Depois de havermos racionalmente individualizado, em suas características, o fenômeno do Monte Alverne, segundo o esquema por nós aqui traçado de sua estrutura, agora procuremos compreender e reviver, espiritualmente, esse grande acontecimento, na moldura em que a História o enquadrou.
Quem já subiu até o alto do Monte Alverne em Casentino e visitou a capela dos Estigmas, terá lido a inscrição central: “Signati, Domini, hic servum Tuum Franciscum, Signis Redemptionis nostrae” (“Assinalai, Senhor, este teu servo Francisco, com os sinais de nossa redenção”). Esse é o lugar em que Cristo apareceu a Francisco e este recebeu os estigmas. Para baixo, a rocha abre-se num abismo; subindo em direção do pico e da floresta, encontra-se logo a gruta de frei Leão, o único companheiro do Santo, o único ser humano que, embora contrariando proibição expressa, aproximou-se dele e o observou naquele instante supremo. Por isso, entre tantos frades, é escolhido para curar as chagas dos estigmas. O grande acontecimento deu-se em 1224, na madrugada de 14 de setembro, festa da exaltação da Cruz. Em 30 de setembro Francisco deixou o Alverne para sempre. Acompanhado de frei Leão, “carneirinho de Deus”, desceu montado num burro até S. Sepulcro, onde parou num leprosário e por esse caminho voltou para Porciúncula, onde morreu dois anos depois, em 4 de outubro de 1226 (“De Cristo recebeu o último selo, que seus membros carregaram durante dois anos”). Frei Leão, que celebrou missa, foi amigo e confessor de Francisco, confidente e testemunha de numerosos acontecimentos espirituais íntimos, viu e tocou os estigmas, “costumava tirar os pensos de pano tintos de sangue para colocar novos”. Em 1224, na época destes acontecimentos, ele e o Santo ainda eram moços. Frei Leão teve, mais tarde, tempo de recordar e meditar, pois morreu Beato em Assis, em 14 de novembro de 1271, isto é, 45 anos mais tarde. Foi no Alverne que o Santo escreveu para ele a Bênção, na segunda quinzena de setembro de 1224, logo depois de recebidos os estigmas. Escreveu-a com a mão trespassada e sangrenta:
“Benedicat tibi Dominus et custodiat te:
Ostendat faciem suam tibi et misereatur tui:
Convertat vultum suum ad te et det tibi pacem:
Dominus benedicat te, Frater Leo”.
(...) “Que o Senhor te abençoe, frei Leão”. No autógrafo, o nome de Leão está dividido pelo Tau ou cruz, sigla de Francisco e essa palavra está dividida bem no meio para indicar, na fusão dos dois nomes, a estreita união das duas almas. Mais tarde, frei Leão de próprio punho acrescentou, em letras vermelhas bem pequenas”. “Beatus Fransciscus scripsit manu sua istam benedictionem mihi frati Leoni”. A Bênção está escrita numa folha de papel pequena. Frei Leão, enquanto vivo, sempre a trouxe consigo.
Relativamente à manifestação exterior e sensorial, nada se pode acrescentar à belíssima história dos Fioretti. Que acontece, porém, no interior dela, na intimidade do fenômeno? Frei Leão tenta acostar-se a essa outra realidade, penetrando-a por meio dos sentidos e da Fé. E volta a ver a flama e a ouvir a voz que vem de dentro dela; não consegue, porém, entender nem uma palavra. Sua percepção interior não consegue mais do que isso. Mas intui o resto e fica de lado, reverentemente. Então, o amigo Francisco, que entendeu tudo, conta mais tarde tudo quanto Leão não pôde ouvir. Só o amor e a fé podiam induzi-lo a isso. Porque de repente Francisco se torna reservado e procura disfarçar, por humildade, reverência, temor e por causa do pudor de que sempre se reveste o sublime. Nesses momentos, sentimos necessidade de estar sozinhos com Deus. Então, ordena de novo a Frei Leão que não ande espionando e pede-lhe para tomar cuidado com ele, pois sabe o incêndio espiritual que vai lavrar-lhe no corpo. Francisco percebe a aproximação do incêndio. Já o envolvem línguas de fogo, que saem do incêndio, antecipando-o e preparando-o. E Francisco ouve dentro de si um anjo de Deus, advertindo-o do que está para acontecer. No dia seguinte é a festa da Cruz de setembro. E agora a história dos I Fioretti não é mais tão minuciosa e se torna vertiginosa, levando-nos de um golpe ao momento em que, naquela madrugada, o fenômeno se processou de modo a ser percebido até mesmo pelo homem normal. E nada mais nos diz. Que aconteceu durante aquela noite, no extremo oposto do fenômeno, no seu lado espiritual? Quais os derradeiros estágios que o tornaram possível? O fenômeno já vinha amadurecendo lentamente durante toda a vida do Santo, desde que começou a ouvir “vozes” em S. Damiano; a maturação se acelera intensamente no Monte Alverne durante os dias precedentes e, embora atingisse o clímax pouco antes da alvorada, o fenômeno tinha-se processado com intensidade durante a noite, nos seus claros-escuros e contrastes de forças. Acompanhamos até o ponto maior da curva o ciclo de sua maturação.
Observemos. Francisco está na rocha dos estigmas. Frei Leão está um pouco afastado, mais para cima, em sua cela. Embora não possa ver muito bem no meio daquelas pedras e galhos de árvore, tão perto está que pode ouvir tudo. Permanece acordado, procurando ver, mas, por obediência, não ousa aproximar-se. Procura ouvir o menor ruído porque, se não deve andar observando, tem de, no entanto, proteger o Santo. “Tome bem conta de mim, porque dentro de poucos dias Deus fará grandes maravilhas neste Monte”(...). Tinha-lhe sido, pois, confiada a guarda do amigo. Discreto, afastado, como demonstração de respeito, e, ao mesmo tempo, próximo, por força do amor, estava pronto para, se necessário, acudir em seu socorro. Ambos estavam esperando que, a qualquer momento, acontecesse algo de extraordinário. Francisco estava mais embaixo, mais afastado do Monte e mais isolado da terra, em cima da rocha vertical dos estigmas, guardado de perto pelo afeto do amigo, que até nesse momento supremo lhe servia de ajuda e proteção. A cela de Leão estava um pouco mais acima da Rocha onde Francisco orava. Mergulhado no profundo silêncio do céu e da Terra, imerso na infinita paz da noite, Leão esperava. Não se ouvia o menor ruído. As tempestades do espírito não encontram eco na matéria. Porém, fervorosa prece abrasava-lhe a alma. Que insuportável desejo de aproximar-se, de compreender, de imitar! Que atração e que temor! A espiritualidade de Francisco causava-lhe medo; naquele momento e naquele lugar, causavam-lhe vertigem a misteriosa proximidade de Deus, o contato com o infinito, a sensação do sublime. E o amigo estava quase a precipitar-se naquele abismo de potência e de mistério, que o fazia tremer. Estava de espírito suspenso, presa de afetuosa angústia pela sorte do Santo, temia pela vida do querido “pai”, que, refugiando-se no desconhecido e desaparecendo na vertigem dos céus, para ele se tornava inatingível. Tinha medo do sublime, mas temia por ele, que poderia queimar-se inteiramente no divino incêndio. Examina-se interiormente e fica triste por não poder segui-lo e, incapaz de progredir para o alto, ser obrigado a permanecer no sopé da montanha da santidade, a ficar sozinho na terra, em meio à própria miséria. E chora com pena de si mesmo. Mas, logo em seguida, se esquece de si e pensa no amigo, pensa na sua grande missão daquele instante e quer continuar vivendo apenas para executá-la. E transborda de alegria por seu triunfo no mundo divino. Mas esse mundo divino, de que o amigo se apodera, com seu peso, magnitude e poder, volta mais uma vez a esmagá-lo, a esmagar o pobre Frei Leão, que se amedronta ainda mais. E se amedronta principalmente por causa de seu amado amigo, sobre quem recai todo o peso do infinito, daquela imensidade esmagadora em que a alma se perde. Por isso, escuta, reza, alegra-se, extravia-se, crê e espera. Pequena tempestade, reflexo de terrível tempestade que se apodera do Santo. Além disso, Leão ignora. Tomado de medo, admira de longe a inatingível santidade do amigo; intui, porém não compreende tão incomuns colóquios com Deus. Não podemos, portanto, ver a substância do fenômeno através dos olhos de Frei Leão, ainda fechados naquele momento. Apenas mais tarde, depois da morte do Santo, vão abrir-se, contemplando os divinos crepúsculos de Assis, através da saudade que sentia por Francisco e defendendo-lhe as ideias, amando-o e chorando-o. Aí, então, meditando sobre o que ouvira da boca do amigo, maturar-se-á até o ponto de compreendê-lo perfeitamente. Para nós, porém, a compreensão do fenômeno ainda permanece na sombra.
Francisco contemplara demoradamente, na véspera, o suave crepúsculo. E, sem dúvida, verdadeira véspera de batalha havia sido a jornada anterior, pois, na vida tudo é luta, sobretudo a conquista espiritual. A noite precedente fora consumida no fogo devorador da oração, porque o paroxismo do amor realmente é voraz. Francisco sentia que estava para chegar ao zênite de sua vida, ao momento crítico da última separação da terra. Quem sempre foi a aplicação viva do Evangelho, está maduro para se desligar de qualquer forma terrena de vida. Mas para aí chegar, quanto caminho! Antes de ousar lançar olhares a um futuro maravilhoso, ele hesitava recordando o passado. Nas primeiras horas da noite, antes de afrontar sua ressurreição na divindade, representava-se diante de seu passado humano, cheio de fadigas e sofrimentos. Quanto caminho de S. Damiano ao Monte Alverne! Revivendo todas estas coisas, enorme cansaço parecia esmagá-lo, sua vida física agonizava e agonizando chorava sua destruição, oprimindo-o com seu pranto. Seu corpo ainda jovem, embora subjugado, sofria derradeira tentação: a tristeza de não ter vivido para si, de não poder mais viver. Expulsa do espírito, tornava-se mais sutil: a inutilidade do sacrifício. “Senhor, não me compreenderão! Não me compreenderão, como não nos compreenderam!” As forças do mal assaltaram-no, então, no ponto mais alto e precioso de sua vida: sua missão de santo. Talvez um assobio sinistro soou a seus ouvidos: “é inútil teu amor, tua paixão. Cumular-te-ão de louvores, mas a traição não tardará”. E Francisco, como Jesus no Getsêmani certamente chorou pela incompreensão, reformas, traições e adaptações que haviam de tentar sua obra, para reduzi-la a nada. Seu ânimo foi tomado de profunda tristeza e mortal abatimento como se lhe pusessem uma mordaça, sucumbindo momentaneamente. Junto à agonia física, a agonia espiritual. Nas primeiras horas da noite deve ter travado tremenda luta contra as trevas e o mal.
Em tais fenômenos há ritmo de períodos característicos e fases opostas em equilíbrio. Como aconteceu a Cristo, antes de seu martírio físico no Gólgota, houve na noite precedente, o martírio moral do Getsêmani; assim, com Francisco antes de sua crucificação pelos estigmas, houve, certamente, uma crucificação de dor no espírito. Sintonia lógica entre fenômenos semelhantes. A tentação noturna é a contraparte, a primeira metade, negativa, do fenômeno, em oposição a seu segundo momento, positivo, o triunfo do espírito. O mal e a negação tiveram seu turno como condição e preparação da afirmação e do bem. Francisco, portanto, para chegar à união com Cristo, devia naturalmente reviver-lhe as dores morais do Getsêmani antes de reviver-lhe o sofrimento físico da crucificação. Foi permitido ao mal que vencesse por momentos. O contraste, entre as forças involuídas da matéria e as outras forças do espírito, tornava-se cada vez mais violento na fase final da luta. Antes de definitivamente triunfar na luz foi desferido o assalto mais forte das trevas. Antes de conseguir sua perfeita sintonização com as supremas harmonias do divino, antes de poder unir-se a Deus na harmonia de um íntimo acordo de todas as criaturas e forças irmãs, Francisco certamente teve que atravessar na escuridão da noite a tempestade de ruídos e dissonâncias, desencadeada pelo choque caótico de forças involuídas, desarmônicas, ainda não disciplinadas na ordem superior. Em Alverne, não era novidade para o Santo se as forças do mal destruíssem o Monte, fazendo precipitar suas pedras. As primeiras horas da noite, as mais tristes e profundas, eram as mais próprias para semelhantes assaltos: mas, às primeiras horas da manhã a vitória já era certa.
O ritmo da vida é duplo e inverso, diurno e noturno, material e espiritual. Já vimos suas características. As primeiras horas da noite, trazem consigo os últimos e mais profundos ecos das horas do dia, ressentindo-se de sua proximidade, retardando-se, enquanto à meia noite o ritmo se inverte até a manhã, cuja espiritualidade, por sua vez, se retarda nas primeiras horas do dia. Tal ritmo acha-se deslocado em relação ao ritmo da luz. As primeiras horas da tarde parecem carregar o peso de toda a escória da vida física diurna, dos encontros e asperezas da luta material. O mundo diurno é de expansão exterior, de sintonização solar, vermelha, sensual e sensória, material e animal, de ondas longas, baixa frequência, notas profundas, baixo potencial em face do espírito. É o mundo do involuído, forte na carne, débil no espírito. Também aqui este momento do ritmo vital presume e espera seu momento oposto dado pelo poder do espírito.
Gradativamente, porém, a tempestade do mal se acalma, pára e passa. É na segunda metade da noite que, superada sua fase negativa, se inicia a fase positiva do fenômeno. Entramos no período de reconstrução da frequência de onda, de potencial, em seu período espiritual. Esgota-se a vida material, cala-se revivendo no imponderável. Vimos suas características. É uma vida sutil, imaterializada, interior, vigorosa, penetrante, de ondas curtas, alta frequência e grande potencial, de notas agudas e radiações noturnas, violetas, lunares. As condições ambientes que lhe são relativas e harmônicas, acentuam-se pela aurora, depois do que tendem novamente a inverter-se na fase diurna. Vemos em I Fioretti: o fenômeno aconteceu mais ou menos uma hora antes do nascer do sol e o Monte Alverne resplandecia pela chama que iluminava os montes e vales adjacentes como se fora o próprio sol. A chama continuou visível (portanto era ainda noite) por mais de uma hora (antes do dia): tanto que muladeiros que se dirigiam para a Romanha foram despertados pela luz nos albergues, levantaram-se, carregaram seus animais, e puseram-se a caminho. Só então viram que a luz se extinguia e se levantava o verdadeiro sol. Por sua própria lei e pelas condições das radiações ambientes, o fenômeno só podia acontecer naquele momento, antes da aurora.
Trata-se de fenômeno de harmonização com a divindade, onde a sintonização do sujeito receptor com a fonte transmissora, deve ser por esta acompanhada e fortalecida de radiações circunstantes, cuja contribuição é igualmente indispensável. Para isso, concorrem não só fatores espirituais, como também condições especiais de dinamismo ambiente, porque se trata de universal orquestração de forças, e forças de todo tipo. É inadmissível qualquer dissonância, seja nas alturas, seja nas profundezas. Deus é harmonia, ordem suprema, e sua manifestação não age senão em atmosfera de harmonia e ordem perfeitas. É necessária, além da hora apropriada, a atmosfera pura das altas montanhas, a paz dos bosques, a vastidão dos espaços, o céu límpido e estrelado, o silêncio, a solidão. Para se dar a harmonização que constitui o fenômeno, é preciso não só a sintonização do sujeito humano com Deus, mas de todas as criaturas que o rodeiam, e as forças da matéria e da vida são, também elas, criaturas de Deus. Recordemos: tudo vibra, todo ser, toda forma, mesmo material, desprende, de seu íntimo, radiações que são vida, expressão do pensamento, da potência, da presença de Deus. Deus está em todas as coisas. As vozes da natureza, falam-nos Dele. Atrás da aparência, toda forma traz uma íntima substância imaterial de que é efeito e a mantém em vida pela contínua reconstituição, pertence ao mundo espiritual, trazendo um traço, embora mínimo, da face de Deus. Só assim, contemplando essa face interior da natureza, poderemos nos aproximar Dele. Aqui se revelou esta forma interior, só percebida por espíritos amadurecidos. Por isso, Francisco era capaz de ouvir em todas as coisas, forças e criaturas, a voz de Deus presente. E no alto do Monte Alverne, naquela hora, cada ser, cada coisa, árvores, rochas, pássaros e estrelas, ofereceram, reverentes, a homenagem de sua contribuição. A criação assistiu, vibrou, ofertou-se, acompanhou com sua íntima presença e perfeita harmonia as núpcias da criatura com o Criador. Não foi unicamente uma oferta cega, insensível, mas verdadeira resposta à participação, donde podia nascer aquela única sintonia, acordes livres e perfeitos. Deus está em todas as coisas, como ordem, e como Tal se manifesta. Não pode, portanto, falar-nos, nem poderemos subir até Ele, se a harmonia não for perfeita. Para que Francisco pudesse sentir a presença de Deus, era preciso estar em harmonia com a natureza e vice-versa. Pois, qualquer dissonância nos afasta do íntimo das coisas, ao qual só poderemos chegar com a perfeita harmonia.
O fenômeno só podia acontecer naquele lugar, naquela hora, com aquele homem. Isto está no íntimo da criação. São estas as regras musicais da orquestração que origina tais acontecimentos. Era necessária a transparência matutina de sutil atmosfera que não obstaculasse ou absorvesse as radiações provenientes tanto da Terra como do céu, radiações telúricas e estelares. Era necessária também a doce estação de setembro, quando o sol é oblíquo, o calor do estio calmo em suas primeiras quenturas outonais, quando se aquietou o fervor estivo da vida; estação em que a exaltação da parte física, ao contrário da espiritual, diminui de ritmo e se esvai. O princípio de harmonia e sintonia exigia manhã tranquila, límpida, diáfana. O perfeito equilíbrio das forças primordiais permitiria à natureza entoar a nota fundamental da sinfonia, elevando ao redor do fenômeno, em perfeita consonância um fundo musical harmonioso, que a faria vibrar qual caixa de ressonância, a fim de nela apoiar e elevar a harmonia muito mais sutil do fenômeno místico.
Do mesmo modo, eram indispensáveis as condições particulares em que se encontrava o sujeito, isto é, seu estado de completo esgotamento físico, a maceração orgânica que eleva o potencial de vida do espírito, estado de degradação do dinamismo vegetativo que ajuda sua transformação em dinamismo espiritual. Enfim, era preciso o elemento fundamental, o homem, um homem que tivesse conseguido, por longa preparação, a maturidade; capaz de suportar e superar, diante de Deus, a hora crítica da revolução biológica, lançado como um bólido no mundo do espírito, saindo para sempre da órbita das trajetórias terrestres. Era preciso que este homem, no extremo do sacrifício, no vértice do amor, abrisse os braços para Deus e a Ele se atirasse ardente de fé, louco de paixão.
Era noite alta. Parecia que se tornara imóvel antes de se destruir no dia. Nos dois horizontes opostos, o crepúsculo e a aurora calavam-se. A luz solar que neste hemisfério é quente, rósea, viva, direta, estava agora envolta em sombras. Somente, difundido pelo céu, um pálido reflexo de miríades de estrelas, luz tão diferente, fria, argêntea, sutil, imaterial. A mais humilde e calma sinfonia noturna, sucedeu à grande sinfonia do dia. Harmonia inversa, em tom menor, quase viúva e melancólica, de expectativa e meditação. Eis que a vida não mais se lança ao exterior para se expandir e crescer, mas se recolhe em si para se compreender. Durante a noite, a vida renasce inversa, envolta em sonhos; toda nota de luz, de som, de forma, revive aveludada em vozes delicadas que refletem o dia, suavizada por transparências irreais, espiritualizada em contornos indefinidos, vaga, submissa, sutil como um eco de acordes distantes. É a hora em que o universo cessa de falar materialmente, do exterior, mas fala espiritualmente, de suas profundezas. Olha-nos, então, com seu olhar interior que não vê a forma mas o mistério de suas causas, observa nosso interior e nos convida à introspecção. Foi em meio a esta imprecisão de formas, neste supremo silêncio da ilusão humana, que o espírito preparado de Francisco podia, cantando as criaturas, reconquistar a corrente de manifestação divina até chegar à sensação de Deus. Sua alma ouvia as infinitas vozes da criação, abria-se como flor ao sol da manhã, ao mesmo tempo que ao redor começava, mais límpida e sutil, a sinfonia do universo. Abriam-se os céus e do alto chovia luz espiritual. Na diáfana imensidão da noite, desapareceram os horizontes. A terra não era mais terra. Do alto do Alverne, parecia infinda vastidão, sem limites como o céu, e com ele tão idêntico, era uma única e indivisível imensidade. O céu e a Terra eram então a imagem do infinito. No alto, na vertigem do azul, abriam-se os misteriosos abismos das estrelas, espaços sem limites, onde os olhos e a mente se perdem. Deus é ainda mais profundo e distante mesmo estando tão perto; a alma O encontra quando está para se perder. A visão dos céus se mostra a nossos olhos como a visão de Deus – parece cair no nada e aí encontramos tudo.
Francisco, de pé sobre a rocha, de braços abertos, contemplava. Deixava-se acompanhar e guiar pela voz de todas as criaturas irmãs para o Criador comum. A maré imensa das radiações de todas as coisas parecia elevar-se como ele para Deus, harmonizando-se em uma orquestração cada vez mais doce e espiritual. Cada ser era uma nota falando-lhe de Deus. Tudo falava à sua alma sensível e ele tudo ouvia e compreendia. A vibração mais profunda vinha da terra e subia como um trovão pelas rochas ásperas do monte. A relva emitia uma nota mais cheia, mais vizinha da vida, majestosa, severa. Os pássaros, os insetos, os outros animais adormecidos, as ervas, ressonavam ao redor numa respiração tranquila. Mais ao longe, na interminável descida, nos montes, nos vales e planuras, as forças da vida repousavam em paz. Em paz as criaturas abandonavam-se confiantes nos braços da sabedoria e providência da Lei de Deus. A tempestade do mundo, onde o homem se amedronta e se consome, estava longe, lá em baixo, nas cidades agitadas e cansadas. Sua voz não chegava ao pico, nem perturbava aquela paz divina. Mais longe ainda se perdia o ribombar seco da voz cavernosa do mal. Também ele, como toda criatura de acordo com sua natureza no equilíbrio entre as forças do universo, estava em seu lugar, para confirmar, não para violar a ordem divina. O mal lá em baixo revolvia-se num mar de trevas. Do alto, do ilimitado resplandecer das estrelas chovia sobre a terra uma luz indecisa. Era uma radiação difusa e penetrante – tremor agudíssimo do éter acariciando os seres, por toda parte, transmitindo seu ritmo a toda criatura; vibração de alta frequência, quase espiritual, trinado agudíssimo, igual, sutil. Paz: cantavam as estrelas, obedecendo à ordem divina. Esta era a orquestração do universo que acompanhava o desenrolar-se do fenômeno. Viva em cada nota, feita de conceitos, de forças, de formas, feita do pensamento e poder de Deus que tudo movimenta e vivifica. Sobre esse fundo de tão imensa sinfonia vibrava a alma do Santo, respondendo às notas graves das criaturas irmãs que com ele cantavam em coro. Por sua vez, elas respondiam numa única música que em síntese dizia: Deus. Assim, bem de longe, através da criação, teve começo o colóquio entre Francisco e o Criador.
Era o último dia da lunação; ia surgir a lua nova que naquele momento não aparecia no firmamento (confirmado pelo Observatório Astronômico de Capodimonte, em Nanópolis). A noite navegava triunfante para o momento de sua mais intensa espiritualidade. A música universal seguia em diversas alturas a espiritualização da hora e a tensão cada vez mais crescente da alma de Francisco, num crescendo de harmonia e perfeição. Vibrações e acordes sucediam-se em planos sempre mais elevados, cada vez mais claros e puros. Ele, o mais perfeito dos seres, o mais nobre, o mais vizinho a Deus, confortado pelo amor que espalhava e que agora lhe era restituído, rodeado pela natureza ajoelhada em veneração, entoava, seguido por toda a orquestra, seu mais sublime canto. Parecia guiar a marcha ascensional da vida. E tudo, em perfeita harmonia, progredia em ritmo cada vez mais vivo e poderoso, para a aurora era o incêndio. Ao mesmo tempo que o ritmo aumentava de potencial, a respiração tornava-se ofegante, suspensa de enorme tensão, temendo um choque. Parecia que a terra se inflava e se erguia para seguir o Santo em seu arrojo divino, parecia querer arrastar consigo todos os seres para Deus, ou abraçar, em seus braços abertos, todas as criaturas irmãs, incendiando-as em sua divina paixão de subir. Estas pareciam querer unir-se ao arauto da vida, seu mensageiro perante Deus, e impeli-lo a subir ainda mais alto, até o trono do Eterno, para levar até aí suas vozes e para que lá o Santo recebesse o último selo de sua missão. A vida parecia atirar-se alegremente à subida para matar sua sede de sublime. O fenômeno já havia começado e devia cumprir-se até o fim. Cada minuto acelera-lhe o ritmo. Francisco tem atrás de si o acordo universal das forças que o estimulam e, diante de si, Deus o atrai. Não pode mais voltar. Não é mais dono da situação. Deve aceitá-la humildemente de Deus. Cairá inevitavelmente no incêndio que se alastrará pelo Monte.
A história de I Fioretti, como o Evangelho, não podia ser inventada. Os dois livros pressupõem e fazem sentir, na simplicidade de sua história, um profundo conhecimento dos fatos espirituais, os quais não podem ser improvisados nem inventados pela alma do povo. O narrador de I Fioretti fica na ingênua simplicidade fora do fenômeno, limitando-se a contar os fatos exteriores. No entanto, este modo de ver, tão material, coincide com sua substância espiritual e com a profunda realidade do fenômeno. Ora, a experiência comum das coisas terrestres não é suficiente para fornecer-lhe elementos de semelhante história que não parece, mas deixa transparecer tanta sabedoria. O modo como é estabelecido e se desenvolve o fenômeno, a moldura que tão bem o cerca, a hora, o lugar, o homem, o comum, o prodigioso, o material e o espiritual, tudo está perfeitamente equilibrado e com os meios mais simples; a espontaneidade das almas virgens, dá-nos imediatamente o sentido da verdade. Francisco está suspenso do vértice de uma rocha entre a terra e o céu, ao mesmo tempo só e acompanhado por todos os seres, com a alma aberta a todas as vibrações do universo, diante de Deus que em alta voz, através de todas as criaturas, lhe diz: presente. Deus lhe fala por tudo que existe, pela organização funcional do universo, pelas harmonias da vida, pela alegria e pela dor, fala-lhe no fundo da alma, por toda a parte e sempre presente. Temos necessidade não só de um Deus que é causa transcendental e longínqua, mas sobretudo deste Deus atual, imanente e presente. Doutra forma ficaremos órfãos e sós, sem esperança de ver, algum dia, o que seja do rosto de Deus. Ele existe e é preciso senti-lo no meio de nós. Não é, nem pode ser, um Pai inatingível, por si mesmo triunfante nos céus, colocado numa distância insuperável. Assim é para quem raciocina friamente e nos aproximaria muito pouco de Deus. Francisco O alcançou porque começou por olhar na terra seus reflexos, servindo-se deles para subir até Deus pelos caminhos íntimos da fé; porque para chegar ao Criador, passou por todas as suas manifestações nas criaturas. Alcançou-O porque seguiu mais os caminhos do coração que os da inteligência, preferiu a imolação e o amor ao raciocínio.
Eis que se aproxima o momento supremo. Francisco começa a rezar, voltado para o oriente. Sua querida Assis, também está desse lado, onde logo o primeiro pressentimento vago da aurora começava a delinear o horizonte. A noite atingia sua hora mais espiritual, hora de sonhos alados de luzes diáfanas e irreais, hora profunda de mistério e silêncio. Eis Francisco diante do fim supremo: Deus. Quantas etapas para aí chegar, quantas pequenas tentativas de sintonização em sua vida! Aproximações parciais foram concedidas a S. Damião, em Greccio, na ilha de Trasimeno, em Porciúncula, na lagoa de Veneza, e em tantos outros lugares de solidão e beleza. Tinha sido preparado por assaltos e contatos progressivos até a perfeita sintonização com Deus. O invólucro físico de sua alma se sutilizava gradativamente pela penitência, seu ser tornou-se mais sensível, e por sua vez preparado pelo jejum, pela oração, pela solidão e pelo sacrifício. Eis que as forças do universo rodam diante de Francisco. Subiu a tal ponto que as vê convergir para um único centro, e é capaz de ouvir a música paradisíaca de sua harmonia. É a ordem das coisas que canta os louvores de Deus. Francisco é arrebatado em êxtase, está fora de si de tanta alegria e tensão. A grande orquestração do mundo vibra anunciando a chegada da glória do Rei que vem ao encontro de seu servo. Abrem-se os céus, o monte se incendeia inundando a terra de luz. As criaturas imóveis, olham reverentes, prostradas mais abaixo, ao redor, distantes, temendo tocar tão alta tensão diante da qual sentem que suas formas se desfazem. No alto ficam dois únicos seres: Deus e Francisco, o universo é um grão de areia, que se funde e some. Não mais se vê o sol em seus reflexos infindos, mas em seu real esplendor. A extrema alegria e tensão, de espírito, deve-se ter seguido na matéria terrível choque e sofrimento imenso. Mas, para o espírito, é felicidade naufragar e perder-se na infinita divindade. Tocamos o inexprimível e as palavras faltam. Estamos no limite extremo do sublime. O próprio Santo contou tudo isto da melhor maneira: calando-se.
Só nos é possível olhar de longe, como os muladeiros que iam à Romanha; olhar através da história, da lenda, da arte, da fé, porque nossas tentativas de reconstrução por intuições não vão além. Aquele incêndio projetou na visão interior de Francisco uma forma luminosa: Cristo. Mas o incêndio envolveu também o corpo do Santo, que ficou marcado em sua carne pelos sinais da Paixão. Pois é lei, que a união não se pode alcançar senão com a semelhança e a subida só é possível pela dor.
Tudo isto será por alguns relegado como lenda ou fantasia. Não podem admitir o fato. Procuramos demonstrar por meios científicos e racionais, a possibilidade e realidade do fenômeno que a mesma ciência e razão às vezes negam, pondo-o como conclusão deste trabalho que lhe serve de base. Procuramos reconstruí-lo pelo método da inspiração, isto é, por intuição e sintonização noúricas. Procuramos restitui-lo à vida para que nos alimente, nos guie, nos arrebate, como fenômeno biológico que interessa a nossa evolução humana. Apresentamos S. Francisco no vértice da evolução humana, como um dos muitos modelos de nosso futuro, para que alguém tente imitá-lo na medida do possível. Temos necessidade de S. Francisco, especialmente hoje. Onde a ciência materialista nos iludiu prometendo-nos uma riqueza traiçoeira que nos empobreceu o espírito, S. Francisco nos oferece a riqueza espiritual e a alegria, mesmo numa vida pobre e simples. A ciência ainda não soube fazer tão grande descoberta: fazer os homens contentes com meios simplíssimos. Podem dizer: "enganando-os com ilusões". Mas a civilização o que fez para o tão esperado Paraíso na terra, que está sempre para se realizar, senão traições? S. Francisco nos ensinou a libertação de tantas necessidades que nos escravizam, e que o progresso cria para explorar; ensinou-nos (e em que condições!) a alegria perfeita que o mundo desconhece. Como se sentia rico com tão pouco; como nos sentimos pobres com tanta riqueza! A moderna ciência materialista jamais conseguirá invenção semelhante: dar sensação de riqueza a quem vive pobremente. Quem destrói as aparentes utopias da fé, pode destruir valores morais inestimáveis, que são imenso poder de resistência. No céu e na terra existem tantas coisas que são impossíveis só aos ignorantes. Intuições supremas que ultrapassam os limites de nossa miserável vida cotidiana, indispensáveis à vida de indivíduos e de povos, cumprindo há séculos sua função, apesar de todas as negações.
Chegamos, finalmente, a estes últimos capítulos, em que o trecho de caminho percorrido neste livro se fecha numa pausa; depois dessa pausa, talvez continue mais para adiante. Este novo episódio pára no ponto culminante de sua manifestação, retira-se para o outro extremo da eterna oscilação do ser, mudando para dentro o sentido de seu deslocamento a fim de, após haver narrado e demonstrado, poder atingi-la de novo. De fato, a vida processa por meio desse deslocamento alterando, de dentro para fora e de fora para dentro, as duas fases inversas de todos os atos. A oscilação pendular entre tese e antítese, segundo a qual tudo se move e se equilibra, impõe que a introspecção e a manifestação se sucedam no tempo.
Ao longo de nossa caminhada neste volume, a vastidão dos problemas sociais foi gradativamente diminuindo, à proporção que se aprofundava na complexidade do problema individual; o campo apequenou-se, mas o potencial se elevou. Até mesmo na forma, portanto, este livro reproduz o fenômeno evolutivo, que lhe constitui o problema central. Partimos do problema dos grupos, da questão social coletiva, por causa da extensão e involução que se coloca na base da pirâmide humana, e subimos até o problema dos pouquíssimos evoluídos, à questão individual que se coloca no vértice dessa pirâmide. Alcançamos, desse modo, alturas a que a massa não pode aspirar, a formas de vida que apenas podem ser atingidas pela excepcional emersão biológica. Completamos, assim, uma oscilação entre os dois extremos da vida humana: o coletivismo e o individualismo. De fato, ao progredir, a história oscila entre o sistema social igualitário e disciplinador de multidões e a exaltação do indivíduo excepcional, autônomo e rebelde, graças aos dois extremos contrários, ela se compensa e se completa. O sistema social, coordenando os elementos necessários, disciplina-os, constrói o indivíduo; da emersão do indivíduo resulta o sistema.
Ambos os termos são necessários e colaboram no mesmo processo biológico da evolução. Agem alternadamente na História e assim equilibram suas funções, no que têm de contraditórias. O progresso alimenta-se nas duas fontes. Agora, depois de havermos tratado dos numerosos problemas das multidões e chegado às bordas do abismo da personalidade, o último passo tem de necessariamente colocar-nos no ponto culminante da evolução humana, além do qual o espírito se desembaraça da forma corpórea para assumir formas superiores, as quais, por enquanto nem mesmo podem ser concebidas pelo homem comum. Para chegar, porém, a esse ponto devemos percorrer de novo o caminho todo e ir subindo aos poucos, através de vários problemas, esgotando antes de mais nada até mesmo o da personalidade humana. O de que agora vamos tratar representa um de seus casos particulares mais evoluídos e complexos. Trata-se de emersão escolhida entre as mais conspícuas e espirituais, embora não seja nem a única nem tenha apenas esta forma.
Todos obedecem aos impulsos expansionistas do eu. A expansão constitui a primeira e mais evidente expressão vital. Este é o esquema do ser: manifestar-se por meio de individuações sintéticas, resultantes de concentração de forças no eu, mas subordinadas a inverso período de descentralização, por força do qual a personalidade humana se manifesta como sistema expansionista. Desse modo, o binômio se completa e os impulsos se equilibram. Mas, para a maioria, essa expansão se dá horizontalmente, em superfície, e verticalmente, em altura, se se trata de emersão biológica. A expansão do tipo normal dirige-se à posse, por reciprocidade, significa sujeição; a expansão do supernormal se dirige para a liberação e isso quer dizer domínio. O normal, inesperto, vítima da ilusão, tenta dominar, mas acaba sendo dominado, procura libertar-se e acaba agrilhoando-se. Conhece apenas a expansão terrena e, por isso, mostra-se avidíssimo, como hoje acontece, de munir-se de energia necessária para aumentar seu raio de ação em superfície e sua capacidade de ação em profundidade, assim, a afirmação de si mesmo pode atingir a matéria, o mais extensa e profundamente possível. Mas, desse modo, não toma conhecimento da expansão vertical, que lhe escapa à percepção e com ela a conquista do volume, quer dizer, de uma dimensão superior. As duas atitudes em face da vida correspondem a duas posições e a duas concepções totalmente diversas. O primeiro tipo revela-se muito pequeno, espiritualmente falando, para que não possa alojar-se comodamente na pequenina casa do corpo. Sua única ambição consiste em ampliá-la, de modo a construir para si mesmo prisão cada vez mais bela e vasta e a anexar-lhe todas aquelas dependências do corpo chamadas posse, riquezas, honras, poder. O evoluído revela-se muito desenvolvido espiritualmente para que não se sinta sufocar no ambiente terrestre. Prova a sensação que sentiria um animal transformado em planta. Com efeito, a vida física, se a compararmos com a ilimitada liberdade de movimentos do espírito, poderá parecer, a quem já a experimentou, como a imobilidade da árvore comparada com a agilidade dos animais. O evoluído, prestes a sair da crisálida terrena, já saboreou a vida em dimensões super-espaciais e supertemporais, sente de fato os grilhões do corpo e do limite imposto, nas dimensões exatas, ao plano evolutivo da matéria. Sente a angústia da vida terrena, tolera-a como expiação ou missão, não espontaneamente, mas por dever; seu íntimo impulso expansionista, porém, segue rumo vertical, não tem em vista a ampliação e o enfraquecimento da prisão, mas liberta-se dela. Não há outro sistema sério para resolver as dores da vida. Descobriu os truques da ilusão e não se deixa mais iludir. Já sabe que os domínios humanos, na realidade, não passam de servidão e, por isso, não se dispõe a consegui-los mais; reconhece serem eles necessários para os primitivos, como meio de experimentação, compreende-lhes a função nesse plano; não pode, porém, aceitá-los, pois executa trabalho completamente diferente. É justo: de acordo com sua capacidade, cada um manejar na vida, os instrumentos aos quais mais se adapte. Quem sabe, porém, dá a cada um deles o valor que merecer. Assim, o evoluído recusa uma fingida extensão de domínio, para ele se resolve em mentira, pois, em substância, é aumento de escravidão; repele as miragens que o ligam aos grilhões da posse, torna-se o mais possível independente de tudo e de todos e volta as costas a todas as conhecidas lisonjas da vida. Não faz questão de superioridade, mas de maturidade. Cada um de nós exerce a função exata no seu plano e está no lugar certo. Mas também está na lei de justiça e equilíbrio: todos os que aprenderam a desempenhar funções mais elevadas devem exercê-las onde isso se torne possível, quer dizer, em outros mundos, mais adiantados e mais adequados. A natureza, econômica como é, conhece muito bem e, por isso, não desperdiça os seus valores; o funcionamento orgânico do universo e a grande marcha evolutiva não podem parar; a ascese, depois de realizada intimamente, impõe inexoráveis mudanças, inclusive à forma. O ciclo deve continuar na fase seguinte, o fruto maduro deve destacar-se da árvore, o homem evoluído deve destacar-se da humanidade. Por mais que, por bondade, humildade, ou amor, dedique-se a seus semelhantes, o evoluído é irresistivelmente impelido, cada vez mais para cima, no aflitivo turbilhão da vida.
Fechemos o pedaço de caminho percorrido neste livro, contemplando esse momento sublime através de um caso excelso em que um tipo de personalidade madura, foge, como se fora um projétil, do campo das atrações terrestres e se atira no espaço infinito. O fruto, elaborado e amadurecido no ponto mais alto das ascensões biológicas, o produto mais bem acabado da vida humana, destaca-se da árvore que o produziu. Bem próximo da morte, em que ele ressurge, no limiar de vida muito mais ampla, veremos um ente, embora pareça não é mais humano, nascer para a realidade iminente de um mundo superior, o qual se abre diante dele. Revela-se- lhe como supremo lampejo espiritual sobre o tripúdio de paradisíacas sensações interiores. Esse mundo constitui o céu de Cristo; o grande ser, fora dos parâmetros normais, é Francisco de Assis; o momento sublime, da derradeira ruptura das órbitas terrenas e do lançamento no infinito, se passou, num incêndio de luz e amor, nos cimos do Monte Alverne.
Relatemos a singela história dos Fioretti, acrescentando à citada no volume Ascese Mística (Cap. 15 – Segunda Parte) a dos precedentes do maravilhoso acontecimento: (...)“aproximava-se a festa da Cruz de setembro; certa noite, na hora em que se costuma rezar as matinas, frei Leão foi ter com São Francisco; e, tendo dito da cabeceira da ponte, como se costumava, Domine, labia mea aperies (Senhor, abrirás meus lábios), São Francisco não lhe respondeu; frei Leão não voltou para trás, como São Francisco lhe ordenara; mas, com boa e santa intenção, atravessou a ponte, entrou-lhe devagar na cela e, não o encontrando, supôs estivesse ele na floresta, ou finalmente, entregue à oração em algum lugar; saiu e, à luz do luar, foi procurando-o cuidadosamente na floresta. Finalmente, ouviu a voz de São Francisco e, aproximando-se, viu-o de joelhos e com o rosto e as mãos voltados para o céu; e com grande fervor perguntava: Quem sois, ó Deus, dulcíssimo senhor meu? E quem sou eu, vosso vilíssimo servo? E repetia sempre as mesmas palavras e não dizia mais nada. Por isso, frei Leão ficou muito admirado, levantou os olhos e fitou o céu; e viu vir descendo belíssimo e esplêndido facho de fogo, que pousou sobre o corpo de São Francisco; e da chama ouvia sair uma voz que falava com São Francisco; mas frei Leão não distinguia as palavras. Quando viu isso, julgando-se indigno de estar assim tão perto daquele santo lugar, onde se dava aquela admirável aparição, além disso, temendo ofender a São Francisco e perturbar-lhe a consolação, caso São Francisco lhe percebesse a presença, afastou-se silenciosamente e, ficando de longe, esperava ver o fim de tudo aquilo. Olhando atentamente, viu São Francisco estender três vezes as mãos na direção da flama: finalmente, depois de grande espaço de tempo, viu a chama voltar para o céu. Então, mexeu-se e São Francisco percebeu-lhe a presença, por causa do barulho de seus pés esmagando folhas, disse-lhe que o esperasse e não se movesse do lugar. Então, frei Leão, obediente, ficou parado e esperou-o(...). São Francisco, aproximando-se, perguntou-lhe: Quem és? Frei Leão, tremendo, respondeu: Sou frei Leão, meu pai! E São Francisco lhe disse: Por que vieste até aqui, frei carneirinho? Não te disse eu que não me andasses espionando? Diz-me, em nome da santa obediência, se viste ou ouviste alguma coisa. Frei Leão respondeu: Pai, ouvi-te falar e dizer muitas vezes: Quem sois, ó dulcíssimo Deus meu? E que sou eu, verme vilíssimo e inútil servo vosso? Em seguida, lhe pede devotamente lhe explique as palavras que não havia compreendido. Então, vendo São Francisco que Deus concedera ao humilde frei Leão, por sua simplicidade e pureza, a graça de contemplar algumas coisas, concordou em revelar-lhe e expor-lhe o que ele pedira; e falou assim: (...) Naquela flama que viste estava Deus, falando-me sob aquela mesma aparência com que outrora falara a Moisés(...). Mas, toma cuidado, não andes espionando-me por aí e volta para a tua cela, com a bênção de Deus e toma bem conta de mim, pois dentro de poucos dias Deus fará tão grandes e maravilhosas obras neste mesmo monte que todos ficarão maravilhados; fará, também, algumas coisas novas, que Ele nunca fez em proveito de criatura alguma neste mundo(...). Daquele momento e daquele ponto em diante, São Francisco começou a libar e a sentir mais abundantemente o dulçor da divina contemplação e das visitas divinas. Entre elas, uma, logo depois, preparatória da impressão dos Estigmas. Foi assim: na véspera da festa da Cruz de setembro, estava São Francisco em oração na sua cela, quando o anjo do Senhor lhe apareceu e lhe disse da parte de Deus: Vim confortar-te e recomendar-te que te prepares e te disponhas, humildemente, com toda a paciência, para receber o que Deus quer fazer em ti. São Francisco respondeu: Estou preparado para suportar com paciência tudo quanto meu senhor queira fazer em mim; e dito isto, o anjo partiu. No dia seguinte, isto é, no dia da Cruz, São Francisco, por ocasião das matinas, de madrugada, se pôs a orar diante da porta da cela, com o rosto voltado para o Nascente; orou, e permanecendo por muito tempo em oração, começou a contemplar devotamente a Paixão de Cristo e sua infinita caridade; tanto cresciam nele o fervor e a devoção que, por amor e compaixão, todo ele se transformava em Jesus. Estando assim inflamado nessa contemplação, naquela manhã mesmo viu descer do céu um serafim com seis resplendentes e flamejantes asas e, voando velozmente, aproximou-se de São Francisco ao ponto de este poder discernir e ver perfeitamente haver nele a imagem dum homem Crucificado;(...) Estando imerso nessa admiração, foi-lhe revelado pela aparição que a Divina Providência lhe proporcionava aquela visão a fim de que compreendesse dever transformar-se, não por martírio corporal, mas incendendo-se mentalmente, em imagem perfeita de Cristo crucificado. Durante essa aparição admirável, todo o Monte Alverne parecia arder em chamas esplêndidas que, como o sol, iluminava os montes e os vales dos arredores; os pastores, que velavam por ali, vendo o monte em chamas e tantas luzes em torno, ficaram com muito medo, isso de acordo com o que mais tarde eles mesmos contaram aos frades, dizendo-lhes até que as chamas permaneceram sobre o Monte Alverne pelo espaço de uma hora. Assim também, diante da claridade dessa luz, que resplendia nas janelas das estalagens da região, alguns muladeiros se levantaram na Romagna, crendo haver surgido o sol material, e carregaram seus animais; tendo-se posto a caminho, viram a referida luz apagar-se e aparecer o sol material. Na aparição serafínica, Cristo manifestou-se e disse a São Francisco algo secreto e sublime, que São Francisco jamais quis revelar a pessoa alguma(...). Depois de grande espaço de tempo e de colóquio particular, a admirável visão desfez-se, deixando o coração de São Francisco abrasado em vivo fogo de amor divino; deixou-lhe na carne maravilhosa imagem e estigmas da Paixão de Cristo. Nos pés e nas mãos de São Francisco começaram a surgir os horrendos sinais dos pregos, exatamente como a visão lhe mostrara no corpo de Jesus crucificado que lhe aparecera sob a forma de serafim. Como as mãos e os pés do serafim apareciam com as marcas dos cravos, também as de São Francisco estavam impressas, nas mãos, nos pés e no lado, a imagem e semelhança de Cristo crucificado. Embora se empenhasse em esconder os gloriosos Estigmas, tão nitidamente impressos em sua carne, a necessidade obrigou-o a escolher frei Leão, o mais simples e puro dos frades, ao qual tudo revelou, deixando-o ver e tocar aquelas santas chagas e enfaixá-las em trapos para mitigar-lhes a dor e receber o sangue que delas saía. Finalmente, tendo São Francisco terminado a quaresma de São Miguel Arcanjo, se dispôs por divina revelação a voltar para Santa Maria dos Anjos, como lhe era conveniente voltar, juntamente com frei Leão. Assim partiu e desceu o santo monte”.
Isto nos contam as Fioretti, deixando os acontecimentos envoltos numa atmosfera de lenda e sonho. Que há de objetivo e real nesta narração? O fenômeno aqui é visto de longe, do plano comum da vida humana; do supernormal não se veem senão efeitos físicos, aquilo que pode ser percebido pelo normal. Não chega até nós senão uma projeção dos fatos nos sentidos. A história depois passou de boca em boca e quem no-lo narra não o assistiu, nem viu de perto qualquer testemunho; somente frei Leão sabe alguma coisa. Não recebemos senão um pouco de luz vista de longe, através do espaço e do tempo, de reflexo, filtrada pela psicologia dos narradores. Para nos aproximarmos no fenômeno é necessário penetrá-lo, reencontrá-lo cada um por si. Da redução por nós percebida, devemos tentar alcançar o seu esplendor primitivo, revê-lo em sua realidade; devemos não somente observá-lo, mas procurar senti-lo e revivê-lo como realmente aconteceu. Isto é possível pelos caminhos do espírito. O olho normal que vê o exterior e não sabe penetrar até às realidades espirituais, não percebe senão indícios. Não temos aqui a história do que realmente aconteceu, mas de uma parte desse fenômeno grandioso que pôde se refletir na pequenez do olho comum. Este não poderia perceber com clareza o supernormal, portanto lhe aparece envolto em névoas de mistério, como algo velado, perdido nas alturas do milagre. Para a comum percepção concreta, o mundo espiritual desaparece no irreal. Mesmo as vidas do Santo narram genericamente, sumariamente este momento, que não só é o ápice de sua perfeição, como o é também de toda a humanidade em sua subida à procura de Deus e do espírito. Momento crucial, decisivo da evolução, libertando o ser da animalidade humana, fuga ao mundo, às suas restrições, ao nosso modo de viver e sentir, para entrar numa fase de vida mais elevada, exaltação do amor até à divindade. O olho normal do historiador não vai além dos efeitos físicos, não penetra a substância, não pode, portanto, dar-nos a realidade destas exceções. A história pára no exterior, sendo-nos de pouca valia. Por isso mesmo não pode dar-nos detalhes de coisas profundas, esfumando-se em lendas. No campo místico, milagroso, fora de nossa realidade, rodeado de luz mas muito distante e irreal, o fenômeno foge à sua percepção, tornando-se inacessível à nossa experiência, à nossa observação objetiva.
Realmente não é nada fácil avizinhar-se a fatos semelhantes. Por momentos parece que o mesmo fenômeno pudicamente se mostra envolto em mistério, porque lhe repugna tomar forma material; parece que lhe seja impossível ou não lhe seja permitido apresentar-se claramente, ao olho humano, sob a luz crua dos sentidos; é preciso encontrá-lo mais por meio da fé, do que por meio da crítica histórica e científica. Sente-se que o profano é justamente desprezado. A própria natureza do fenômeno o exige. Não é permitido ao olho vulgar, além da homenagem que deve prestar à santidade, o direito de penetrar no sagrado retiro do mistério onde se ouve a voz de Deus. Trata-se de coisas altas e sublimes, que neste mundo de matéria e de armas se desfazem, existem e não existem, e, se nos aparecem, procuram e devem se esconder para a própria defesa; prestes a desaparecer no imponderável, horrorizadas pelo contato brutal com a matéria terrena. Estes fenômenos, portanto, não podem aparecer neste mundo em plena luz. À maioria só é possível crer e venerar. Segue-se daí que as mentalidades racionais e científicas voltam-se para outras coisas, sentindo-se, por tudo isso, autorizadas a classificar o fenômeno entre os fatos da arte, da lenda, do sonho e nada mais, chegando ao extremo de duvidar de sua realidade objetiva, negando tudo materialisticamente.
Os fatos são bem diversos. O fenômeno realmente existiu. É racional e cientificamente possível. Para afirmá-lo e demonstrá-lo, como o faremos, é necessário primeiramente tê-lo reconstruído e sentido por meio da intuição e da fé, tê-lo vivido interiormente, no espírito, para reduzi-lo aqui em forma racional e compreensível, porque o fenômeno, em sua profunda realidade, não pode fazer-se sentir ou ser narrado, como percepção direta é incomunicável a espíritos comuns. Isto não significa destruí-lo, mas reforçá-lo, já que sua realidade, de outro modo, fugiria, sendo portanto facilmente negada. Achegar-se a ele para melhor compreendê-lo não é irreverência. Assim poderemos analisá-lo e, analisando-o, explicá-lo, defini-lo, mostrando sua realidade objetiva, elevando-o a mais elevado significado. Estudando sua estrutura íntima não negamos nem diminuímos sua supernor-malidade, antes a confirmamos. O prodígio compreendido, continua sendo prodígio, mesmo tornando-se-nos mais acessível e capaz de imitação. A intuição é compreensão e amor, não destruição, avizinha-nos e não nos afasta, espiritualmente, de onde se dão tais fenômenos. Trata-se de fazer sentir o irreal como real, fazendo-o descer das alturas onde se encontra até nosso mundo racional. E se também esta busca não tiver, por imperfeição de seu instrumento humano, a capacidade de conseguir o escopo desejado, ficará, contudo, como tentativa honesta, feita com fé e em boa-fé, inspirada não por desejos de destruição, mas de construção espiritual.
Entramos no mundo da realidade supersensória imponderável, situada no pólo oposto da realidade sensória e material de nosso mundo terreno. Já falamos de S. Francisco em diferentes fins e sentidos nos volumes As Noúres (Cap. 4) e Ascese Mística (Cap. 15 – Segunda Parte). Para podermos nos avizinhar ainda mais a Ele, é necessário nova caminhada de fadiga e dor, de onde nasceu o pensamento destas páginas conclusivas. Somente após esta nova maturação, depois de estabelecidos e resolvidos novos quesitos, é possível encarar racionalmente tão complexo problema para o qual convergem tantos outros, presumindo outras tantas soluções menores. Podemos pormenorizar mais ainda, aplicando tudo isto a um caso real. Neste trabalho de caráter racional e de pesquisa, falamos presentemente ao homem racional em particular, ao homem que não crê e não sente, para fazer que também ele compreenda este raro e incrível fenômeno vivido por S. Francisco no Alverne, seu significado científico, evolutivo e biológico; além disso, para dar a nós mesmos base lógica aos arroubos de fé e afirmações místicas e intuitivas, desenvolvidas sobre este argumento em outros volumes. Ante tais fenômenos poderemos não só crer e venerar, chorar e amar, mas também pensar e compreender. O do Alverne tem seu lugar e naturalmente se enquadra, também ele, na filosofia dos fenômenos que vimos desenvolvendo em A Grande Síntese e nesta explanação.
É nestes capítulos conclusivos que se confirmam as teorias precedentes que para aqui convergem, recebendo explicação e encontrando aplicação lógica. O cap. 25, deste volume, o “Dualismo Fenomênico Universal”, distingue duas vidas, exterior e interior, material e espiritual. Trata-se de dois mundos diversamente constituídos. O fenômeno do Alverne pertence ao segundo. Vimos como é individualizado e caracterizado por ritmo próprio, por uma forma de vida. Vida que é expansão para o íntimo, introspectiva, intuitiva, ativa, espiritual, incorpórea, desenvolvida como qualidade, evoluída; ritmo de ondas curtas, alta frequência e potencial, de sintonização noturna, azul, lunar, supersexual e supersensória; tipo biológico solitário, silencioso, sofredor, sensitivo e pacífico, negação do mundo. Tais as características dos fenômenos espirituais entre os quais, embora de nível infinitamente superior, se inclui o fenômeno do Alverne. Segundo a lei do dualismo, estamos no polo oposto do ritmo e forma de vida material da animalidade humana, cujas características são opostas. O não-ser no mundo da matéria estabelece no espírito o ser do mundo imponderável. Eis o que se nos apresenta atualmente. A visão não é sensória, exterior, mas interior, é contemplação. A vida vegetativa é mortificada por jejuns, renúncia, sofrimentos. O ser vive de vida sutil de notas agudas, penetrante, intensa, poder-se-ia dizer, de alta voltagem, quase imaterializando-se em forma de energia radiante, constituída de ritmo vibratório. A exaltação vital está toda na expansão espiritual. A projeção dinâmica do ser dirige-se para a substância, o absoluto, Deus. A forma, o relativo, as coisas terrenas estão superadas. O tipo biológico já superou a fase da evolução humana, separando-se de nossa forma de existência e alcançando outra mais elevada. O ritmo da vida animal se transformou, através do longo caminho da evolução em ritmo de vida espiritual. O transformismo evolutivo superou a fase humana, alcançando outra superior, mais aproximada à divindade. Eis as características do fenômeno do Alverne e do seu protagonista.
Nossa pesquisa não o destrói, exalta-o. Tudo o que dissemos neste volume mostra-nos como verdadeiramente alcançou o limite supremo da evolução humana, estando aqui em seu verdadeiro lugar, na conclusão deste tratado, no vértice da pirâmide humana, no ponto supremo da evolução. Possui em sua mais legítima forma, embora em relação a seu tipo, as características do evoluído que indicamos como meta dos esforços humanos, como modelo do futuro tipo biológico. Esta conclusão nos mostra S. Francisco neste momento entrando triunfante nos umbrais de um mundo super-humano. O Alverne representa precisamente um caso típico do fenômeno final da evolução humana, por isso foi estudado no fim destas considerações. Vemos aqui o esgotamento da vida no plano físico (o organismo consumido pelas penitências), a sua ressurreição no plano espiritual, a extinção do dinamismo animal pela deterioração e a sua ressurreição em forma radiante. Vemos S. Francisco alcançar um estado espiritual que representa o mais alto potencial suportável na fase da evolução humana, seu limite supremo além do qual a forma material se extingue. Chega-se a este estado por etapas, pois a frequência de vibrações, o aumento de ondas e a obtenção de potencial elevado progridem paralelamente, desde o pensamento concreto que não sabe existir senão se materializando em ação, até as ondas cerebrais do pensamento simples e comum, e sucessivamente ao pensamento abstrato, à intuição do gênio, à oração sempre mais elevada, ao êxtase e união espiritual com Deus. Trata-se de ondas cada vez mais rápidas, portanto, mais penetrantes, mais poderosas, mais imateriais. Por fim, o espírito consegue a forma radiante, imaterializada, independente da forma corporal.
O enfraquecimento do organismo age, no presente caso, como revelador da personalidade espiritual. As leis da fome e do amor (História de um Homem, cap. 23: “O Evangelho e o Mundo”) já estão superadas. O amor, por fim, se desmaterializou com funções puramente espirituais (A Grande Síntese, cap.82 - “Evolução do Amor”). Para aqui convergem e se aplicam as teorias expostas anteriormente. A dor, transformada em perfeita alegria, cumpriu toda sua função criadora e é parte integrante do fenômeno de transumanização do Santo. Acham-se fechadas as portas do vício, abrem-se as portas da virtude, e o ser, impelido e guiado pela renúncia, corre para elas a expandir-se. O fruto do martírio já está maduro; o espírito, afinal, depois de tantas lutas com a carne, triunfa; a vida, outrora mortificada, ressurge mais intensa. O processo, construtivo-destruidor da evolução, chega ao ápice de sua fase humana. O fenômeno do Alverne confirma completamente todas as nossas afirmações precedentes. Havermos concebido o fenômeno espiritual como fenômeno igualmente biológico, deu-lhe mais força e ao mesmo tempo encontrou uma explicação científica e racional. A maceração dos santos não é mais utopia ou crença, mas processo evolutivo, método de imaterialização e espiritualização, isto é, impulso à degradação biológica que é condição para a ressurreição espiritual no imponderável, elemento indispensável ao aceleramento da frequência no ritmo da vibração e transformação do potencial impulsionador da evolução. Sua meta é a harmonização na ordem divina; e haveria harmonização maior, com a criação e Deus, do que a realizada no Alverne? Cessou todo o barulho, a alma fundiu-se em paz na vontade divina, e a criação naquela noite sublime faz eco, em sua ordem material, à ordem espiritual, sintonizando-se e fundindo-se numa única harmonia. Para confirmar quanto dissemos no cap. 10, deste volume. – “O Problema do Mal” – vejamos neste caso como, quando o ser chega a um vértice da evolução, alcança relativamente sua autodestruição, depois de cumprir seu dever a serviço e triunfo do bem.
Enquanto o cap. 25, idem, nos dá elementos para definir e classificar o fenômeno do Alverne e as características biológicas do ser que o vive, o cap. 26, idem, sobre o dualismo da vida, dá-nos a estrutura interior e funcional do mesmo fenômeno. Somente confrontando-o em relação à função orgânica do universo, poderemos compreendê-lo. Trata-se de um fenômeno de sintonização entre o humano, levado pela evolução até às portas do super-humano, e o divino. Para chegar a isto, o ser deve conseguir uma forma de vida de ritmo vibratório tão sutil e poderoso, que possa penetrar no âmago das coisas e aí harmonizar-se com a ordem interna da criação. Só o evoluído é capaz de captar e perceber as radiações da realidade interior do espírito. As vias de comunicação não são, portanto, as normais, exteriores, sensórias, mas interiores e imateriais. Precisamente no já citado cap. XXVI sobre o dualismo vital, observamos o mecanismo destas comunicações por via interior com o mundo imaterial do espírito, e mostramos sua realidade tão objetiva quanto a realidade deste nosso mundo material. A percepção, nestes casos, segue canais de volta correspondentes em posição contrária aos canais normais de ida, em um caminho sensório que não vai do interior para o exterior. Neste caso os órgãos sensoriais são sujeitos a vibrações provenientes do interior, nada tirando à existência objetiva da realidade excitante de percepções das quais resulta o fenômeno. E é natural que quanto mais a vida se muda de sua forma material em espiritual, tanto mais nela se normaliza esta nova forma de sensibilidade, pela qual se substitui a percepção fisiológica direta e normal por uma percepção super-normal, inversa e espiritual. O processo é facilitado, como já dissemos, pela deterioração física (degradação biológica) e depende do grau de imaterialização (momento destrutivo) e espiritualização (momento reconstrutivo) alcançado pela evolução. Vimos como, no caso normal, as várias partes de caminho, por percepção visual, são: objeto externo, lente ocular, retina, nervo óptico, cérebro e espírito. Na última etapa a corrente dinâmica deixa qualquer base física, imaterializando-se em forma radiante. Mas vimos que não só o mundo externo mas também o interno e imponderável da personalidade, podem ser geradores de vibrações. O mundo do espírito, que se abre para as alturas da evolução, isto e, em direção à divindade, acha-se deste lado do ser e não do lado sensório exterior. Está dentro de nós, no intimo, dirigido ao cerne das coisas e dos seres, onde está a substância, o absoluto, o imutável, e não a periferia onde se encontra a forma, o relativo, o transitório. A evolução é elaboração levada sempre para o mais profundo do ser, isto é, despertar e viver sempre mais perto de Deus. As percepções e manifestações espirituais vêm daí: a alma as consegue segundo o grau de sutileza e transferência conseguido por seu invólucro material; a realidade excitante, neste caso, está situada não no exterior, mas no interior, e a sensação é o último produto de um esforço inverso ao precedente normal, isto é, como dissemos, de uma inversa percepção espiritual super-normal. Os termos deste caminho inverso percorrido são: espírito, cérebro, nervo ótico, retina. A fonte da corrente dinâmica excitadora da percepção, não está mais no ambiente material externo, mas no ambiente espiritual interno. Tratando-se de radiações espirituais, não podia estar em outro lugar. A sede natural dos fenômenos espirituais e de sua origem, é precisamente o mundo interior, do espírito, mundo que se abre para a divindade que está em nosso interior, no centro do universo, e não na periferia do ser. Somente o involuído, incapaz de sentir uma realidade diferente de seu mundo físico pode crer que estas realidades sejam inconscientes e inexistentes, unicamente porque escapam a sua percepção. No entanto para quem consegue sentir profundamente nada há de extraordinário. Não sabem todos que a mesma e solidíssima matéria, em sua essência é imponderável? A ciência já não nos mostrou que logo que penetramos na íntima essência das coisas, tudo se imaterializa? Imaterializar-se significa espiritualizar- se, passar da forma transitória à eterna substância, da ilusão à realidade, do relativo ao absoluto, o que é o mesmo que caminhar para Deus.
Eis, portanto, como aconteceu o fenômeno do Alverne. O dinamismo originário é radiante, estados vibratórios de substância imaterial adequada ao mundo espiritual. O cérebro capta e registra, como se fora receptor radiofônico, esse dinamismo transmitido sem fio. Assim, a realidade espiritual se concretiza em imagem que, através do nervo ótico, é conduzida à retina e gera a percepção ótica. Obtém-se, portanto, sob forma sensória, a equivalente expressão do imponderável, de outro modo impossível de traduzir em termos desensação. Observando os olhos do indivíduo inspirado (os de T. Neumann, por exemplo), sentimos que, apagados para o mundo, não vêm coisa alguma da realidade exterior, mas contemplam, como verdadeiro vidente, vaga e profunda realidade. Já expusemos os princípios do fenômeno e, até mesmo, já os aplicamos. O olho, de fato, registra uma projeção, com resultados visuais, não oriundos, porém, de realidade externa, mas de realidade interna. natural que os fenômenos espirituais, evolutivamente mais elevados, não possam ter sede e origem na periferia, no exterior, na forma, que é menos evoluída, mas apenas no centro, na parte de dentro, na substância; é, também natural que, por força do princípio de dualidade, esses fenômenos se transmitem de maneira inversa da dos fenômenos materiais. Não se trata de alucinação nem de ilusão ótica. Nossos olhos, quando olham para dentro de nós, veem tão realmente como quando olham para fora. Tudo se resume em saber olhar, em saber sentir as vibrações do mundo espiritual, e, principalmente, em possuir um mundo espiritual dentro de si mesmo. O próprio vácuo interior é que nos leva a acreditar na irrealidade desse mundo. O supranormal é percepção do normal, que por isso lhe nega a existência. Trata-se de um problema de potencial interior, de desenvolvimento espiritual, de refinamento orgânico, de sensibilização conseguida por evolução. Se o fenômeno ocorrido no Monte Alverne constitui caso sublime e excepcional, para alguns temperamentos evoluídos, no entanto, é suscetível de experimentação, embora em grau e sob forma diversos. Mas, torna-se necessário que sejam evoluídos; ora, já vimos que no mundo domina o tipo oposto; além do mais, na terra as opiniões são, em grande parte, elaboradas pelo tipo involuído, para seu uso e consumo. Em face dessa psicologia, ninguém pode sentir, compreender, nem admitir nada disso. E questão de adiantamento evolutivo Necessário se torna seguir e amar essa realidade interior, servir-nos ela de alimento e vivermos em contato estreito. É indispensável sintonizarmo-nos com ela, através das preces, aproximarmo-nos dela por desmaterialização à custa de sofrimento, destruindo em nós a animalidade humana. O fenômeno, que estamos analisando, nos oferece tudo isso em grau elevado. Quando todas essas condições se verificam nesse grau de intensidade e elevação, o fenômeno pode adquirir tal potência que o dinamismo radiante originário não chega apenas a transformar-se em visão, mas em fato objetivo até mesmo no que diz respeito à realidade externa, como o caso, por exemplo, da lesão muscular dos estigmas. Então, a imagem espiritual interior, não só se materializa sob a forma de imagem ótica, mas consegue até mesmo impor-se às leis físicas e orgânicas comuns e a causar, na carne, alterações permanentes das células e tecidos. Já vimos como, relativamente à sua estrutura íntima, a própria célula não passa de movimentos atômicos e cargas elétricas. As formas exteriores constituem apenas a ilusória roupagem, resultado desse dinamismo imaterial. Quando reduzimos os fenômenos materiais e espirituais ao seu denominador comum, quer dizer, à sua estrutura cinética, aí compreendemos facilmente essas concomitâncias e correspondências. Os efeitos verificados no fenômeno do Monte Alverne mostram o elevado grau de potência radiante da fonte transmissora e a enorme capacidade sensitiva do organismo receptor.
O fenômeno é, pois, perfeitamente possível e se verifica de acordo com as qualidades do indivíduo receptor. Quem não as possui não percebe coisíssima alguma. As radiações mais poderosas podem estar-lhe ao lado e, mesmo, envolvê-lo completamente: ele continua cego e surdo. A visão permanece na estreita dependência do estado e das qualidades individuais. O indivíduo imaturo fica do lado de fora, não é admitido a participar do fenômeno; sua visão exclusivamente exterior, não penetra na intimidade das coisas. Para ver-lhe a intimidade, torna-se necessário, sem dúvida, olhar de dentro de si mesmo para o interior das coisas. Assim, a historieta se limita à verificação dos efeitos, cujas causas 3 refugiando-se no miraculoso, lhe escapam inteiramente. Frei Leão é o único que percebe alguma coisa. Vimos, pois, o fenômeno verificar-se no grau permitido pela potência espiritual, pelo desenvolvimento, pela maturidade evolutiva e pela intima sensibilização do sujeito. Tudo dependeu apenas dos seus poderes de percepção nesse campo. Desse modo, a visão só têm os indivíduos maduros; e, portanto, fato estritamente pessoal. Para que outros a percebam torna-se necessário que estejam nas mesmas condições de sintonização e recepção. Apenas proporcionalmente às suas capacidades espirituais é que podem sentir ou parte do fenômeno, como frei Leão, ou coisíssima alguma, como acontece na maioria dos casos. Isso é muito natural, tratando-se, como se trata, de, por meio das vias interiores, registrar formas imateriais que não encontram símile nas formas materiais do mundo exterior. Para perceber as formas materiais faz-se necessário possuir, e em bom estado de funcionamento, os correspondentes órgãos sensoriais; nada mais natural, portanto, que para perceber a realidade espiritual devamos possuir, e absolutamente livres, as vias interiores que nos põem em comunicação com o lado oposto, com o imponderável. O que pertence ao espírito não podemos percebê-lo senão com recursos espirituais, isto é, com processos diametralmente opostos aos nossos processos sensoriais comuns. A projeção da realidade interior (projeção ótica, acústica, tátil, etc.) fica limitada ao sujeito exclusivamente. Quando, porém, produz modificações no estado da matéria, o fenômeno torna-se domínio comum, principalmente se a alteração se revela permanente. Para os demais não resta senão o caminho da fé ou da prova, representado por esse último resultado atingido no seu plano material. Relativamente a isso, observemos que não se trata de materializações ectoplasmáticas, isto é, de novas formações em sentido mediúnico, mas de percepções e projeções do imaterial por vias internas e de transformações operadas na matéria já existente. Os fenômenos sempre se aproveitam da via de menor resistência, que, no caso do evoluído, é exatamente a via interior.
A simpatia levou-nos a escolher S. Francisco, entre tantos outros, como tipo de evoluído, para determo-nos apenas nesse setor particular das formas evolutivas. Mas sempre se trata, sem dúvida, de ponto culminante, de homem que atinge a fase super-humana e, no momento crítico, faz chegar ao nosso mundo, por seu intermédio, reflexos do mundo superior a que ele pertence e que, embora sob tantas formas diversas, representa o futuro da humanidade.
No capítulo anterior resolvemos o debatidíssimo e controvertido conflito entre determinismo e livre-arbítrio, descendo às raízes de problema filosófico e prático de que em A Grande Síntese apenas pudemos tratar por alto. Agora descemos às particularidades, cuidamos dos pormenores, entregamo-nos à exposição completa desse problema, impossível de fazer naquele livro, destinado principalmente, como dissemos, a dar o rumo geral e o quadro orgânico de nossa problemática. O leitor ali poderá encontrar-lhe apenas a exposição sistemática. Vamos, mas sempre de acordo com o esquema de A Grande Síntese, deter-nos no exame de alguns pontos mais controvertidos, enriquecendo-os cada vez mais e aproximando-os da realidade de nossa vida. Desenvolvemo-los e aprofundamo-los, mas também lhes damos aplicação prática, pois não objetivamos perder-nos em abstrações filosóficas, e sim tornar a vida mais clara. Por essa razão, aos raciocínios complicados preferimos simplesmente a linguagem do bom senso e dos fatos; aliás Newman convenceu-nos de que “a conclusão de um silogismo, sozinho, jamais convenceu alguém; jamais”.
Até agora estivemos desenvolvendo argumentos que de preferência se relacionam com a Terra e a vida coletiva (ou de relação) no plano biológico dominante ou, seja, no do involuído. São, portanto, argumentos referentes a tentativas, a lutas, a incertezas; entremeiam-nos o incessante e penoso trabalho de construir e de promover a demolição que possibilite reconstruir e a cansativa tarefa de plasmar mil e uma vezes a matéria a fim de, através de experimentos sucessivos, chegar à compreensão. Estamos em pleno reino da força e da ignorância humana, dos violentos desequilíbrios da injustiça, no reino da traição e da mentira. O evoluído penetrou no espírito da Lei, aderiu a ele, repousa na paz de seus equilíbrios e na suave musicalidade de seu ordenamento; volta-se para trás horrorizado, suporta-o porque a isso é obrigado, mas deseja ardentemente fugir. Procuremos acompanhar-lhe a fuga para outros mundos, para outras realidades superiores que, embora para os deste mundo se afigurem sonhos, tão longe estão de nossa vida, no entanto a iluminam, mostrando-nos a ordem perfeita reinante aqui embaixo também, não porém na superfície, onde, em caótica desordem, tudo nos parece fora do lugar exato. Ao lado da vida exterior, que tantos vivem, existe outra, interior, mas igualmente real e poderosa. Se a primeira se mostra mesquinha, podemos, ajudados pela segunda, torná-la intimamente grande. Embora não possamos mudar as condições de nossa existência, nossa conduta será capaz de enobrecê-la e, até mesmo, podemos com nossa flama interior tornar luminoso o ato mais simples e comum. O maravilhoso e o sublime podem a cada passo nascer dentro de nós, nas circunstâncias mais humildes. A própria vida de Cristo entreteceu-se exteriormente de pequenos episódios, comuns e vazios de sentido, se considerados em si mesmos, e determinados pela miséria espiritual de todos quantos o circundavam. E, todavia, sua vida continuou sendo sublime. Nossa vida é exatamente igual ao que somos. O ambiente e as circunstâncias influem apenas na vida dos débeis, que não as dominam e, além disso, se deixam dominar por elas. Em face da miséria espiritual de tantos, as coisas mais importantes da vida passam despercebidas. Aí onde os indivíduos maturos veem e fremem de entusiasmo, os outros passam despercebidos de tudo, correndo no encalço de futilidades. Apenas quando possuímos grande alma e nos anima grande paixão nos pomos no mesmo nível dos grandes acontecimentos da vida; aí, compreendemos-lhe o valor, respondemos às vozes sublimes que vêm das profundezas do universo ilimitado, onde cada qual vê e aprende conforme a própria acuidade visual. Assim, as verdades correspondem às vistas, às capacidades, à evolução, variando desde as mais grosseiras e materiais até às mais refinadas e espirituais. Onde um sussurra e chora porque percebe a mão de Deus, aí mesmo outro sorri e despreza porque não a percebe, não compreende coisa alguma. Todos se abalançam a julgar; quem, no entanto, acredita estar julgando as coisas, acusa e julga a si mesmo. O caos de opiniões é ordenamento, equilíbrio, desordem que se harmoniza de novo num plano mais elevado, onde encontra possibilidade de acordo. Há quem ouça e há os surdos também. Todos nós apenas podemos viver em nosso nível, de acordo com o que somos. A alma, a vida interior é que dá ao homem a medida das coisas. O eu assemelha-se a um vaso que não pode conter nada além de sua capacidade. Fiquemos tranquilos. O sublime não contagia. Os grandes pensamentos, as grandes paixões, as grandes ações permanecem solitários. O mundo está sempre pronto a compreender e aplaudir o que se encontra no seu nível. O melhor não pode afirmar-se senão lentamente e à custa de martírio que não chega a interessar o mundo. Diz Schuré no Sonho de Minha Vida: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que uma ideia nova penetrar no cérebro dos homens”. E Maximo Gorki acrescenta: “Quem nasceu para andar de rastros não pode conhecer a alegria do voo”. Pior ainda nos faria pensar em face dos heroicos pregoeiros da verdade, o rifão popular: “Vulgus vult decipi, ergo decipiatur”. (O povo quer ser iludido; logo, seja iludido).
Em geral, o mundo interior fica entregue aos poetas, artistas, místicos, isto é, à classe considerada mais ou menos inútil pelos homens práticos. Desse mundo, no entanto, emanam a força propulsora do progresso e a única luz que nos ilumina e atenua a miséria da vida quotidiana, embora materialmente muito rica. O evoluído foge para esse mundo mais adiantado e aí se reencontra. Mundo espiritual, aí existe a única liberdade que não se chama abuso e torna possível distender-se a tensão das férreas necessidades da vida material. Nesta o elemento moral é menosprezado e apenas palidamente aparece nos últimos planos; nesse novo mundo, ao contrário, guinda-se aos primeiros planos, como fator fundamental. Trata-se de dois mundos inversos e complementares em que nossa existência se divide e se completa, de acordo com a grande lei de dualidade. Até agora os contrapusemos como duas posições antagônicas, que mutuamente se excluem na conquista do campo da vida. Mais atento exame desses mundos em relação a essa Lei nos permitirá, até mesmo nesse dualismo, reencontrar a unidade e considerar os dois termos opostos como se fossem os dois aspectos do mesmo princípio. Veremos tratar-se de existência dúplice, de duas formas de vida, entre as quais o ser oscila em seu caminho evolutivo, de acordo com as possibilidades da fase alcançada. O exame confirmará a lei, revelando-nos novos aspectos.
Devemos reportar-nos ao cap. 39 de A Grande Síntese, “Princípio de trindade e de dualidade”, cujo conhecimento presumimos. Aí o leitor encontrará o mesmo problema agora exposto, mas intimamente relacionado com a cosmogonia universal. Ao invés, destas páginas poderão derivar algumas aplicações e desenvolvimentos particulares, como, por exemplo, essas duas vidas, exterior e interior; de que estamos falando agora. Na ordem universal, todo fenômeno se nos apresenta como campo de forças fechado, fato que lhe caracteriza a individualidade e lhe limita a ação. O eu fenomênico está encerrado em seu ritmo interior, equilibrado em duplo e inverso movimento respiratório, em oscilação compreendida entre dois extremos de que não pode sair, oscilação que constitui a base da íntima elaboração chamada evolução. Essa bipolaridade é universal. Toda unidade se nos apresenta como formada de duas partes iguais em que, contradizendo-se, ela se inverte e se compensa, mas também encontra sua estrutura simétrica e equilibrada. Esse vaivém de forças antitéticas em campo fechado, essa correspondência de antíteses e simetria, de inversão e complementaridade, esse íntimo ritmo dualístico compõem a fisionomia que o pensamento e a vontade da Lei imprimiram às individuações fenomênicas, que significam estrutura orgânica e funcional. É o de que vamos tratar profundamente agora. O princípio de ordem, fundamental na Lei, transforma o universo, desde o fenômeno máximo ao fenômeno mínimo, em sistema equilibrado, orientado, ritmado e periódico. Faz- nos, por isso, compreender e sentir a Criação como fato fundamentalmente harmônico, rítmico, musical.
Embora tenhamos posto frente a frente as duas vidas, a exterior e a interior, a da matéria e a do espírito, a vida é una e oscila entre estes seus dois extremos inversos e complementares. Trata-se de duas formas comunicantes, de bipolaridade da vida. É perfeitamente possível e verifica-se continuamente a passagem do mundo da matéria ao do espírito e vice-versa, que se completam através de funções compensadoras, atraindo-se por força da lei de simpatia estabelecida entre os contrários. O conceito da musicalidade existente na ordem universal faz-nos pensar que ritmo caracteriza e distingue as duas formas de vida. O mundo exterior, o da matéria, da vida física e sensória, poderíamos imaginá-lo caracterizado por ondas longas; o mundo interior, o do espírito, da vida psíquica e intuitiva, caracterizado por ondas curtas. Essas duas ondas existem nos fatos, sem dúvida; mas é lógica a existência de onda típica individual, distintiva da personalidade, reveladora das notas fundamentais do caráter. Mais tarde, esses ritmos pessoais se entrosam e se fundem em outros ritmos mais amplos: familiares, nacionais, mundiais etc. Neles a observação nos revela correspondências e oposições. Nos países meridionais, por exemplo, ricos de calor e luz solar, as forças vitais preferem revelar-se exteriormente através de manifestações sensórias. Essa espécie de expansão forma tipo humano fisicamente exuberante, expansivo, de inteligência vivaz e realista. Há, sem dúvida, entre raça e ambiente certa relação de ritmo, que neste caso se poderia chamar ritmo de ondas longas. Nos países nórdicos, onde, pelo contrário, domina o frio e a umidade e a luminosidade é menor, as forças vitais se expandem de preferência intimamente, sob formas reflexas. Isso determina a preponderância de tipo humano de inteligência dobrada sobre si mesma, introspectiva, menos viva, profunda, nebulosa. Mesmo o desenvolvimento físico é mais lento. Esse diferente ritmo vital poderíamos chamá-lo ritmo de ondas curtas. É claro, com o passar do tempo os ritmos entre ambiente e indivíduos acabam por sintonizar-se, por viver simbioticamente; a coexistência (diríamos, mesmo, a coabitação) entrosa-os e harmoniza-os; a personalidade absorve e incorpora, fazendo-o seu, o tipo de vibração dominante, conserva-o e depois torna a irradiá-lo, como se o tivesse ela mesma produzido. A vida é sensível e tudo registra, assimila, devolve. Assim, as manifestações raciais são típicas e diferentes, de Verdi a Wagner, do catolicismo ao protestantismo, de Dante a Goethe. O ambiente concorre para dar seu tom característico à psique coletiva e aos líderes que a representam, de modo que as próprias atividades e funções se plasmam de maneira diferente. Mas em toda parte, mesmo nos campos mais disparatados, esse dualismo perdura. O pensamento da própria Igreja equilibrou-se entre a tese e a antítese, entre Pedro e Paulo, isto é, entre a corrente judaico-cristã de tipo particularista e a corrente greco-cristã de tipo universalista, como se equilibrou, mais tarde, entre Agostinho e Tomás, quer dizer, entre a corrente platônico-intuitiva e a corrente aristotélico-racional. O próprio mundo está dividido e, no entanto, unido entre os seus dois extremos ou, seja, entre a civilização ocidental, materialista, e a civilização oriental, preponderantemente espiritualista. Toda unidade fática se deve ao equilíbrio de duas metades, opostas e contrastantes. Por isso, não se pode falar que, de dois elementos postos em presença um do outro, este seja superior ou inferior àquele contrário. Como já dissemos, relativamente a jovens e a velhos, um tipo vale tanto quanto o ou-tro. O dinamismo, em última análise o mesmo, assume formas diversas, mas substancialmente equivalentes. Enquanto num caso (ondas longas) se desenvolve como qualidade, noutro (ondas curtas) se desenvolve como quantidade, isto é, encontra-se sob a forma de potencial ou pressão. Já nos referimos neste volume (cap. 9 - “Das Trevas à Luz”) à relação, aos efeitos dinâmicos entre amperagem e voltagem, no campo da eletricidade, e entre volume e pressão, na mecânica dos líquidos. Reencontramos a inversão dos dois extremos no dualismo entre outras posições, como, por exemplo, luz e sombra, dia e noite, primavera e outono, equador e polos, verdade e erro etc., pois não existe ser algum que não contenha essa oposição de ritmos contrários.
Continuando a observar, verificamos correspondências ainda mais remotas e relações novas. O tipo espiritual, de expansão interior, aparece-nos também como sintonização noturna (o volume As Noúres), azul, lunar, hipersensual e supersensória, inimigo da ação, da matéria, da vida física animal. Esse tipo é esquivo, solitário, silencioso, sofredor, sensitivo, pacífico e, em relação ao mundo, negativo. É um “não-ser”, relativamente a este último. Ao contrário, é um “ser” em face do imponderável, que é um “não-ser” para os outros. Estes são constituídos pelo tipo material, de expansão exterior, de sintonização diurna, vermelha, solar, sensual e sensória, amiga da ação, da matéria, da vida física animal. Tipo audaz, sociável, bulhento, gozador, voluntarioso e agressivo, mostra-se positivo perante o mundo. Trata-se de atitudes relativas e opostas. Cada uma delas significa ou afirmação ou negação que se invertem relativamente à negação ou à afirmação do outro termo. Trata-se de alta ou de baixa frequência. Em meio dos jejuns, das renúncias e dos sofrimentos, os santos estavam sempre absortos em contemplação, que é apenas visão interior. A espiritualidade, vida sutil de alta frequência e notas agudas, substitui a animalidade, vida vegetativa de baixa frequência e notas graves; o baixo potencial transformou-se em alto potencial, amperagem em voltagem, o volume em pressão, a vida grosseira dos sentidos na hipersensibilidade refinada; o mundo físico desmaterializa-se no imponderável. Os dois lados da vida continuam sempre opostos e complementares. Reencontramos aqui a mesma razão inversa observada entre força e sabedoria, entre alegria e dor, entre jovens e velhos. A exuberância vital dos primeiros reside na força e na alegria, na expansão física; a dos outros está na sabedoria, na dor, na expansão espiritual. As lutas, as fadigas, as conquistas, tudo é diferente. Os sentidos das projeções dinâmicas são diametralmente opostos. A vida oferece dois lados, opostos, em cuja complementaridade se completa; desse equilíbrio lhe advém a unidade perfeita.
Todas as manifestações humanas adquirem essa colaboração diferente e passam de um para outro tipo. Uma pessoa gosta do que outra detesta; para uns é vida o que para outros representa morte. O próprio Sermão da Montanha exemplifica a mudança dos valores terrenos, considerados de ponto de vista material, em valores celestes, considerados de ponto de vista espiritual. A própria morte: para o homem material é morte apenas; para o espiritual, vida. É evidente o contraste. A vida oscila do extremo do sadismo (a vitória na afirmação egoísta, no esmagamento do próximo) ao extremo oposto, o do masoquismo (a vitória consiste na altruísta negação do eu, no amor ao próximo, na tolerância, no sacrifício, na derrota). A evolução caminha amparada por ambos os impulsos. Perguntamo-nos, então: relativamente a esse dualismo, em que sentido caminha a evolução da vida? Para os indivíduos como para as famílias e os povos e, portanto, para a humanidade também, a vida caminha da juventude até à velhice, com todas as alterações de qualidade decorrentes dessa passagem. Essa passagem, aliás, significa inversão de características, exatamente porque é mudança de posição de um extremo a outro. Por isso, a evolução da vida oscila entre o ritmo de ondas longas e o de ondas curtas, o baixo e o alto potencial, a quantidade e a qualidade, a baixa e a alta frequência. A evolução, portanto, nada muda à substância, mas somente à forma; e o que a torna possível é um ritmo interior, de frequência vibratória. A vida dos velhos não significa destruição, mas apenas inversão formal da vida dos jovens. As duas vidas, a espiritual e a material, são inversas e, portanto, antagônicas; o enfraquecimento ou atrofia de uma condiciona o desenvolvimento da outra. No sistema compensado e equilibrado da natureza, não pode haver hipertrofia sem a correspondente atrofia. Assim, verificamos constantemente existir relação inversa entre saúde física e vida espiritual, tanto assim que, quando a vida orgânica tende a enfraquecer-se, também tende a sensibilizar-se e a manifestar-se sob formas mais refinadas, em planos mais elevados; por outro lado, em organismo fisicamente desenvolvido e exuberante, geralmente não cabe vida interior sutil e sublime. A trajetória da atividade física, em seu desenvolvimento, maturidade e decadência, não coincide com a trajetória da atividade psíquica. Quando o indivíduo evolui ao ponto de possuir uma, a outra se atrasa, isto é, uma floresce e outra se definha, natural declínio da atividade corporal, como se necessitasse, para melhor desenvolver-se, da atenção dos processos da vida vegetativa. A maioria das obras-primas surgiram quando os autores tinham de quarenta a sessenta anos. A morte seria, então, o caso-limite de máxima decadência física e de afirmação espiritual, a passagem completa de uma forma vital em ondas longas a outra em ondas curtas. As duas vidas são inversas e opostas. Durante a permanência na terra verifica-se a oscilação entre uma e outra, conforme o poder adquirido pelo indivíduo em qualquer campo e de acordo, também, com o ritmo e o tipo de onda dominante em sua personalidade. Quanto ao involuído, em que prepondera o desenvolvimento físico, não pode haver, sem dúvida, enfraquecimento orgânico capaz de revelar-nos a espiritualidade nele inexistente. Mas, se a evolução a houver suscitado, não podemos pôr em dúvida que o enfraquecimento físico-progressivo, o desgaste da vida de ondas longas favoreça a vida de ondas curtas. A vitória de uma só se torna possível com o enfraquecimento correspondente da outra. Noutras palavras: o enfraquecimento orgânico pode funcionar como revelador da personalidade rica e profunda, mas pré-existente. Quando, porém, nada existe, como lhe é possível revelá-lo? Quanto à dor, acontece isso mesmo. Se a sua função preponderantemente criadora, na sua forma mais imediata e evidente se nos mostra reveladora, o eu tende à expansão e a dor constitui prisão, asfixia, mutilação. Mas essa opressão que se exerce num plano pode resolver-se em compressão capaz de elevar o potencial, a pressão, de transformar a frequência da onda; e isso tudo ao ponto de obrigar a personalidade, quando lhe possua os elementos, a expansão diferente, em plano de vida mais elevado, isto é, de fazer a vida do ser, desde que maturo, ascender da forma vegetativa animal à forma espiritual. A dor pode, assim, constituir instrumento de progresso, como e quando, barrando a passagem às fáceis ressonâncias inferiores dos jogos materiais, abre as portas às sintonizações superiores dos gozos espirituais. Trabalho mais difícil, duro esforço para atingir tensões mais altas; pois o ritmo vibratório do espírito, em alta frequência, se reforça, se completa, se estabiliza na personalidade. A personalidade sofre, debate-se, mas acaba sendo controlada e assim não consegue explodir, é até mesmo constrangida a fazer uma conquista que mais tarde será sua e a levará a bendizer a dor, transformada em instrumento de progresso.
Um esclarecimento se torna necessário agora. Ao leitor atento, que se lembra do cap. 48 (“Série evolutiva das espécies dinâmicas”) e o cap. 85 (“Psiquismo e degradação biológica”) ambos de A Grande Síntese, pode surgir certa dúvida, se confrontar esses capítulos com frases como estas deste livro: “O mundo da matéria podemos imaginá-lo caracterizado por ondas longas; o do espírito, por ondas curtas(...). Trata-se de baixa e alta frequência(...). Animalidade, vida vegetativa, notas graves, baixa frequência; espiritualidade, vida sutil; notas agudas, alta frequência. A evolução da vida caminha, portanto, do ritmo em ondas longas ao ritmo em ondas curtas, do baixo ao alto potencial, da baixa à alta frequência. Na evolução da vida é onda longa que se funde na curta”. Nos referidos capítulos de A Grande Síntese se afirma, ao contrário, que, ao longo da série das espécies dinâmicas, a frequência vibratória diminui enquanto a amplitude aumenta. Aí parece, portanto, que a evolução caminha para a diminuição de potencial, representada pelo decréscimo da frequência vibratória e pelo aumento de amplitude de onda. Neste capítulo dizemos, pelo contrário, que a vida caminha das ondas longas para as curtas, da baixa para a alta frequência, com elevação de potencial. Há contradição nisso? Não. Expliquemo-nos.
Cada uma das três fases evolutivas de nosso universo se resolve, finalmente, em decomposição final que relativamente à matéria se chama desintegração atômica; para a energia toma o nome de degradação dinâmica; e, quando se refere à vida, diz-se degradação biológica. E, de fato, a vida, considerada como dinamismo biológico, caminha para a baixa frequência e o aumento do comprimento de onda, isso até ao esgotamento e à morte em seu caráter de vida vegetativa animal. Este é apenas um caso do fenômeno de entropia, isto é, tendência dos fenômenos ao nivelamento dinâmico e à extinção na quietude. Essa entropia, se existe nos fenômenos não é constante e perpétua; se fosse, já teria feito sentir sua ação e o universo já estaria morto; no entanto, vemo-lo em contínuo progresso. Deve existir nele, e é lógico que exista em sistema equilibrado como nosso universo, a parte inversa e compensadora do fenômeno da entropia, ou seja, tendência paralela e complementar à construção, reconstrução de potencial e de frequência, que equilibre e anule a tendência à destruição e à degradação de potencial e à diminuição de frequência representada pela entropia. A forma de toda fase evolutiva também se sujeita, sem dúvida, a desgaste que termina em desagregação. Esta, porém, é apenas aparente e não se verifica, se tomarmos em sentido absoluto o termo. A destruição não incide na substância, mas apenas na forma, e reduz-se a renovamento, condicionador da evolução. Na realidade, se os fenômenos diminuem de intensidade e se esgotam em sua forma atual, se desgastam, envelhecem e morrem, nem por isso se aniquilam e anulam. A substância de coisa alguma pode ser destruída; ressurge de outra maneira, e isso acontece exatamente como resultado da elaboração da fase precedente, em que a forma se degrada, mas a substância evolui, impregnando essa forma situada em plano mais elevado e igualmente real, embora ela escape aos nossos sentidos. Esta ressurreição, sob forma diversa, da substância imortal é que se encarrega da reconstituição do potencial, da alta frequência em ondas curtas. Assim, na desintegração atômica a matéria não desaparece senão como matéria, mas renasce na qualidade de energia de alto potencial e frequência em ondas curtas (gravitação); do mesmo modo, no caso da degradação dinâmica, essa energia vai-se degradando, de gravitação passa a eletricidade. Aniquila-se como potencial, frequência e comprimento de onda, mas finalmente morre como energia e renasce sob a forma de vida. Se considerarmos a degradação biológica, veremos que por sua vez a vida se desgasta, enfraquecendo-se como potencial, frequência e comprimento de onda, mas por fim não se extingue senão na qualidade de vida vegetativa animal e renasce, como espírito em fase mais adiantada, em nova e mais evoluída forma de existência; de alto potencial, alta frequência e ondas curtas. E assim por diante.
O fenômeno da entropia não representa, pois, toda a evolução, mas apenas o período destrutivo da forma de uma fase evolutiva; período que constitui a aparência e o efeito de íntima elaboração a ele correspondente na intimidade do fenômeno, e representa correlato período reconstrutivo, cujo resultado é o nascimento da nova forma, mas em fase mais adiantada. Assim, a evolução recomeça a marcha e, em meio da destruição da forma, a substância progride desse aparentemente misterioso meio de recuperação de energia, que outra coisa não é senão a resultante dos equilíbrios das forças do sistema. A entropia, portanto, é apenas aparente, a aparência assumida pela realidade do transformismo evolutivo. De fato, não se trata de dispersão nem de nivelamento, mas de elaboração. O processo de reconstrução se desenvolve subterraneamente e nada tem de científico, mas o resultado aparece-nos como nova forma que, mais poderosa, renasce em plano mais adiantado. Chamamos entropia a destruição apenas da forma, condição de renovamento evolutivo. A parte inversa e complementar do fenômeno se encarrega de reconstruir, equilibrando-o em seus dois momentos inversos e complementares. Prova-o o fato de que o resultado final de toda degradação não é a morte, mas a ressurreição em plano mais elevado. A entropia constitui apenas a revelação do desgaste resultante do trabalho da elaboração evolutiva, desgaste que desempenha também a necessária função de destruir uma forma, que por força da lei de evolução sempre progride e se aperfeiçoa. Não é verdade que por toda parte, até mesmo em nós, em nossa vida como em cada um de nossos atos, encontramos sempre essa lei de morte e ressurreição? Doutro modo não poderia haver renovamento e evolução. A forma necessita de desfazer-se e refazer-se continuamente para prosseguir no caminho ascensional do ser, que vai assumindo-as sucessivamente, de acordo com suas necessidades. A morte condiciona a vida.
Agora se compreenderá mais facilmente o que neste capítulo estamos dizendo, isto é, como a destruição biológica conduz à construção espiritual. Agora podemos verificar como, apesar de toda forma tender a degradar-se na baixa frequência e em ondas longas, ela se reconstitui mais tarde em uma forma superior, de alta frequência e ondas curtas. Eis por que, embora a vida do indivíduo e da humanidade se desgastem no curso da juventude à velhice, em progressiva diminuição de potencial biológico que caminha para a baixa frequência e as ondas longas, desse desgaste nascem o espírito, a consciência, a sabedoria, resultado de experiências da vida, cujo fruto é o espírito, em elevado potencial, alta frequência e ondas curtas. A vida, enquanto vida apenas, caminha para a baixa frequência e as ondas longas; como espírito, porém, reconstitui-se em ondas curtas, rápidas e poderosas. No plano da vida o processo de enfraquecimento de frequência, alongamento de onda e degradação de potencial continua exatamente como dizem os referidos capítulos de A Grande Síntese e isso até à exaustão e à morte. Desse processo, porém, surge o espírito, como produto sintético dessa elaboração biológica. É o que se afirma neste capítulo. Parece que no fim de cada período evolutivo, do percurso de cada fase, desgastada a forma que lhe é própria, as forças do universo se contraem e concentram em uma forma sintética, de potencial mais elevado e filha da forma precedente, que morre. Assim, apesar de tudo, o ser se fortalece, se aperfeiçoa, cada vez mais se reaproxima de Deus. Isso porque a degradação não passa de processo negativo de anulação da forma, anulação aparente de que nada subsiste senão a forma renovada e outro trecho percorrido no caminho da evolução. A degradação é, na realidade, apenas íntima colaboração construtiva e seu resultado não é a extinção, mas a evolução. O desenvolvimento de determinada fase evolutiva é um percurso expansionista, caminhando do centro para a periferia; mas é também um caminho que, no fim de cada um desses períodos, importa em haver-se percorrido intimamente um caminho inverso, com que o fenômeno evolutivo se compensa, completa e reequilibra porque contemporaneamente percorreu no seu outro pólo um caminho da periferia ao centro. Assim, a manifestação jamais termina em dispersão, por afastar-se de sua fonte; pelo contrário, é novamente atraída pelo poder divino que tudo rege e reconduzida ao contato com as forças diretivas de que o outro lado do processo tendia a afastá-la. Sem esses equilíbrios compensatórios, o universo se esgotaria por degradação. A própria lei de dualidade nos mostra a estrutura desse fenômeno de compensação. Se de um lado há degradação, do lado oposto deve necessariamente existir reconstrução. Assim acontece, na verdade, e os resultados, que não significam morte, mas vida, põem-no em evidência. Trata-se apenas de dois momentos do processo evolutivo único. Por necessidade de equilíbrio devem ser inversamente proporcionais. O nascimento implica na morte; a morte, na vida. A degradação biológica constitui condição do processo genético do psiquismo, como a degradação dinâmica se revela condição do processo genético da vida e a desintegração atômica condiciona o processo genético da energia. Os dois momentos são pressupostos um do outro e reciprocamente se impõem. Cada fase acaba degradando-se. Nasce moça, de elevado potencial, ondas curtas e alta frequência, e morre velha, de potencial baixo, ondas longas e baixa frequência. E ao morrer gera fase de ascensão mais adiantada e mais próxima de Deus. Essa lei se estende a todas as coisas. Esclarecido esse ponto, continuemos.
Quem a experimentou sabe muito bem que a vida espiritual, em que reside o futuro biológico, se caracteriza pela alta tensão; sabe também que fadiga representa o ser constrangido a elevar o próprio potencial, a habituar-se a vibrar em ondas curtas e em alta frequência. Exprimindo-se assim, procuramos dar a entender mais facilmente aquilo em que consiste a evolução, traduzindo em termos científicos o fenômeno de espiritualização que em geral não é entendido, lato sensu (sentido elevado), como fenômeno biológico, mas apenas no caráter de fenômeno religioso. O ritmo vegetativo da animalidade mostra-se mais lento, menos fatigante, menos potente, é de ondas longas e baixa frequência. O sofrimento, que matura e desmaterializa, exprime o esforço de habituar-se a viver em ritmo mais rápido e intenso, mais laborioso e fatigante, porém, mais potente. A evolução constitui, em substância, aceleramento de frequência de vibração; a dor aí funciona como excitante, espécie de transformador de potencial. Através da evolução a substância permanece idêntica; a quantidade transforma-se em qualidade; a força, como vimos, muda-se em sabedoria; a ignorância do involuído passa a ser a sabedoria do evoluído; a violência torna-se justiça; e o caótico desequilíbrio da desordem e do abuso transforma-se nos harmônicos equilíbrios da ordem divina. Por força da evolução, o concreto caminha para o abstrato; a ação, através da experimentação, transforma-se em conceitos e qualidade, a atividade material em atividade espiritual, o trabalho em contemplação. No homem primário o pensamento é concreto, não se concebe a ideia senão revelada por fatos concretos, a palavra mostra-se mais como gesto (isto é, síntese inspirada na ação) do que como conceito; e o pensamento é mais expressão por meio de palavras e gestos do que meditação; toda manifestação espiritual permanece sepultada num invólucro material. Apenas o evoluído atinge a concepção abstrata, imaterial, que se mantém por força própria, sem ligações ou apoios físicos. Nele os membros de simples instrumentos de ação se transformam em antenas transmissoras e receptoras de radiações. O evoluído parece inerte, mas sua ação, que aparenta um "não-fazer", pois foge às formas e percepções comuns, desenvolve-se no imponderável. Ela desmaterializa-se em ritmo mais sutil, poderoso e penetrante. O futuro abrange a passagem da vida animal à espiritual; para que esta se desenvolva aquela tem de morrer, pois se torna impossível a coexistência de dois ritmos diversos. São antagônicos, mas reciprocamente se ligam e continuam. Na evolução da vida a onda longa é que acaba terminando em onda curta. Progredir significa conquistar onda curta. É a forma do futuro. Mas, superada a fadiga do aceleramento e a dor da asfixia em plano inferior, a vida, transformada e não destruída, continua mais intensa e alegre num plano mais elevado. Trata-se de ressurreição. Assim, a morte não é igual para todos. A noite não é trevas para os noctívagos. A morte só é morte para os tipos involuídos, animais e vegetativos, isto é, em ondas longas; para os tipos evoluídos, espirituais ou, seja, em ondas curtas, a morte significa vida. Todos nós somos relativos, limitados e estamos fechados numa das metades da vida. Mas sempre a experiência oposta, a outra metade, está pronta a compensar-nos e completar-nos. Tudo pode transformar-se. A vida em ondas curtas representa a morte da vida em ondas longas, mas constitui a vida dos tipos em ondas curtas. A vida deles não reside na terra, e sim no além, no reino da noite, enquanto que para os tipos em ondas longas ela está no mundo, no reinado do dia. Há, pois, temperamentos adequados a viver na vida e temperamentos adequados a viver na morte. Nossa própria vida cotidiana se divide em dois turnos diferentes: o dia, vida física, prática, concreta, sensória, à luz solar, em ondas longas; e a noite, vida espiritual, de sonho, incorpórea, no imponderável, à luz azul, lunar, em ondas curtas. A vida é contínua; de dia vivemos a vida dos vivos, de noite a vida dos mortos. As duas faces inversas do mesmo fenômeno se alternam. E enquanto uma forma prepondera, a outra se atenua e espera o seu despertar. De noite a vida física adormece e se afirma a vida interior, intuitiva, vidente. De dia, a vida interior permanece entorpecida, deixando o campo livre àquela. Trata-se como de duas linhas de visada diferentes, mas tomadas pelos olhos da mesma pessoa: um, míope, diurno, capaz de perceber todas as minúcias dos objetos próximos, precisa, concreta; outro, presbita, noturno, bom para distinguir os objetos afastados, as visões panorâmicas, mas vaga, sonambúlica, onírica. As horas da madrugada são as mais profundas, as melhores para a atividade espiritual e, por outro lado, as piores para o enfermo, o que sofre no plano físico; são as em que geralmente o homem morre, pois compreendem o período de maior depressão do dia todo, de ritmo vibratório mais curto, o mais afastado do ritmo longo, lento, vegetativo, diurno.
Todo o nosso ser está saturado desse dualismo inverso. A própria luta pela vida, fato fundamental, assume duas formas extremas: a positiva, de agressividade (conquista) e a negativa, de resistência (conservação), ambas válidas. Sobre esse dualismo também se apoia o básico fenômeno biológico da sexualidade, tanto assim que a encontramos, como oposição de termos, em nossa própria carne. De fato, os tecidos todos se compõem de células e a célula de dois elementos contrários e complementares, o núcleo e o protoplasma. Até mesmo a unidade celular, que está na base de nossa estrutura orgânica, é bipolar, conforme a lei de dualidade. O núcleo, originário do espermatozoide masculino, vibra em ondas curtas; é de radiações azuis, voluntarioso, dinâmico, como o próprio espírito. O protoplasma, oriundo da célula-ovo feminina, vibra em ondas longas; é de radiações vermelhas, sensual, pacífico, acumulador, como a vida vegetativa. O núcleo é eletricamente positivo; o protoplasma, negativo; eis os dois termos antitéticos que, da intimidade de nossa própria carne, do indivíduo ao desenvolvimento biológico e social, representam cisão e compensação de qualidade e divisão de trabalho, por força do qual o princípio masculino assume tarefa inversa e complementar da atribuída ao princípio feminino. Ao primeiro desses princípios, a virilidade, em ondas curtas, incumbe o dinamismo criador, a função de, por meio de estímulos revolucionários periódicos, reanimar, reativar a onda longa da feminilidade que, se tende a conservar, a proteger, acumular, tende também ao enfraquecimento e à estagnação. Essa atividade genética e conservadora equilibra-se na atividade oposta do princípio masculino, diretora e distributiva. A este se confia a iniciativa da evolução, ao feminino a elaboração da matéria-prima, o princípio masculino plasma, o feminino recebe. Mas o primeiro também é eminentemente destrutivo, enquanto o segundo doméstica e civiliza. O fato de sua natureza inversa torna-os incompletos e leva-os a se atraírem reciprocamente. Assim, os dois princípios, na luta para se destruírem, se apertam no mesmo abraço. Ai de nós se, compensando-se e combinando-se, as duas funções não se equilibrassem. Então, reciprocamente expurgadas do excesso individual, a destruição do dinamismo positivo se transforma em construção e a passividade do dinamismo negativo se torna civilização. Da combinação dos dois princípios nasce a evolução; o masculino e o feminino são o pai e a mãe daquele filho chamado progresso.
Esse dualismo imprime-se em todo o nosso ser. Das alturas da personalidade desce até à intimidade de nossa carne, até à célula, onde, aliás, está insculpido e donde sobe de novo até à síntese máxima do ego, tornando-se antagonismo entre espírito e matéria. Esse contraste, que se verifica sem cessar e constitui a base da evolução, reencontramo-lo até mesmo no mais íntimo de nossa estrutura orgânica, na divisão e união dos dois sexos. Pode acontecer que as correntes de consciência, que se manifestam em nossa personalidade e a caracterizam, se relacionem com essa bipolaridade das células e nesta se encontre a chave do mistério do subconsciente, dos instintos, das ideias inatas, da hereditariedade; pode acontecer que a recordação atávica se acumule e transmita através dessas células eternamente reproduzidas por filiação direta, das células destacadas dos progenitores, isto é, o espermatozoide e a célula-ovo. Não podemos, agora, perder-nos em divagações a respeito da gênese e da estrutura da personalidade de que mais adiante falaremos. Mas, sem dúvida, o problema espiritual não pode isolar-se do fisiológico; os dois se ligam estreitamente. É verdade que as correntes espirituais nos penetram o organismo até ao interior da célula cuja estrutura é bipolar, quer dizer, contém, o germe das duas vidas, das duas vibrações e radiações, dos dois ritmos fundamentais da existência. Também é verdade que a vida é um fenômeno elétrico, não da eletricidade por nós usada em vários aparelhos. Trata-se de quantidades enormes de energia de posicionamento alveolar e de baixo potencial; trata-se de um grande número de elementos (vários milhões de células), cada um com capacidade energética mínima; poderíamos, mesmo, dizer número infinito de causas infinitesimais. Num extremo da vida há como que uma pulverização dinâmica; noutro, uma espécie de concentração sintética e unitária em torno do ego. Também neste sentido se verifica uma oscilação entre os dois extremos opostos e complementares. As raízes do psiquismo mergulham profundamente nos misteriosos meandros da estrutura orgânica. Pensam que o material dessa construção é, como primeiro elemento, o átomo, e as moléculas as primeiras construções atômicas em que os átomos se ordenam sistematicamente. Para chegarmos até à célula, precisamos antes considerar a formação dos corpúsculos chamados micelas, compostos de um grânulo recoberto por uma espécie de casca (substância peri-granular). Água circula entre o grânulo e essa espécie de casca. A micela é dotada de movimento contínuo, chamado movimento Browniano. A micela é, pois, constituída de moléculas que, por sua vez, se constituem de átomos, em dois grupos de matéria, um positivo e outro negativo, como, por exemplo, a célula. Essa bipolaridade corresponde, do átomo e da célula aos organismos extremamente complexos, a um esquema geral da criação, estabelecido de acordo com a lei de dualidade. O esquema fundamental dos fenômenos universais é simples e válido para quaisquer grandezas e planos evolutivos. O próprio átomo compõe-se de um núcleo central positivo e de elétrons (ou cargas elétricas negativas) que gravitam em torno dele, à semelhança do sistema solar e seus satélites. O princípio dualístico manifesta-se em toda parte. Encontramo-lo impresso no desenvolvimento da trajetória típica dos movimentos fenomênicos examinada na 1ª parte de A Grande Síntese, desenvolvimento resultante da alternância de períodos inversos, evolutivos e involutivos, de progresso e retrocesso.
É natural que esse dualismo permaneça até mesmo na síntese máxima da personalidade. E assistimos não somente à pulverização de seu dinamismo causal como também à de sua estrutura material que, se de um lado, o máximo, se desfaz na espiritualidade da alma, de outro desaparece na imaterialidade dos últimos de seus elementos constitutivos. Não deve, pois, causar estranheza, o imaginarmos que essa imaterialidade se resolva no dinamismo de uma polaridade elétrica e de um ritmo vibratório radiante, em maravilhosa orquestração de harmonias equilibradas e compensadas com as dissonâncias relativas. A vida, portanto, se elaborou através de atividades mínimas, mas gastou nisso imensos períodos de tempo. Não é demais imaginar que a evolução consiste em lenta aceleração do ritmo vibratório, em transformação do potencial elétrico no sentido de frequências mais altas, de ondas cada vez mais curtas; nem é fora do comum pensarmos que isso aconteça no processo chamado desmaterialização e espiritualização. A matéria viva de nosso organismo, sensível a todos os choques externos, de que registra os recentes e lembra os antigos, palpitante ao impulso de forças internas e externas, sofre continuamente a ação das vicissitudes da vida social, as asperezas da luta, a hostilidade ambiente. Deve, por isso, elaborar-se e mudar por força. O homem, os povos, a humanidade significam vida e a vida é como um projétil que percorresse trajetória pré-determinada. Tudo se transforma, nada pode deter-se. A carga elétrica, impulso inicial que acompanha o nascimento do ser e anima o percurso do projétil, tende ao esgotamento e então começa o ramo descendente da trajetória. O dinamismo acaba cedendo, primeiro no campo orgânico e em seguida no campo psíquico, exatamente porque neste campo se desenvolveu tardiamente. O último destes dinamismos parece filho do dinamismo orgânico, de que representa a resultante e o objetivo, o efeito residual mais bem elaborado da causa. Isso faz pensar que, como se verifica em relação ao indivíduo, as funções espirituais representam o futuro da raça, sua futura fase de evolução, e também na humanidade se desenvolvem mais tarde. Tanto assim que esse psiquismo corresponde a complexidade orgânica cada vez maior, necessidades de defesa cada vez mais difíceis, pois o drama se torna sempre mais inçado de problemas e requer, por isso, estratégia cada vez mais sábia e rica de mil e uma qualidades. Do contrário, o indivíduo não triunfa. E tudo nos faz pensar em que, analogamente, a evolução deve alcançar, também nos seus mais altos graus, a coordenação atingida nos mais baixos, como, por exemplo, na estabilização atômica e celular. Como o passado criou formas hoje estáveis assim o, futuro estabilizará formas bem mais complexas. Por que razão o princípio protetor da vida não deveria presidir também à defesa das construções biológicas do futuro, mais sublimes e delicadas? A criação é fatigante, laboriosa, lenta, mas contínua.
Baseados nessas considerações, agora podemos definir mais precisamente a lei de dualidade, até mesmo relativa mente à evolução. Assim:
"Todo indivíduo constitui unidade dupla, isto é, equilibrado paralelismo de forças emparelhadas, mas antitéticas. Ou melhor; a unidade compõem-se de metades inversas e complementares, em contraste e em equilíbrio. Desse contraste nasce a elaboração íntima que se chama evolução".
A evolução, portanto, resulta de processo bipolar, destrutivo-construtivo. Já vimos de que modo o mal se torna necessário às finalidades do bem. Dessa lei se infere que, se toda unidade é um binômio, tudo é necessariamente luta e guerra, mas também paz; tudo é ódio, mas amor também. Poderemos até mesmo dizer que, por força da íntima estrutura dualística dos fenômenos e, portanto, do fenômeno biológico também, e em virtude do dinamismo de duas forças opostas, a positiva e a negativa, a masculina e a feminina, se produz uma auto-elaboração interior, também chamada evolução, que faz a vida humana progredir do tipo animal, vegetativo, espiritualmente involuído, sensual, sensório, físico, em ondas longas, para o tipo super-humano, psíquico, evoluído, sensitivo, espiritual, em ondas curtas. Em suma: transforme-se de besta em super-homem. Se essa elaboração íntima conduz a vida humana a um ritmo que vai das ondas longas às curtas, leva-a também a caminhar do dia para a noite, afasta-a da luz e do calor de um sol poente, desmaterializa-a por força de maturação íntima, do mesmo modo que, na desintegração atômica, a matéria se transforma em energia; a vida humana extingue-se como forma física, a fim de, em outros ambientes, ressuscitar sob nova forma espiritual.
Estamos discutindo estes problemas e, ao mesmo tempo, aplicando a lei acima exposta. De fato, também a ideia constitui um binômio de forças (isto é, inversas e complementares); e, por isso, como todo debate representa uma oscilação entre os dois extremos opostos do mesmo conceito, conduz àquela íntima auto-elaboração que é a maturação do pensamento, isto é, sua evolução. O leitor pode encontrar por si mesmo muitas outras aplicações dos princípios aqui expostos. Mesmo a radiestesia se baseia em dois tipos de movimentos pendulares inversos e correspondentes ao bem e ao mal, isto é, capazes de, seja qual for o objeto, revelar-lhe as radiações favoráveis ou nocivas. Se o movimento é circular, pode ser no sentido horário (sentido do movimento dos ponteiros do relógio) e no sentido anti-horário; se é retilíneo, falamos em sentido longitudinal e sentido transversal.
A tudo isso se poderia objetar que o princípio de causalidade não basta para explicar a fase superior de evolução que, representando estado mais complexo, significaria "mais" obtido de "menos", isto é, efeito superior à causa. A objeção se justificaria, se o funcionamento do universo dependesse apenas de relação causal. Não se concebe, aliás, desproporção entre causa e efeito nem desenvolvimento maior do que o conteúdo do germe poderia dar. Na realidade, porém, o fenômeno não se desenvolve como as aparências nos fazem supor. O funcionamento do universo não pára, mas, além de orgânico, e contínuo, é evolutivo, quer dizer, é intérmina florada de vida; a mecânica, representada pelo princípio de causalidade, constitui apenas o processo de elaboração dessa florescência. Em resumo: na evolução, mais do que simples relação entre antecedente e consequente, verifica-se o desenvolvimento de algo latente na intimidade do ser e a sua manifestação no mundo exterior. Os dois momentos, causa e efeito, não surgem, portanto, ligados por uma relação de igualdade, porque no centro, na causa no germe das coisas, se concentra o invisível poder do pensamento de Deus, poder que se expande e desenvolve na manifestação exterior, por nós mais claramente perceptível. Todavia, se observarmos mais atentamente, verificamos a existência dessa relação de igualdade entre causa e efeito, não na forma, mas apenas na substância. Os nossos sentidos, porém, só percebem a relação formal. A igualdade foge, pois, à apreciação dos sentidos. Se existe na substância, onde o equilíbrio tem de ser perfeito, não existe na forma, que é tudo quanto o homem percebe e, efetivamente, dá a sensação de disparidade entre causa e efeito.
O capítulo anterior deu-nos apenas ligeira ideia da maravilhosa simetria de impulsos e da correspondência de ritmos orientadores da ordem de que se compõem o funcionamento orgânico do universo. Nossa vida é força que navega em oceano de forças; toda força é vontade que a anima, pensamento que inteligentemente a dirige, é tipo de vibração, é radiação. Tudo se move, ouve, registra, recorda e responde. Apesar de algumas cacofonias, tudo se harmoniza em maravilhosa sinfonia, tudo se articula em grandiosa arquitetura de ritmos. A ciência deixa-nos tão-somente entre-vê-la. O homem para percebê-la apenas dispõe de sentidos embotados e dela tem idéia muito vaga. O tato, sentido totalitário fundamental, nos dá sensação ampla, mas genérica e elementar. Os outros sentidos, derivação específica e especialização do tato, permitem contatos mais íntimos e perfeitos com o ambiente. Assim, o gosto constitui aperfeiçoamento do tato, o olfato é especialização do gosto, o ouvido deriva do olfato, a percepção da luz origina-se da percepção do som. Na ascensão há ordem, progressão evolutiva. Ao progressivo aperfeiçoamento do sentido corresponde, quanto ao dinamismo, a transformação da quantidade em qualidade: o comprimento da onda diminui à proporção que a frequência aumenta. Por essas poucas portas abertas penetra vasto mar de ondas, mas o restante nos escapa à percepção. Quem sabe quantas irradiações mais estão vibrando no ar, chamando-nos, e não sabemos captá-las! O resto parece-nos silêncio e trevas! Quanta vida e quanta beleza nos passa despercebida! A ciência, descobrindo novos métodos de registrar vibrações, oferece-nos uma espécie de sentidos artificiais que nos abrem novas vias sensórias. Rasgam-se novas clareiras iluminadas; depois, trevas, o inexplorado, como antes, interminável. A matéria se evapora; diríamos mesmo, espiritualiza-se em nossas mãos. Sua composição química não basta para esgotar o conhecimento de sua natureza. No universo tudo está animado de vida, de inteligência, de relações e de trocas. Toda individuação tende a sintonizar com o ambiente e a reagir, impondo ao ambiente essa sintonia. Modificando e modificando-se, tende-se à concordância, a recíproca mimetização rítmica. Por-se de acordo com a ordem é o caminho que oferece menor resistência e dá maior rendimento, é a tendência constante e a resultante final que a estrutura do sistema de forças necessariamente impõe. Por maiores que sejam os antagonismos, tudo não passa de coexistência, de sensações recíprocas, de vibrações em comum. A coexistência no mesmo ambiente implica a inevitabilidade das trocas e, por isso, a reciprocidade das influências exercidas. A relatividade de cada qual implica a necessidade de procurar nos outros, para alimentá-la, o próprio complemento. Assim, antes ou depois, tudo se adapta por força de concordância recíproca; por maior que seja o desacordo, acaba sempre por dissolver-se, harmonizando-se no consenso. De fato, embora dividido pelo individualismo, está ligado por essa complementaridade; embora afastado e separado pela antipatia e repulsão existente entre semelhantes, é reaproximado e reunificado pela simpatia e atração que se estabelece entre contrários.
A estes contatos cada qual corresponde conforme sua sensibilidade; evolução é sensibilização, isto é, dilatação contínua das vias da percepção bem como do poder e da alegria de perceber. Cada um reage conforme suas particulares capacidades seletivas e de sintonização; assim, o musicista para as ondas sonoras; o pintor para as ondas luminosas, o pensador para as ondas psíquicas, o romântico para as ondas vitais do amor. Quanto mais a vida é espiritualmente profunda mais nos dá o senso do ritmo e transforma o ser em concerto de harmonias. No gênio triunfa exuberante riqueza de percepção, a hipersensibilidade abre tantas portas à ressonância, as irradiações penetram e os seus registros se amontoam febrilmente. Onde o homem comum percebe poucas sensações e duas ou três ideias com que enfeita o simplíssimo esquema de sua vida, o gênio deve saber movimentar-se, orientar-se, cair e levantar-se, em meio da vertiginosa complexidade de sua imensa orquestração perceptiva.
Todo esse movimento origina-se de desequilíbrio que procura, enquanto isso, busca o seu equilíbrio. Se aquele constitui o impulso motor, significa também transitória mudança de fase, instrumento de evolução, e acaba sendo, naturalmente, reabsorvida no equilíbrio. Embora haja desordem na superfície, na camada mais profunda reina a harmonia a que todas as coisas tendem; e o ser mais evolui, mais se lhe aproxima e mais a sente. A sintonização rítmica é o estágio final de todas as alterações dinâmicas. Encontrado o equilíbrio, o objetivo foi atingido, o problema está resolvido, o ser fica saciado e o movimento cessa, para recomeçar em plano mais elevado e em desequilíbrio mais complexo e, por isso, em movimento. E assim por diante. Se o dinamismo é consequência do desequilíbrio, este por sua vez deriva do dualismo existente em cada ser e implica unilateralidade, isto é, carência que o torna incompleto e por isso o incita ao movimento em busca de complemento. Mas se a natureza nos onera com a necessidade para que ela nos constranja ao movimento e, assim, façamos experimentos e evoluamos, propicia-nos também os meios de satisfazê-la. Há sempre outro termo apto a dar-nos riqueza necessária para realizarmos troca e conseguirmos satisfação, apenas tenhamos tido o trabalho de encontrá-la. Assim, os seres estão fraternalmente unidos e o universo pode organizar suas construções de relações, seus edifícios de forças; assim, tudo se move e se renova, foge à cristalização e no movimento se torna possível a evolução.
Todas as coisas são movidas por essa combinação de altos e baixos, de qualidades inversas e complementares. Cada termo vai procurando reequilibrar-se no seu contrário e, assim, encontrar repouso. Desse modo, todo elemento se liga a seu oposto e por isso, até mesmo no árduo trabalho de auto-elaboração é arrastado rumo à evolução. O progresso está implícito no sistema, como resultante, e o estado de equilíbrio representa evolução acabada, estado de paz que é a fase final de todas as guerras da luta pela vida. Na natureza, os objetivos existem para serem atingidos. O universo atual está em fase de desequilíbrio, base do dinamismo criador, e isso significa que está em fase criadora e evolutiva. Para as forças e os fenômenos que o conseguem, o equilíbrio representa a fase de chegada, de satisfação, de repouso final em terreno que jamais permanece inoperante e sossegado; por isso, é também fase de morte e, em seguida, de superamento. O equilíbrio entre os dois contrários pode, com efeito, ser perturbado pelo menor choque, porque as forças do universo estão perfeitamente entrosadas. Então, os equilíbrios se rompem para se porem de novo em movimento, como desequilíbrios, até recuperarem novos equilíbrios de paz. Mas, a cada união e a cada troca, também corresponde nova prova e nova experimentação; a volta ao trabalho, após o repouso, significa superamento do passado e trabalho mais produtivo, mais sábio, mais profundo. Assim, toda necessidade, desequilíbrio, esforço e criação se relacionam estreitamente; desse modo, a luta e a dor constituem instrumentos de evolução, isto é, construtores de equilíbrio, de ordem, de harmonia. Trata-se de cadeia de momentos necessariamente ligados em série até que atinjam seu objetivo. O estado de determinismo é, portanto, apenas a parte conclusiva, o ponto de chegada em que o livre arbítrio deixa de oscilar, cristalizando-se nas qualidades adquiridas e em consequência perde, em determinado campo, a sua função e razão de existir. Agora as qualidades estão bem caracterizadas e fixadas e já funcionam por simples automatismo, como se fossem instintos.
Concebido, dessa maneira, o funcionamento do universo adquire significado musical. Quanto mais profundamente observamos mais evidente nos parece a sinfonia dos ritmos. Podemos exprimi-la de muitas formas: geométrica, matemática, artística, poética, musical, filosófica, heroica, moral. Mas é sempre a mesma ordem que se revela como ritmo no tempo e simetria no espaço, ordem que, dinamicamente, é equilíbrio; moralmente, justiça; artisticamente, beleza; humanamente, bondade. Arquitetura, poesia, música, a própria bondade, tudo é ritmo. Há pensamentos musicais; sistemas morais que, como o Evangelho, sintonizam com os mais sublimes ritmos do universo, isto é, mais próximos da ordem divina. A palavra de Cristo está saturada de vibrações construtivas e vitais. O gênio, porque sabe encontrar relações novas entre as coisas, revela-nos novas harmonias e nos aproximam do pensamento de Deus. A música dá-nos alegria porque nos patenteia a ordem que constitui a essência mesma da divindade e condiciona a felicidade suprema. Tudo quanto é harmônico nos eleva, melhora, dá-nos a paz e o equilíbrio. Há tanto ritmo num teorema de geometria como no cálculo matemático, nos processos dinâmicos e nos químicos, nas leis físicas e nas leis morais, em astronomia como em estética e em filosofia, tanto num raciocínio como num destino. No universo um tipo fundamental de vibração ressoa e multiplica-se em mil tonalidades, alturas e dimensões; os esquemas basilares são simples e, repetindo-se, vão-se diferenciando e multiplicando ao infinito. Por isso, todas as coisas guardam estreita analogia entre si; não é por mero acaso que, para descobrimento do desconhecido, tanto se recorre em A Grande Síntese, como fazemos aqui, ao princípio da analogia. O espírito adere instintivamente à alegria do ritmo, quando se percebe terminar as asperezas da luta e as dolorosas dissenções do caos. Toda harmonia é uma festa, pois nos eleva, nos aproxima de Deus, centro irradiador de todas as harmonias. O paraíso deve consistir em nos sintonizarmos com ritmos sublimes do universo. O problema da felicidade talvez seja apenas questão de sintonia ou, seja, de colocar-se em fase com radiações superiormente harmônicas.
Esses conceitos podem lançar nova luz sobre o problema da evolução da arte e, especialmente, da música. Podemos, assim, tecer agora considerações mais profundas a respeito de alguns de seus aspectos, de que, aliás, já falamos no último capítulo de A Grande Síntese: “A Arte”. Nele dissemos o seguinte em relação à música: “Nossa atual fase artística consiste no aniquilamento, no abandono da forma. Estais na última fase de queda(...). O progresso artístico não passa, em substância, de processo de harmonização(...). Como todas as coisas, a música moderna evolui em profundidade(...), em sua 3ª dimensão de sinfonia(...). O futuro consiste em continuar tornando cada vez mais ampla a estrutura sinfônica”(...).
Aprofundemo-nos. Se observarmos a música de nossos dias, principalmente se a relacionarmos com a que a precedeu, verificamos separação, diversidade e desacordo fundamentais. A música de ontem nos aparece como música resolutiva, estágio final de pacificação; a de hoje, no entanto, surge como música revolucionária, estágio inicial de luta; predominando a dissonância, o desequilíbrio dos ritmos e dos tons. No campo artístico, temos o atual ciclo biológico, como manifestação viva de destrucionismo, de decadência moral, de queda evolutiva no materialismo, de espiritual estridor humano, afastando-nos dos superiores ritmos divinos. É revolução, ruína, destruição, que podem transformar-se em reconstrução, com elementos novos, de bases mais amplas e objetivas, dirigidas para fins mais elevados. É, sem dúvida, luta e esforço, também desordem; mas representa, no caos, abundância de novas relações, de que surgem novas possibilidades. Essa a característica de nossa época, ao mesmo tempo infernal, perigosa e notável.
Até há poucos anos a música constituía processo harmônico, em que o choque sonoro tendia a composição amigável, a solução pacífica. A música moderna, expressionista, tende pelo contrário a estado em que predominam a inimizade e a luta. Modernamente, a fadiga de colocarmo-nos acima de acordo fundamental, resolutivo, pacífico, calmo, não é mais flutuante, entremeada de contínuas pausas para descanso; é, isso sim, desesperado impulso que não consegue mais resolver-se e aclamar-se num acordo. A dissonância se transforma de exceção em regra. Os choques continuam, acumulam-se, perseguem-se numa luta sem tréguas. Daí nasce um estado de tensão permanente, de irredutível hostilidade que desenvolve ao máximo o dinamismo das correntes sonoras, por um lado, e se reduz a simples paroxismo de instabilidade tonal que dá o sentido revolucionário da desordem caótica, por outro. Isso está agravado pela instabilidade rítmica (mudança de ritmo), hoje muito em moda. Existe aí, sem dúvida, abundância de elementos novos, mas ainda no informe eruptivo, no estado caótico de desequilíbrio, isto é, na posição mais afastada daquela harmonização que constitui elemento evolutivo e representa o grau de evolução artística. Verificamos, pois, a existência de duas tendências contrárias (outra manifestação da lei do dualismo), luta acirrada e mais viva; e a luta, sem dúvida, serve de base à criação. Verificamos inegável intromissão de fatores novos na moderna arte musical, em que surgem novos recursos, e se manifesta ampliação de bases construtivas; e isso constitui benefício, germe de progresso. Mas aí verificamos também existência de estado de desequilíbrio que, se pode ser dinamizante e, por isso, genético, é desordem também e a desordem significa involução, ao passo que a ordem quer dizer evolução. Eis a grande questão: saberemos dominar essa desordem, transformando-a em ordem? Esse dinamismo terminará em construção ou em destruição? O gênio humano terá o poder de torná-lo genético, disciplinando-o em construções superiores? Saberá reequilibrar esse ameaçador desequilíbrio no plano de harmonias mais sublimes e complexas? Ou, então, a corrente modernista nos prenderá os pulsos e arruinará completamente a arte?
Hoje, sem dúvida, vivemos como se fôssemos vulcão ativo e a música atual constitui apenas um momento da psicologia de nossa época que, em qualquer ramo de atividade, apresenta-se como desesperada tentativa para encontrar valores novos. Atualmente, ao invés de próximos, estamos muito afastados da sistematização e da alegria da harmonização; estamos hoje em pleno período de retrocesso e destruição que nos lembra o descrito no Cap. 22 – “Tempestade”, deste volume. Esse estilo musical pode ser tolerado apenas como fase preparatória e de transição. O futuro da música não reside na desarmonia, mas na complexidade e profundeza. Ao contrário! Se não voltarmos a percorrer esse caminho, o único aberto à evolução musical, também do ponto de vista musical afundaremos na barbárie. Essa liberdade exagerada de ritmos significa ruína da ordem, decadência e destruição. Depois dos grandes clássicos não houve mais boa música. Não temos, frequentemente, senão cerebralismo, lucubração, artifício intelectual sem inspiração alguma, virtuosismo técnico, isto é, paródias, sucedâneos, degeneração. Talvez estejamos agora na parte mais baixa da onda, na noite escura que precede a aurora. Assim cremos e esperamos. Ouvido acostumado às velhas arquiteturas musicais, que, embora mais simples, alcançaram alto grau de equilíbrio, suporta com dificuldade, sem dúvida, essa espasmódica e caótica mudança de fase dos ritmos e o choque dessa dolorosa ruína estética. E o espírito, para aderir e aceitar, espera que tudo se reordene nos novos equilíbrios. Não somente a música, mas a arte em geral, corre perigo. E, infelizmente, isso não acontece apenas com a arte. Esses desequilíbrios significam a intromissão de novas forças; mas, se não soubermos dominá-las, arriscamo-nos ao esfacelamento completo. Saberemos, sob o fardo dessa riqueza nova, subirmos em direção ao objetivo final da vida e da arte, que é a harmonização? As revoluções devem saber resolver-se em novos ordenamentos, exatamente para conquistá-los elas surgem. Apenas isso pode justificá-las. Tudo quanto hoje se faz está condicionado e depende de se alcançar o domínio da ordem sobre a desordem, para que a violência revolucionária se enquadre e a tentativa dê resultado, a inspiração retorne e o espírito se sintonize, de novo, com os grandes ritmos da vida. Nossos antepassados, mais simples do que nós, haviam-no alcançado; somos mais ricos e complexos, mas devemos saber ganhar a luta e realizar o imenso trabalho de progredir e consegui-lo também.
Até mesmo o problema da arte se nos apresentou sob a forma de antagonismo de forças em que atua o universal dualismo da Lei. Equilíbrio e desequilíbrio, luta, harmonização, presumem sempre esse dualismo, binômio de forças, princípio que está sempre nas raízes da gênese e da evolução. Para onde nos voltemos, sempre os dois termos opostos se atraem e se repelem, se amam e se odeiam. Duas vidas, a interior e a exterior; dois tipos humanos, o involuído e o evoluído; dois ritmos, um longo e lento, outro breve e rápido. No começo deste capítulo, falamos ligeiramente das diferentes vias sensoriais por onde os ritmos do ambiente penetram na personalidade humana. Mais uma vez dois termos, dois mundos, o íntimo e o exterior, o eu e o universo. Qual dos dois o maior? Ninguém pode negar que, assim como o mundo exterior, o mundo interior seja imenso, infinito abismo. Os dois impulsos se chocam e se combinam e daí nasce a vida. Luta criadora. O universo irradia e exerce pressão para, através dos sentidos, penetrar no eu. O eu recebe, experimenta, adapta-se, assimila, irradia e reage, para, por sua vez, penetrar e, assim, dominar e plasmar o ambiente à sua imagem e semelhança. Dupla irradiação, portanto, do mundo exterior para o interior e vice-versa. A lei de dualidade, a coexistência dos dois mundos e sua atividade, enfim, essa dupla irradiação deles faz-nos pensar na existência de partes inversas e complementares das vias sensoriais já referidas, de canais de saída que lhe correspondam e fiquem em sentido contrário ao dos canais de entrada; faz-nos pensar, também, na possibilidade de inversão das vias sensórias que passem a percorrer o caminho sensorial também do interior para o exterior. Até agora vimos o movimento dessas irradiações apenas em uma direção, do exterior para o interior. É lógico que, por necessidade de equilíbrio, deva também existir o movimento em sentido contrário. Paralelamente, a natureza material dos canais de entrada deveria, nos de saída, assumir forma espiritual. A sinfonia dos ritmos complica-se. Examinemos o problema, agora. Veremos, então, novos aspectos do funcionamento da lei de dualidade. Isso diz respeito inclusive à arte que, através da inspiração, vai até às fontes íntimas para vivificar-se.
Beethoven era completamente surdo quando escreveu a Nona Sinfonia. Morreu com 57 anos (1827) e com 29 começou a ficar surdo. No entanto, a impossibilidade de ouvir não interrompeu a produção genial; parece, mesmo, haver cooperado para sublimá-la, tanto assim que seus trabalhos vão mostrando-se mais inspirados à proporção que a surdez aumenta. Contudo, tinha ele de ouvi-las. Se não, como poderia concebê-las, valorá-las, trabalhá-las? Beethoven as ouvia, embora simples sensações, com a mesma nitidez e exatidão que a percepção exterior permite. Sua percepção era, pois, diferente, mas de igual poder, canalizada por outras vias, as vias interiores. A atividade do musicista, que era a maior possível exatamente no campo de ação do órgão deficiente, mostra-se independente dele. A concepção, é claro, vinha inspirada de dentro de sua personalidade. Mas, como essa concepção se transformava em percepção e, através da sensação, conseguia o controle? Este caso faz-nos pensar no daquele homem que, para degustar qualquer prato, apenas se limitava a ler um tratado de culinária. Podem as vibrações que excitam os órgãos dos sentidos provirem de dentro e não de fora? Parece que os próprios sentidos podem ser impressionados por dois lados (dualismo), isto é, por vibrações vindas de fora e por vibrações oriundas de dentro; e mais ainda: pelo fato de não funcionar o órgão externo de modo algum isola a consciência do indivíduo, mas, ao contrário, estimula-o a compensar-se, buscando outros meios de comunicação. Parece, outrossim, que nessa troca, o sentido ganhe em refinamento tudo quanto perde em objetivismo e materialidade e, finalmente, que as vibrações podem usar vias imateriais de comunicação. Embora continuem sendo do tipo correspondente aos vários sentidos, assumem elas forma bem mais sutil, espiritualizam-se e, concomitantemente, a produção do gênio se sublima e espiritualiza. Além do mais, parece que a compressão ocasionada pelo fechamento das janelas dos sentidos, abertas do lado físico, para fora, aumente e corresponda a capacidade receptiva, por motivo da abertura de janelas sensórias do lado psíquico para dentro. Já observamos esse fenômeno de compensação na dor como instrumento de evolução, no enfraquecimento físico agindo como elemento de sensibilização, compensação, aliás, que facilmente se observa no desenvolvimento orgânico e psíquico (o braço ou a perna remanescentes são sempre mais fortes e os infelizes quase sempre mais inteligentes). A natureza, de estrutura bipolar, equilibrada, consegue desse modo compensar-se, remediando as suas imperfeições com o reforço que leva ao lado correspondente ao de sua debilidade. A vida, se se lhe fecham as portas da expansão, retrai-se, volta-se para si mesma e, ao invés de crescer horizontalmente, cresce em profundidade, em outra direção e segundo outra dimensão. Realiza, desse modo, outros experimentos, adquire qualidades diferentes; a duplicidade de sua estrutura permite-lhes afirmar-se igualmente, realizando-se de acordo com desenvolvimento diferente.
Nosso corpo, isto é, a parte que vemos, é apenas a metade do organismo humano. Como decorrência da aplicação da lei de dualidade e dos princípios acima expostos e dela derivada, a outra metade deve possuir características inversas e complementares. Uma das metades é matéria; a outra, espírito. Comunica-se com dois mundos e podem-se perceber suas vibrações inversas, recebendo de dois lados e por duas vias, isto é, por percepção fisiológica direta e percepção espiritual inversa. Trata-se de duas vidas que disputam entre si o predomínio sobre a personalidade. Porque são complementares se completam; mas, sendo contrárias, reciprocamente se excluem. Assim, quando a vida física sensória adormece no sono, no transe, ou se debilita em razão de moléstia ou velhice, como já observamos, então a vida psíquica pode revelar-se e surgir com mais nitidez na tela da consciência. Observemos o duplo funcionamento dos sentidos. Os dois mundos vibram e irradiam nas duas direções opostas em que a vida se desenrola. Examinemos, primeiro, a percepção visual (ou a acústica, olfativa, tátil e assim por diante). É bem conhecido o processo óptico por força do qual a imagem se reproduz na retina, mas invertida, e depois é transmitida ao cérebro pelo nervo óptico e, finalmente, percebida na posição normal. Onde o mundo físico termina, o mundo psíquico principia. O órgão central é o cérebro, suspenso entre dois mundos, como diafragma sensível capaz de registrar as vibrações provenientes de um e de outro. Esse órgão, porém, não basta para realizar a síntese visual. Mas, afinal, com que vemos? Não vemos com os olhos; de fato, percebemos, já na posição normal, a imagem que, invertida, se forma na retina. Não vemos apenas com o cérebro porque, se causarmos alteração no nervo óptico, não percebemos coisa alguma, embora a imagem continue a formar-se na retina do olho intacto. E se os órgãos permanecem intactos e livre o caminho até o cérebro, isso basta para que o fenômeno da visão se realize? Mas, e se o espírito está distraído, com a atenção voltada para outro objeto, preocupado, é colhido de surpresa, não se interessa em ver ou não quer ver ou a vibração, por ser habitual, não lhe atrai mais a atenção, nesses casos, a visão não se verifica. E, no entanto, o fenômeno óptico é mecânico, consiste na transmissão de vibrações que, se encontram caminho livre, chegam automaticamente ao cérebro. A vibração atingiu o cérebro, foi registrada e, no entanto, não realizou a visão. Quantos atos automáticos, secundários, desse modo continuamente escapam à nossa consciência! A visão, a que o eu percebe e sente, não se dá, então, no cérebro, mas além do diafragma, bem mais longe, do outro lado da vida, o lado imaterial, isto é, no espírito. Durante esse trajeto é que deve dar-se alguma transformação nas vibrações; dessa transformação derivaria o fato, doutro modo inexplicável, de que a imagem readquira a posição normal. A ciência não vai além das células nervosas cerebrais; mas, além dos órgãos de recepção (olho), de transmissão (nervo óptico) e registro (cérebro), o caminho deve continuar até ao objetivo fïnal, a sensação. Só o espírito sente. Através de todos esses transformadores intermediários, a vibração é filtrada, destilada, cada vez mais desmaterializada, porém não pára. Quem a apreende e a faz sua é, no espírito, a consciência. Quando, porém, se chega ao cérebro, o organismo físico termina; de que modo se pode, partindo daí, prosseguir a caminhada até ao espírito? Como e através de que vias pode estabelecer-se comunicação? Chegadas ao diafragma que está suspenso entre dois mundos, dá-se nas vibrações a transformação própria da passagem de um mundo material para um mundo imaterial. Depois que o cérebro é ultrapassado, a telegrafia-com-fio se transforma em telegrafia-sem-fio; a vibração, como acontece na transmissão radiofônica, liberta-se do suporte de seu condutor e, apoiando-se apenas no éter, torna-se livre, radiante. De modo que o cérebro se relaciona com duas formas de vida, a material e a espiritual; a primeira o atinge através de vibrações canalizadas pela rede do sistema nervoso; com a segunda ele se comunica por meio de radiações em liberdade no espaço. O cérebro não é, portanto, apenas a central nervosa em que se coletam, em síntese, as correntes elétricas do organismo físico, mas é também estação transmissora, parecida com estação de rádio ou de televisão. Eis como o cérebro se liga ao termo final de todo o percurso, o espírito. Só agora está completo o caminho que vai do objeto exterior ao eu cognoscente. Aqui estão os vários pontos do trajeto completo: objeto exterior, cristalino, retina, nervo óptico, cérebro, espírito. À proporção que progride, a corrente dinâmica sofre várias transformações até atingir o cérebro para poder continuar progredindo, já agora no reino espiritual, desmaterializa-se, adquire forma radiante, isto é, a forma característica do espírito, pois, para que possamos comunicar-nos com os outros, temos de falar a mesma linguagem. Qualquer um pode facilmente imaginar e fazer o gráfico representativo desse percurso.
Assim, por esse caminho e através dessas transformações, a percepção sensória pode chegar ao espírito. A verdadeira visão não se realiza, portanto, no cérebro mero diafragma intermediário e transformador de energia, mas acima dele, do outro lado do binômio vital. De fato, a síntese óptica final é muito mais do que simples registro cerebral. Enquanto no particular existe a forma receptiva da vida, no outro lado, no da matéria, do organismo físico e dos seus vários órgãos, inclusive o cérebro, o estágio final é processo sintético, unitário, é juízo, confronto, coordenação e reação. O cérebro apenas registra e, desempenhando o papel de secretário ou escrivão, encarrega-se da conservação mnemônica. Só no espírito, a que o cérebro é órgão subordinado, é que se realiza esse trabalho complexíssimo e laborioso, movem-se as forças imateriais, inteligentes e conscientes, que tudo sabem, querem e dirigem. O cérebro está para o espírito assim como o olho está para o cérebro. Só o espírito diz: eu. O cérebro não pode dizê-lo porque não passa de um órgão. Através dos condutores elétricos do organismo, dá-se certamente, a confluência de suas correntes dinâmicas, sua concentração na periferia capilar, em contato com as células, e a mistura dessas correntes todas. Mas a síntese totalitária pertence ao eu e não ao órgão. Há muitos órgãos e funções, mas o eu é único; não é instrumento guiado, mas centro que guia. Apenas ele é consciente; todo o trajeto precedente não passa de inconscientes movimentos automáticos. No espírito, a vibração, que se tornou radiante, atingiu o termo final, depois de, para atingi-lo, haver passado por vários graus de transformação, através de vários órgãos especializados, de capacidades e funções diferentes; e depois, também, de haver percorrido o caminho de que um trecho está num mundo e outro trecho está no outro, embora os órgãos se relacionem estreitamente e as fases sejam contíguas e sucessivas, de modo a formar um caminho desembaraçado e contínuo de um extremo a outro. Com isso, a primeira metade do trajeto foi percorrido e o período de ida está completo e acabado. Nada mais nos resta senão examinar a segunda metade do circuito, isto é, o período de volta, a parte inversa e complementar em que a primeira se completa e cuja existência é indicada e imposta pela universal lei de dualidade. Portanto, observemos agora como a corrente se move em sentido contrário, desse modo completando o ciclo.
Gerador de vibrações não o é somente o mundo exterior, mas também o mundo interior. O mundo imponderável da personalidade é muito mais vasto e rico que o dos fenômenos tangíveis. Não o vemos, muito embora lhe saibamos da existência. Representamo-lo por imagens que no-lo revelam no campo das sensações e nos mantêm unidos em torno do mesmo modo de sentir. Se essas imagens fossem vazias de significado, não subsistiriam; se subsistem, é porque são animadas por uma realidade interior per se stante (sustentar-se por si mesma) , que de algum modo percebemos e com que instintivamente concordamos. Ouvimos dentro de nós a voz do imponderável, exprimimo-la por meio de símbolos; através deles, exprimimos nossa sensação e, assim, entendemo-nos uns aos outros. Esses símbolos continuam vivendo entre nós e evoluem conosco. Conhecemo-los e somos capazes de reconhecê-los. Por detrás deles palpita a realidade que sentimos e eles nos manifestam. Não importa que essa realidade se situe no imponderável. Continua sendo realidade assim mesmo. Os símbolos desempenham, precisamente, a função de materializá-la no campo do sensível, isto é, de torná-la capaz de impressionar-nos os sentidos, através da via normal de percepção sensória de que já falamos. As imagens não constituem, portanto, simples imaginação e forma inútil, mas têm alma e ela é que nos fala; são projeções tiradas do mundo espiritual sobre o nosso, formas materiais que revestem as figuras imateriais. Trata-se de percepções que, por via contrária da normal, e a ela oposta, derivam daquele mundo interior que ninguém pode ver com os olhos da carne, mas é visto perfeitamente pelos do espírito.
Como é que podem, no entanto, a vibração e a sensação descer do mundo espiritual até este mundo material? Que caminhos percorrem para atingirem nossos órgãos sensórios? A posição inversa, que os dois mundos guardam entre si, contém implicitamente e nos mostra, ao lado de um caminho, o que segue direção contrária. Já examinamos a estrada de volta, a fim de constituir a indispensável segunda metade do circuito completo. Também já tivemos ocasião de examinar o percurso que vai do exterior para o interior; consideremos, agora, o percurso contrário, isto é, o que caminha de dentro para fora. Neste caso, o trajeto por nós já considerado em sua posição normal, se inverte, assume posição inversa e passa a percorrer, nesta ordem, os seguintes pontos: espírito, cérebro, nervo óptico, retina. Aí, a fonte da corrente dinâmica não se situa mais no ambiente material externo, mas sim no ambiente espiritual interno; não emana do objeto, mas do sujeito. O processo se inverte totalmente e as transformações não se realizam no sentido da desmaterialização, e sim no da materialização. A corrente que provém do espírito é, em princípio, radiante e o cérebro não é mais aparelho transmissor, mas apenas receptor, exatamente como se fosse um aparelho de rádio, ou de televisão, que capta essa energia radiante para que, em seguida, percorrendo a rede nervosa, possa, através do nervo óptico, atingir a retina. Desse modo, a imagem, passando através de vários órgãos transformadores, pode chegar ao mundo material e assumir-lhe as características. Portanto, os dois mundos, o do espírito e o da matéria, o imponderável e o tangível, se comunicam; ao primeiro chega, como representação imaterial, o equivalente da forma material; ao segundo chega, como representação material, o equivalente da forma imaterial. Assim, através de uma série de trocas, o conteúdo de cada um dos mundos se derrama no outro, no qual, embora transformado, o encontramos sempre.
A estrutura desses dois mundos contíguos e comunicantes não é idêntica. De um lado, temos um meio sensório-analítico; de outro, uma forma sintético-unitária. De um lado, o cérebro se ramifica por todo o corpo, através da rede nervosa, como se o quisesse polvilhar de células nervosas sensitivas para captar todas as vibrações do ambiente; de um lado, temos os canais especializados das vias sensoriais, a captação analítica, particular, definida, concreta, enquadrada nas dimensões do espaço e do tempo, canalizada e dirigida para vias cada vez mais centrais. De outro lado, o espírito sintetiza e unifica no eu todas as sensações; os canais cedem o lugar a livres radiações - sem-fio; a captação torna-se sintética, geral, imaterial, em dimensões super-espaciais e super-temporais, tendo como resultado final, elaborado e destilado ao longo do trajeto, da recepção sensória analítica do plano material. A vibração pode percorrer a estrada nos dois sentidos, com resultados diametralmente opostos. Naturalmente, percorre a via fisiológica comum, que transmite ao espírito os estímulos do ambiente. A outra via é menos conhecida, menos comum, mas existe. Quando a vibração percorre o caminho em sentido inverso, transmite ao ambiente os estímulos do espírito e nasce de movimentos da alma que todos nós conhecemos muito bem pois, embora não possamos vê-los, sentimo-los profundamente. Se, porém, a inversão do circuito sensório é excepcional, todas as nossas manifestações vitais não provêm do interior? E em que consiste nossa vida senão em contínua manifestação de nosso espírito? Ao lado de cada uma de nossas atividades exteriores existe a correspondente atividade interior que a dirige e guia, lhe condiciona de modo absoluto a atividade. Assim, ao lado de cada ação nossa existe a correspondente reação interior; o movimento exterior penetra na parte de dentro, imprimindo-lhe e gravando nela as suas características, assim como o movimento interno passa para o lado de fora, manifestando-se em infinidade de expressões.
Voltemos, porém, ao caso particular do fenômeno óptico e observemo-lhe como funciona em sentido inverso. A vibração originária constitui, desta vez, um estado do espirito, um fenômeno do imponderável. O primeiro trecho do percurso não se faz através de condutores, mas funciona por via radiante. Desse modo é que são atingidas as células cerebrais, nada mais nada menos do que aparelhos rádio-receptores. Aqui as radiações, além de serem captadas, se transformam ao primeiro contato com a realidade concreta, isto é, revestem-se de imagens, assumem o aspecto de representação do mundo material. O abstrato dramatiza-se, o genérico especifica-se, exemplificando-se como um de seus casos particulares, pois, enquanto o período inverso representa processo de espiritualização, este representa processo de materialização. Do cérebro até à retina a vibração se define e concretiza ainda mais, até chegar à sua forma óptica, que corresponde à forma física; assim se chega à formação da verdadeira imagem na retina. O olho realmente registra projeção que não provém do exterior, mas do interior, embora com idênticos resultados visuais. Tendo a corrente percorrido o percurso todo, de um polo a outro, o período, não importa se positivo ou negativo nem em que direção se desenvolve, está completo e o sujeito sente sensação semelhante à normal, de modo que ele acredita estar vendo no espaço, sob forma concreta e vinda do ambiente exterior, aquilo que não passa da projeção materializada de uma forma imaterial, impossível de encontrar naquele ambiente. Tudo isso é levado à conta de alucinação, isto é, algo de irreal, produto de estados patológicos; no entanto, nada se tira à normalidade do fenômeno, à sua qualidade de fato natural e à veracidade da sensação que, em lugar de constituir expressão do mundo exterior, como acontece nos casos mais comuns, é tão-somente expressão do mundo interior. Assim, nas visões a imagem efetivamente se forma na retina (como no caso de Bernadette de Lourdes), do mesmo modo que, em relação às vozes (caso, por exemplo, de Joana D'Arc), a vibração acústica se forma no ouvido, a mesma coisa se diga quanto aos outros sentidos. A única diferença consiste em que não vem de fora a excitação, mas de dentro, o que, aliás, pode-se compreender facilmente porque ambos os mundos estão repletos de energias em plena atividade. Como o mundo interior não é, como o mundo exterior, igual para todos, visto que são muito diferentes as capacidades espirituais e o grau evolutivo, explica-se desse modo por que, nesses casos, a sensação visual, auditiva etc., é absolutamente pessoal e incomunicável, isto é, seja capaz de captá-la apenas o sujeito que se encontre em condições adequadas. Desse fato deriva a desconfiança que ele provoca, e a pecha de patológico que gratuitamente lhe atiram.
Tudo isso pode completar as observações do volume As Noúres, estudo crítico da técnica receptiva com que se escreveu A Grande Síntese. Agora podemos explicar melhor o fenômeno da inspiração. Trata-se da captação de noúres ou correntes de pensamento que emanam de centros espirituais e ficam vibrando no espaço. Ainda neste caso, o fenômeno se dá por via radiante; mas o receptor não é mais o cérebro, mas o espírito do indivíduo que recebe e, exatamente para pôr se em condições de captar essas correntes, deve antes de mais nada colocar-se em estado de vibração harmônica ou sintonização. O mesmo fenômeno pode dar-se entre os espíritos de dois ou mais homens vivos; ao invés de se comunicarem pelo meio mais demorado, projetando o pensamento através do cérebro, nervos, órgãos vocais, da palavra inclusive, preferem transmitir e receber diretamente por via radiante, muito mais rápida (telepatia). Assim, o impulso psíquico pode partir de outros eu, não importa de encarnados ou desencarnados. Nessa primeira fase, o pensamento está em estado radiante puro. Assim determinada, por causas próprias ou alheias, a vibração que se faz sentir num espírito, deste centro e da maneira já explicada, se transmite ela ao cérebro e aos outros órgãos sensitivos. Nem todas as percepções, porém, especialmente as de ordem superior, devem percorrer, para serem sentidas, todo o período de retorno até chegar ao órgão sensório; pelo contrário, podem deter-se nos primeiros estágios da transformação, se se mostrarem suficientes. No caso de tratar-se de conceitos, basta, para serem percebidos, que o cérebro os capte; especialmente quanto aos intelectuais, torna-se desnecessário, em absoluto, que entrem em jogo as vias sensoriais. Assim, na captação noúrica, o pensamento desce do mundo espiritual, onde se encontram tanto a fonte transmissora como o eu receptor, que primeiro funciona como antena e, depois, como transformador, isto é, canal em que se realiza o processo de materialização da ideia, processo diametralmente oposto ao normal, que consiste na espiritualização da percepção sensitiva. O primeiro desses fenômenos encontramo-lo na fé, na arte, na intuição, na inspiração, nas revelações.
O cérebro, portanto, é órgão bipolar e diafragma central que, suspenso entre duas vidas, pode ser percutido pelas duas opostas aparências da realidade. Observemos mais um pouco. De acordo com a capacidade do ser, as correntes podem mover-se numa ou noutra direção. Geralmente, por serem os indivíduos mais desenvolvidos física do que espiritualmente, a vibração vai da matéria ao espírito. Excepcionalmente, porém, as correntes podem movimentar-se ao ponto de provocar em sentido inverso a projeção sensorial, quando o indivíduo é espiritualmente forte e, em compensação, fisicamente fraco. Esse fato, aliás, já foi por nós devidamente frisado. Para inverter a direção da corrente, torna-se necessário que também seja inversa a potência dos dois termos extremos. O gênio, o artista, o santo, na qualidade de seres inspirados, são espiritualmente fortes e nisso superiores à média; pertencem ao tipo evoluído. Na vida vegetativa do involuído, não é possível nem concebível essa reversão de sensibilidade. O indivíduo normal geralmente conhece e vive apenas a primeira metade do fenômeno, pois é limitado, atrófico e, por isso, funciona muito mal no que diz respeito ao espírito. Os tipos desenvolvidos, porém, conseguem perceber em ambas as direções e tomar consciência não só da vida material projetada no espírito, mas também da íntima vida espiritual, percebida como projeção sensorial. Podem, desse modo, viver não apenas uma vida, a vida vegetativa, que é a mais comum, mas duas vidas, a vida normal e concreta da matéria e a vida do espírito, feita de imponderáveis e inversa. Esse é outro mundo, imenso como o mundo físico; no entanto, muita gente não o vê, não o compreende, não lhe admite a existência. E realidade negada por muitos. Por aí se vê que abismo de incompreensão divide os seres diversamente desenvolvidos. Muitas das coisas aqui narradas se referem exatamente a essa vida para tantos inacessível; dos conceitos aqui registrados muitos baixaram, nas asas da inspiração, do mundo íntimo do espírito, isto é, graças a inversão do sentido normal da corrente vibratória. A "Visão", narrada em dois dos capítulos precedentes deste volume, formou-se opticamente na retina, mas de olhos fechados, graças à projeção interior, com a mesma sensação causada pela visão óptica normal. Estas páginas constituem viva aplicação dos princípios já expostos; são estas afirmações nada mais nada menos que resultado experimental.
Cada uma das duas vias, consideradas de per si, representa a metade da dupla vida total. A verdadeira vida completa é binômio bipolar e bifronte. Eis nova aplicação da universal lei de dualidade. E até mesmo neste caso o binômio se equilibra em dois termos inversos e complementares. Observemos mais ainda. Temos espírito e corpo, o imponderável e a matéria, consciência e fenômeno, o eu e o ambiente, a vida interior e a exterior, contemplativa e ativa, a percepção espiritual e a percepção fisiológica, a impressão subjetiva proveniente do mundo interior e a impressão objetiva proveniente do mundo exterior. O primeiro termo eletricamente positivo; o segundo, negativo; o primeiro é em ondas curtas; o segundo, em ondas longas; um é de alta; o outro, de baixa frequência; e, na passagem de um a outro extremo e ao contrário, deve dar-se mudança de sinal, de comprimento de onda e de frequência (muito mais notável que a simples normalização das imagens ópticas). Entramos ao nascer, no segundo tipo de vida e dele saímos ao morrer; ao morrer, entramos no primeiro e dele saímos ao nascer. A própria lógica da arquitetura do universo impõe esses equilíbrios todos. A verdadeira vida, completa e íntegra, oscila continuamente de um a outro de seus polos. Só assim, percorrendo alternativamente uma e outra metade, o ser incompleto pode viver a vida integral. O tipo comum está na terra do lado que parece vida, mas é morte, se visto do lado oposto. Para os do além, ele parece indivíduo entorpecido, à mercê da ilusão dos sentidos. O evoluído não sabe viver apenas a vida dos vivos, mas vive também a vida dos mortos. De um lado é dia; do outro, noite; de um lado, luz; do outro, trevas. Tudo conforme, é claro, com a posição em que nos encontramos. Na terra, para os vivos a via direta e normal da percepção é a fisiológica; a inversa e excepcional é a via espiritual. Para os mortos ou, melhor, para os vivos de além-túmulo, a via direta e normal da percepção é a espiritual; a via inversa e excepcional é a via fisiológica. Entre as duas formas de sensibilidade existe a mesma relação que entre vigília e sono; a primeira caracteriza-se por percepção límpida e exata; a segunda oferece-nos percepção vaga, sonambúlica. Quando o estado ativo se manifesta num lado da vida, as qualidades do lado oposto permanecem latentes, em estado de espera e em repouso. Assim, funcionando cada uma por sua vez desenvolvem-se graças a essa atividade alternada, enquanto a outra parte, a antítese do binômio, permanece por sua vez à espera. Essa oscilação entre atividade e repouso, entre ausência e presença, entre vida e morte, constituí o ritmo do fenômeno vida, em relação a cujos ritmos se fazem as harmonias universais. O fenômeno vida não pode constituir exceção dessa lei de simetria, de justiça compensadora. Em nosso universo, tal como está construído, não passa de absurda qualquer posição de desequilíbrio, não compensada pelo correspondente impulso contrário. Uma única exceção faria desabar todo o edifício.
A percepção inversa, espiritual, pode dar-nos ideia do tipo de sensações dominantes do além- túmulo. Além disso, se aparecem também neste mundo e, portanto, existem como fato objetivo e experimental (clarividência, inspiração, visões, profecia), é-nos lícito perguntar para que servem, tendo em vista as finalidades biológicas, as qualidades super-normais. E não nos esqueçamos de que, na natureza, todas as coisas existentes, pelo simples fato de existirem devem ter objetivo determinado. Trata-se de qualidades que esperam sua vez de entrar em atividade; estão adormecidas agora, mas viverão na outra vida, que chamamos morte. Por isso, enquanto a sensação terrena resulta da vibração específica de uma série de células enfileiradas à maneira de canais condutores, no além-túmulo a sensação é causada por um estado vibratório sutil (de ondas curtas e alta frequência), que, todavia, abrange todo ser imaterial. Teremos sensações de grande extensão e alcance, se comparadas com as sensações limitadas, mas precisas, da vida terrena; no entanto, para nós que estamos chumbados às vias limitadas dos sentidos, pareceriam evanescentes, imateriais, indefinidas, flutuantes e sonambúlicas. A sensibilidade do desencarnado é difusa, não possui órgãos específicos aptos a captar vibrações particulares e definidas; sensibilidade, para nós estranha e fantástica, como que adormecida, em transe, sensibilidade de conjunto e não de minúcias como a nossa, mais sintética que analítica. Assistimos neste caso a uma espécie de vaporização da sensibilidade (entendida de acordo com o sentido terreno), que em compensação aumenta de intensidade relativamente às qualidades opostas àquelas qualidades materiais em que se lhe torna maior a debilidade, isto é, como generalização e abstração. Assim, a verdadeira solução dos problemas reside mais na intuição do que na razão, a centelha reveladora brilha no espírito intuitivo e não no cérebro raciocinante, que não cria, mas apenas explica e aplica. Da parte do corpo temos o espaço e o tempo, quer dizer o limite. Da parte do espírito, o infinito e a eternidade. A extinção dos limites importa na ubiquidade e na presciência do futuro. O eu espiritual vê longe, vê o conjunto, é bem orientado, sábio, olimpicamente calmo. O eu vegetativo está encerrado no espaço e no tempo, isto é, na prisão do limite, está sujeito a fatigante corrida para superá-lo, anseia pela evasão, é analítico e desorientado, vive e percebe apenas as particularidades, entre coisas insignificantes e transitórias. O mundo de além-túmulo é o dos valores morais; o mundo de aquém-túmulo é o dos valores materiais, da luta, do trabalho, da riqueza. O senso moral emana do espírito. Tudo isso naturalmente presume adequado desenvolvimento até mesmo em relação ao lado, espiritual, da vida; sem ele não podemos alimentar a esperança de encontrar as qualidades que lhe são inerentes. Do lado de lá, atividade especulativa e abstrata; deste atividade utilitária e concreta. Duas formas de vida, duas linguagens completamente diferentes: contemplação e ação. Todo mundo tem virtudes e qualidades próprias e uma escala de valores exclusiva. No topo da escala de valores terrestres coloca-se o interesse egoísta; no da escala de valores espirituais estão a bondade e a justiça. O Evangelho, o reino dos céus pertencem ao mundo do lado de lá; são luzes que dele promanam, revelando-no-lo. Cada um de nós imagina o paraíso a seu modo e luta para conquistá-lo, ou do lado de cá ou do lado de lá. Quem hoje goza na terra amanhã sofrerá na outra vida; quem hoje sofre no mundo, amanhã gozará no céu. O Sermão da Montanha, quando diz "Bem-aventurados os que sofrem; amanhã gozarão", exprime a lei de dualismo e equilíbrio e mostra uma das aplicações de sua lógica e justiça supremas. Quem executa bem suas tarefas neste mundo, executa mal suas tarefas do lado de lá e ao contrário. Os valores se invertem. Assim a sublime loucura da nobreza se explica como condição necessária de grande riqueza espiritual.
A qualidade do espírito é a sensibilidade e todo espiritual é um sensitivo. O evoluído é o tipo biológico que conhece essa outra vida também e os seus valores. Tudo isso o involuído ignora. Aquele tipo biológico é o canal por onde estes valores descem na terra e fator da fecundação espiritual da matéria. A tarefa do artista consiste em plasmar a forma que nos revele o imponderável, representando- o a nossos olhos; deve, pois, inspirar-se em valores eternos; se, no entanto, vai buscar inspiração a coisas rasteiras, representando os valores terrenos, o artista trai e deixa de cumprir a própria missão. Dos equilíbrios da vida participam também as atividades supranormais, que outra coisa não representam senão legítima função biológica. Por aí se vê que a sociedade humana precisa também do artista, do inspirado, do gênio, do santo; embora quase sempre incompreendidos e maltratados são indispensáveis, cabe-lhes a tarefa de, enfrentando sozinho todo risco e canseira, mergulhar nos abismos do mistério, apoderar-se-lhe dos valores e trazê-los até ao plano humano, a fim de dinamizá-lo, orientá-lo, dirigi-lo. A matéria não é auto-suficiente, sabe viver e progredir apenas se animada pela divina centelha do espírito. Aqueles seres, ainda raros, representam na sociedade as células especializadas na função evolutiva. O involuído mostra-se incapaz de progredir sozinho e fortalecer-se; por isso, necessita dessas antenas reveladoras e desses canais dinâmicos. Os sábios equilíbrios da Lei suprem-lhe essa incapacidade, fornecendo-lhe esses apoios. Ele, então, crê. Quem se revela incapaz de por si mesmo ver é constrangido a acreditar piamente em quem vê por ele. Quem não sabe, à custa dos próprios meios, subir o áspero caminho espiritual se vê obrigado a apoiar-se em quem o sabe e a depositar confiança em quem, tendo visto, dá testemunho de tudo quanto viu. Por isso, quem sabe assume o compromisso de testemunhar a verdade; se cala, trai sua função biológica de célula evolutiva, mesmo que proclamar a verdade possa às vezes levar ao martírio. Na divisão do trabalho da vida parte que lhe toca é essa. Se não puder oferecer a todos a prova direta do que, por transcender as capacidades e experiência comuns, se mostra inconcebível, sua vida de evoluído, orientada de modo bem diverso, deve ser tão sublime que constitua prova bastante. Desce, desse modo, até nós a evanescente realidade do espírito, que, embora lhe constitua a própria alma, nossa vida concreta sempre nega; a estranha e longínqua realidade que gostaríamos de esquecer e, no entanto, estamos continuamente seguindo, invocando-a nas preces, representando-a nos ritos, materializando-a nas criações artísticas. A humanidade concorda de tal modo com a existência do invisível que, com fundamento nesse acordo, se tornou. possível o aparecimento das religiões. Se estas existem, possuem tanta importância histórica e social e exercem poderosa influência na vida dos povos, daí se conclui que elas satisfazem uma necessidade, um instinto e, por isso, desempenham uma função. De fato, na natureza todo apelo que exige resposta possui significado bem determinado. Normalmente, somos incapazes de, sozinhos, chegar até ao espírito; não o vemos, embora nos chame e nos atraia; foge-nos e, no entanto, está entre nós; comove-nos e nutre-nos; a realidade quotidiana, colocada bem no outro extremo da vida, nega-o, embora lhe presuma a existência. Assim, através dessa via sensorial inversa por nós examinada, o espírito desce até nós e se comunica conosco. Eis o que acontece quando o crucifixo de S. Damiano fala a S. Francisco, Joana D'Arc ouve as vozes de Donremy, Teresa Neumann vê a paixão de Cristo, a beata Angela de Foligno escreve movida por inspiração, S. João vê na Ilha de Patmos o drama do Apocalipse. Tanto na visão como na audição super-normais a percepção vem do mundo interior e não do mundo externo. Isso levou muita gente a acreditar se tratasse de tipos de alucinações, patológicas apenas porque anormais, de projeções subjetivas e, só por isso, irreais. No entanto, a subjetividade constitui-lhe exatamente a característica lógica e natural. A sensação se origina de vibração que não provém do mundo exterior, mas do mundo interno, não deriva de fonte objetiva dotada de existência própria, independentemente do sujeito, per se stante, em si mesma igual para todos, embora ainda neste caso o modo de percebê-la não seja o mesmo para todos. Assim se explica e justifica a subjetividade da percepção, isto é, por que a luz e o som apenas possam ser percebidos pelo sujeito. Os homens normais não percebem coisíssima alguma. Embora presentes, não veem nem ouvem. Para que tivessem idêntica sensação, igual capacidade de ver e ouvir, deveriam encontrar-se nas mesmas condições, particulares e excepcionais, do sujeito. Como isso se torna muito difícil, não lhes resta senão tentar reconstruir, deduzindo-a do estado do sujeito, essa fugacíssima realidade íntima. Quando a ciência estuda esses fenômenos, o germe da incompreensão já se encontra nas suas premissas, isto é, na dúvida, no seu método de investigação, quer dizer, na experimentação objetiva, e na sua atitude sensória, cerebral e racional. Mas, no êxtase como na prece, não nos armamos de instrumentos de análise, de aparelhos de laboratório, para aumentar nossa capacidade de observação, mas abandonamo-nos inteiramente à visão introspectiva, fechamos os olhos e concentramo-nos, olhamos para dentro de nós mesmos, do lado do espírito, isto é, exatamente na direção contrária à seguida pela ciência. O antagonismo entre ciência e fé (embora não se apoie em razão substancial, visto como constituem ambos apenas os dois extremos opostos da verdade e dois aspectos da realidade) nasceu precisamente do fato de que a fé diz respeito ao mundo interior, ao espírito, e a ciência se refere ao mundo externo, à matéria. Todas essas afirmações nossas parecem fantasia aos olhos da ciência justamente porque não resultam da observação, e sim da introspecção, exames orientados para direções diametralmente opostas. A realidade do positivismo científico constitui uma das metades da realidade completa. A outra é a dos artistas, poetas, santos, pensadores, místicos, inspirados, é a de todos os homens do espírito.
A humanidade compreende exatamente duas raças bem distintas: a dos evoluídos e a dos involuídos. Insistamos mais um pouco nesse conceito, que aliás já desenvolvemos neste livro. Não vá o leitor surpreender-se com o que pode parecer-lhe repetição. Nestes casos o pensamento retorna, mas diversamente orientado, enriquecido de novas considerações, associado a novas ideias, visto sob perspectivas mais amplas. Muitas vezes a repetição é apenas aparente e a volta ao mesmo conceito se deve ao fato de que todos os fenômenos obedecem ao mesmo princípio. Especialmente nestes últimos capítulos, o pensamento gravita em torno do mesmo centro (a Lei e seus equilíbrios) e os problemas, inclusive os sociais e morais, são indistintamente propostos e resolvidos como cálculo de forças. Além disso, a repetição muitas vezes é útil, porque um prego não se prega com uma martelada só. Nem sempre é fácil fazer um conceito penetrar no cérebro humano duro como pau.
Enorme abismo separa as referidas raças. Os dois tipos se distinguem por dois modos diferentes de conceber a vida, por dois diferentes métodos de luta, por diferente método de comportamento. Tudo isso no-los revela claramente. Cada qual escolhe o que mais se adapte a sua natureza e basta essa escolha para mostrar quem ele é. O involuído prefere a força, o evoluído a justiça, duas armas diferentes adaptadas exatamente às mãos que devem empunhá-las. Mas o primeiro ignora os complexos jogos do dinamismo da vida, é desarmônico em face da Lei, por isso fica isolado, não pode apoiar-se senão na própria força. O segundo tem consciência dos inúmeros recursos e da energia que escapam à percepção do primeiro; seu potencial nervoso é mais elevado e, por isso, mais poderoso e penetrante, mais apto a vencer as resistências; dessa superioridade nem faz ideia quem se acredita composto apenas de corpo e não, também e principalmente, de espírito. Mas, ao lado dessas suas capacidades intrínsecas, existe o fato de o evoluído se harmonizar com a Lei, e não está sozinho, apoiado em suas pobres forças, mas tem, atrás de si, a Lei a sustentá-lo; não sendo rebelde, que nada contra a corrente da vida, mas abandonando-se-lhe inteiramente, tem à sua disposição as forças da vida, as quais o ajudam e o impulsionam. Temos, assim, de um lado a astúcia, oblíqua, complicada, torva, enovelada e, por isso, de movimentos embaraçados; do outro, a inocência retilínea, simples, cristalina e, portanto, ágil e rápida. A astúcia e a inocência digladiam-se. De acordo com a lógica dos homens, o evoluído deveria perder. Não obstante, muitas vezes vence; na realidade dos fatos, verificamos que vence. Vemos que, na prática, a força e a astúcia, métodos do involuído, não oferecem garantia segura de vitória. Procuramos, neste livro, compreender-lhe a razão. Há nas armas do evoluído algo que não admitimos; exatamente por ser muito sutil, nos escapa à primeira vista; precisamente esse imponderável as torna mais poderosas; existe nelas previsão, logicidade, organicidade e sabedoria íntima que não incidem nos erros grosseiros da força bruta e, também, equilíbrio espontâneo que não se perde nos artifícios, nem se enreda nas malhas da astúcia. Na espada imaterial do arcanjo lampeja, todavia, desconhecido poder que lhe permite vencer a revolta bestial de Lúcifer. Em presença do homem do dever, do homem evangélico da paciência e do perdão, o homem da força ri-se sem dúvida e considera-o débil e maluco. Mas, envaidecido de sua força, iludido com sua astúcia, não compreende a estratégia do outro, estratégia muito mais completa e profunda. A força do evoluído reside na compreensão. A ameaça que pesa sobre o involuído consiste na sua incompreensão.
No capítulo “Tempestade”, descrevendo a dolorosa fuga de um homem, dissemos que na hora do abandono, quando a riqueza e o poder falharam, o homem não estava sozinho, como pensava, mas a seu lado estavam seu passado e suas obras, pois nossas obras nos acompanham. Estas, uma vez acabadas, representam impulso fatal que testemunha, fala e age por nós. Somos nós mesmos que, depois de havermos estado na posição de causa, reaparecemos agora na de efeito. Suas fases de desenvolvimento no tempo entrosam-se perfeitamente, pois representam o desenvolvimento de uma força e de um movimento. Dentro da fatalidade dessa Lei é- nos concedida a liberdade de escolher, retificar e até mesmo de corrigir a trajetória. Mas, uma vez estabilizada, arrasta-nos. O involuído não o compreendeu ainda e acredita-se senhor de ilimitado arbítrio e da capacidade de, a seu talante, fazer e desfazer os acontecimentos de sua vida. Míope, vive apenas do efêmero presente. A estratégia do evoluído adere mais à realidade das coisas, muito mais profunda, equilibra-se com as forças da vida e, no passado e no futuro, abrange muito mais vastos períodos de tempo. Dessa estratégia mais ampla participa a consciência pura, fator sem dúvida estranho à luta (se a tomarmos na acepção vulgar), luta em que a honestidade não serve de ajuda, mas de estorvo. O mundo de hoje confunde arbítrio com liberdade e, quando clama pela liberdade, intimamente deseja o arbítrio, o abuso, a licença; nem compreende como, exista ou não autoridade humana, estamos, isso sim, permanentemente enquadrados nas invisíveis leis da vida; nem como a autoridade, o poder e a hierarquia dessas leis jamais diminuem. O mundo de hoje, infelizmente involuído ainda, não compreende como essa desordenada agitação chamada liberdade não atinja o objetivo previsto por quem a ela se entrega, isto é, libertar-se de encargos e sanções; não compreende como, através dessas sanções, a Lei cada vez mais fortemente o repele, fazendo-o mais tarde sofrer tanto mais amargamente quão mais loucamente tentou rebelar-se. A história é essa. Quem compreendeu as leis da vida, sabe que a retidão constitui elemento fundamental do sucesso verdadeiro e duradouro e que a desordem e o arbítrio podem conquistar-nos apenas escravidão e dor porque, dada a estrutura de nosso universo, só esta liberdade se torna possível: a liberdade segundo a Lei. A liberdade em desacordo com a Lei é impossível.
Observemos-lhe o mecanismo. As forças, que no passado foram postas em movimento por nossas ações, uma vez em jogo representam vontade autônoma, impulso que por inércia tende, automaticamente, a continuar movendo-se e a levar-nos para a frente, segundo a direção inicial. Se, a princípio, movimentamos nossas obras, agora elas é que nos movimentam, arrastam-nos para onde ontem queríamos e não para onde queremos hoje. O passado não morre, mas revive sempre no presente. As nossas obras nos acompanham por toda parte. Em face dessa estrutura orgânica da vida (relação de causa e efeito a longo prazo), por força da qual o presente se preparou no passado e o futuro se prepara no presente, a filosofia do “carpe diem” é manifestação de inconsciência. A liberdade, que imaginamos sempre virgem e completa, é apenas na fase inicial de nossas ações. Não pode ela permanecer indefinidamente no terreno neutro da escolha, mas fixa-se, condensa-se no determinismo representativo do encadeamento, por continuação, ao impulso que, uma vez dado, constitui um impulso em nosso destino; esse impulso liga a liberdade às consequências do impulso cuja continuação já se torna impossível impedir, salvo novo impulso corretivo contrário. Assim, as obras que fizemos espontaneamente tornam-se vivas e, como se fossem animadas de vontade própria, são ativas e, na qualidade de criaturas nossas, agem por nós. Nossa personalidade é fenômeno contínuo, em que os momentos sucessivos de seu futuro se ligam estreitamente e cujas forças, por nós suscitadas, se determinam e se põem em ação e, em seguida, não podem ser anuladas enquanto não se desenvolverem e esgotarem completamente. Essas forças formam nossa força, tanto em qualidade como em quantidade; desse modo, o passado e o presente participam de nós. Representam essas forças a definição de nós mesmos, a coisa consumada, difícil de mudar, e vivem em nosso destino sob a forma de fato, fato de modo algum absoluto, mas, ao contrário, sempre susceptível de retoques e modificações, no incessante movimento da vida. Mas, vamos vivendo; e o novo fato que cada dia nos acontece, se não o vinculamos já, é livre e, vivendo, ligamo-lo por meio de nossas ações. Assim vivemos, vinculando nossa liberdade a isto ou àquilo, enquanto o impulso não se esgota e a trajetória não desaparece. Mas, desenovelando-se, o fio da vida sempre traz consigo nova liberdade virgem, que sucessivamente andamos vinculando e cristalizando no determinismo, enquanto não a abandonamos no passado, cristalizada, depois de haver completado o ciclo experimental. A liberdade é interior, está no íntimo da personalidade, no reino das motivações e daí a sua atividade se dirige para a periferia e se expande no mundo exterior da manifestação, que constitui o reino do determinismo. Assim, vincular-se ao determinismo, ou extinguir-se nele, corresponde às características dos dois mundos, interior e exterior, que as forças motoras de nossos atos percorrem, nascendo no primeiro, bem no íntimo da personalidade, e exaurindo-se no segundo, na periferia, no mundo exterior.
Logo, com a constante germinação de novas ações, a liberdade aguarda-nos, intacta e permanentemente nova, e na fase de sua maturação um fardo de fatalidade sempre nos acompanha. Envolve-nos como a atmosfera, formando uma espécie de casca dinâmica que nos aprisiona a personalidade. É a nêmese da vida. Pode aniquilar-nos ou exaltar-nos, exatamente como ontem queríamos que acontecesse hoje. Assim como os filhos refletem as qualidades dos pais, essas criaturas testemunham o passado, querem viver, mostrar-se e agir tais quais são; e não podemos destruí-las nem fazê-las calar. Gritam e querem como as queremos. Podem afirmar: este é inocente ou, então: este é culpado. Podem bendizer e maldizer, premiar ou exigir punição. Se foram acionadas pelo bem, tenderão a salvar-nos; se foram acionadas pelo mal, não se deterão enquanto não houverem conseguido nossa desgraça. Isso acontece porque representam causa que exige o correspondente efeito, impulso desejoso de esgotar-se na direção em que o lançaram. Seja qual for a sua natureza, boa ou má, tenderão sempre a seguir seu caminho até o fim e sossegarão apenas quando houverem consumido todo o impulso recebido. Na realidade, o bem e o mal existem personificados nessas forças. As do mal nos perseguirão como fúrias enfurecidas, gritando aos quatro ventos as nossas culpas e pedindo vingança se atirarão contra nós, mordendo e dilacerando. A tragédia humana está repleta de exemplos disso. Como poderemos defender-nos de inimigo que está dentro de nós mesmos? Impossível fugir-lhe, impossível fazê-lo calar-se. Não há barreira de força ou de astúcia capaz de detê-lo. Eis que o armadíssimo involuído agora está desarmado, o lutador não sabe mais lutar, o forte está intimamente minado e gasto; eis que, através das vias sutis do imponderável, o involuído é vencido pelo fato. Amedrontado pelo impalpável inimigo que ele não consegue entender, sofre e, examinando-se, procura entender. Essas forças são inexoráveis, são o destino, representam a Lei de Deus, a inviolável justiça que tentamos violar e fatalmente põe as coisas de novo em seu lugar. Os recursos humanos clamam contra esses poderes silenciosos do fato, que aniquilam toda defesa, transpõem qualquer porta, seja do rico, seja do pobre, ou do poderoso ou do humilde. Apenas uma coisa detêm esses poderes, uma coisa inofensiva como o dedo de uma criança, leve como a asa de um anjo, imponderável e suave como uma prece: a inocência. Ser inocente! Essa coisa tão pequena se ergue diante do esmagador poder da força e o detém, porque isto é o que a Lei quer: que o honesto encontre defesa e a justiça triunfe.
Se, ao contrário, em nosso passado não pomos o mal, mas o bem, as criaturas por nós geradas serão de natureza totalmente diversa. Com o passar do tempo, elas também crescerão, tornar-se-ão maduras para produzirem seu efeito no mundo exterior das manifestações causais e, em lugar de cercar nossa vida de inimigos que vomitam dor sobre nós, estarão a nosso lado, cariciando-nos, protegendo-nos, encorajando-nos, como nossos bons amigos. O involuído ignora que o presente não se improvisa nem se constrói à custa apenas do presente, mas se compõe em grande parte do passado, e a vida, no seio de organismo complexo e perfeito como o universo, não é louca aventura, mas desenvolvimento lógico e orgânico. Nada se tira do nada, mas todas as coisas vão e voltam nas ondas do tempo, se ligam aos grandes ritmos da Lei, se entrosam em suas causas de que, aliás, não podemos prescindir; e não podem progredir senão por graus e por fases: germe, desenvolvimento, manifestação, exaustão. No universo tudo se entrosa e isso por força da lei de causalidade, que a tudo liga no decorrer do tempo. Nada vem à luz do sol senão através de filiação, isto é, através dessa derivação causal, por força da qual tudo revive sempre, indestrutível nas consequências em que necessariamente se continua. Como no filho se desenvolve o pai, na árvore a semente e na ação o motivo, assim também, por entrosamento individual, toda causa continua no seu efeito. Em seu movimento evolutivo através do tempo, todo fenômeno oscila entre estes dois extremos de um dualismo que não se isola numa forma impenetrável (princípio-fim), mas se articula continuamente, no termo final, com novo termo inicial e assim se prolonga até o infinito.
Portanto, se por lei de causalidade tudo é filho do passado, a vida se nos mostra então como jogo amplo e complexo de prolongada preparação, a vitória é determinada por dinamismos acumulados que afloram de um depósito interior, repleto ou vazio, rico de provisões boas ou más, úteis ou venenosas, o misterioso depósito da alma que passa despercebido ao indivíduo. As posições terrenas são aparentes e enganam. Assim, o pigmeu pode, quanto à substância, ser um gigante e o gigante ser um pigmeu. Eis a força invisível de tantos inermes, a grandeza recôndita de tantos humildes. A posição humana exterior é fictícia. A casa interior pode ser habitada por amigos ou inimigos, pelo bem ou pelo mal, por anjos ou demônios. Eis a arma e a moral do evoluído: as boas obras, o cumprimento do dever. Isso o isentará das sanções e o inocentará das culpas. Nosso passado já está feito. Ele traçou a trajetória de nossa vida. Do mesmo modo que longa evolução biológica construiu nosso atual tipo biológico que, tal como é, resiste a toda deformação rápida e a toda mudança, assim também, depois de longa caminhada, se formou e definiu nossa constituição moral, reservatório de instintos alojados no subconsciente e radicados em passado remoto. A forma não é definitiva, mas definida, pois o transformismo continua e processa-se e nada pode jamais considerar-se imutável. Permanece sempre aberta a porta da expiação e da correção, porque a liberdade, embora presa às consequências do passado, se mantém inviolada e inviolável, sempre capaz de dar novos impulsos ao destino e, através de novos esforços, corrigir-lhes, a seu bel-prazer, a trajetória. O futuro é sempre livre, se lhe tiramos o peso do passado que nos inibe.
A característica principal desse mecanismo de forças consiste na possibilidade de isolarmos nosso destino do destino alheio. Ao lado de cada um de nós falam e agem nossas próprias obras e não as obras alheias. Cada qual pode semear no seu terreno o que quiser; e ninguém pode semear por nós. A semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória. Portanto, livres, mas responsáveis. Absoluta independência quanto a semear o bem ou o mal; absoluta obrigatoriedade de colher o fruto da semente que se lançou ao solo. Por isso, o sábio procura, em causas profundas e remotas, as raízes de sua situação atual e prepara, com grande antecedência, o seu futuro. Não tem importância que os outros ignorem essas leis. Quem erra paga na mesma moeda e pagando aprende. Mas a maravilhosa justiça da lei divina consiste em cada um de nós permanecer livre, seja qual for o ambiente em que viva, com o direito de perder-se ou salvar-se. A beleza de tudo isso consiste no fato de que essa liberdade permanece sempre garantida e o indivíduo independente, senhor absoluto, sempre, do próprio destino para construí-lo a seu modo, em qualquer tempo e lugar. Assim, num mundo em que o ignorante involuído através de seus sistemas, impera e triunfa, ninguém pode impedir ao evoluído, que não é ignorante, de escolher seu caminho, segui-lo, e colher frutos copiosos. Conforme a ação praticada, a Lei dá a cada um a resposta adequada e funciona ao mesmo tempo, mas de modo diferente, em planos e formas diversos. Desse modo, a liberdade fundamental do indivíduo é tão respeitada, sem lesar o princípio de responsabilidade, que ele pode sempre separar seu destino do alheio, conservar completa autonomia de trajetória em meio do mais complexo entrelaçamento de forças, atingir os objetivos desejados e gozar da liberdade de perder-se em meio à salvação geral ou de salvar-se em meio da perdição universal. O resultado é garantido, quer o do bem, quer o do mal. O justo pode, portanto, avançar com seu binário, mesmo se for colocado num mundo de demônios. Perante Deus o que vale é o seu passado, suas obras, seu merecimento. A Lei responde no mesmo tom em que a chamarmos e é rica ao ponto de possuir qualquer tom. Ao justo se torna, assim, possível apelar não mais para a força ou a astúcia, sistemas de luta por ele superados, mas para a justiça divina e dela receber a resposta adequada, isolada em meio a vasto oceano de respostas diferentes; é-lhe possível receber tratamento de bondade e de salvação em meio de cataclisma universal. Assim, o evoluído pode caminhar de acordo com destino todo seu, independente do de seus semelhantes, independente até mesmo da sua própria humanidade. Enquanto os demais, considerados os seus métodos de luta, se destroem mutuamente, arrastados pelo turbilhão da força, pelo ódio recíproco ligados à própria destruição, o evoluído; isento das culpas do mundo, poderá seguir um destino todo seu, de alegria e de paz. As forças do imponderável terão formado em torno dele uma camada protetora, uma defesa salvadora, que o tornará invulnerável, porque inocente, em meio dos mais graves perigos que arrastam os outros.
Deixemos aos juristas o estudo das vias da justiça humana. Preferimos aqui nos ocupar do estudo da justiça divina, onde reside a gênese das adversidades que nos golpeiam. Que importa o instrumento que no-las inflige, se ele mesmo muitas vezes lhes ignora as causas? O importante é possuir a chave do mistério e resolver o problema de saber evitar o dano. O sistema da justiça divina é sumamente respeitador da liberdade individual, menos quanto a ser inflexível no campo das responsabilidades. Mas a liberdade inicial é inviolável. De acordo com a Lei, a base do fenômeno social é o individualismo, o fenômeno coletivo representa, pelo contrário, um agregado, um organismo de individualismos que, embora se combinem tendo em vista destino global mais vasto, permanecem separados e inconfundíveis. A necessidade de o indivíduo assumir determinada atitude em relação à sociedade não lhe tolhe, de fato, a autonomia mais completa. Por essa razão, cada um de nós pode revelar-se e afirma-se de acordo com a sua própria natureza. O rebanho tem plena liberdade de andar cegamente à deriva, à mercê dos seus elementares impulsos animais; o sábio pode, se quiser, estabelecer-se no deserto e aí realizar sua vida independente. Trata-se de independência interior e nela as construções humanas exteriores exercem influência relativa. Desse modo, entre indivíduo e massa podem abrir-se hiatos abissais que não se preenchem; e a evolução pode impelir o solitário hiper-evoluído e vidente para fora da órbita dos destinos normais ao ponto de fazê-lo transpor as fronteiras da raça humana e entrar no domínio de humanidades evolutivamente superiores à nossa. Esse tipo de ascensão é biologicamente possível. Que faz agora esse indivíduo? Já perfez o ciclo das provas terrestres que os demais estão apenas iniciando, já conquistou a sabedoria pela qual os outros ainda vivem, lutam, sofrem. A Terra, naturalmente, não é mais o seu reino. Acabado o seu trabalho de expiação ou missão e cumpridos todos os seus deveres para com os seus irmãos menores, nada mais lhe resta senão partir. A Terra não o interessa mais; aos outros, porém, interessa. Na Terra ele se sente estrangeiro, e o é mesmo, e como tal é tratado. A vida humana, para ele agora inaceitável, expulsa-o de seu seio.
Já noutros trabalhos insistimos e jamais cansaremos de insistir nos deveres do irmão mais velho para com os irmãos mais novos; a toda superioridade são inerentes pesadas obrigações, fadigas que não assoberbam os inferiores, deveres que se cifram em obras, renúncia e exemplo. Tarefas pesadas pesam na vida do evoluído; ele o sabe e afronta o sacrifício. E, por força da lei de fraternidade, o involuído é admitido a usufruí-lo gratuitamente, é admitido a desfrutar de graça o sacrifício do mártir, que ele próprio muitas vezes foi o primeiro a agredir e a sacrificar. Isso não deixa de ser justo. Essa lei de fraternidade participa da estrutura do universo, como consequência de sua organicidade e hierarquia e da unidade do todo. É, pois, fundamental e inextinguível. Mas a própria lei de justiça limita essa doação fraterna que ameaça transformar-se na destruição das mais importantes conquistas da vida, representadas pelo tipo biológico do evoluído. A natureza protege os seus valores e estes, mais do que todos, devem ser protegidos por serem os mais custosos e preciosos. As vias do evoluído são diferentes das vias da maioria: a trajetória de seu destino projeta-se francamente para fora da órbita das experiências terrestres normais, as distâncias se acentuam, as formas mentais não se compreendem mais. O evoluído torna-se um bólido que, lançado no espaço, emigra do plano humano. O evoluído iniciou espontaneamente essa ascensão, que agora o envolve e arrasta. A estrutura desse jogo de forças leva-o agora ao ponto crítico: a célula já madura destaca-se da massa imatura da humanidade. Considerados a constituição e o funcionamento desse dinamismo, em dado momento ninguém pode impedir a inexorável, a fatal separação dos destinos e dos trabalhos. Então, tendo cumprido a tarefa, o evoluído vira as costas para o mundo e vai embora, abandonando-o às suas próprias forças, para que ele, à custa do próprio esforço, como é justo, e não do alheio, continue o caminho da própria evolução. O individualismo, que constitui o substrato da organização social e a dirige, recobra a supremacia. A justiça divina exige e impõe a reafirmação dos direitos do solitário incompreendido e espezinhado. Então, o material biológico elaborado e complexo se destaca do material primitivo e rústico. Tendo-se tornado diferente, nos instintos e na raça, deseja ardentemente reencontrar indivíduos de seu tipo, raríssimos na Terra, suspirando por mais elevadas e adequadas formas de vida. Deixa de lado todas as questões do mundo, porque não o interessam mais. Não se incomoda com os problemas das pessoas que o habitam, não mais lhe dizem respeito. Os problemas torturantes, pelos quais a humanidade tanto sofre e luta, os sistemas sociais, econômicos e políticos, não atingem o seu frágil invólucro corpóreo, prestes a ser abandonado. Então, se ainda quisermos seguir o indivíduo selecionado nessas ascensões biológicas, absolutamente excepcionais, extra-série e extra-massa, deveremos virar as costas para o mundo e aventurar-nos em terreno que o leitor comum achará irreal e desinteressante, em terreno que penetra no imponderável e no inconcebível. Chega-se desse modo, fora da órbita humana, a uma atmosfera rarefeita, de natureza diferente, em que se tornam atuais as atitudes remotas. Tudo quanto nos preocupou até agora permanece lá embaixo, nos pântanos da terra. À força de lutar, sofrer e ascender, o evoluído penetrou em nova forma de vida, que aos olhos dos demais surge como remoto e inatingível sonho. Para que pudéssemos continuar, depois de esgotado o exame dos problemas terrestres, precisaríamos de levar o leitor muito além do que lhe é possível conceber em relação aos problemas do céu.
O evoluído está sozinho. Gênio, herói ou santo, o super-homem, por mais humilde e humilhado que seja, tem consciência de sua verdadeira natureza de indivíduo maturo e do natural desequilíbrio que o leva a destacar-se na Terra. Os inferiores ignaros gostariam de reabaixar-lhe o nível até eles, por força dos mal compreendidos princípios de igualdade. Poder-se-á humilhá-lo; mas fazê-lo retroceder, jamais. As classificações e os enquadramentos humanos não criam valores intrínsecos e, por isso, não podem mudá-los. Nem a vida, nem a ascensão podem ser detidas. Poder-se-á rechaçá-lo e, até mesmo, matá-lo; porém, não se poderá destruí-lo. Nenhuma força pode mudar-lhe a natureza, nem impedi-lo de continuar sendo o melhor. Em determinado ponto as amarras do mundo, dolorosas amarras, rompem-se. Ele não tem mais o que dizer, dar ou fazer. O céu espera-o. Há muito tempo ele, embora devesse servir e sofrer preso ao mundo, pelo peso específico se distinguia da massa, incapaz de compactuar com a maioria e de integrar-se no rebanho. Finalmente, tudo chega ao fim, toda obrigação se esgota, o sacrifício se consuma: consumatum est. Com essa apoteose no terreno do super-humano fecharemos este livro.
Ao lado de seu modo especial de conceber a vida, exatamente a dor constitui uma das notas características do evoluído. Por que razão o super-homem é condenado a sofrer mais do que o homem comum? Exatamente por motivos inerentes à sua posição. Se as verificações precedentes tendem a reafirmar os direitos do individualismo em face da moderna tendência coletivista que tenta reabsorvê-lo, devemos reconhecer o esforço e a fadiga que isso representa. Os coletivismos oferecem à preguiça do homem normal a comodidade de confundir-se e esconder-se nas massas, de deixar-se guiar e arrastar pelos líderes, de encontrar proteção no número; tudo isso constitui o instinto supremo e a defesa da nulidade. Nada nos causa mais piedade do que ver essas almas pensando em série, vivendo de imitação, essas consciências nutrindo-se de produtos já confeccionados e anulando-se no número. Kant dizia: “É apenas máscara de homem pensando com o sistema alheio”. A sociedade constitui-se em grande parte de máscaras, isto é, de rostos fictícios; por detrás deles não existe personalidade alguma. Os coletivismos protegem e encorajam essa nulidade. Podem tornar-se, até mesmo, via de acesso para a irresponsabilidade. E o indivíduo gostosamente abandona parte da liberdade, com o fito de eximir-se à correspondente porção de responsabilidade. Chega-se, desse modo, à exploração do progresso, ao parasitismo individual do coletivismo, em que o indivíduo inepto de bom grado se enquadra a fim de abandonar-se à indolência. No entanto, de quanta liberdade goza o indivíduo individualista! Por outro lado, quantas iniciativas e responsabilidade não lhe pesam nos ombros! Essa posição oposta constitui o antídoto apto a aniquilar os parasitas de todo sistema, sempre prontos a tirar proveito dele, escondendo-se em seus ângulos mortos. O individualismo, pelo contrário, ressalta, expõe às vistas porque isola e, isolando, define os responsáveis, quer dizer, os conscientes. O enquadramento orgânico das massas se, de um lado, consegue educá-las, oferece também o perigo de transformá-las em rebanhos de indivíduos mantidos pelo Estado, de escravos que obedecem para poderem viver como vagabundos; oferecem, outrossim, o perigo de suprimir ou abrandar a luta mestra da vida. No momento, o super-homem é o indivíduo menos enquadrado e mais isolado que possa existir e, por isso, o mais exposto, embora seja o mais livre e o mais consciente. Sua vida é tipicamente antiparasitária, completamente descoberta, bem afastada de agrupamentos protetores, de concessões cômodas e de cambalachos. É a vida mais nobre e gloriosa, mais seletiva e criadora, mas também a que mais fatiga. Sua vida significa alta tensão levada ao espasmo, bem-estar material sacrificado à idéia; significa aborrecimento, luta, paixão, intensíssimo trabalho de construção biológica. Não lhe é lícito abastardar-se no rebanho. Tudo isso, se enriquece a vida, também a torna difícil e dolorosa. O evoluído não pode furtar-se ao trabalho, vivendo de imitação, nem resolver os problemas sem esforço, sem pensamento, sem risco e sem iniciativa, à custa de atos coletivos em série, abandonando-se à direção alheia, deixando-se ir à deriva. Não faz parte do número e o número protege.
Consideremos agora outro fato. Seu utilitarismo é a longo prazo; o do involuído, pelo contrário, quer compensações próximas, imediatas. Por exemplo, observemo-lo em função de problema já tratado alhures, o problema da autoridade. O evoluído, orientando sua atividade segundo o plano orgânico do universo, concebe a autoridade como dever e como missão. O involuído, inorgânico, rebelde e egoísta, concebe-a tão-somente como prêmio concedido ao mais forte, a e vencedor na luta pela vida. Parece-lhe natural o desfrutamento de toda posição de comando, como também natural lhe parece o esmagamento do vencido. Na luta pela vida no plano do involuído, a autoridade constitui atributo do vencedor, como a submissão é atributo do vencido. Ainda desconhece o conceito de justiça. O dependente é inferior, escravo, que deve ser calcado aos pés e explorado, e não pode ser considerado como indivíduo irmanado no mesmo organismo e que deve, por isso, receber educação e auxilio. Assim é que, através de compensação de equilíbrios, a autoridade raramente se apoia no amor de pai, mas se regula pelo temor; e o dependente, por isso, tem-na como inimiga natural. De fato, autoridade e subordinado, governo e súdito, são duas forças contrárias e complementares que reciprocamente se influenciam, se educam, se plasmam. Sem direitos, como o consideram, ao vencido não lhe resta senão sofrer e esperar a ocasião propícia para rebelar-se, rechaçar a autoridade, por-se em seu lugar, não para cumprir-lhe as obrigações, mas apenas desfrutar-lhe as vantagens. E assim por diante, cada um por sua vez. O evoluído não pensa desse modo. A sua psicologia, esses métodos e o desfrutamento dessas posições repugnam extremamente. Seu utilitarismo é bem mais amplo e consciente e paira sobre esses resultados efêmeros, imorais, mas imediatos. Para ele, todo encargo social não constitui afirmação e ampliação do eu, mas uma função, serviço. Manzoni demonstrou havê-lo entendido muito bem, quando escreveu: "Não é justa a autoridade de um homem sobre os demais, senão quando se exercita no interesse deles". Quando o evoluído respeita a autoridade, sem considerar-lhe o mérito, é porque a abrange em sua concepção de autoridade, embora ela não corresponda à realidade dos fatos e isso signifique, da parte dele, apreciação moral superior a que essa autoridade merece. O evoluído não julga, respeita; não discute, obedece. Em face de autoridade exercida com espírito involuído, o máximo que o evoluído faz é manter-se em respeitoso absenteísmo, pois a isso o constrangem. Ao contrário, o involuído subestima a autoridade, discute-a, julga-a, tenta condená-la e, ao primeiro sinal de fraqueza, agride-a a fim de apossar-se de suas vantagens. Estamos bem longe ainda do plano superior de estima e fé, de compreensão e justiça, do plano em que os dois termos (autoridade e súdito) não se encontram na posição de rivais, mas na de colaboradores. Essa atitude de obediência e respeito (aí onde seria necessário, isso sim, defender-se por causa da existência palpável de agressão e defesa) constitui no plano social um dos gravames da vida do evoluído. O poder humano possui recursos; o evoluído não. Todos aspiram ao comando; o evoluído obedece. Os outros se julgam cheios de direitos; o evoluído só tem obrigações. Os demais homens trabalham em grandes grupos, compensando-se com riquezas e honrarias o evoluído trabalha em silêncio ignorado e pobre. Num mundo assim o evoluído não pode ser senão mártir.
Na sua vida, porém, há bem mais profunda e substancial causa de sofrimento que não esses desacordos de relações e essas incompreensões. E também essa causa é inerente à sua posição. Pelo menos neste mundo a dor constitui, sem dúvida, a nota fundamental da gênese No pomar da vida os frutos mais nutrientes ficam ao lado da sombra, mas entendamos: sombra segundo a matéria, luz segundo o espírito. A alegria não alimenta; a dor, sim. Só ela corta, escava, plasma e torna maduro, transforma e renova. Em resumo: revela e cria. A alegria dura muito pouco, nos rouba as energias e nos deixa completamente vazios e adormentados. A alegria é dissipadora; a dor leva-nos de novo às fontes vitais, nos concentra e refaz as energias, eleva-nos o poder espiritual. A dor pode piorar os maus, mas sem dúvida melhora os bons. Nalgumas vidas, a dor é incidental, episódica, fenômeno. Trata-se de primitivos. Noutras, a dor apresenta-se como plano fundamental que lhes dá sentido e valor, é estável, é fenômeno em profundidade. Trata-se, agora, de indivíduos maduros. A alegria constituí a experimentação dos inexperientes na vida, e primeira experimentação elementar e juvenil. É ingênua, cheia de simplicidade, espontânea. Quando, porem, a taça da alegria está cheia até as bordas, agora a lei de evolução nos proporciona experimentação bem mais profunda a fim de fazer-nos descobrir verdades mais recônditas e remotas, que ainda não podem ser reveladas aos primitivos. Quando o destino do evoluído se destaca da terra e dos destinos dos demais homens, então a dor aparece, como experiência dos maduros, senil, complexa e profunda, dos fortes e dos justos, como verdadeiro campo de ação do evoluído. A alegria é atmosfera natural dos que há pouco começaram a viver, dos recém-chegados de graus inferiores de evolução. A dor é, por sua vez, o ambiente normal dos velhos que exauriram toda as experiências desta terra e, por isso, partem para mundos melhores. Os primeiros são inexpertos; os outros, sábios. Estes aprendem a lição, terminam o aprendizado. As posições inverteram-se; para aquele significa sujeição; para estes, desinteresse. Quem parte e quem chega, quem deve viver nesta fase e quem já viveu nela, o involuído e o evoluído, dois estilos de vida. Cada qual tem sua tarefa a cumprir.
Estamos agora em condições de compreender que a diferença de raça entre involuído e evoluído não passa, em última análise, de diferença de idade. E também se nos torna fácil compreender a razão de o involuído preferir o método de luta e o evoluído inclinar-se para o da justiça. O método da força revela o primitivo, que se a ele recorre é porque é exuberante e inexperto ou, melhor, rico de energia e pobre de sabedoria. O evoluído, por sua vez, já chegou ao fim da estrada, que o primitivo mal começa. a percorrer. Já está cansado, gasto; esgotou-se-lhe a carga dinâmica, agora transformada em experiência. Pobre de energia, rico de sabedoria. Permanece conscientemente sintonizado com os princípios da Lei. Noutros termos: no físico-dínamo-psiquismo, isto é, na evolução trifásica do universo, o involuído representa a fase dinâmica e o evoluído a fase psíquica ou espiritual. A vida da humanidade percorre o trajeto necessário a passagem de uma posição a outra, quer dizer, à transformação da força em consciência. O evoluído já transpôs a passagem; o involuído ainda não, pois não sabe pensar senão agindo, não concebe a ideia senão como fato, isto é, formalmente concreta. Trata-se de elaborar matéria, matéria prima rude, fornecida pelo impulso ou, seja, pela carga dinâmica necessária para levar a efeito a experimentação, em que essas forças paulatinamente se esgotam. O evoluído, por sua vez, apresenta-se com material já elaborado; quanto a ele, esse impulso já atingiu o objetivo desejado, superando a sua fase de transformismo. Nada se perde, nada se destrói. Os jovens valem tanto como os velhos e os velhos tanto como os jovens. Acontece apenas que as posições são diferentes e os valores de qualidade diversa. A quantidade transformou-se em qualidade: a obtusa e rude exuberância, em sabedoria consciente e refinada. Se o dinamismo biológico se degrada e esgota, vai mais tarde ressurgir, sob forma diversa, como poder espiritual. Apesar da equivalência substancial, os dois extremos são diferentes e não conseguem harmonizar-se. Cada um dos dois condena aquilo que não possui, exalta aquilo que possui, dá valor a tudo de que necessita e despreza tudo quanto não lhe serve. O sábio percorreu o ciclo, pois exatamente para isso é que a forca existe, serve e lhe foi dada. O sábio elaborou dentro de si um sucedâneo que, para quem como ele está desse modo transformado, a substitui com vantagem. Para o primitivo, forte mas ignorante, se reservam os duros golpes consequentes aos erros praticados durante a experimentação, golpes a que o sábio nenhum medo tem mais porque já aprendeu a evitar a prática desses erros. Que imenso dispêndio de energia para assimilar apenas algumas ideias! Isso nos mostra a importância e o poder da ideia. Não tivemos, para conquistá-la, de empregar e consumir tanto dinamismo, de que a ideia é o equivalente. Isso nos demonstra a necessidade da compreensão sobre que tanto insistimos. No plano do universo, portanto, a força reduz-se a instrumento de experimentações, a reserva de energias de cujo consumo depende a compreensão, isto é, a construção da consciência. De um lado, a força dos jovens; doutro, a experiência dos velhos. No organismo universal cada coisa tem função bem determinada e está no lugar exato. Os jovens valem pela posição que ocupam e os velhos também. A vida obriga-os a trabalho alternado e que mutuamente se compense; durante o período em que suas qualidades encontram campo para manifestar-se, eles trabalham ativamente de modo a imprimir um cunho especial à História e a impulsionar de algum modo o progresso. Todo ser pode sempre dar algo de útil. E o jovem audaz e batalhador, mas inexperto e inconsciente, vive para tornar-se o velho cansado e pacífico, mas sábio, às vezes por ele desprezado.
Dá-se com a força e a sabedoria o que se dá com a alegria e a dor. Estão ligadas estreitamente. A alegria juvenil, que nos vem de sermos fortes, leva-nos, através da ilusão da vitória, à realidade dolorosa de que nasce a sabedoria. Para o involuído espontaneamente desejoso de alegria e senhor natural da terra, que é o seu mundo, a dor terrena é sufocação, asfixia, mutilação da vida material que constitui para ele todo o bem desejável. E para o evoluído, que já se considera um desterrado na terra, essa dor constitui a última experiência amarga num mundo superado, experiência que lhe abre as portas para a expansão da vida em outros mundos mais adiantados, únicos em que doravante lhe é possível viver. Essa dor representa o meio de romper grilhões já por demais pesados e preparar futuro melhor. No céu o evoluído encontra alegria, a que o involuído procura e encontra na terra. A festa da vida está sempre no amanhã, nesse futuro melhor que, pelo menos relativamente, está na posição por nós ocupada. O involuído amaldiçoa e teme a dor. O evoluído, porém, ama-a e abençoa. O involuído tem a dor na conta de destrutiva, o evoluído considera-a construtiva. Tudo depende do sujeito. O sábio, que viveu e, portanto, sabe, não incide mais nas ilusões humanas e recebe a dor, utilizando-a na função criadora; ri-se dos primitivos e de suas alegrias, que não lhes deixam na consciência senão saciedade, cinzas do cansaço e náusea.
Eis aí várias causas da dor do evoluído. Se muitas vezes sua vida é trágica, a dor transforma-o em altar de oferendas em que se consuma o holocausto supremo. E, enquanto os primitivos se debatem entre a morte e a dor, o evoluído representa ardente chama de sacrifício a Deus. No incêndio, ele se consome feliz, pois sabe que, depois desta vida, vida muito mais sublime o espera .