Alverne — Páscoa de 1947

É manhã de Páscoa, manhã radiosa da minha ressurreição em Cristo e eu cheguei em espírito aqui em cima do Alverne . E aqui, na Capela dos Estigmas, no lugar em que Francisco viu Cristo, a minha alma escreve no livro da sua vida eterna, em caracteres que não mais se apagarão. Escreve e exprime em si este novo grande dia da sua eterna transformação, dia de alegria depois de tanta dor, dia de vitória e de paz, depois de uma caminhada tão exaustiva. Sinto o olhar de Cristo sobre mim, que imprime um sinete de fogo à  minha palavra.

Deste alto cume ao Alverne contemplo a terra adormecida lá em baixo, longínqua e vaga na névoa matinal, tão cheia de ânsias e de dores, e apesar disso aquecida e fecundada pela divina luz do sol.

Deste cume espiritual também repasso a história do mundo, ainda imerso no paul da ignorância e da barbárie, perdido na névoa da involução, história cheia de aflições e destruição, e apesar disso, guiada e regida pela lei de Deus.

Deste cume do meu destino miro a infinda alternância de minha transformação, que finalmente hoje emerge da prova e da dor e, por esta impelida a um ancoradouro mais firme e elevado, pode arremessar-se agora de um salto para Deus. O espírito, redimido pela dor, pode, finalmente, escancarar as portas cerradas pelo egoísmo e pela culpa, pode abrir-se a fim de que a luz do alto o penetre e o inunde.

Eis que hoje, não mais na tumba de Francisco de Assis22 , tumba de Seu corpo morto, mas no Alverne, a apoteose do Seu espírito vivo e presente, confirmam-se e se concluem, amadurecidos no tempo, os meus pactos com Cristo, já cumpridos em uma hora de paixão e de treva para o mundo, no claro pressentimento do iminente último conflito mundial. Tudo caminha e tudo fatalmente deve maturar-se na vida. O bem como o mal estão enquadrados no ritmo de sua transformação e eis-me aqui chegado, chegado aqui em cima, de onde contemplo a terra, a história e a mim mesmo.

Dez anos faz, na Quinta-feira Santa de 1937, que chorei em Assis e pranteei a minha dor e a dor do mundo que tornei minha. E como agora ressurjo da minha dor na alegria de Cristo, assim ressurgirá o mundo em uma nova civilização. Vejo-a do alto deste cimo, que domina o tempo, última meta de tanta luta e sofrimento. Hoje, aqui, neste cume do Alverne, não choro mais a minha paixão em Cristo e a paixão do mundo, mas canto a minha ressurreição em Cristo e a ressurreição do mundo. A esta dediquei a vida.
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Senhor, semeei segundo as Tuas pegadas, como me ordenaste. Semeei por toda a parte, em todos os. campos do mundo, rivais e ciosos de vãs posições terrenas. Entrei lá, onde, com bondade e compreensão, me foi aberta a porta, seguindo o Teu Evangelho, que nos ordena amor. Permaneci contristado em silêncio, no limiar das portas que me foram fechadas. Fui expulso por aqueles que mais amava e que melhor deveriam ter compreendido. Senhor, ofereço-te esta minha dor. Eles não me quiseram. Oro por eles. Outra coisa não posso fazer. A obra da qual eu sou o servo é Tua. Somente Tu possuis os meios para fazê-la triunfar. Eu nada sou. Repito-Te o meu voto: "Senhor eu sou o Teu servo. nada mais quero do que isto".

Senhor, pela salvação do mundo, para aliviar, se possível, a sua merecida dor, para dar à Tua justiça uma contribuição qualquer de amor, ainda que seja quase nula, para encher o horrendo vazio produzido pelo ódio, ofereci-Te a minha dor. Somente Tu a viste e aqui em cima quase que sangrando e esvaído. Tu o sabes. Jamais peço para mim. A minha prece não pede, mas ouve. Ouve a Tua voz. Mas se para os outros eu posso implorar, faze com que o mundo seja salvo da medonha catástrofe que o ameaça, faze com que ele possa aportar a salvo à outra margem, que se encontra além da sua atual prova de dor e faze com que a meta da sua ressurreição, pela qual Te ofereço em vida, seja logo plenamente alcançada. Faze que não seja vão tanto sofrimento, faze com que a dor abra as mentes e os corações, faze que esta destruição na matéria construa no espírito. Também Tu, Cristo, ressurgiste da Tua paixão, e também ressurgi agora em Ti da minha dor. Faze que igualmente o mundo, redimido pela sua tribulação, ressurja em Ti, álacre e triunfante, como Te vejo ascender hoje aos céus, vencedor da dor e da morte, como me apareces neste radioso cume do Alverne, nesta gloriosa manhã de Páscoa. Faz com que isso aconteça. Sei que tudo é perfeito no universo, segundo a vontade do Pai, que Lhe acena a marcha fatal e que eu, orando, não posso e não devo nem ajuizar nem aconselhar, mas apenas obedecer. Deveria dizer somente: “seja feita a Tua vontade”. Mas esta minha imploração é a explosão do meu amor pelos irmãos em perigo, e é mais forte do que eu. Vejo o báratro da barbárie, que ameaça as multidões inconscientes. Entre tanto apregoamento de sistemas, salva-os, Senhor Repito-Te o meu segundo voto: "Senhor, eu Te ofereço a mim mesmo pela salvação do mundo".


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Senhor, ao terceiro ponto, permaneço só diante de Ti. Separam-se os destinos do mundo do meu destino. Cada qual é livre e responsável por si, isoladamente. Um dia me chamaste para dizer-me: "Segue-me, segue-me!" Obedeci ao Teu apelo e procurei seguir-Te Senhor, como a minha infinita fragilidade e fraqueza permitiram, como a minha pobre e culpável humanidade facultam. Mais não pude fazer. Segui-Te de longe desesperadamente chorando o meu amor perdido, para manifestá-lo, tornando-me querido. E caminhei sangrando entre as sarças caindo e levantando, levantando apenas porque Tu, que conheces a miséria, tiveste piedade de mim e me estendeste a mão. Segui-Te de longe, como convém a um servo indigno. Procurei ver-Te do fundo destas trevas terrenas. Procurei ouvir de novo a Tua voz amiga no Evangelho, esquecido dos homens Escutei com a minha pobre razão os passos por Ti impressos na história, sentindo embora que a pobre análise feita pelos sentidos não poderá jamais reconstruir a Tua figura, que está acima de toda a forma humana. Segui-Te chorando a minha insensatez, envergonhado por não saber Te dizer, porque Tu estás no alto, em tão ofuscante glória de perfeição, que eu me desoriento. Senhor, juntei esta dor que é a consciência da minha miséria às outras dores e também isto Te ofereci, para que Tu tivesses piedade de mim. Tudo isto Tu sabes e eu o sei. Nada fiz do que devia e do que desejaria. E no entanto o meu coração enamorado de Ti, sem medir mais nada, nem a Tua grandeza, nem a minha indignidade, o meu coração, ardente do desejo por Ti, incapaz de resistir à Tua chama que o envolve e queima, incapaz de compreender o alcance das suas próprias palavras, a imensidade da sua ardência, o absurdo do seu impulso, o meu coração Te repete, irresistivelmente transtornado à Tua luz, repete o seu terceiro voto: "Senhor, seguir-Te-ei até à  cruz".

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Eis que aqui, no cimo do Alverne, nesta manhã de Páscoa, o meu drama se cumpre. Por dez anos repeti, toda tarde, os três votos. E Tu permaneceste ao meu lado, Senhor, e guiaste cada passo meu no mundo, procedendo-me com a Tua cruz, coroado de espinhos. Mas tudo é transformação e a transformação possui um ritmo. A Lei que rege o universo é um pacto que Deus fez com o homem, no, qual está garantida assim a estabilidade fenomênica. Nesta Lei o mal está enquadrado a serviço do bem, a dor é permitida como instrumento de felicidade, assim como em Ti, depois da paixão, a ressurreição. Tudo é ordem em uma harmonia sublime. Como Tu já nos mostraste como sucederá para o mundo, assim também a minha dor cumpriu a sua redenção.

Na redenção não Te vejo mais coroado de espinhos sangrando na crucificação, na primeira fase que e de sacrifício do corpo-matéria, crucificado, em que o homem, ainda todo carne, se detém demasiado e permanece ainda. Mas vejo-Te na segunda fase, a mais alta e vital da redenção, que é a ressurreição no espírito, ressurreição em que o homem, ainda pouco evoluído, muito pouco assimila e compreende. Vejo-Te, pois, quão diverso de ontem Vejo-Te emerso da dor, em um esplendor de glória, de beleza e de potência, projetado na amplitude dos céus. Esplendes e irradias, todo feito de luz. És o sol da vida. A Tua chama aquece e nutre o universo. Neste esplendor, aqui no Alverne, onde agora me encontro presente em espírito, Te viu Francisco, aqui onde está escrito: "Signasti, Domine, Hic servum tuum Franciscum, Signis Redemptionis nostrae"23 . Nesta alegria, como se acabou a Tua dor, ó Senhor, deve ter fim pela mesma lei que Tu nos mostraste, toda dor, a dor do homem, a dor do mundo.
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Na mata em derredor do sacro monte do Alverne canta a voz das grandes árvores meditativas, projetadas para o céu, a voz das minúsculas criaturas aladas que aí se aninham. Mais além canta a voz do homem ocupado nos labores da terra, canta a voz das rochas e das águas, das nuvens e dos ventos em tempestade, e tudo domina o canto imenso dos céus. Tudo é festa. Os sinos anunciam para o mundo a Tua ressurreição. E Tu sobes glorioso no esplendor do sol. A Tua ordem triunfa. É a vitória final do bem sobre o mal.

O    meu destino se cumpre. Eis-me junto a Ti, Senhor, última meta. As trevas da noite se desfizeram, a névoa se diluiu ao sol. Tu me apareces intensamente mudado, assim vestido de glória, visto nesta outra margem da minha vida, depois de uma caminhada bem longa e dolorosa. Vejo-Te, não mais aflito, mas amorosamente reclinado ao meu lado, para dizer-me: "Estás fatigado. Apoia a tua cabeça em meu peito e repousa". Mas, vencedor do mal, Tu me dizes, como ao bom ladrão porque com ninguém mais tenho semelhança: Amanhã estarás comigo no paraíso". É a Tua resposta aos meus votos, por dez anos repetidos e seguidos. Tantas outras coisas depois me dizes, em linguagem não humana, no segredo da alma. Mas estas não se podem repetir porque não seriam compreendidas. Estas não se devem dizer, permanecem encerradas no segredo do Eterno!
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Assim cheguei junto a Ti, Senhor, peregrino de amor e de paixão. De todos os amores humanos, o Teu foi que venceu. A Ti só se pode amar. Através da tempestade cheguei à Tua paz. As chamas do Teu incêndio me envolverão e não me deixarão mais. A dor me salvará. Bendita sejas, irmã dor, que nos redimes. Agora sei o que Tu querias de mim, Senhor. Não mais chora, não mais treme a minha alma, mas triunfa na Tua alegria. A paixão está superada na ressurreição. Assim como a Tua dor foi minha, assim também agora é minha a Tua felicidade.

Tu estás comigo, Senhor, e não mais me deixas. E Ele me diz: "Vai, diz aos homens que não se sofre em vão. Vai, lembra aos homens o caminho da redenção. Que saibam sofrer e, sofrendo, compreender À medida que compreenderem, o círculo se alargará e a dor se suavizará. A luz de Deus bate as portas de sua alma e pede para entrar, mas eles a mantêm hermeticamente fechadas. Abram-nas ao amor fraterno, que Deus entrará. O homem deve aprender qual ser livre e pode, pois, aceitar ou repelir como quiser. Mas ai de quem odeia os outros, porque envenena a si mesmo. Ai de quem se encerra no cárcere de egoísmo, porque barra para si próprio o caminho das fontes da vida, isola-se e se estiola em direção à  morte. Vai, ensina ao mundo esquecido, desviado por detrás de falsas miragens, os verdadeiros caminhos da alegria. Sê sacerdote do espírito e oferece também o que sabes, porque de mil ofertas nasce a nova civilização".

Eis que, enquanto me afasto do Alverne para tornar aos mesmos misteres do mundo azafamado, uma última visão se me depara. Também aqui, como lá em Assis, o drama do mundo e o drama de Cristo se conjugam. E como Cristo ressuscitou, ressurge a vida da moderna e imensa catástrofe. Outros golpes virão, porque o homem é obstinado. Mas além deles, também para o mundo, há a sua ressurreição. A fé, a lógica profunda da vida no-la indicam. E assim como me liguei à dor do mundo na hora de sua paixão, estou ligado agora à sua alegria na hora da sua ressurreição em espírito. Nela reviverei. No bem e na felicidade dos outros estará o meu paraíso. E isto será a plenitude da minha meta atingida. Um paraíso ocioso, egoísta e solitário, não é paraíso.

Adeus, santo monte do Alverne, adeus... Retorno lá em baixo ao meu árduo trabalho, no mundo azafamado. Tudo aqui embaixo é tempestade: egoísmo, ódio, agressão. A fúria das paixões devasta esta pobre terra que poderia ser um jardim. Aqui em baixo o belo sonho vivido se torna utopia, e ao canto de Deus responde um grunhido feroz e satânico. Mudo é o espírito, extinta é a chama da fé e da esperança. Vive-se em um pressentimento de catástrofe universal, sem que se saiba evitá-la. A terra está enregelada sob um manto de dor. Nem mesmo o céu se vê mais sorrir do fundo deste inferno e a terra parece prestes a abrir-se, ávida por tragar o homem que se tornou fera e criatura do mal.

Dentro de mim está a visão do real.
Sim! O velho mundo realmente está no fim. É o fim deste mundo. Mas um outro surgirá dele.
Eu vi realmente a terra florir.

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22 Veja "Paixão"; Assis, quinta-feira Santa de 1937, capitulo anterior. (N. do A.)

23 "Assinalaste aqui, ó Senhor, o teu servo Francisco com os estigmas da nossa redenção". (N. do A.)