sistema, a culpa, na realidade, consiste em fazer-se cair em erro por não ter sabido esconder-se sob um manto de virtudes. Com o novo, a culpa não depende da aparência exterior e do juízo dos outros, mesmo que estes sejam tribunais, mas do mal efetuado e do juízo de Deus. O primeiro método representa um estado de inconsciência dirigido apenas com as regras da luta pela sobrevivência. O segundo corresponde a um estado de consciência da lei moral e do seu funcionamento, portanto das fatais consequências de cada violação. Neste caso, não se recorre a escapatórias e mentiras, porque se sabe que elas não resolvem. Neste nível, a nova moral não significa a imposição de um patrão a quem convém desobedecer para defender-se do seu domínio. Trata-se apenas de uma lei própria de nossa vida, a qual deve ser obedecida para o nosso próprio bem. Falamos da forma mental que dirige nossos atos e não das belas palavras com que se cobre nossos feitos. Com o velho sistema, o interesse do indivíduo é defender-se das imposições da moral, de maneira que se possa continuar evadindo. Com o novo, ele está convencido de ser mais vantajoso seguir a lei moral; e se esta lhe pede disciplina, isto é para seu benefício, convindo-lhe, portanto, obedecer. Com o velho método, num mundo de injustiças baseado no princípio da luta, a moral, abstraindo-se de tal realidade, pedia ao indivíduo que se comportasse de forma oposta, impondo-lhe deveres sem levar em conta os seus direitos. Depois deixava fazer o que ele quisesse, porque era inútil fazer exigências a um pecador nato. Com a nova disciplina, os problemas são encarados abertamente. Pede-se ao indivíduo aquilo que ele pode dar, impõem-se-lhe deveres, mas tendo em conta os seus direitos. Depois se exige dele conforme a ética proposta para o seu bem.

Com a nova forma mental, fazem-se e respeitam-se as contas do dever e do haver, bem claras de ambas as partes. Liberdade, mas compromisso sério, sinceridade e responsabilidade por parte de seres conscientes. No bom tempo antigo, com santa simplicidade e ignorância, muitas coisas se faziam e passavam como lícitas, para que não fossem vistas. Hoje, sem aquela santa simplicidade, muitas coisas não são mais tidas como justas. E o que é errado não se faz, por ser prejudicial. Com essa mentalidade, conscientemente utilitária, muitos velhos abusos reconhecidos contraproducentes tornam-se absurdos. Assim, o atual destrucionismo contra o passado pode representar uma função social de saneamento moral. Isto representa progresso, e a vida não pode deixar de aceitá-lo.

Como se vê, nas bases da crise da velha moral, está outra ainda maior, de forma mental que leva a conceber a vida de outro modo. A crise da confissão, da religião, da moral é consequência de si própria. Segundo esta nova psicologia, o conceito de culpa não é dado por abstrações teológicas, mas pelo prejuízo que ela traz ao indivíduo e ao seu próximo, resultado mais convincente, porque corresponde ao interesse deles, já que é para defendê-los, não para condená-los e puni-los. Desaparecem, assim, velhas culpas e não nascem de novo, que antes eram lícidas.

A concepção do pecado em sentido social propõe tornar sempre menos difícil a convivência, porquanto, ao passar à humanidade, ao estado coletivo, ela faz-se sempre mais estreita. Até agora, o hábito de se incomodarem uns aos outros em estado de luta era a principal ocupação do homem. Antigamente, a moral era feita para que uma classe pudesse dominar os seus súditos. Hoje, procura-se construir outra que sirva para todos, sendo esta a única pacífica, porque não gera reações dos excluídos. Outrora, a ética era determinada pelos mais fortes, que, como vencedores na luta, tinham conquistado poder e autoridade, podendo, assim, estabelecer uma disciplina para vantagem deles e à custa dos mais fracos a eles submetidos. Hoje, pretende-se uma moral menos idealista, mas também menos egoísta em prejuízo do próximo, sem conter para alguns exclusividade de vantagens que outros devem pagar com o seu sacrifício. Deseja-se, em suma, não mais u a moral de classe, mesmo que seja em nome de Deus, mas algo equânime, a favor de todos, sem a injustiça de favorecidos e deserdados, não de domínio, porém de cooperação.

Com uma ética assim, a autoridade não existe para comandar, mas para cumprir uma atividade útil coletivamente; não é um direito individual, mas uma função social, a única coisa justificando a sua presença; ora, se aquela função não for cumprida, aquele poder deve ser retirado de quem o possui. Conceito novo, pelo qual o comando não pertence ao mais forte, vencedor, no seu interesse, porém ao mais apto a executar para vantagem de todos a função social que lhe é confiada. A nova moral não tolera mais os aproveitadores e os que trazem prejuízo, mas exige que cada um cumpra o próprio dever para com os outros, enquadrando-se na ordem coletiva. Cada um é forçado a levar em conta as exigências do próximo, que, antigamente, se não era suficientemente forte para impor-se, constituía apenas a massa que devia ser submetida sem quaisquer direitos. Se ela hoje é reconhecida, isto é, porque os mais fracos se fizeram valer, seja como força, inteligência, número, ou organização. Pela mesma razão, nenhuma lei na Terra tem valor, se não for sustentada por uma sanção punitiva contra os desobedientes. Explica-se, deste modo, como, no passado, quando eram simples e pacientes, os deserdados não tinham direitos, ao passo que os têm hoje, porque os fazem valer. Não os possuíram enquanto esperaram o seu reconhecimento pela bondade dos outros, em lugar de sua própria força. Por isso, hoje está nascendo certo respeito, cada vez mais crescente pelos direitos dos outros. Logo, mesmo na Terra, para gozar uma vantagem, é necessário merecê-la, conforme a justiça e a capacidade de cada um.

Reduzir a moral a simples condição de não prejudicar os outros, respeitando-lhe os direitos, parece uma disciplina mais livre. Entretanto, é mais severa que a preceptística do passado, que codificava cada ato, embora permitisse, uma vez cumprido o dever formal, escapatórias e liberdade hoje ilícitas. Com o conceito de pecado social, a ética é mais livre, porém mais profunda, enquanto no passado era formalmente mais rígida, conquanto mais superficial. A nova moral não se limita ao ato exterior, mas vai às raízes de nossa conduta, porque não dirige o homem mecanicamente nas suas manifestações. Penetra na sua consciência, exigindo-lhe um sentido de responsabilidade.

Assim, será lícito o livre uso do sexo, quando ninguém ficar prejudicado, nem o indivíduo, nem o outro termo, nem terceiros, nem os filhos já nascidos, ou gerados. Com esta liberdade, aparentemente tão grande, está implícito para os honestos o dever da fidelidade e muitos outros que, no passado, não se levavam em conta. No fundo, a nova ética, se parece mais livre, substancialmente é mais vinculada. Muitas coisas aceitas no passado tornam-se agora culpa, como, por exemplo, degradar, como bastardos filhos inocentes por terem nascido ilegítimos; viver em ociosidade por ter herdado gratuitamente patrimônios, ou por os ter adquirido através do matrimônio, de qualquer modo não ganhos pelo próprio trabalho. Será culpa por em perigo a vida dos outros conduzindo mal o automóvel, ou arruinar os negócios de outros administrando-os mal, por exemplo, estando no Governo; não pagar ao fisco; enganar legalmente o próximo no comércio; aproveitar-se da boa-fé dos honestos; propagar doenças infecciosas; desfrutar a ignorância dos inexperientes; espalhar vícios lícitos e danosos, como fumo, álcool etc.: aproveitar-se, consoante a lei, do trabalho de outrem; deixar os próprios dependentes em ociosidade e indigência, conduzindo-os ao furto. Para cada rico será culpa a pobreza de qualquer um dos seus semelhantes em relação ao qual ele não tenha cumprido o seu dever de prover, como para cada pobre será culpa não trabalhar e não fazer o possível para não se reduzir a um parasita que pretende viver à custa do rico. Será culpa capital viver do trabalho de outrem em vez do seu próprio, embora, antigamente, explorar os dependentes fosse distinção de aristocrata.

No futuro outra será a lista dos pecados de competência do confessor. Os santos parasitas da sociedade iriam para o inferno em lugar de ir para o paraíso. Poderiam ser salvos os que fossem verdadeiros trabalhadores do espírito, o que é coisa diferente da mecânica das recitações vocais e dos exercícios formais. Mesmo que para os primitivos, incapazes de se dirigirem, fosse necessário fazer uma preceptística, ela deveria ser feita com outras vozes. Então, as penas do Código deveriam castigar os responsáveis que são a causa dos delitos, tanto quanto os executores destes. Deverá chegar-se a uma justiça de substância que mereça confiança, porque sabe encontrar o verdadeiro culpado e não vai só contra o desgraçado executor, que é mais fácil apanhar, porque é menos hábil em saber fugir. Deveriam, portanto, ser punidos todos os culpados, direta ou indiretamente, de violação da justiça social.

Estes não são senão alguns exemplos, escolhidos ao acaso, dos melhoramentos possíveis no futuro, quando o homem conceber religião e moral de modo mais inteligente. Mas, no momento atual, já se chegou a uma nítida contraposição entre a velha moral conformista, burguesa, clerical do passado, e a nova ética de consciência e responsabilidade, rebelde àqueles velhos esquemas, identificável com a disciplina laica atual. Julga-se moral apenas aquela responsável de hoje e não a irresponsável do passado. Existe, pois, também o fato inegável de que ela se está desenvolvendo com sentido de maior respeito pela personalidade humana. Se ela é hoje incorporada à coletividade, isto é para se encontrar uma proteção antes ignorada. Também se a este novo estado se chegar por imposição de um regime rígido, isso representa uma estrutura orgânica, feita de previdência e providência, inicialmente inexistentes. Se a disciplina limita e pesa, todavia constitui ordem e defesa. Portanto, é aceita, porque útil à vida. O fato de se haver deslocado o conceito de culpa de um ponto de referência longínquo e incontrolável, qual seja a ofensa a Deus, para outro próximo e controlável, como é a lesão que prejudica terceiros, permite alcançar resultados menos teóricos e mais reais. Usa-se, assim, uma unidade de medida mais humana e positiva, o que permite resolver melhor o grande problema coletivo atual da convivência pacífica. Hoje a humanidade se avizinha cada vez mais deste estado orgânico. Se se ofende a Deus, Ele não fica prejudicado pela nossa ofensa, dirigindo-se o mal para fora da realidade de nossa vida. Mas, se se ofende o próximo, este fica lesado de forma concreta e imediata. O segundo tipo de ofensa é muito mais positivo do que o outro e muito mais conveniente para a mente moderna. Existem muitas ideologias proclamadas pelo mundo. Mas aquela que na prática vale e que todos aplicam é a da própria vantagem ou prejuízo. Esta funciona em qualquer lugar, que todos compreendem e professam. As outras frequentemente servem de coberta para esconder esta universal ideologia utilitária, que, em todos os lugares e tempos, está na base da vida.

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Neste nosso exame da posição da Igreja no momento atual, alguns poderão ver algo como o velho materialismo anticlerical e tomar posição a favor ou contra. Aqui, entretanto, partindo de uma imparcial constatação de fatos, quisemos lazer o seu exame para lhe entender o significado e ver o que está hoje sucedendo no mundo. Podemos, portanto, dizer que não compreendeu a nossa exposição quem nela viu agressividade contra a Igreja. Não estamos no terreno dos partidos que se combatem uns aos outros para se vencerem. Aqui, não existe luta, porque não há inimizade. Tais atitudes, mentalmente contraproducentes, mais primitivas, estavam em grande voga no passado. Hoje, o mundo resolveu começar a pensar e, antes de mais nada, deseja compreender, para poder depois agir com inteligência. Com desabafos de ódio, com espírito de agressividade, com o desgaste dos atritos, não se compreendem, nem se resolvem os problemas.

Hoje, o mundo não é mais anti-religioso, porém arreligioso; não é mais materialista, mas realista. A crise não é só do Catolicismo, mas de todo o pensamento humano, feito reacionário contra qualquer modalidade de conformismo. A Igreja é envolvida num fenômeno universal, num momento crítico da evolução humana, pelo qual se passa de um a outro nível biológico. Para ela, tão conservadora, isto é um terremoto. Para se salvar e sobreviver num mundo que se transforma celeremente, ela teve de entrar, também, na corrida. Este é o significado do seu desejo de atualização, do diálogo, do Concílio. Mas ela é uma velha senhora carregada de anos e de joias, com as pernas atrofiadas por ter andado com muita dificuldade; ela faz o que pode para, agora, avançar a tal velocidade. Mas a sua velhice merece respeito e também gratidão.

Por dois mil anos a Igreja lutou para sustentar um ideal, mesmo que tenha feito por interesses terrenos e, de vez em quando, o tenha traído. Mas não era fácil ser cristão na feroz Idade Média. Se ela quisesse sobreviver, deveria utilizar os meios que os tempos impunham, os únicos persuasivos para aquelas mentes selvagens, como o inferno, as excomunhões, a inquisição, as fogueiras, as alianças com o mais forte, as guerras contra ataques e perigos contínuos. É certo que não correspondia aos fins da vida e a missão da Igreja que ela fosse constituída de seres tão bons e santos que se fizessem matar, como Cristo, o que teria servido só para liquidá-la. De fato, a realidade da vida é bem diversa da sonhada pelo Evangelho. E até que a esta não cheguem todos por evolução, um só grupo não pode fazê-lo sozinho, separando-se do resto da humanidade. A Igreja não podia ser constituída por uma supremacia de santos, tendentes isoladamente a alcançar a sua salvação pessoal. Ela devia, ao contrário, enxertar-se na baixa vida de todos, para ajudar a ascensão dos outros. Foi assim que a Igreja se fez instrumento de progresso e realizou o seu trabalho de civilização.

Ora, não existe organismo que com o tempo não envelheça. Então, a vida, que não pode parar, a fim de poder caminhar à frente, renova-se, deixando morrer os velhos. Se isto é conforme a natureza, todavia o ser velho e cansado não é culpado, nem merece condenação e ataques. Faz-se a guerra contra os jovens, mas não contra os velhos, o que é covardia. Tanto mais que não é preciso matá-los, porque morrem por si. Basta só esperar. Tem-se, contrariamente, o dever de amá-los, porque eles fizeram o seu trabalho, enquanto os jovens não realizaram ainda coisa alguma. A vida é justa deixando a estes as novas fadigas e põe de lado os velhos, em paz. a por isso que hoje não nascem heresias e ninguém se interessa mais por problemas teológicos. As novas gerações pensam em outra coisa, sendo para elas o passado coisa superada; elas gravitam em direção ao futuro, que se apresenta bem diverso. Elas se preparam para explorações interplanetárias, constatam que a ciência, antigamente condenada pela religião, fez coisas que esta nunca soube fazer, desinteressando-se, sentindo-se, orgulhosas e auto-suficientes.

Nestes escritos, não podemos mudar o momento histórico e o seu conteúdo. Todos nós estamos nele imersos e devemos vivê-lo. Aqui, apenas procuramos compreendê-lo e explicá-lo. Por evolução, hoje mudam as forças da espiritualidade, de maneira que as velhas desmoronam. Ela se tornará científica, demonstrada, racional. As suas obsoletas formas não estão mortas, mas a vida as deixa docemente parecer de morte natural, não as reabastecendo de material vivo através da contribuição das novas gerações, que vão, de preferência, alimentar outros organismos, enquadrando-se em múltiplos esquemas sociais. Por isso diminuem as vocações, esvaziam-se os seminários, o cansado organismo não encontra células novas para substituir as velhas, o metabolismo nutritivo se detém, os tecidos murcham e a arteriosclerose destrói a vida. Entretanto, o que muda é só o corpo da velha senhora, que não morre por isso. A sua alma permanece, a natureza não mata a venerável dama para sepultá-la no cemitério, mas faz-lhe lentamente um corpo novo para substituir o velho, de modo que aos de fora pode parecer que houve morte e ressurreição de outra pessoa, quando, na realidade, a mesma alma, a mesma espiritualidade toma forma num corpo diverso, ficando mais viva do que antes. Então, morre somente a forma, não a substância. Por isso grita o corpo da Igreja, porque teme pela sua própria vida, que pode morrer. Mas não grita, porque não tem nada a temer, o seu espírito, que não pode extinguir-se.

A Igreja é princípio e forma. Ora, em tudo o que existe, o princípio permanece e o que muda em redor é a forma. Ninguém pode alterar estas leis, pelas quais, no interior de cada elemento, existe um conceito que o rege e permanece constante, deslocando-se, através de um transformismo contínuo, ao mesmo tempo que o põe em posições sempre diversas, desenvolvendo-se ao longo de sua trajetória típica. O moribundo, que, para não morrer, se agarra ao corpo, que representa a sua sobrevivência física, não compreendeu que a morte é necessária à vida, porque esta precisa mudar sempre de formas para poder continuar. Se não fosse a morte, que nos liberta de uma forma velha e gasta, deveríamos terminar com ela no entanto, é certo: por meio da morte, pode acontecer o contrário. Com isso parece que não somos donos de coisa alguma, porque incessantemente somos desapossados de tudo, mesmo de nosso corpo. E é igualmente verdadeiro o fato de que somos uma trajetória de transformismo em constante movimento, que nos torna capazes de usufruir de todas as coisas que encontramos ao longo de nosso caminho, do qual somos artífices e proprietários absolutos.

Eis que as coisas não são como podem parecer. Deixemos, pois, gritar quem crê que com a morte de uma forma possa perecer a substância. Quem pensa assim trata da sua própria sobrevivência, a cujo serviço colocou o ideal, e não se ocupa do triunfo deste, a cujo serviço deveria ter colocado a própria pessoa.