A Nova Civilização do Terceiro Milênio

Agora que percorremos caminho tão comprido, podemos finalmente enfrentar o problema da personalidade humana. Mas, antes de mais nada, observemos mais uma vez os problemas precedentes. O estudo da lei de dualidade conduziu-os à visão total e completa, mais ampla que a unilateral vida física. Nada mais lógico que, como todas as individualidades, também essa unidade da vida se divida em metades justapostas. A vida completa, como um pêndulo a oscilar continuamente, vai de um a outro de seus extremos e percorrendo esse caminho oscilante, evolui, não como vulgarmente se pensa, isto é, através de simples evolução biológica terrestre, mas sim através de evolução dupla, inversa e complementar, a material terrena e a espiritual ultra- terrena, a do corpo e a do espírito. Uma vez que tudo é bipolar, é lógico ao homem passar por duas experiências opostas, a da vida ativa e da vida contemplativa. Para conceber a existência no além-túmulo, basta-nos imaginá-la como o inverso da existência terrena. Dissemos que a psique apenas contém os resultados das experiências possíveis no seu ambiente, e não pode ser impressionada senão por elementos oriundos do mundo exterior. Essa crença, se podemos explicá-la como resultante da concepção comum que se faz da vida, ou seja, da meia-vida e não da vida completa, todavia não corresponde à realidade. Quem possui a vida terrena e a vida espiritual sabe muito bem que a psique contém, em quantidade e variedade, muito mais do que o ambiente externo pode oferecer e que grande parte de nossos conhecimentos podem, por vias interiores, provir de outras realidades. Os sonhos, a intuição, a inspiração proporcionam-nos sensações e resultados diferentes dos sensoriais, filhos da experiência terrena, oferecem-nos concepções diversas das comuns concepções racionais, demonstrando conhecimentos que a Terra não pode dar. A sensibilidade do evoluído fica na fronteira de dois mundos e sua psique se enriquece com as experiências nascidas de duas realidades diversas. Muitas vezes, o mundo interior lhe oferece muito mais do que o mundo externo. Mas, seja quem for o indivíduo, por mais rudimentar e inerte que se mostre seu espírito, a percepção interior sempre dá sinal de si, embora fraco; não existe quem, em algum momento da vida, não a tenha experimentado, mesmo embrionariamente. Quem viveu o fenômeno inspiração sabe como é lábil e está pronto a evanescer-se qualquer conceito espiritual, cuja radiação ainda não alcançou o cérebro, quando, só então, o sujeito adquire consciência desse conceito e se torna senhor dele. Sabe como a solução dos problemas percorre vias absolutamente independentes dos processos lógicos e racionais; como o relâmpago, ilumina uma zona de pensamento e de improviso o apreende. Poincaré, no seu livro Invention Mathématique registra nestes termos o fato: “O que nos fere a atenção desde logo são as aparências de súbita iluminação, reveladoras de longo e prévio trabalho anterior”. O autor observa, à custa de experiência própria, que nesses casos o pensamento se caracteriza pela rapidez, subtaneidade e certeza imediata. Quando menos se espera, apresenta-se à nossa mente a solução de problemas já de há muito propostos. Poderíamos citar inúmeros trabalhadores intelectuais, como, por exemplo, Goethe, para quem a criação artística não passava de revelação. Isso nos mostra como grande parte de nós mesmos opera fora do campo da consciência lúcida, onde se manifestam apenas os resultados de numerosos processos de elaboração e maturação. Nesses casos como influem pouco nossa vontade e nosso esforço! Nossos conceitos podem ficar adormecidos dentro de nós, bem recalcados e invisíveis nos planos mais profundos da consciência. Não obstante, desenvolvem-se e se aperfeiçoam, como se, aí nessas profundidades, reencontrassem a ordem divina e se fortalecessem graças à retomada de contato com a essência e as origens das coisas. Mais cedo ou mais tarde, porém, uma vibração afim os desperta e por sintonia (as outras vibrações não o conseguem) os faz reaparecerem, como um relâmpago, no campo da consciência. Percebe-se, facilmente, que se trata de criação pura e simples; constitui conquista do espírito, que exulta, desse modo, a aproximar-se de Deus. A meditação prepara o fenômeno, coloca a matéria-prima no abismo do espírito, propõe o problema e lança a interrogação. Silêncio. A mente debate-se no redemoinho do pensamento, não consegue escapar-lhe, logo se cansa e esquece. Mas pôs em liberdade uma força que continuará agindo. Onde? Como? Esquecemo-la, chegamos quase a ignorá-la. E eis que de repente ressurge, transformada, fortalecida, luminosa. E antes se nos mostrava obscura e cansada! A alma, então, grita, como Arquimedes pelas ruas de Siracusa: “Eureca, eureca”. Quem viveu o fenômeno inspiração sabe que a concepção mais profunda corresponde a uma posição psiquicamente inerte, de desatenção passiva, de distração relativamente ao assunto ou, mais exatamente, num estado de inexistência do pensamento ativo normal; sabe que, quanto mais rápido e percuciente for do ponto de vista sensorial, quanto mais, em relação à vontade, tende para a pesquisa e a observação, tanto mais esse pensamento serve de obstáculo à intuição. Sabe também, por experiência, que toda atividade reflexa de atenção e controle, toda tentativa consciente no sentido de passar do estado passivo de contemplação ao estado ativo de apreensão (recordação, controle, raciocínio, escrita etc), destrói a miragem e faz as ideias se desvanecerem.

Isso tudo nos mostra esta grande verdade: a criação inspirada constitui fenômeno de colaboração entre o homem e Deus, isto é, a construção, como se poderia crer, não resulta apenas da vontade e da ação, mas também no cumprimento da Lei, na obediência a Deus, a quem devemos entregar-nos sem reservas. Mostra-nos também que a finalidade criadora se atinge ativa e passivamente, não só se impondo às sábias forças vitais, mas também deixando-se arrastar por elas. A sabedoria egípcia resumiu num aforisma esse conceito: “o arqueiro atira ao alvo, esticando e soltando o arco; o nadador chega à praia, nadando e ao mesmo tempo deixando-se levar pelas ondas”. Em consequência da lei universal de dualidade, também esse fenômeno resulta do equilíbrio de duas partes inversas e complementares. Portanto, queremos e fazemos tudo quanto for necessário; somos, porém, tão ignorantes, limitados e imperfeitos que necessitamos de ser guiados por uma sabedoria que nos supra a ignorância e por uma força capaz de trabalhar onde a nossa não o consiga mais. E além de nossas possibilidades está a Lei que satura a corrente das coisas com o pensamento de Deus e plena de natural sabedoria. Parte de nossa melhor atividade pode consistir em obedecer à vontade de Deus. Assim, depois que fizemos nossa parte do trabalho, nossa obrigação cessa e convém abandonarmo-nos à Providência. Por isso o mundo consegue, em caótico estado de inconsciência, falar sobre assuntos de que não entende absolutamente nada. Do ponto de vista racional isso se chama inconsciência, pois o homem não prepara e, além do mais, ignora o seu futuro. Mas, do ponto de vista da intuição, no instinto em que a Lei se faz ouvir, essa atitude representa, em essência, maravilhosa fé na sua sabedoria e na proteção divina. E a vida, que se sabe protegida, vai progredindo. Apenas desse modo se justifica o fato de querermos continuar a viver e a reproduzir-nos para irmos ao encontro de futuro pleno de espantosas incógnitas, embora saibamos que a vida nos oferece apenas canseira e dor.

A intuição constitui fenômeno espiritual e, por isso, revela e cria. A razão, ao contrário, é função cerebral e, pois, mais do que à concepção de grandes ideias reveladoras, orientadoras e sintéticas, se destina às pequenas ideias da vida terrestre, práticas e analíticas. Algumas aplicações. A ciência moderna tem desvantagem em ignorar a vida do espírito e não dispensar-lhe cuidado algum. Esta ciência, porém, é filha de fase materialista do pensamento humano, quer dizer, racional, em antítese com a fase intuitiva; limita-se, em consequência, ao lado terrestre, prático, utilitário e material da vida. Pelo menos, enquanto essa fase não for superada, a ciência moderna somente pode conhecer-lhe e não a outra. Enquanto isso, permanece zona constituída de experimentos e análises, afastada da que se constitui de intuições e sínteses. Isso a torna incompleta, mutilada pela orientação, pela visão de conjunto necessárias para dirigir as pesquisas e chegar a uma conclusão. De fato, a ciência moderna tem finalidades utilitárias e não sabe pô-las de lado. Essa unilateralidade representa lacuna e defeito graves. Mas também a síntese é necessária, mas a síntese não se consegue senão através da intuição, isto é, trabalhando no polo oposto ao em que trabalha a ciência ou, seja, no polo espiritual. Ativa ao lado material, a ciência acumula conhecimentos, porém não fecunda. Falta-lhe a centelha do espírito. É necessário, sem dúvida, acumular conhecimentos materiais; mas é necessário também, como acontece no binômio sexual, que mais tarde o outro termo intervenha e os fecunde. Se isso não se der, coisa alguma pode nascer. Quem afirma ser verdadeiro apenas o que possa ser demonstrado experimentalmente, não exprime senão parte da verdade e ignora a outra metade, que afirma serem fruto de inspiração, fruto mais do espírito que experimental, de laboratório, todas aquelas verdades fautoras do progresso científico. Como consequência das observações até aqui feitas, assinalamos, para o bem da ciência, o perigo da exasperação analítica de nossos dias, limitada a acumular experiências ao invés de se estender à descoberta de relações remotas, e o perigo da especialização divergente, devido ao predomínio desse método analítico. Se não ocorrer mudança de direção, que inteligentemente nos impulsione para direção convergente e conclusiva, esse caminho nos conduzirá à pulverização da consciência. Membros não nos faltam; o que nos falta é cabeça. Os fatos acumularam-se demais; falta-lhes o senso unitário da coordenação. Há cento e poucos anos Augusto Comte escrevia em seu curso de Filosofia Positiva, anunciando o advento do período atual: “O presente período é a idade de especialização, graças à universal preponderância do particular sobre o espírito de conjunto”. A observação muito minuciosa nos tornou míopes. G. B. Shaw chega a dizer: “Ninguém pode ser puro especialista sem ser perfeito idiota, no mais rigoroso sentido do termo”. Leonardi na introdução de seu livro A Unidade da Natureza (1933), acrescenta: “Seria necessária uma classe de cientistas que, sem entregar-se inteiramente à cultura especializada, se ocupasse unicamente da determinação do espírito das diversas ciências, descobrindo-lhes o nexo, a fim de determinar-lhes os princípios comuns”. Henri Poincaré, no seu livro A Hipótese e a Ciência, afirma: “também as ciências, inclusive as mais exatas, necessitam de certa inspiração e devem seus progressos ao fatigante trabalho das faculdades subconscientes”. Em seguida acrescenta: “É quase infinito o número de fenômenos; por isso, não podemos submetê-los todos a experiências”. “A menos que não se queira conseguir simples acumulação de fatos(...), pois a experimentação nos dá apenas certo número de pontos isolados, torna-se necessário ligá-los”. Não basta, portanto, que a observação registre e a experiência controle; não caminhamos de modo algum senão à luz da intuição. Esta, naturalmente, deve submeter-se ao controle da experimentação, que, sozinha, jamais abandona os atalhos experimentais para percorrer a estrada real do conhecimento. Ao lado das pequeninas experiências particulares, espalhadas pelo infinito mundo fenomênico, é necessária também a experiência unitária do único eu, a quem se torna possível aproximar-se do pensamento divino. Para subirmos pelos caminhos do espírito, necessitamos de uma atitude de pé e de prece. Os caminhos da dúvida e do controle sensório nos levam para o lado da matéria, para a periferia, afastando-nos cada vez mais do centro. Os primitivos, que em lugar de senso de análise, como nós, possuíam senso de síntese, enfrentavam de modo diferente o mesmo enigma que nos assoberba. Enquanto enfrentamos o mistério, como a um verdadeiro inimigo, armados de todos os recursos e todas as astúcias, para derrotá-lo, dominá-lo e submetê-lo a nós, os antigos se aproximavam dele com palavras sagradas e solenes que suscitavam no coração dos homens o silêncio e a veneração. Hoje em dia, porém, não queremos tanto contemplar, compreender e harmonizar-nos como intervir na natureza, operar, influindo nos ritmos da vida para submetê-los ao nosso desejo. Este mais parece um assalto à Divindade. Nossa época tenta-o de novo. Semelhante experimentação se conduz por tentativas, com movimentos completamente desorientados, na completa ignorância das consequências e reações que possam desencadear. Isso é extremamente perigoso em universo tão orgânico e interdependente, num campo de forças tão sensíveis e equilibradas. Ninguém desconhece a importância da contribuição do método positivo experimental. Afirmamos, isso sim, a necessidade de completá-la com a contribuição oferecida pelo método intuitivo. Do mesmo modo que a vida, a ciência é bipolar; e, assim como estivemos à procura da vida total e completa, procuramos agora a ciência completa nos seus dois ramos: razão-análise e intuição-síntese. A intuição não é considerada como caso excepcional e pouco apreciável, mas elevada a verdadeiro sistema de pesquisa. Os resultados do objetivismo, que vêm de baixo, deveriam fundir-se com os resultados do subjetivismo, vindos do alto. Deveriam dividir entre si as duas fases do trabalho, uma consistente em encontrar, a outra em analisar e demonstrar. Por que motivo, então, nos é tão difícil encontrar na prática conceitos assim fáceis de compreender, tão lógicos e persuasivos? A razão é esta: a intuição apenas pode ser exercida por tipo biologicamente selecionado, isto é, pelo evoluído, de que há poucos exemplares e esses mesmos acabam sendo, cedo ou tarde, eliminados pela sociedade na luta pela vida.

A sede dessas fontes particulares, a que agora lançamos um apelo, se encontra na personalidade humana, imenso problema cujo resumo procuraremos fazer nestas últimas páginas, a título de coroamento desta obra. Não poderíamos enfrentá-lo antes de propormos a solução de tantos outros problemas até agora tratados, que lhe servem de orientação e dos quais o problema da personalidade serve de fecho. Começamos a falar da personalidade nos fins do capítulo 26. Mas era necessário percorrer outro caminho e antepor outras demonstrações para que agora possamos continuar elaborando a conclusão. Na parte final daquele capítulo, definimos a lei de dualidade. Não pode fugir à lei universal o problema que agora nos preocupa. Até mesmo essa individuação constitui, por isso, unidade dupla, isto é, formada de metades inversas e complementares, em choque e em equilíbrio. Também nesse caso, nasce desse choque aquela elaboração íntima que lhe constitui a evolução. Vimos as características dos dois termos da unidade e agora retomamos o contato com eles. Portanto, a personalidade humana é bipolar: espírito e matéria, alma e corpo. Quer dizer: equilíbrio e desequilíbrio. Do movimento das duas partes, que se entrechocam, nasce a elaboração evolutiva. As duas partes são amigas e rivais, atraem-se e repelem-se, procuram-se e evitam-se; estão ligadas uma a outra, para que assim possam viver, mas, apenas uma delas se mostra mais fraca, a mais forte predomina e invade o campo da outra. Dissemos que as raízes do psiquismo mergulham profundamente nos meandros misteriosos da estrutura orgânica. Acrescentemos agora que as causas e as razões da estrutura orgânica estão sediadas na parte mais elevada do campo do psiquismo. O mistério do espírito estende-se até à intimidade da célula, cuja complexa estrutura já estudamos. A vida palpita num e noutro polo, desde a inconfundível individualidade sintética e unitária à extrema ramificação sensorial, à infinita multiplicação celular, à analítica pulverização fenomênica ambiental. O eu é duplo, não fica no centro apenas, mas também na periferia, ora analítico, para captar e absorver experiências, ora sintético, para resumi-las e destilar-lhes as qualidades; no centro, permanece idêntico a si mesmo, como eu inconfundível; na periferia, flutua em meio a experiências mutáveis. A corrente move-se em duplo sentido: o mundo interior nutre-se das vibrações provenientes do mundo exterior, mas acaba dominando-o e plasmando-o à sua vontade. A atividade celular repercute na atividade psíquica e ao contrário. O eu pode ser concebido como centro apenas enquanto pudermos relacionar-lhe a ideia complementar de periferia. Assim, a personalidade espiritual pode significar a síntese de inteligência celulares; e o oceano dos micro-organismos celulares, inclusive o átomo e seus elétrons, representará o veículo dessa personalidade, como corpo, roupagem da alma. O espírito, uma vez que é o centro, pertence a todos os pontos da periferia: é o centro e, ao mesmo tempo, a periferia.

No homem se repete, em ponto pequeno, o plano construtivo do universo; o microcosmo é feito à imagem e semelhança do macrocosmo. A natureza obedece a esquemas únicos e simples, repetidos em todos os estágios evolutivos, em todas as dimensões e presentes em todas as complexidades, de maneira que, para dirigir e animar tudo, basta um único princípio, método e dinamismo. As infinitas manifestações fenomênicas obedecem a um só motor e a um só tipo diretivos. E isso de um extremo a outro, dos mais complexos agregados às unidades mais elementares (por exemplo: do sistema solar ao átomo). Assim, todo fenômeno não passa, em substância, de uma espécie do mesmo modelo; todas as formas se calcam no esquema originário de que derivam os demais. Torna-se fácil, portanto, compreender a analogia entre todos os fenômenos e justificar-lhes o parentesco. Daí a possibilidade de reduzi-los a tipo único; assim se explicam as comparações, a que tantas vezes recorremos, entre os fenômenos morais e físicos e a relação unitária dos campos mais díspares. Como a personalidade humana, também o universo é bipolar e construído segundo o mesmo princípio. A unidade máxima, ao invés de constituir-se de exceção, confirma a lei de dualidade. Essa bipolaridade é a estrutura interna do monismo, que é dualístico. As observações, que até agora fizemos e culminaram no estudo da personalidade humana, corroboram esse conceito e resultam nesta conclusão. Os dois termos do binômio, embora extremos opostos e distintos do fenômeno, estão indissoluvelmente unidos, funcionam conjugados, condicionam-se reciprocamente, podem ser considerados como luz e sombra um do outro. São, portanto, distintos e distinguíveis, Criador e criação, alma e corpo; princípios diferentes, porém, pelo fato de serem complementares, de funcionamento único, indivisível, reciprocamente condicionado e, portanto, equilibrado, de modo que a queda de um termo importa na do outro. No esquema de nosso universo, pelo menos tal qual se nos revela hoje, não tem sentido a sobrevivência de um termo só. O equilíbrio de impulsos que o rege impõe não se possam os dois termos separar sem ruína total. Isso não é simples hipótese ou teoria filosófica, mas verificação objetiva do estado atual das coisas. Portanto, o eu central, no universo e na personalidade humana, está presente na intimidade até mesmo do último átomo de seu organismo físico; como já dissemos, é ao mesmo tempo centro e periferia. Deus encontra-se no centro e em toda parte. Como poderia, doutro modo, estar em toda parte? A causa está no efeito e o efeito na causa. Transcendência e imanência constituem os dois polos do mesmo binômio. O hipersensível evoluído, como S. Francisco, sente e, por isso, não pode negar essa presença de Deus em todas as coisas, não é panteísta. E não constitui panteísmo afirmar que o binômio Deus-universo, o espírito-matéria, é inseparável e igualmente relacionado em recíproco funcionamento; não o constitui, também, dizer que os dois termos, embora opostos, se acham tão impregnados um do outro ao ponto de qualquer um deles, presente e ativo, penetrar profundamente no campo do outro. Tal o significado, em A Grande Síntese, de: “Monismo, quer dizer, o conceito de um Deus que, ao mesmo tempo, é a criação” (Cap. 6); “Em todas as suas manifestações, Deus é onipresente” (Cap. 11); “Tudo deve reentrar na Divindade” (Cap. 43); “Não temais diminuir-lhe a grandeza, dizendo que Deus é também o universo físico” (idem). Esses conceitos vamos aprofundá-los e esclarecê-los mais no próximo volume: Problemas do Futuro.

Voltemos ao problema da personalidade humana. Já dissemos resultar a evolução biológica de evolução dupla e inversa, a material, terrena, e a espiritual, ultra-terrena; ela realiza-se através de duas experiências opostas, isto é, de vida ativa e de vida contemplativa. Quem realiza esse trabalho? E como se divide ele? O espírito, de sinal positivo, masculino, dinamiza e dirige a evolução. Preside às experiências da vida. Emprega-as para elaborar-se e, por conseguinte, elaborar também o seu corpo, aperfeiçoá-lo, desmaterializá-lo. O espírito evolui em direção a planos cada vez mais elevados, arrastando-se atrás de seu veículo material, quer dizer, utiliza corpos cada vez mais sutis, adaptados à sua fase evolutiva e a formas relativas de vida. Compreende-se que, para poder fazer experiências, o espírito sempre necessita de um corpo, na função de outro extremo do binômio; para isso, não importa esteja o corpo desmaterializado ao ponto de parecer incorpóreo. Ele sempre constitui veículo adequado, quanto à finura e à sensibilidade, ao grau de evolução atingido pelo indivíduo, que, graças ao seu peso específico, se equilibra, escolhendo um ambiente onde as provas sejam proporcionadas às qualidades adquiridas por ele.

O organismo corpóreo, de ondas longas e baixa frequência, segue, portanto, o espírito que caminha para a evolução, isto é, aproxima-se, morrendo e ao mesmo tempo renascendo, do extremo oposto, de ondas curtas e alta frequência, transformando sua vibração em vibrações deste último tipo; em uma palavra: espiritualiza-se. A corrente de vibrações, que sobem das múltiplas experiências sensoriais e convergem para a síntese espiritual, fornece as forças a elaborar; ao mesmo tempo, porém, uma corrente paralela desce do espírito ao organismo, invade-o com tipos de energia cada vez mais bem elaborada, quer dizer, de ondas cada vez mais curtas e frequência cada vez mais alta; desse modo, lentamente o potencial de toda a personalidade se eleva de um extremo a outro, inclusive na parte física. Dessa oscilação de atividade, conexão e repercussão de forças deriva a evolução. Embora a evolução se opere graças ao princípio ativo, o negativo também colabora; não fora ele, faltaria ao primeiro a matéria a ser plasmada, a substância com que construir. Observamos nesse caso a mesma divisão de trabalho existente entre o homem e a mulher. O organismo físico coleta e acumula; o espírito dinâmico elabora e progride. O primeiro engorda, preguiçoso e vegetativo, e se sacia apenas satisfazendo os instintos de conservação e de reprodução; o segundo gasta a vida vegetativa na consecução de fins mais elevados, bate-se e atormenta-se na ânsia de evoluir. Esse é o duplo aspecto da vida.

No entanto, esse dualismo espírito-matéria não basta para esgotar o problema da personalidade. Não é a única bipolaridade da vida essa antítese entre periferia e centro, entre as correntes de ascese e descensão pelas quais se distribui, entre os dois termos, o positivo e o negativo, a atividade evolutiva. A esta bipolaridade, que poderíamos figurar como bipolaridade vertical em que, do ponto de vista evolutivo, a matéria está em baixo e o espírito em cima, imaginaríamos superposta uma bipolaridade horizontal em que o princípio biológico positivo, derivado do núcleo do espermatozoide paterno, e o princípio biológico negativo, derivado da célula-ovo materna, estão situados à esquerda e à direita da bipolaridade vertical. A consciência humana, portanto, é o ponto de convergência da orquestra de vibrações provenientes dessas quatro grandes vias determinadas pelo cruzamento dos dois binômios. Disso é que somos constituídos, somos filhos e parentes, isto é, desse conjunto orgânico de forças e correntes, quer dizer, de algo muito mais complexo e extenso que a carne dos nossos pais, por mais que essa carne tenha vivido e traga inscrita em si mesma a sua história. A personalidade humana abrange os dois binômios, isto é, encerra em si quatro elementos que necessitam de fundir-se, embora lutem para se destruírem, dois desequilíbrios de forças à procura de reequilíbrio, isto é, duas fontes de movimento, de contraste, de sensação. Conforme concordem, forte ou fracamente, deles derivará estado de maior ou menor entrosamento ou de maior ou menor contraste e poder criador e, desde as notas graves até as mais agudas, mais ou menos profunda e extensa gama de ressonâncias e riqueza de sentimentos. A personalidade serve de campo de batalha a essas forças, que se encontram dentro dela e podem ser calmas e concordantes ou impetuosas e discordantes ao ponto de transformá-la em violento explosivo. Pode a personalidade, pois, manifestar-se sob tantos aspectos quantas são as posições por ela assumidas e variáveis de um extremo a outro, isto é, de um estado de passividade inerte a outro de intenso dinamismo criador, derivante de desequilíbrio que se não o sabem dominar, pode precipitar-se na loucura. Procuraram identificar o gênio com a loucura, não porque ambos possuam algo de comum, como estado e resultados, pois a diferença entre os dois termos jamais foi tão profunda, mas porque o desequilíbrio originário do dinamismo criador do gênio fica a um passo apenas da anarquia espiritual da loucura. A superioridade do gênio, porém, reside exatamente na capacidade de domínio e de coordenação das próprias forças, de que jamais perde o controle. Domínio e coordenação muito mais fáceis para o homem normal, dotado de recursos bem mais escassos. Em todo caso, porém, em face desses elementos fundamentais que constituem a personalidade, o segredo da vida consiste em saber encontrar a harmonia.

As correntes vibratórias que nos percorrem a personalidade, fluem, portanto, de quatro fontes, representantes de quatro mundos, quatro sínteses, fruto de longo passado. São: 1) o eterno eu espiritual, 2) o ambiente terrestre, 3) o elemento paterno, 4) o elemento materno. Se grafarmos a reta da bipolaridade vertical sobre a reta da bipolaridade horizontal, obteremos o desenho de uma cruz, em que os quatro termos correspondem aos quatro braços. No alto da cruz teremos o espírito, em baixo o ambiente-matéria, no braço esquerdo o elemento paterno e no direito o materno. As experiências ambientais, se quiserem atingir o espírito, devem atravessar o organismo físico. As correntes vibratórias oscilam de cima para baixo e de baixo para cima, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita; em todas as direções se trava luta. A personalidade representa o resultado dessa luta, a síntese desses elementos; por isso, pode ser múltipla, como se oscilasse entre os diferentes polos extremos. No plano orgânico-psíquico (já vimos que o espírito não reside no cérebro) a luta se trava entre a personalidade paterna e a materna e explode na puberdade. Uma das duas personalidades vence, firma-se e constitui a dominante, em que prevalece o tipo de um dos dois progenitores. Como acontece na coexistência, o mais fraco cede o passo no ponto em que o mais forte conquista e, desse modo, se estabelece a harmonia. Vencida, nem por isso a personalidade morre; continua, modestamente como força subordinada, a gravitar em torno da principal, como os planetas em torno do sol do sistema a que pertencem. A natureza não a abandona nem despreza; utiliza-a, porém, confiando-lhe funções mais modestas, mas necessárias, como, por exemplo: o controle representado pela oposição, pelas minorias; a tarefa de equilibrar, refreando-o, o domínio exclusivo e a manifestação repentina e irreflexiva da personalidade dominante. Reflexão significa controle recíproco entre duas tendências; quando elas entram em conflito, a hesitação aparece. Daí as diferenças de vontade, a tragédia dos impulsos opostos da consciência. Quando uma das forças vence, a vencida se retira para a sombra, contentando-se em viver uma vida apagada, à espera da desforra, mas assumindo, enquanto isso não acontece, a direção de funções modestas, a fim de assumir a direção geral, apenas a força vencedora se canse e baqueie.

Entre os dois elementos há vários graus de fusão. Há indivíduos, os chamados impulsivos, em que uma das personalidades venceu tão nitidamente ao ponto de dominar pacificamente, sem resistência, todo o campo da ação, pois a parte oposta o abandonou inteiramente e nenhum controle exerce mais sobre ele. A decisão, assim, torna-se fácil, simples, automática, retilínea, sem lutas, oscilações e dúvidas. São poucas as forças empenhadas na luta; por isso, encontra-se rapidamente a solução. Parece até rapidez o que, no entanto, não passa de simplicidade e pobreza de meios. Outros, ao contrário, aparecem tarde e, apesar disso, são ricos e complexos; neles o desequilíbrio não se resolveu pela pacificação estática e continua alimentando a contradição. Neles as duas personalidades, ambas prepotentes, concorrem contemporaneamente em todos os atos, levando-lhes tal riqueza de forças propulsoras e contraditórias que as divisões se tornam muito mais laboriosas. Daí deriva completa gradação de manifestações volitivas e de capacidade decisória, gradação que varia desde a ação imediata até à irresolução, da ausência de controle observável no impulsivo até o controle tão rigoroso ao ponto de paralisar a ação (Ham-let), da ação desorientada até à orientação inativa, isto é, a reflexão paralisante. Tudo isso depende das características dos dois elementos: paterno e materno. Não se fundem ou se fundem mal, se muito dissemelhantes do ponto de vista biológico. Desse fato resultam todas as anormalidades descritas na fenomenologia psiquiátrica; as conformações mentais em que se predominam a dissonância e a instabilidade; o desequilíbrio dinamizante, mas perigoso, que, se controlado e reconduzido a ordem superior, pode constituir o gênio e, se abandonado a si mesmo, se desfará na loucura. Geralmente, porém, os dois estímulos, paterno e materno, acabam por harmonizar-se. Se a diferença for demasiado grande, nascerá um caráter mais ou menos estável e equilibrado, verdadeiro mosaico de tendências. Se pensarmos em como, na reprodução, os elementos determinantes podem grupar-se em combinações infinitas, compreenderemos que inexaurível quantidade de tipos pode a natureza produzir. Na realidade, não existe o tipo normal, isto é, o tipo médio perfeito e absolutamente equilibrado. Portanto, não existe o completamente anormal, o tipo patológico absoluto. A vida a cada passo nos oferece exemplos de compensação! Quem não vence hoje amanhã talvez vença! Ao contrário, novidades, coisas originais, personalidade brilhante podem nascer desses desequilíbrios, se soubermos dominá-los, coordená-los e discipliná-los, desequilíbrios que, assim, se tornam qualidade preciosa, capaz, só ela, de oferecer contribuição inédita ao pensamento e ao progresso. A natureza, embora pareça proceder por tentativas, sabe errar e corrigir-se; de qualquer modo sempre nos compensa do que nos manda; deixa-nos cair para ensinar-nos a levantar-nos; expõe-nos aos assaltos, mas guia-nos à vitória e, por ela, à aquisição de novas qualidades, ao enriquecimento do nosso patrimônio de capacidade e defesa. Todos os golpes recebidos são registrados no livro da vida, onde tudo fica escrito, de modo a poder ser lido em qualquer tempo. A moléstia tende a imunizar-nos, o erro a instruir-nos, a queda a reequilibrar-nos, a fraqueza a fortalecer-nos. Tudo acaba sendo utilizado e transmitido e a vida imortal, desse modo, enriquece e acumula grande acervo de complexas heranças, através de prolongadíssimas experiências milenares que o nosso organismo incorpora e possui como riqueza oriunda da imensa sabedoria biológica, que, aliás, cada um de nós carrega consigo, sem sequer imaginá-lo. Desse modo, na batalha entre as duas forças contrárias, a natureza surge como grande harmonizadora, demonstra ser potência benfazeja, sábia, previdente e protetora, que transforma os desequilíbrios em elementos dinâmicos e criadores, as dissonâncias em harmonias, o dinamismo contraditório em personalidade original e potente.

Essas observações são válidas apenas no campo estritamente biológico; não bastam para resolver o problema da responsabilidade moral e esgotar o da hereditariedade. A personalidade humana também resulta de outras forças e de outras posições. Já analisamos a luta no interior do binômio horizontal; não observamos ainda a que se trava na intimidade do binômio vertical, com que a primeira se harmoniza. Acima dessas incompatibilidades biológicas se situa o mundo moral do espírito; e abaixo, o mundo exterior, com todos os seus golpes e resistências. A personalidade resultante dos dois elementos (pai e mãe) cruza-se e combina-se com a constituída pelo binômio espírito-matéria, eu interno e ambiente externo. A personalidade completa resulta de todos esses elementos e movimentos. Que riqueza! Porém, como nos desgasta essa luta! A natureza, tão amiga de definir as suas construções sob forma concreta e precisa, não tolera ócio e preguiça, mas exige permanente colaboração mútua dos valores e correspondência rigorosa entre a forma e a substância. Se chega a completar-se, a harmonia derivada da fusão dos elementos herdados, da linha paterna e materna, deve por sua vez lutar contra o ambiente para, também nessa outra dimensão, conseguir harmonizar-se. É a isso que, nos casos mais comuns, se limitam as fadigas da vida, no seio da natureza que também se revela economizadora de energias. Verdade que, embora limitada a esses elementos, utilize o patrimônio hereditário constituído das numerosíssimas experiências adquiridas e atinja os dois reservatórios, paterno e materno, continuamente cruzados, a personalidade deve, à custa do próprio esforço, fazer novas aquisições; deve, outrossim, aumentar aquele capital, investindo-o em novas combinações, empregando-o na atividade que lhe é própria, completando-o com novas aquisições, obtidas experimentalmente no meio ambiente. Assim aumentado, a personalidade deve por sua vez devolvê-lo à circulação, gratuitamente como o recebeu. Se, porém, são estas as fadigas comuns da vida, podem existir outras bem diferentes, a que, o homem normal escapa. A existência torna-se muito mais complexa, a luta áspera e difícil a harmonização; mas, em compensação, torna-se mais rica de desequilíbrios dinamizantes e criadores, quando surge e atua com forças preponderantes o elemento espiritual, por sua vez servido de uma bagagem de experiências pessoais, extensamente desenvolvida e, por isso, tão desejosa de viver vida própria e de afirmar-se perante os outros elementos da personalidade que chega a desafiá-los e a combater contra eles. Então, a personalidade, se mais extensa e mais rica, representa concerto de ressonâncias mais complexo, transforma-se também em campo de batalha bem mais vasto; neste a harmonização é muito difícil de obter, pois a síntese unitária do eu não se verifica somente no plano orgânico-psíquico, mas também no plano espiritual, mais elevado. É o caso do tipo evoluído. Portanto, todo o extenuante trabalho que deriva do desacordo entre as forças da personalidade, da concordância ou discordância dos ritmos, não se limita ao binômio horizontal pai-mãe e ao ambiente, mas se estende para as zonas elevadas do espírito; aí, e não no plano biológico vai procurar a sua solução. As correntes dinâmicas, então, navegam e se cruzam em todos os sentidos, a luta biológica do homem contra a mulher (pai-mãe) e a da mulher contra o homem (mãe-pai) se cruza com a luta moral, do espírito contra a matéria (espírito-ambiente) e, com a luta material, da matéria contra o espírito (ambiente-espírito), então os antagonismos do binômio vertical martelam o corpo físico e dão nascimento ao processo de maceração, que amadurece e evolui. Já observamos essa elaboração evolutiva, que continuamos a examinar. Desse trabalho intenso nascem indivíduos cada vez mais especializados. Mas, se por um lado parece que a natureza caminha para o individualismo, isto é, para o separatismo que isola e afasta o indivíduo do corpo social, doutro lado vemo-la mais tarde procurar o reequilíbrio dessa tendência, apoderando-se do indivíduo e engendrando-o nas múltiplas unidades sociais constitutivas dos coletivismos modernos. Isto porque a célula-indivíduo se diferencia, não em proveito próprio, não para isolar-se da ordem da natureza, mas para ser empregada numa ordem social muito mais vasta, com funções adequadas às qualidades características adquiridas.

Já dissemos que a visão estritamente biológica não basta para esgotar o problema da hereditariedade. A ciência limita-se a levar em conta os dois elementos do binômio horizontal e o elemento inferior do binômio vertical; não leva em consideração o elemento superior deste último. Os instintos, as ideias inatas, as qualidades adquiridas mediante a experiência ambiental e, graças a infinitas repetições, transformadas em automatismos, não seriam conquistadas pela eterna personalidade espiritual, capaz de conservá-las e restituí-las em qualquer momento em que forem úteis, através de prolongada série evolutiva de vidas corpóreas, menos significativas e encerradas na oscilação nascimento-morte; mas seriam adquiridas em virtude de uma espécie de memória biológica, celular, e nela depositadas e conservadas.

Em A Grande Síntese, cap. 69 (“A Sabedoria do Psiquismo”), entre os coleópteros citamos o ceramyx miles, como exemplo de sabedoria imensamente superior à organização e aos meios que possui. Acrescentemos, agora, o caso, ali apenas esboçado, de um himenóptero, o sphex, cuja fêmea, ao lado dos ovos, que põe na areia, coloca um inseto por ela previamente paralisado com um golpe de ferrão, para que sirva de alimento à futura larva. Ora, o sphex atinge a vítima exatamente no ponto onde, no dorso, se encontra o gânglio nervoso que preside ao movimento. Desse modo, obtém a provisão representada pelo inseto, que, por estar paralisado, não pode sair do lugar e se conserva em boas condições porque continua vivendo. Como o sphex conhece anatomia e anestesia? Quem lhe ensinou esse fato anátomo-fisiológico? Dirão: a experiência. Mas os insetos vivem poucos meses e as larvas, quando nascem, já os pais e toda a geração precedente desapareceram: Onde, pois, o ensino e a imitação? Ou esse inseto possui, talvez, sensibilidade bastante para perceber as radiações transmitidas pelo gânglio nervoso e poder desse modo encontrá-lo? Se fosse assim, quem o mandou atacá-lo e o informou das consequências? Quem responde pelo raciocínio que relaciona todas as fases do processo lógico? Ninguém pode negar a existência de princípio inteligente nesse inseto e, se não é possível que ele o tenha criado, então lhe foi transmitido. Por que caminho, porém? Porventura, as células conservam a memória atávica? Mas basta esse caminho? São as células capazes de semelhante síntese racional? Isso quer dizer psiquismo. Deposita-se ele nas células? Existe outro psiquismo? Este conserva a memória de todas as experiências vividas durante milênios e, no presente caso, até mesmo as inerentes ao estado de simples inseto. A conservação desse tão precioso patrimônio hereditário e do novo patrimônio que a experiência continuamente lhe acrescente, é confiada à memória celular? Ou a um organismo imaterial em que se registram e fixam definitivamente, sob a forma de qualidades adquiridas? E as correntes vibratórias oriundas do ambiente?

De acordo com a ciência, a memória biológica residiria na célula que traz inscrita em si mesma sua prolongadíssima história, cujo conteúdo lhe foi transmitido através da filiação e da derivação dirigida pela célula germinativa hereditária. A essa história do passado cada vida acrescenta a própria experiência, soma-a à precedente e com esta, assim completada e corrigida, a transmite. Tratar-se-ia de uma espécie de reencarnação celular, a continuidade das vidas sucessivas não seria confiada à sobrevivência de um princípio espiritual supercorpóreo, mas à persistência das impressões celulares. É verdade que o ambiente atua e continuamente nos impressiona o ser, a repetição fixa nele hábitos ou automatismos, tendentes a radicar-se sob a forma de instintos (A Grande Síntese, cap. 65: “Instinto e Consciência – Técnica dos Automatismos”). Também é verdade que todas as nossas experiências se registram e transmitem por hereditariedade. Mas o problema consiste em saber como, por que via e por que mecanismo a célula se impressiona e conserva as impressões.

Para compreender, torna-se necessário reduzir o fenômeno à pura substância cinética. Trata-se, agora, de várias correntes de vibrações, de ritmos, de movimentos ondulatórios que se transmitem e se imprimem. Já os examinamos nos capítulos precedentes. Os movimentos vibratórios do ambiente externo penetram no organismo através das vias nervosas e sensoriais. Essa penetração contínua constitui fato indiscutível. E essas vias são portas escancaradas. Nosso organismo é também uma orquestração de ritmos. Os movimentos vibratórios entram, avançam, invadem a estrutura orgânica cada vez mais intimamente, percorrem-lhe e saturam-lhe as vias, penetram-na sempre mais. Têm de parar no último termo que nossa decomposição analítica nos dá a conhecer, isto é, imprimir-se-ão, sob a forma de desvios de trajetórias já existentes nos movimentos atômicos ( A Grande Síntese, cap. 55: “Teoria dos Movimentos Vorticosos”), movimentos atômicos dos quais resulta, em grau de complexidade progressiva, o sistema cinético-dinâmico molecular, micelar, celular, orgânico, psíquico. O fato de a repetição funcionar como determinante de automatismos, confirma de um lado a referida atividade cinética e de outro a impressionabilidade cinética. Trata-se, talvez, de atividade eletromagnética. Daí derivaria a memória celular. Se os vários elementos componentes forem reagrupados de conformidade com a lei das unidades coletivas (A Grande Síntese, cap. 27) e os movimentos atômicos fundamentais estiverem presentes a todos os organismos mais complexos, existirá a possibilidade de conseguir sínteses progressivas, até chegar-se à síntese máxima, que se nos revela sob a forma de consciência. Os resultados cinéticos da experiência, desse modo, se imprimiriam em todas as células do corpo e, graças à hereditariedade, se transmitiria e receberia essa sabedoria adquirida pela raça, comum a todos, de que cada indivíduo seria depositário, para usá-la em benefício próprio, conservá-la, enriquecê-la e, enfim, transmiti-la aos descendentes, em benefício deles, e assim por diante. Essa sabedoria, percorrendo os órgãos nervosos e cerebrais, se concentraria, de acordo com o princípio das unidades coletivas, na síntese máxima do psiquismo, derradeira resultante das experiências da vida.

Já o dissemos: sabedoria a ser aumentada e transmitida. O trabalho, portanto, é duplo: de nova experimentação, tendo em vista o aumento, de conservação do velho e do novo, tendo em vista a transmissão. Temos, pois, dois tipos de registro cinético: o recente e o atávico, o novo e o velho, o que nós fazemos e o feito pelos nossos antepassados. O primeiro conduz à captação e fixação dos movimentos de variação da espécie; o segundo representa, na raça, as qualidades mais íntimas e mais estáveis, fixadas em todas as células, não por via de aquisição, mas de hereditariedade. As duas diferentes funções, isto é, o desvio e a conservação das trajetórias, seriam confiadas a dois sistemas celulares: de um lado os conjuntivos, ou seja, os tecidos de nova formação embrionária e de outro o sistema de todas as demais células. Dois sistemas, portanto, que culminariam em duas sínteses psíquicas: a primeira, temporária, individual, representante da porção de vida pessoal do indivíduo; a segunda, coletiva, eterna, representando a espécie e a continuidade da vida. Dois psiquismos, pois: o psiquismo ativo, trabalhando por armazenar novas qualidades, construtor do eu através das experimentações, registrador, receptivo, assimilador e fixador de novas experiências biológicas a serem transmitidas ao outro sistema; e o psiquismo atávico, conservador, que, sob a forma de qualidades hereditárias e de instintos, de idéias inatas e capacidades adquiridas, faz ressurgir e restitui as referidas experiências. Os dois sistemas giram em torno um do outro, de acordo com o costumeiro esquema do binômio de forças contrárias e complementares de que resulta a composição do binômio de toda unidade, de conformidade com a lei universal de dualidade.

Tudo isso não deixa de ser persuasivo, mas permanece insolúvel o problema da conservação das impressões, isto é, das novas características cinéticas que se vão continuamente formando nos movimentos atômicos. Como conciliar a permanente identidade do eu, não obstante a mudança de suas qualidades, e a renovação completa e contínua do material constitutivo do organismo? E, então, não é possível que, ao invés de a memória celular, a conservação das impressões seja confiada à memória espiritual sediada no organismo imaterial que chamamos alma? Se a vida é metabolismo, é uma corrente, o que lhe impede a dispersão e mantém a unidade? Ao nascer, já trazemos conosco, sem dúvida, os resultados de um passado. Mas onde foi esse passado inscrito: na intimidade da célula, ou na do espírito? É difícil, sem sombra de dúvida, conceber uma transmissão hereditária através apenas da célula genital e a sua capacidade de conter-lhe todos os desenvolvimentos futuros e, depois, guiá-los na reconstrução do ser completo. Não é fácil, também, imaginar uma transmissão hereditária fundada na reflexão de vibrações produzida por um organismo espiritual que, introduzindo-se no organismo físico, através das vias imateriais visíveis da percepção interior, guie-lhe o desenvolvimento (ideoplástica). Tanto mais que o primeiro sistema não pode ser suficiente para transmitir todas as impressões registradas pela espécie, pois as melhores experiências, as da maturidade, adquiridas depois da idade da reprodução, que é fenômeno juvenil, não seriam transmitidas, permaneceriam incomunicáveis. Perder-se-iam, então, as melhores aquisições; e a vida dos solteiros, por não haver sido utilizada, não teria utilidade alguma para a raça. Ora, como a natureza, em ponto dessa importância vital, pode deixar que lhe roubem os resultados mais preciosos e custosos? Como ela, previdente e econômica, pode abandonar as experiências mais importantes da vida – as experiências espirituais, que se adquirem até mesmo em plena senilidade? Como é possível tão flagrante contradição com a habitual economia da natureza? As melhores conquistas se dispersariam, tantas fadigas se tornariam vãs e seu resultado ficaria destruído; isso tudo constituiria mais uma gritante contradição do mundo em que nada pode ser destruído e também essas forças, como tudo, aliás, devem ressurgir. E como poderia progredir uma raça incapaz de acumular, senão experiências elementares e juvenis? De que se alimentaria o progresso, fato espiritual e de realidade inegável? Não. Não é possível que a vida seja mutilada desse modo, exatamente no centro do seu sistema, tão perfeito, aliás, sistema que se tornaria imperfeito precisamente no ponto mais substancial, ao ponto de, com o desaparecimento das experiências mais sublimes da raça, fechar-se o caminho do progresso.

A herança fisiológica, portanto, não basta. Se os filhos se parecem com os pais, muitas vezes não se parecem e, até mesmo, os superam. O gênio não é hereditário. O fenômeno, sem dúvida, deve ser bipolar; não pode constituir exceção da lei universal de dualidade. Na realidade, se tudo é dúplice, a hereditariedade também deve sê-lo, quer dizer, deve processar-se pelos dois caminhos possíveis, em posições e com funções complementares. Dois são os eixos constitutivos da personalidade (pai-mãe e eu-ambiente), duas as suas formas de luta, dois os sistemas de forças e duas as evoluções (material e espiritual); assim, nada mais lógico que também sejam duas as formas de hereditariedade correspondentes aos dois eixos, cada forma de luta tenha objetivo determinado e todo tipo de evolução, como todo sistema de forças, possua canal de transmissão privativo. As forças não param e as experiências acumuladas devem dar algum resultado. Quem se limita exclusivamente à hereditariedade fisiológica, esquece o imenso mundo do espírito, dos valores morais, onde, em atmosfera de plena responsabilidade, nosso destino se cumpre.

Percorremos os caminhos da ciência, para permanecermos positivos; e chegamos aos movimentos atômicos, a desvios de trajetória, a ações e reações cinéticas, à absorção de ritmos, a movimentos de correntes vibratórias. Eis que tudo se desmaterializa em nossas mãos e se traduz no imponderável, característico do espírito. Quando chegamos ao fim do caminho, percebemos que o fenômeno se desfaz e dele não resta senão o jogo de forças, a estrutura de vibrações, o dinamismo imaterial, que possui muitas das características do espírito e das suas invisíveis atividades. Mas, então, o contraste, na aparência verdadeiro, entre materialismo e espiritualismo, não passa de simples questão de palavras, pois afinal tudo termina no mesmo ponto, descobrindo a mesma verdade e dizendo em substância, a mesma coisa. Quando acabamos de percorrer os caminhos da ciência e da matéria, exclamamos: Mas isso é o espírito! E, de fato, é o espírito mesmo. Já vimos que, no binômio espírito-matéria, ele se encontra até mesmo no polo oposto e que o mistério do psiquismo se estende até à intimidade da célula. Dissemos que o eu é dúplice, não está apenas no centro, mas também na periferia; que o espírito, central, também está em qualquer ponto da periferia; é, ao mesmo tempo, o centro e a periferia. Dissemos também que a memória atávica, a sabedoria adquirida pela raça, está confiada a todas as células do corpo e nelas se difunde. Mas, então, falar desse sistema é, em última análise, o mesmo que falar do espírito, se sua substância pode traduzir-se cientificamente numa orientação de cinética atômica e se dessa maneira o psiquismo se manifesta até mesmo na intimidade da célula. Surge, então, esta pergunta: O espírito constitui a causa ou o efeito do sistema? Ou, melhor, o espírito representa o motor determinante das correntes de consciência que dirigem o funcionamento do organismo ou, então, é a síntese das correntes de consciência derivadas dos sistemas celulares?

Para Renan “a alma resulta das forças do corpo”. Podemos, no entanto, observar: se é natural que a síntese de correntes de consciência derivadas dos sistemas celulares atinja o plano biológico, como poderá ele, no entanto, elevar-se até ao mundo moral, tão absolutamente diverso, do ponto de vista qualitativo? Harmonizemos o antagonismo. Geralmente, o homem, por motivo da luta que sua natureza bipolar lhe impõe, apesar de dividido se conserva unido. O materialismo e o espiritualismo, ambos unilaterais, manifestam apenas a parte que possuem da verdade. Se nos perguntarem se o espírito constitui causa ou efeito do sistema, respondemos com as mesmas palavras por nós já empregadas: a causa está no efeito e o efeito na causa. Trata-se apenas de dois termos da mesma unidade bipolar, de um caso particular da lei universal de dualidade. Atingimos o limite em que se supera o binômio e se resolve a contradição. Tocamos, agora, o limiar do mundo superior em que desaparece a grande ilusão da forma e tudo se unifica na mesma verdade.

O desenvolvimento dos últimos capítulos permite-nos imaginar o jogo de forças e o entrelaçamento de ritmos que constituem o íntimo dinamismo de nossa vida. Só penetrando assim na intimidade do imponderável, poderemos compreender tudo quanto escapa ao homem que vive na superfície. Este ignora o maravilhoso mundo circundante de que, aliás, ele mesmo se compõe. Esse mundo, escapa em grande parte, à própria ciência que, em virtude da orientação positivista e do método objetivo-experimental, em lugar do intuitivo, não pode atingi-lo. Desse modo, a opinião científica em voga a respeito do problema da personalidade é incompleta, apesar de haver estabelecido diversas verdades no campo biológico e psicológico. Para compreensão geral do fenômeno, torna-se necessário seguir-lhe a oscilação completa, de um a outro extremo do ser, de conformidade com o mesmo esquema da construção e funcionamento do universo. O homem, de fato, encontra projetadas, na sua estrutura e na sua vida, as linhas essenciais do fenômeno cósmico. A oscilação vai do espírito à matéria e volta, com sinal contrário, da matéria ao espírito, reproduzindo a cada momento os dois grandes períodos da criação: involução e evolução. No homem e na criação, o pensamento se materializa na ação até encontrar a forma concreta que o revista e o exprima, e isso através da fase intermediária do dinamismo volitivo; e, ao contrário, a ação se desmaterializa no pensamento, destilando-se sob a forma de experimentação realizada, a fim de, na consciência, fixar-se como qualidade adquirida ou instinto. A cada oscilação o eu aumenta e se dilata, para retomá-la e continuá-la cada vez com mais intensidade. O físio-dínamo psiquismo, íntima trindade do monismo universal, no cosmos e no homem, não é apenas estrutura orgânica, mas também funcionamento. Na oscilação, um dos extremos, embora transformando-se, transporta-se inteiramente para a posição do outro extremo e ao contrário; assim, o ser vai e vem, vem e vai, sem cessar, de um a outro de seus dois polos. O princípio trinitário, sua fórmula estrutural, não passa de consequência do princípio de dualidade. Apenas o binômio é animado pelo dinamismo vital e a contradição, não mais estática, se põe em movimento e na oscilação de um termo a outro se formam as correntes de ida e de retorno, do antagonismo e da fusão nasce terceiro termo, que constitui fase intermediária, traço de união e resultado das trocas. É novo ser, terceiro elemento, filho do binômio pai-mãe e da íntima oscilação dessa unidade dualística, que descarrega uma na outra as suas metades inversas. Estando completo o desenvolvimento das forças do sistema, essa nova individualidade se destaca do binômio e permanece autônoma e independente, mas incompleta e à procura de sua metade complementar, para juntas formarem novo binômio e, através da troca de correntes, novo ser intermediário, assim por diante. Então, da estrutura dualista do universo, do princípio fundamental de dualidade, deriva o princípio trinitário, que representa o esquema da técnica genética.

O movimento dessa troca é dinamismo interior da unidade formada de duas partes iguais; por isso, apenas influi na estrutura íntima dessa unidade. Mudança só acontece em sentido relativo; a substância permanece invariável e o monismo intacto. O movimento volta sempre sobre si mesmo; cada uma das duas formas extremas do ser constitui apenas posição diferente no seio da mesma unidade, não representa senão a metade do mesmo ciclo. O ponto de chegada é ao mesmo tempo de partida; do mesmo modo, o ponto de partida é ponto de chegada. Os extremos se tocam.

Todos esses conceitos já foram expostos no cap.8 (“A Lei”) de A Grande Síntese. Enquanto naquele livro os aplicamos ao fenômeno universal, aqui os consideramos especialmente em relação ao fenômeno da personalidade humana. Entre as duas fases extremas ou posições limites da oscilação entre espírito e matéria, pensamento e ação, princípio e forma, há uma fase intermediária de passagem: energia, vontade ou movimento. Tanto no homem, como no universo, de que é imagem, a transição do primeiro momento para o terceiro, dá-se através do segundo que, na ida (subindo), tem sinal positivo e na volta (descendo) se inverte com sinal negativo. Em outras palavras, o espírito ou pensamento (1º momento), como iniciador ativo da transformação do princípio na forma material (3º momento), para chegar à sua ação plasmadora, se ativa como vontade vestindo-se de energia (2º momento). Portanto, cada ato nosso é uma exteriorização do espírito, um conceito (1º), que se manifesta (2º) em movimento e conclui (3º) numa realidade exterior. No caminho de volta, porém, a atividade do momento intermediário muda-se em passividade, a vontade em receptividade, o homem de ação em homem contemplativo, justamente porque não estamos mais em fase de emanação, mas de reabsorção; as portas do ego estão abertas para o interior, não para o exterior e a direção do dinamismo fenomenal invertida. Por isso, as funções afirmativas e positivas da vontade, tão úteis à ação, são um estorvo, representando impulsos negativos no caminho da volta, onde por sua vez age o sensitivo, o espiritual, o místico.

No período atual, descobrindo uma lei qualquer da natureza, o homem conquistou maior domínio sobre a energia, meios de maior manifestação de si mesmo, através da ação no mundo da matéria. Tais meios deram força ao dinamismo positivo de ida, fase por que atravessa atualmente a humanidade. O espírito, porém, motor e dirigente destes meios, permaneceu o mesmo; a sabedoria não recebeu um impulso proporcional. Com a mentalidade de um primitivo, o homem atualmente se encontra em poder de meios poderosos como nunca esteve. O terceiro termo do ciclo, do qual se está avizinhando, nada mais é que erro (resultado de tentativas inexperientes) e, portanto, sofrimento (compreensão involutiva). Somente no segundo tempo, quando o movimento de vida se inverte em movimento de volta, a expansão ativa, em concentração reflexiva, é que o resultado trará vantagem (como premissa de nova expansão evolutiva). Eis o que acontece. O primeiro impulso da ciência nasce no espírito, amadurecido por precedentes experiências, resultando daí maior conhecimento. A este trabalho do último século, sucede o atual trabalho de atuação experimental. O espírito, achando- se ainda em fase primitiva, encontra-se em face de experiência desconhecida que, feita por inexperientes (como acontece nas crianças), produz, como já dissemos, dor e erro. Chegamos então ao fim da terceira fase que conclui o ciclo da jornada. A dor abre o ciclo de retorno, marca a nova direção a seguir, o início da subida, a nova gênese. Não mais agindo ou desenvolvendo-se, mas meditando em dolorosa reflexão, sob os golpes recebidos pela reação das forças da Lei, dados em consequência de esforços improfícuos. Completa-se, portanto, lentamente o ciclo inverso da assimilação, resultado doloroso mas benéfico da experiência humana neste período. A meta final é compreender. O ponto de chegada está no espírito, na conquista de maior sabedoria, que representa maior base para início de novas experiências. Com o ciclo experimental, feito de dinamismo centrífugo de descentralização, e com o ciclo inverso de assimilação, constituído por um dinamismo centrípeto de centralização, o ar de que se nutre a evolução biológica completou sua oscilação e se prepara, firmando-se em tal base, para nova e mais vasta oscilação. Assim até o infinito. As verdades relativas do homem, por ele expressas, uma a uma de forma absoluta, serão as etapas deste caminho; o mesmo caminho da única verdade progressiva. A história dos acontecimentos sociais nada mais é que a história do desenvolvimento da personalidade humana cujos movimentos observamos.

Movamos o prisma de observação: No ciclo de assimilação que finaliza o dinamismo centrípeto da concentração, onde e como os frutos da experiência se depositam na personalidade? Confrontemos as teses acima acenadas com a teoria do subconsciente. Fala-se tanto disso em nossos tempos! Trata-se porém, de um conceito que, se verdadeiro, não está completo. A natureza unilateral dos métodos de pesquisa hoje adotados, só podia revelar a metade racional e material do fenômeno, deixando de lado a parte intuitiva e espiritual. Esta é representada pelo superconsciente. Desenvolvamos aqui tudo o que já dissemos, completando o pensamento de A Grande Síntese e “O Subconsciente”, do volume Ascese Mística (citado no prefácio). A personalidade humana não é um ponto, mas uma zona onde se distinguem três partes: o subconsciente, o consciente e o superconsciente. Portanto, os resultados da experiência não se transmitem a um único ponto mas se depositam e registram diversamente pelas várias partes da zona. Enquanto o subconsciente representa a assimilação completa de velhas experiências em estratificações antigas donde emergem como instintos, ou, em outros termos, o núcleo conquistado pela consciência biológica confirmada pela vida prática, o superconsciente, no extremo oposto, representa a zona de espera, onde se registram as experiências de vanguarda, pelas quais se antecipa o futuro, zona que não está, como a outra, no fim mas na frente da evolução. Estes são os dois termos da personalidade humana. Embaixo, sob a escada da evolução está a zona da animalidade, o que é próprio da besta; no alto está a zona do espírito, o que é próprio do super-homem. Num extremo, a sólida, estável, mas primitiva e elementar experiência do passado, firmada como patrimônio aquisitivo representando um material de uso continuamente aprovado pelas condições de ambientes; no outro extremo, as experiências em formação, novas, incertas, instáveis, mas audazes, elevadas, complexas, desenvolvidas, representando não o patrimônio adquirido, mas o novo patrimônio em vias de aquisição, não a evolução conseguida, alcançada, mas a continuação, não a personalidade já constituída, mas o seu complemento. A primeira experiência está escrita na carne, a segunda, no espírito. A personalidade é, portanto, não um ponto, mas uma zona em movimento, alcançando assim o dinamismo íntimo que a amadurece, fazendo-o subir na escada da evolução. Neste sentido, a personalidade não é imóvel, mas se desloca da Terra para o alto, caminhando com os pés (subconsciente) no passado e garantindo com os braços levantados (superconsciente) o futuro.

Entre tais extremos, porém, há um terceiro termo, uma zona intermediária: o consciente. Qual a sua função? Que acontece ao centro do sistema? Nas partes inferiores, onde está finda a assimilação, dispensa-se novo trabalho de registro, estando tudo, salvo adaptações e modificações, confiado ao automatismo de instintos já conquistados. Esta parte acha-se sepultada no inconsciente, sem participação da consciência, não sendo mais zona de desequilíbrios, de formações, de trabalho, mas zona de equilíbrio e êxtase. Para o tipo normal, não sendo a manifestação na parte superior nem contínua, nem ativa, o esforço é apenas exceção. Esta parte, onde ainda não se formaram desequilíbrios e atividades com o impulso das forças do ambiente, geralmente fica sepultada no inconsciente. Se a personalidade estende suas raízes às profundezas do subconsciente e eleva suas ramificações às alturas do superconsciente, a vida ferve no tronco: a zona do trabalho intenso de novas formações está normalmente no centro. Sendo uma zona de trabalho, desequilíbrio, contrastes, e, portanto, ativa e recreativa, é lúcida e consciente. A personalidade brilha na luz máxima da consciência em sua zona central. A luz se dilui gradativamente nas duas zonas limítrofes, inferior e superior, até se extinguir completamente além de dois extremos, onde se encontram meias evoluções, situadas fora do campo da personalidade. É uma luz dentro da escuridão, onde as forças latentes, memória ou pressentimento, dormem e despertam alternativamente; depois disso o nada em relação à personalidade, quando está além de qualquer capacidade corresponder, por ressonância, às vibrações do ambiente. E tudo em posição relativa à evolução do indivíduo, caminhando da besta ao super-homem, do subconsciente ao superconsciente, da carne ao espírito.

O que para o consciente constitui trabalho atual, para o subconsciente é passado vivido, não morto, cuja síntese sobrevive sepultada em seu íntimo, como resultado da operação que atualmente é desenvolvida pelo consciente. A síntese resultante, chama-se instinto, estando, ainda, no plano do consciente, na fase de formação da análise. Aqui o equilíbrio, ainda não estabilizado e indefinidas as resultantes dos contrastes, permite o trabalho de criação que no consciente terminou suas aquisições. O instinto é superior como maturidade formativa, mas inferior como nível evolutivo. A razão pertence a um plano superior, é a forma mais complexa, mais criança do instinto. Este, síntese da análise feita pelo subconsciente, é mais velho e perfeito, em seu nível, que a razão. Esta é um processo de formação, de análise, de experiência incompleta, mas em vias de sê-lo, é fase inicial de assimilação de qualidades novas mas em grau mais elevado de evolução. Amanhã, os resultados da análise serão síntese; os da razão, que procura e escolhe, instinto que já sabe e conhece. A intuição pertence a um plano ainda mais alto, é a forma ainda mais complexa, porém mais primitiva da razão. Elevando-se pela evolução, o que se ganha em agudeza e perfeição, perde-se em estabilidade de equilíbrio e solidez. No alto voa-se; em baixo, anda-se. No alto, o domínio dos espaços, com os riscos e incertezas das tentativas; em baixo, o passo lento e pesado, com o controle, a segurança, a certeza. Por isso, o raio intuitivo do gênio é controlado pela razão. E como os resultados desta serão o instinto de amanhã, assim as funções excepcionais da intuição se regularão como funções normais, como as atuais funções da razão. Como esta é um instinto em formação, assim a intuição é uma razão em formação; trata-se no primeiro caso de um instinto que se elevará à altura evolutiva da razão, e no segundo, de uma razão que chegará à altura evolutiva da intuição. Enfim, entre instinto, razão e intuição, a diferença está no grau de trabalho para a captação e assimilação das experiências. A intuição atua no superconsciente que é uma antena estendida como antecipação em direção aos mais altos e inexplorados graus de evolução, para captar o novo, o inédito; o futuro. A razão atua no consciente, não funciona por raios (como a intuição), é menos rápida, porém, mais contínua, mais ordenada, mais segura. Precisamente porque se projeta para o menos alto, é mais equilibrada, porém, mais curta e limitada. O instinto é obra terminada, cujos resultados perdem-se no subconsciente, depositando-se nesse magazin de reservas, como patrimônio da personalidade que aí se pode reabastecer segundo as necessidades. À medida que se avança, a fase evolutiva, inicialmente conseguida somente pelos raios da intuição, torna-se domínio normal e controlado da razão, cumprindo a função de assimilação que encontramos terminada no instinto.

Portanto, três fases: captação pela intuição, assimilação pela razão, depósito pelo instinto. Conquistam-se assim, aos poucos, os graus de evolução, parecendo que descem para o homem quando é o homem que sobe a eles. Assim a experimentação avança pela escala evolutiva, eleva-se em complexidade e dificuldade para o alto. O inédito, o superior, antes compreendido pela intuição, atividade do superconsciente, é fixado pela razão, atividade do consciente, no instinto, produto do subconsciente. Trata-se de experiência progressiva que se ativa para o alto dominando-o. É este o trabalho da personalidade humana, o conteúdo, o escopo da existência. A vida é conquista e adição contínuas. O eu lança-se ao inexplorado, agarra-o, assimila-o e não descansa enquanto não o transforma em qualidade própria, carne de sua carne. Assimilação espiritual paralela à orgânica. Tudo é adição e desenvolvimento evolutivo, quer se trate do corpo, quer da alma, quer se trate de conquista individual como espiritual, material, econômica ou moral. Na frente está o super-homem, ameaçado por todos os perigos; depois vem o homem que controla e confirma com sua análise na prática da vida; enfim, a besta feita de instintos e imitação, pronta a se apoderar dos úteis resultados do esforço total. Assim a conquista se adianta, o homem se eleva e o patrimônio dos instintos se avoluma. O subconsciente nada mais é que um consciente decaído, um raciocínio escrito em sangue, um resultado selado pela experiência e fixado a fogo no instinto. O consciente não é nada mais que o superconsciente coordenado, disciplinado, equilibrado, intuição trazida à razão e submetida ao seu controle, elemento incerto e transitório, embora sublime, enquadrado transitoriamente à realidade da vida. De igual modo, o subconsciente foi, há um tempo, consciente, isto é, campo ativo das formações atualmente cristalizadas no instinto que, a seu tempo, foi raciocínio, outrora intuição. Também, o atual consciente, amanhã, será subconsciente; a luta atual de formação individual e social, que é raciocínio com a vida, fixar-se-á em seu produto feito de qualidades assimiladas (instintos). E o atual superconsciente, amanhã, será consciente, isto é, a intuição incompreendida será normalmente sobreposta aos processos racionais. O involuído e o normal tornar-se-ão, portanto, conscientes na zona atualmente coberta pelo superconsciente, no campo onde hoje é consciente, a única exceção biológica representada pelo evoluído. Completa-se, assim, por sucessivas estratificações o processo de aperfeiçoamento da personalidade.

Ainda uma observação. A personalidade, como dissemos, não é ponto, mas zona em que se distinguem três partes: subconsciente, consciente e superconsciente. A estas correspondem, segundo o próprio grau de desenvolvimento e plano de atividades, três tipos biológicos: a besta, o homem e o super-homem, e três formas de ação: instinto, razão e intuição, funções diretivas alcançadas pelo indivíduo segundo seu grau de evolução. A estas, correlacionam-se três formas de trabalho (em sucessão inversa): captação, assimilação e armazenamento. Como o universo, a personalidade humana é uma trindade em caminho pela escada da evolução. No homem encontramos o fisio-dínamo-psiquismo do cosmos. O pensamento, na forma humana, se materializa, passando do superconsciente ao subconsciente, através do dinamismo do consciente. Temos aqui, portanto, não uma simples estrutura, mas um funcionamento. No ciclo experimental, que acabamos de ver, o dinamismo vem do subconsciente em direção ao superconsciente, tentando a experiência e conquista do alto; no ciclo de assimilação, o dinamismo desce do superconsciente ao subconsciente, operando o armazenamento, a fixação dos resultados da experiência. À descentralização segue-se a concentração no eu. Este dinamismo dúplice e inverso, é o passo segundo o qual a personalidade progride.

Antes de notar novos paralelos e correspondências, antes de observar o reencontro das correntes ascendentes e descendentes na zona lúcida da consciência, reassumamos e completemos os dois conceitos fundamentais desenvolvidos até agora neste capítulo: 1) a natureza não puntiforme mas trifásica da personalidade humana; 2) o movimento ascensional desta zona trifásica. Temos, portanto, três zonas na personalidade: das ações consumadas, das ações atuais e das tentativas e explorações. Representam o trabalho feito, o que se faz e o que se fará, isto é; a atividade passada, presente e futura, ou ainda, a lembrança, a ação e o pressentimento. Somente a zona do trabalho é consciente. Para o alto e para baixo este clarão nítido se perde gradativamente nas trevas e o dinamismo desaparece na inércia: Acima e abaixo, imersas na inconsciência, estão as zonas crepusculares onde a consciência sente as sombras vagarem incertas, embrião de futuros motivos ou restos de motivos destruídos, ainda sonolentos no marasmo da indiferença ou do esquecimento. O passado sobrevive no consciente como síntese, o futuro aí nasce como antecipação. A consciência está repleta e se nutre do presente em construção. No subconsciente está escrita nossa história, no consciente está o esforço da subida, no superconsciente, o futuro. O primeiro representa o patrimônio acumulado, o segundo a atividade com que se fazem as provisões, o terceiro a zona das expectativas e possibilidades das tentativas e formações futuras. As três zonas estão ante a experimentação nestas posições: de quem já recebeu o depósito, de quem o está recebendo e de quem o espera. O eu sente no campo onde está ativo e não onde está latente. O sistema está em movimento evolutivo, e o consciente, isto é, a zona ativa do registro, não é o mesmo para todos. Os três tipos biológicos: a besta, o homem e o super-homem, têm seu centro consciente em três alturas diversas: a besta, no subconsciente (instinto), o homem, no consciente (razão), o super-homem no superconsciente (intuição). Com a evolução o centro consciente tende a passar do nível inferior ao superior. Na escala da evolução uns são conscientes, poder-se-ia dizer, à altura da cabeça, outros à altura do ventre, e outros, à altura dos pés. Uns têm a cabeça abaixo do nível dos pés de outros; outros têm os pés acima do nível da cabeça de outros. Do involuído ao evoluído os tipos se estabelecem em todos os níveis, mas a compreensão só é possível entre os que se acham à mesma altura, que têm partes comuns de ressonância, isto é, vibram, como já dissemos em capítulos precedentes, segundo o mesmo comprimento de onda, a mesma velocidade da frequência de vibração; o que justamente contradistingue o grau de evolução. A evolução caminha do subconsciente ao superconsciente, da besta ao super-homem, como das ondas longas e baixa frequência às ondas curtas e alta frequência. Há, portanto, correspondência entre subconsciente, instinto, animalidade, ondas longas e baixa frequência de um lado, e superconsciente, intuição, espiritualidade, ondas curtas e alta frequência do outro. Também a personalidade é um binômio que vai do extremo do subconsciente ao extremo do superconsciente, gerando, na oscilação entre estes dois termos, o terceiro componente da trindade: o consciente. Dissemos que esta é a zona do trabalho. Isto significa que representa a zona de vibração, enquanto as outras duas representam, relativamente à posição do indivíduo, as zonas de descanso. Portanto, dizer que o consciente com a evolução tende a passar do nível inferior a um superior, é o mesmo que dizer que o estado cinético se desloca para estados evolutivos mais elevados, isto é, que o movimento toma ritmo vibratório, cada vez em mais alta frequência e ondas cada vez mais curtas. O mesmo fenômeno aqui observado com terminologia e de um ponto de vista psicológico, pode ser observado, como nos últimos capítulos antecedentes, como vibração e fenômeno dinâmico, de um ponto de vista cinético. A mesma verdade pode ser traduzida em várias formas segundo a posição e perspectiva escolhida pelo observador. Se, para comodidade de estudo, é necessário isolar os vários aspectos, na realidade eles coexistem unidos.

Encontramos, portanto, os vários tipos humanos, do extremo involuído ao extremo hiper-evoluído, distribuídos por todas as alturas na escala da evolução em tantas posições, onde altura, profundidade e os vários estados psicológicos e vibratórios que lhes correspondem são relativos a cada personalidade. O que para alguns é superconsciente, personalidade futura, embrional, ainda a ser acabada, para outros é consciente em formação ou mesmo subconsciente, isto é, personalidade instintiva, já construída. O que para o involuído é futuro, para o evoluído é passado. Todo indivíduo caminha, seja qual for a sua posição, para um plano relativamente superior ao que ocupa. As zonas de subconsciente, consciente e superconsciente são, portanto, relativas ao desenvolvimento do indivíduo e podem ocupar diferentes graus na escala da evolução. Todo o sistema trifásico da personalidade se movimenta e avança pelo condutor de suas várias zonas, tendo à frente o superconsciente, no centro o consciente e no fim o subconsciente. O sistema é único, igual para todos, mas a sua posição é, para todos, relativa, isto é, em graus evolutivos diversos de tal modo que não possa dar a estes termos senão valor relativo. O que, comumente, lhe damos aqui, é em relação a um tipo médio, situado com o consciente no plano da razão, com o subconsciente no plano da intuição e do espírito. Expomos aqui o sistema, a estrutura da personalidade, e não sua posição evolutiva que muda para cada caso em particular. Neste sistema, o eu consciente é dado por uma zona lúcida, de operações, situada no centro de duas zonas obscuras, e o todo não fica estático, mas em movimento ascensional. O eu percebe a própria existência unicamente na zona consciente do sistema que tem alturas evolutivas diversas, segundo o desenvolvimento individual. Segundo o mesmo, cada um explora, toma, elabora e assimila e, assim, segundo sua posição e natureza, agindo através do esquema geral do fenômeno, constrói a própria individualidade segundo particularidades especiais. A captação, o registro e o armazenamento das experiências pode ser feito em alturas diversas segundo a escala evolutiva, mas o processo, o método, é idêntico para todos, o resultado é sempre ascensão, autoconstrução, progresso da fase evolutiva subconsciente à fase consciente e à superconsciente.

Terminado este conceito da relatividade das posições e do movimento do sistema, completemos agora o exame de seu aspecto estático com outras comparações. Terminado o problema da conquista voltemos ao da estrutura da personalidade. Estabelecemos, até aqui, as seguintes relações do subconsciente, consciente e superconsciente com a besta, o homem e o super-homem; com o instinto, a razão e a intuição; com o armazenamento, a assimilação e a captação; com o ato terminado, o atual, e o futuro; com a recordação, a ação, e o pressentimento; com o passado, o presente e o porvir, com a cauda, o centro e a cabeça no caminho da evolução. Tudo isto ainda não é suficiente. Como e onde se localizam as sedes destas diversas funções? Onde são depositadas, elaboradas, captadas as respectivas anotações? Ligamo-nos aqui aos conceitos dos últimos capítulos. A sede do subconsciente, seus paralelos e atividades está na estrutura celular, nos tecidos, na carne da raça, zona de animalidades, de instintos, de memória biológica. As experiências primordiais e fundamentais da vida, fixaram-se em automatismos nestas profundas e antigas estratificações biológicas, comuns ao homem e ao animal. Frequentemente, para o homem, este é o seu passado, a zona mais profunda, situada no extremo da evolução. A sede do consciente está no sistema celular escolhido, selecionado, no ápice da evolução animal, aperfeiçoada até às portas do espírito, com funções psíquicas: o sistema nervo-cerebral, zona humana, da razão, zona dos mais recentes feitos biológicos ainda não fixados em automatismos, ainda em processo de formação, fase central da evolução do eu, fase de elaboração e livre escolha. Obedece-se a instintos inconscientes da carne, mas raciocina-se com o cérebro. Frequentemente este é o presente do homem. A sede do superconsciente está além da parte material, sensitiva, do organismo físico, situada no imponderável, no espírito. Vimos no cap. 26 (“A Música – A Vida Dupla”), deste volume, suas relações com o sistema cerebral e que aqui a vibração, separando-se de seu nervo transmissor torna-se radiante, livre, de ondas curtas e alta frequência. Estas qualidades, ainda não conseguidas no plano inferior, permitem ao superconsciente a transmissão telepática, a captação noúrica, a visão sintética da verdade, isto é, o uso natural e normal do método intuitivo, próprio do superconsciente. Tudo isto representa a zona super-humana, o mundo do evoluído, o reino do espírito, a fase mais elevada da vida humana, que o homem laboriosamente vai conquistando, formando sua estrutura espiritual, fase situada acima de nossa evolução humana. Para a maioria, isto é futuro, exceção. Raciocina-se com o cérebro, mas unicamente o espírito é capaz de intuição.

Para o homem comum a zona lúcida, a fase atual, é a cerebral. Normalmente esta é a sede consciente do eu. Este se estende pelas duas outras zonas, inconscientemente porém. O eu cerebral e consciente acha-se no centro da personalidade, entre seus dois extremos contíguos, o subconsciente e o superconsciente; está em contato, em comunicação recíproca, beneficiando-se pelo instinto e intuição, relativamente ao seu desenvolvimento e potência. Todas as correntes da personalidade trifásica, de qualquer plano em que estejam, reencontram-se no eu cerebral, central; consciente, unindo-se no campo da consciência às duas zonas laterais extremas, fazendo convergir para aí as próprias aquisições e por que são representadas. Conhecemos suas vozes, distinguimos três fontes e três correntes: a voz do instinto, a voz da razão e a voz da consciência. A primeira e a última vêm de longe, são produtos-síntese; a segunda é presente, atual, analítica.

A razão apreende, controla, discute. Torna-se, às vezes, campo de batalha entre as diversas correntes, quando divergem entre si ou da razão e se revela difícil à harmonização. Nasce, então, a interferência das vibrações e a luta se estabelece entre os vários impulsos. São por demais conhecidas essas tempestades íntimas. Porém, especialmente no evoluído, de superconsciente mais desenvolvido, se desencadeia com mais violência a guerra entre o superconsciente e o subconsciente, entre o passado e o futuro e vice-versa, entre espírito e matéria; entre os dois extremos da evolução que se batem pela posse da consciência, como campo de realizações.

O subconsciente contém o patrimônio adquirido, coletivo; as reservas da raça, o decálogo da vida animal, inscrito na carne e no sangue. A célula conhece-o muito bem, graças à repetição milenar que ratificou as experiências originárias. Esse é o alicerce do edifício biológico, o ponto de partida da evolução humana. A célula, na orientação a que obedecem seus íntimos movimentos atômicos, traz inscrita a sua longa experiência; e, por inércia, não deixa esgotarem-se os impulsos recebidos do ambiente e agora transformados em conhecimento por si mesma adquirido. E desse modo continua a emitir correntes de ordem, aviso, consentimento, proibição. A razão apreende, procura tomar consciência e quase sempre, embora não compreenda, obedece a essa sabedoria mais profunda, porque a reconhece verdadeira e também porque, embora sepultada nas profundezas da célula e nas trevas do subconsciente, essa memória biológica continua participando do seu eu. O subconsciente, que registrou tudo e se recorda de tudo, está sempre por detrás de nós para guiar-nos, executa, por nós, automaticamente, inúmeras atividades e resolve, em nosso lugar, grande quantidade de problemas, sem perturbar nem agravar o consciente. Simples divisão de trabalho. Representando o patrimônio comum e a sabedoria da vida, o subconsciente diz respeito à hereditariedade fisiológica com que se transmite. A célula constitui-lhe, de fato, a sede e o canal de transmissão. O subconsciente contém o capital hereditário, que, mais do que ao indivíduo enquanto indivíduo, pertence à vida. É riqueza que recebemos ao nascer, como bagagem necessária para percorrermos o pedaço de caminho representado por uma existência. O patrimônio individual, diferenciado, que não se transmite por hereditariedade fisiológica celular, mas, como vimos, por hereditariedade espiritual, está situado no espírito. Vivendo como corpo, acumulamos o primeiro desses patrimônios e, vivendo como espírito, o segundo. Mas bem poucos possuem esse patrimônio individual; a maior parte da humanidade encontra-se ainda nos alicerces de sua construção espiritual, que, no atual estado evolutivo, não pode ser o resultado de esforço coletivo, e sim individual. O superconsciente é produto pessoal diferenciado e, por isso, não obedece à hereditariedade comum que se processa através dos caminhos da carne.

Podemos, agora, concluir a exposição do problema da hereditariedade, de que já cuidamos no final do capítulo anterior. A vida é bipolar e, por isso, uma hereditariedade adequada garante a continuidade de cada um de seus dois extremos: a fisiológica responsabiliza-se pela transmissão do patrimônio do subconsciente; a espiritual, pela transmissão do patrimônio do superconsciente. Portanto, duas vias, dois canais abertos, um material e outro imaterial, ambos adaptados à transmissão dos resultados das experiências de dois organismos diversos, as do corpo e as do espírito. (Cf. as palavras de Cristo a Nicodemos: “O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do espírito é espírito”. João, 3:6). Do subconsciente e do superconsciente, os dois diferentes patrimônios, acumulados no passado que vivemos em ambas as formas e nos dois campos herdamos de nós mesmos, emergem no consciente, oferecendo-lhe suas úteis produções. A carne adquiriu experiência própria e repete-a. O espírito adquiriu a sua e oferece-a. A criança desenvolve-se plasmada por ambas as forças, cujo desencadeamento ela mesma preparou, cresce debaixo dessa dupla orientação, e influência, útil e necessária em ambas as formas. Trata-se de simples restituição, é propriedade nossa que nos volta às mãos e nos diz respeito, porque esses dois patrimônios, na medida em que existem, nós os conseguimos com nosso trabalho. Cada um dos dois transmite a si mesmo e, em seguida, age como força, mas operando cada qual no seu próprio campo; cada um constitui impulso que, por força da lei de causalidade, se liga ao próprio passado de que constitui consequência e continuação e se imprime no eu atual, plasmando-lhe o corpo e o espírito. Esse impulso representa a incorporação já acabada, a zona já formada e, por isso, fatal, de nosso livre destino (cap. 24: “Nosso Livre Destino”, deste volume). E como a memória biológica reconstitui o organismo físico, repetindo a história celular, continuada agora através da hereditariedade biológica, assim também o espírito reconstrói a personalidade moral, repetindo-lhe a história, agora continuada através da hereditariedade espiritual. O espírito, amparando-se nos instintos do subconsciente delegados à vida animal, plasma a criança, compondo-lhe a personalidade e, quase sempre sem que ele o perceba, atinge-lhe o cérebro (o consciente), pelas vias imateriais (que sabemos serem conscientes no evoluído) de percepção interior inversa ( cap. 26: “A música - A Vida Dupla”, deste volume).

O corpo, o cérebro e o espírito constituem, pois, as sedes da personalidade trifásica (subconsciente, consciente e superconsciente), nas suas três funções: instinto, razão e intuição. A personalidade humana, una e trina como o universo, possui, portanto, o organismo instintivo da besta, o cérebro raciocinante do homem, o espírito intuitivo do super-homem. Três zonas, três funções, três sedes. À proporção que evoluímos, o domínio da intuição torna-se, como vimos, o domínio da razão e, em seguida, o domínio do instinto. As três zonas representam, também, três fases de acréscimo. Quanto mais progredimos, porém, tanto mais a função é precária e a forma imatura. Se no alto vemos o mais evoluído, vemos também o mais novo e menos completo. A elevação e a estabilidade são inversamente proporcionais. A intuição, mais elevada e mais ampla, vive em equilíbrio mais instável que qualquer outro. A razão, mais restrita e terra a terra, fica bem mais embaixo, mas se mostra muito mais sólida e segura e, exatamente por isso, é muito mais adequada ao controle da intuição. O instinto fica no ponto mais baixo possível, por ser o de conteúdo mais elementar e limitado; no entanto, revela-se o mais garantido pela estabilidade de equilíbrios e segurança de experiências. Três graus de elevação e, em razão inversa, três graus de solidez. Assim, o animal, servido pelo instinto, é, no seu plano, o mais seguro e perfeito, embora menos adiantado do ponto de vista da evolução e mais limitado quanto ao domínio; seu instinto é mais seguro e perfeito do que a discussão racional, perto dele insegura e oscilante; esta, por sua vez, comparada com os arriscados voos da intuição, mostra-se muito mais positiva e garantida. É natural, porém, a instabilidade e o perigo aumentarem, à medida que deixamos de rastejar como vermes e começamos a marchar e a voar. Toda forma de atividade tem lugar apropriado e função determinada. A vida não se arrisca, senão em excepcionais emersões, às grandes altitudes. Quer ficar tranquila, e fica mesmo, em plena massa, nas suas bases mesmas.

Ainda uma observação. Não vá o leitor surpreender-se, porque, nestas páginas, não estamos mais formulando hipóteses, mas fazendo contínuas afirmações. Isso depende dos seguintes fatos: por brevidade, estamos dando aqui apenas as conclusões; por querermos que este livro seja construtivo, deixamos de lado toda discussão, como elemento negativo; tudo isso, enfim, resulta do método intuitivo adotado neste trabalho. A dúvida, a hipótese, a espera da confirmação espiritual e o horror às conclusões pertencem ao método racional; o método intuitivo, que nos leva à obtenção desses conceitos, tem características completamente diferentes. A intuição, por sua própria natureza, vê, não discute, aceita as conclusões como estado de fato, não analisa, para atingi-las, não duvida, não experimenta; apenas sente. Por isso, diz, naturalmente; “é”; não diz: “poderia ser” ou: “suponhamos que seja”. A verdade surge-lhe já completa e não em estado de elaboração. Chegamos a esses conceitos graças a visões interiores, que não são dirigidas do cérebro para fora, graças a observações sensoriais, mas do cérebro para dentro, por meio de audição espiritual. Aqui a personalidade humana se nos apresenta funcionando como acima dissemos e aquelas afirmações encontram aplicação direta. Eis um primeiro controle experimental das teorias acima expostas, uma sua correspondência à realidade, pelo menos neste caso. Reconhecemos ser justo que, em seguida, em um segundo estágio, a razão analítica graças a seu método positivo se apodere dessas sínteses intuitivas, para avaliá-las e controlá-las, por meio da lógica, da observação e da experiência, e relacioná-las com os conhecimentos atuais. Isso não significa, porém, não tenhamos já feito aqui um trabalho de coordenação. Esses conceitos, a que, como sempre acontece com o método intuitivo, chegamos tempestuosamente, intermitentemente, rebeldes a todo registro metódico, obedientes a leis diferentes das leis da concatenação lógica e da conexão de ideias que, por afinidade vibratória (fenômeno de ressonância), se atraem; esses conceitos sintéticos, mas racionalmente indisciplinados, aqui já foram reprimidos e, apenas roubados ao superconsciente, coordenados e enquadrados sistematicamente no consciente. Eliminadas irregularidade e intermitência, o relâmpago torna-se luz regulada e contínua, permitindo que se veja o caminho. Este domínio da intuição dinâmica e rebelde num concatenamento racional é um dos maiores esforços necessários à exploração do supernormal, sendo, todavia, disciplina imprescindível sem a qual tornar-se-ia inútil o método intuitivo. Tal método permite a compreensão contínua e progressiva dos problemas por captações sucessivas, como demonstram-no estes “Comentários a A Grande Síntese”, pelos quais pode-se provar que tal livro não tem propriamente um fim, podendo ser desenvolvido ad infinitum17. Se os esquemas fundamentais então expostos são simples e unitários, torna-se agora ilimitado o número de combinações possíveis entre as posições da forma. Realmente, são esses os caminhos da natureza seguidos por nós: chegar por meios extremamente simples ao infinitamente complexo, partindo de princípios elementares ou temas fundamentais, repetindo-os em alturas, dimensões e combinações diversas. Dualismo universal. A criação, num polo, simples, noutro, complexa, centralmente unitária e de incomensurável multiplicidade na periferia, imutável no absoluto e instável no relativo, é, ao mesmo tempo, perfeita e imperfeita; se por um lado se inclina a formas e existências efêmeras é assinaladamente eterna em seus princípios vitais. Os dois polos se pressupõem e se subentendem. Segundo a lei do dualismo, para o princípio universal da oposição dos contrários, a forma transitória do lado matéria presume e impõe, e do lado espírito, a presença de uma vida eterna correspondente.

Pelo lado forma ou matéria uma das características do ser é a caducidade, a necessidade, portanto, de contínua troca para sobreviver, de ininterrupto renovamento para suprir, com as entradas, as perdas e saídas, tornando-se a vida uma corrente onde é necessária e implícita a presença de um dinamismo animador e dirigente, reencontrando tudo na forma e sem esta não se pode suster. O limite desse complemento, que contrabalança o binômio, e o equilibra com um elemento e impulso inverso, é o espírito. Ele realiza precisamente a reparação contínua, sem a qual a caducidade não seria renovamento vital, mas morte. Sem a presença ativa de tal espírito encarregado da contínua manutenção, isto é, encarregado de tudo alimentar, sustentar e reparar interiormente, onde é seu lugar, nada se manteria, nada haveria para sobreviver. Tal caducidade da vida é a sua fraqueza, o seu perigo, a sua lida. O mal, a dor, a morte estão continuamente em choque. Tudo se decompõe e é sempre necessário reconstruir. O ritmo do fenômeno vital acha-se ligado ao ritmo fatal do tempo, dentro do qual, se abandonado a si mesmo, extingue-se e morre. As contínuas relações que o sustêm não podem sofrer intermitências. Se pára, vem a morte. A caducidade, fraqueza congênita da vida, subentende e impõe o movimento ininterrupto. Esta é sua condenação: o fragmentar-se no relativo, de única tornar-se múltipla, o cair do eterno na corrupção, do infinito na prisão do limite, na necessidade de reconstruir, com o cansaço de um condenado e o sofrimento de um decaído, tudo o que desmoronou, e permanece como um sonho, um lamento, um ideal. A reconstrução chama-se evolução e todo trabalho necessário à complexa estrutura da personalidade representa o esforço constante que a ela está ligado.

O mesmo princípio universal do dualismo estabelece que estando num polo do sistema a divergência, no outro esteja, por compensação, a concórdia, ficando a vida condenada a constantes rupturas e recomposições; a isolar-se no egoísmo e a dedicar-se ao acoplamento; a separar-se no individualismo e a reajustar-se na vida social. A própria personalidade, em seus extremos, subconsciente e superconsciente, está dividida, mas para o centro, o consciente, convergem todas as correntes, reunificando-as no eu. A mesma personalidade se divide em dois polos, pai e mãe, espírito e matéria; nela, porém, os mesmos se reencontram, fundindo-se numa única individualidade. Para cada ser, a existência consiste no mesmo processo de reconstrução da antiga síntese. O múltiplo deve retornar à unidade. Eis a constante labuta da vida, a essência da evolução: o sofrimento, tendo, porém, como meta a felicidade. À lei de dualidade é imprescindível que, se num extremo da involução o limite é a dor, no extremo oposto da evolução, o limite seja, pelo contrário, a felicidade. Assim a dor é, a um tempo, redenção, reatualização, reconquista, e tem a função reconstrutiva do progresso, que culmina em triunfo. Assim nos ensina a lei do sistema.

O homem nasce incompleto. É por todos os lados molestado por privações, sempre vulnerável e sensível, num ambiente indiferente ao seu dano, à sua dor. O sistema supõe a vida como um campo de provas. As investidas são ininterruptas mas a sensibilidade é proporcionada às provas e as provas à sensibilidade. Da reação recíproca nasceu a mútua educação, uma simbiose de forças que, nas contínuas relações e trocas se contrabalançam. O eu e seu ambiente se conhecem, um está disposto a se encontrar com o outro demonstrando profunda presciência de suas mútuas qualidades. São as harmonias da vida. Até a luta tem suas harmonias sem as quais seria absolutamente impossível qualquer aproximação ou equilíbrio. Luta e harmonia se subentendem; se a primeira está num extremo do binômio, a segunda deve necessariamente ser de natureza oposta e situar-se no extremo oposto. Se há luta e sofrimento, há também proporção entre resistência e ataque, entre ação e reação. A Lei, portanto, manifesta automaticamente a sua ação de acordo com a sensibilidade do indivíduo e, proporcionando o tom de voz à sensibilidade, consegue fazer-se ouvida por todos. Quanto mais insensível e surdo o homem, tanto mais forte a Lei grita, tanto mais violentos são seus golpes, tanto mais difíceis suas provações.

O homem é um binômio, dividido em dois entre os extremos de sua personalidade, dividido no sexo, na contradição contida pelo antagonismo de todo pensamento ou ato, na luta que se trava em seu consciente entre subconsciente e superconsciente, na divergência entre seus dois mundos, o interno e o externo. Em contínuo movimento a fim de preencher suas falhas, aflige-se com os desejos de suas qualidades contrárias. Satisfazendo-os vê restabelecer-se a desproporção e descontentamento que o tornam desiludido pela impossibilidade de alcançar a paz proveniente da sua completa satisfação. As duas partes em que se fragmentou a antiga unidade parecem condenadas a perseguir-se mutuamente sem jamais se alcançarem. A meta de chegada se distancia mais e mais ou, se alcançada, reaparece sempre mais longe. O desequilíbrio acelera a corrida, mas conseguida a felicidade do repouso, se restabelece a desproporção e a necessidade de novo movimento para tranquilizá-lo. A alegria da tarefa cumprida foge sempre. A imperfeição congênita muda-se em contínua necessidade de perfeição. Sublime e terrível condição de sofrimento e felicidade, de escravidão e liberdade, de miséria e triunfo. Negação originária que em si contém implícitos todos os elementos da afirmação. Condenação de origem levando fatalmente às portas do progresso e do resgate. Todo este sofrimento se chama vida.

A divisão da unidade em duas partes, tornando o homem incompleto, faz dele um partidário. Não sabendo ser senão uma parte da verdade, para alcançar o seu complemento na parte oposta, sente necessidade de discutir e lutar. Ele possui a verdade fragmentada, não a verdade na sua unidade e totalidade. Seu poder de concepção não sabe ir além; acha-se imerso no particular, no relativo, na contradição. De qualquer lado que esteja, na discussão, sente-se ausente da outra parte e, por isso, sofre e procura indenizar-se. Sob as aparências do antagonismo, expressão da oposição dos termos, deseja e procura aquilo mesmo que é o objeto de seu combate, aparentemente para destruí-lo, mas na verdade para apoderar-se dele, devorá-lo, assimilá-lo, tornando-o parte de si mesmo. Por esta única razão combate, primeiro para que seu adversário, igualmente incompleto e desejoso de completar-se, não o devore, não o assimile; depois porque ele próprio sendo imperfeito é sequioso de aperfeiçoar-se no outro. Eis o que é a vida: o estrugir de uma batalha que é unicamente desejo de amor.

A luta pela vida nasce do dualismo, unilateralidade e privação, havendo sempre atrás do amor, o ódio, e atrás do ódio, o amor. Embora cada ser egoisticamente se incline a isolar-se do todo, continua fazendo parte do todo, e por mais que deseje dominar para impor-se aos outros, na verdade não passa de um pobre que procura completar-se. Reaparece então uma bipolaridade inversa: conquanto o egoísmo seja indispensável à vida do indivíduo, sem altruísmo não pode haver nem fecundidade, nem geração. O primeiro, que parece conservar e acumular, torna-se um fator de separação e destruição; o segundo, que parece dissipar, constrói e une. Todas as possíveis atitudes da vida humana acham- se compreendidas no binômio egoísmo-altruísmo, composto de dois termos contrários que se completam. E todo esforço está compreendido num sistema de equilíbrios que o tornam possível somente dentro dos limites impostos pela Lei e sem possibilidade de causar desordem ao funcionamento universal. Assim, a luta se transforma em elemento de fecundidade e construção; não é, como pode parecer, caos e destruição, mas fator regulado de evolução. Há compensação e equilíbrio: o eu luta para se assegurar contra tudo e contra todos, mas por lei tem necessidade de outros para unificar-se com a totalidade. Todo elemento está, por Lei, unido ao seu oposto de tal modo que altruísmo e egoísmo, atração e repulsão, impulsos contraditórios, contrabalançam-se e equilibram-se perfeitamente.

Tudo nasce corroído interiormente por essa autocontradição que cada ser traz em seu íntimo e em seu exterior. Porém, ao mesmo tempo, em si tem o remédio necessário. A própria contradição que supõe extermínio, subentende a construção, tornando-se princípio evolutivo de rejuvenescimento. Portanto, não se pode dizer imperfeita uma natureza que traz no íntimo de sua imperfeição tanta beleza. A Lei, apesar das aparências de desordem e desalinho, é a própria substância da ordem e disciplina. É verdade que a natureza é falha, insegura em suas tentativas, sempre cega em frente ao desconhecido, porém, assim como tende a cair e pecar, também é grande seu poder de restauração e riqueza de possibilidades! Que variedade de doenças, mas que abundância de remédios! Continuamente perseguida, furtivamente ameaçada a cada passo, a vida prossegue ininterrupta, triunfando de todas as negações. Também aqui, a realidade é bipolar: exteriormente imperfeita, é em seu íntimo, realmente perfeita; corruptível e transitória na forma, é substancialmente incorruptível e eterna. Enquanto tudo ao seu redor se deteriora e acaba, seu interior é uma fonte inexaurível de fecundidade e rejuvenescimento. Em meio à instabilidade do futuro nas formas-efeito, permanece intacta a estabilidade do imutável no princípio-causa. Daí nasce a beleza e a necessidade do movimento. Tudo roda em contínua erosão sem que nada se destrua, tudo é tomado de assalto, mas a vida continua ilesa. Do movimento, nasce a grande ilusão, a periferia complexa, mutável, fugidia. Porém, só na periferia. Desçamos um pouco abaixo da superfície revolta do oceano e encontraremos a calma. A verdade simples, inalterável, divinamente tranquila está no centro. Embaraço, instabilidade, incerteza, barulho, desordem, luta, sofrimento, tudo aumenta à proporção que nos distanciamos do centro. Quanto mais perto, tanto maior estabilidade, segurança, harmonia, ordem, paz, contentamento. O difícil e múltiplo desorientam, mas no centro se dissolvem em um princípio fácil e unitário onde a direção é evidente. As almas que, afastando-se da vida exterior da matéria e dos sentidos, sabem interiormente aproximar-se de Deus, conhecem por experiência a verdade destas afirmações. O primitivo que vive superficialmente não vê senão desordens, mas quem vai ao fundo da substância encontra a ordem perfeita. Sendo, portanto, diverso o poder de visão, quem só vê desordem e caos, é negativo e materialista; quem encontra ordem e harmonia é positivo e espiritualista. Para quem olha de fora, como a análise racional e experimental, o universo é um dédalo inextricável de contradições, precipitação cega para a autodestruição, sabedoria incerta e falha, dissipação incontida, construção desconexa, onde as partes não se adaptam, incompleta, corroída pela maldade, pelo cansaço, pela dor, pela morte. Porém tanta imperfeição e corruptibilidade é apenas externa, aparente. Um olhar mais profundo, com a síntese intuitiva, descobre um universo que funciona perfeitamente com desenvolvimento lógico, potência construtiva, sabedoria e segurança de ação, conexão de partes, capacidade de compensação e reparação, enfim, um organismo completo, incorruptível, inexaurível. Somente se soubermos chegar ao centro, isto pode tornar-se evidente. Somente agora pode ser compreendida a oração de A Grande Síntese (cap. 67: “Oração do Viandante”: “Nada posso pedir-te, Senhor, porque na tua Criação tudo é perfeito e justo, até meu sofrimento e minha momentânea imperfeição”(...). Portanto, o que se procura é a própria adesão à vontade de Deus. A fórmula “pulsate et aperietur vobis” (Batei e abrir-se-vos-à), pertence ao plano humano; o “Fiat voluntas tua” (Seja feita a tua vontade)  ao super-humano. De fato, Cristo, no Getsêmani, usou esta última. É esta a diferença da oração do involuído e do evoluído.

Se o involuído sofre sem compreender sua dor e sua função, o evoluído, de superconsciente culto, compreende-as perfeitamente. Exalta-se na luta entre consciente e superconsciente, como na elaboração criadora. Sente-se dividido entre dois extremos, perseguido pelo desejo insaciável de se completar. Os dois extremos de seu ser estão em mundos opostos, o espírito de um lado, o corpo de outro, querendo cada qual dominar tudo sozinho, desencontrando-se no consciente. Que brilho intenso provoca esta batalha! A pátria terrena impõe-se por suas necessidades práticas, mas do íntimo chama com voz possante a longínqua voz do céu. Há olhos insensíveis, mudos, vazios, sem alma, inertes e silenciosos. Há olhos cheios de tempestades, onde se vê lutarem as forças do espírito, onde se sente a atmosfera vibrante dos grandes esforços construtivos, olhos abertos também para outro lado da vida, revelando-nos sua complexidade, falando de coisas misteriosas e longínquas, ultrapassando os limites, enxergando até no abismo do universo interior de onde emergem, resplandecendo da luz que dele emana. Falam-nos de outros mundos que viram, trazendo-nos recordações em seus olhares, esses olhos que choraram e pediram, deixando transparecer neste mundo a imagem neles impressa da divindade. Se soubermos entendê-los teremos o testemunho da outra realidade distante que foge aos sentidos e não se manifesta neste mundo.

Fragmentou-se a personalidade, porém não se quebrou por completo. Foi lançada na discórdia, mas pode se reconstituir na harmonia. Perdeu sua plenitude, está condenada a viver à custa de ininterruptas substituições, ligada às vicissitudes da vida e da morte que a impelem além ou aquém do limite; contudo, sua ascensão é lei fatal; fatalidade de culpa, fatalidade de evolução, inevitável e necessária conquista de felicidade. Se a dor e o esforço são impostos, do mesmo modo seus preciosos frutos. Olhando-se o exterior fica-se pessimista, procurando o íntimo das coisas, a única conclusão possível é o otimismo. A injustiça é aparente, a justiça real. Se a vida é penosa, também a lei de Deus, continuamente se esforça para eliminar as más inclinações, para libertar a luz das sombras, o bem do mal, a alegria da dor, procurando transformar o Getsêmani em glorificação. Através de infinitas oscilações entre um e outro polo de sua existência, o eu renasce, cicatrizando a grande ferida da separação. Um dia, elevados sempre mais para o Alto, compreenderemos como era necessária a prisão do espírito no corpo, como este irmão menor era instrumento de perfeição, como era inevitável o impacto da matéria inimiga para se fortificar a resistência, instruir-se com a experiência a reconstruir através de provas e dificuldades. Compreenderemos, então, quanta sabedoria se originou da prisão no tormento da contradição íntima, algemados a um inimigo, rodeados por um ambiente de assaltos e negações. Compreenderemos a utilidade de nos unirmos ao inimigo, completamente imersos na luta incessante, universal e inevitável, destruidora, mas reconstrutiva.