Não podemos compreender bem a revolução social iniciada por Cristo e em seguida continuada lentamente, através dos séculos, até ao decisivo e atual momento histórico, senão comparando rigorosamente a psicologia da romanidade imperial com a do programa evangélico. O problema continua atual porque o choque das forças contrárias é idêntico hoje em dia e o mundo se encontra nas mesmas condições: as duas concepções estão nitidamente em luta. Observemos a estrutura da concepção social romana, para em seguida verificar como o Cristianismo, desarmado, desfecharia o assalto às bases mesmas dos princípios que regiam toda a estrutura do império e, justamente por ser fase biológica mais evoluída, poderia-o pacificamente superar e vencer. O choque se dá, essencialmente, entre força e justiça, entre duas diferentes estratégias, que não combatem no mesmo plano e com as mesmas armas e falam línguas mutuamente incompreensíveis. Cristo e Roma se defrontaram. Simbolizam dois sistemas, vivos ainda hoje, face a face, o problema continua atual. O estado do dinamismo íntimo, já explicado, dos dois mundos representados, respectivamente por Cristo e Roma, demonstrar-nos-á sob forma racional o significado íntimo desse choque.

O império romano representava a máxima realização da força, plenamente triunfante. O direito romano é, sem dúvida, poderosa criação de gênio coordenador, admirável monumento de disciplina e organização; porém, permanece sempre ao nível da força. Na violência mergulham as raízes do direito que, ao invés de quebrá-la, condenando-a, intervém para discipliná-la. É sem dúvida um passo à frente, indispensável primeira tentativa no sentido de domesticá-las e reabsorvê-las; mas o princípio, tão distante do evangélico, é baixo, biologicamente adequado ao tipo involuído cuja inferioridade já examinamos. O direito romano não se rebela contra esse princípio, mas o aceita e, contentando-se com dignificá-lo, intervém para aprovar, tornar válido e legalizar o fato consumado. Da maturação evolutiva daqueles tempos não se poderia exigir mais. O Império nada mais era senão o método mais aguerrido, orgânico e legítimo de dominação. Mas se fez tudo quanto a evolução biológica do tipo majoritário permitia. Por isso, permanece de pé, embora em sentido relativo ao momento histórico, a indiscutível grandeza do Império e a função social de suas criações jurídicas. Os romanos, sem dúvida, introduziram ordem na força, que, assim, de impulso desagregador, viu-se constrangida a tornar-se instrumento de construção social. Comparado com a indisciplinada violência do selvagem, esse fato constituiu, sem dúvida, grande progresso. As províncias anexadas foram, decerto, exploradas, esmagadas, submetidas a servidão e a pagamento de tributos com que se alimentava o tesouro de Roma; mas foram, também, incorporadas ao grande organismo, governadas e, por isso, impregnadas do conceito, para elas superior, de organicidade central que Roma lhes transmitia. A grandeza imperial desabou, fora de dúvida, como mão de ferro sobre o mundo daqueles dias; não havia, porém, outro modo de civilizá-lo. Por isso, tudo estava biologicamente proporcionado, correspondendo às necessidades da época.

Contudo, o vício originário de que resultava toda a estrutura do sistema, embora justificado e até mesmo enobrecido, constituía permanente acusação movida à Romanidade, comparado com os métodos mais evoluídos enunciados pelo Evangelho. O fato de Roma, máxima potência jurídica, ter sido a mãe do Direito, jamais pôde impedir que suas raízes se embebessem no espírito de dominação e nas violentas conquistas da guerra. A mancha era mais tarde considerar-se plena e legítima a propriedade filha do furto, obtida apenas com o emprego da força. Esse reconhecimento oficial do direito do mais forte, essa adesão incondicional a esse princípio moralmente inferior revelam o baixo nível espiritual daquele povo e constituem acusação contra ele. Acusação de egoísmo que, num mundo de civilização mais adiantada, não lhe daria o direito de tornar-se nação senhora das gentes. A força transformada em justiça, eis as bases do Império Romano. O estudo que fizemos do valor da força do dinamismo dos fenômenos sociais nos mostra as razões da queda daquele Império e de sua substituição pelo Cristianismo. Isto mostra-nos que a violência gera contra seu autor reações inimigas e destrutivas e, como o Cristianismo representava princípio mais elevado, tinha o direito de viver no lugar do antigo princípio, sepultado nas próprias ruínas por ele buscadas e cujas funções já se encontravam esgotadas. Conceitos esses incompreensíveis para os romanos. O Evangelho estava acima de sua compreensão.

A Antiga Roma é grande, mas apenas no plano humano. Seu gênio conquistador é grande. Para criar e aumentar sua riqueza, Roma guerreou contra o mundo durante sete séculos. Acumula, depois se entrega aos prazeres e cai vítima de seu poder, é traída pela mesma riqueza em que acreditou. Erros no sistema, destruídos com poucas palavras de Cristo no Sermão da Montanha. Mas os positivistas da antiguidade não o entenderam e foram vítimas disso. Sua filosofia era superestrutura refinada, vã e fictícia, sem ligação com a vida; não passava de discussões acadêmicas, não interessadas em modificar-lhe as bases, que permaneciam firmes e significavam: dominar. Meio a empregar: a conquista guerreira. Resultado: o solo provincial, propriedade de Roma, os tributos pagos por aquelas terras ao proprietário. Os povos dominados são constituídos principalmente de vencidos, sujeitos a contribuição escorchados pelo fisco, ajoelhados aos pés da “Urbs” administradora da justiça. O resto, o menos importante, não interessa e, por isso, é magnanimamente dado como presente; mas o poder judiciário supremo permanece em mãos do magistrado vindo de Roma.

Essa a situação com a qual Cristo se defrontou, esse o sistema enfrentado por Ele, sistema de função histórica já esgotada e próximo do aniquilamento. Ele compreendeu Roma; Roma, porém, não O entendeu. Ninguém, ou quase, notou Sua presença, que no entanto representava o futuro, o único futuro possível. Cristo se ergue diante de Roma e inaugura diferente sistema fundamental, que ataca o outro nas próprias origens e o vence e é de outra natureza e pertencente a nova fase biológica. Cristo coloca-se em plano mais elevado e dele é que olha todas as coisas. Ele, embora impregnado de dignificante respeito pela autoridade, não desce jamais ao nível de Roma, não compete com o poder, não o trata de igual para igual; obedece-lhe por dever, mais como homenagem ao próprio dever, isto é, ao valor dessa figura moral, do que ao poder considerado em si mesmo, quer dizer, à superioridade do domínio alheio. O seu é respeito mais ao princípio do que ao homem, que vale o que vale. Dá, pois, ao poder tudo quanto lhe diz respeito, como se se tratasse de criança a quem não se tiram os brinquedos, tão pequeno valor se atribui ao que ele de fato é e reclama. Em substância, a atitude de Cristo perante a autoridade do mundo é a de respeitoso e dignificante desprezo porque, em relação ao céu, são desprezíveis o mundo e tudo quanto lhe pertence. Realmente, ele despreza a realeza terrena oferecida pelas turbas, sentindo-se rei, mas de reino bem diferente. Sua atitude em relação às autoridades constituídas não poderia consistir na costumeira atitude humana que, filha da força, não passa de servilismo, ou, então, de rebelde tentativa de subverter as posições para, em seguida, ocupá-las; sua atitude, muito ao contrário, porque deriva de princípio mais elevado, é naturalmente superior e quase de indiferença. Os grandes valores não residem lá onde o homem pensa e os valores humanos não merecem tanta atenção. Considerados em si mesmo, causam-nos mais piedade que inveja, se não contiverem mais elevado conteúdo moral de função e emissão. Assim, a posição de Cristo em relação a tudo quanto é tido no maior apreço como afirmação do homem da força, é negativa, de respeitosa abstenção, tão longe deste mundo estão os maiores tesouros da vida, tão diferente da posição em que se crê, é a realidade íntima das coisas, tão repleto de poder e riqueza está o outro reino, o do céu. Eis como o espiritual e o temporal se tocam, sem que, porém, um invada o campo do outro. Tudo quanto Cristo tem em grande apreço é desprezado pelo mundo; Cristo despreza tudo quanto pelo mundo é tido em grande consideração. Que pôde o império de Roma contra ele? A lei, filha da força, não possui outra arma senão a força; poderá constrangê-lo; Ele, porém continua livre no espírito. E, ameaçado por Pilatos, autoridade humana, responde-lhe que o poder vem do alto e não somente de baixo, quer dizer, é bem diferente do simples resultado de uma conquista, do exercício do império pelo vencedor, do arbítrio, de simples vantagem; muito ao contrário: é função social enquadrada em uma hierarquia de forças e funções em direção a Deus; é comando em favor da obediência; consiste em dominar para servir, em impor-se, mas sob a orientação de um princípio e apenas enquanto em relação a ele; constitui, pois, missão, dever, cumprimento da Lei de Deus, a Quem todos nós devemos prestar contas. Todo o sistema de força sobre o qual Roma se ergue, acaba sendo tragado e naufragando aos pés de outro sistema, derivado de princípios tão diferentes. Ao afastar a pedra do sepulcro, o Ressurreto abalou até os alicerces do mundo que o circundava.

A força constituía a base do império. Cristo substituiu-a pela justiça. O egoísmo e o interesse dominavam em Roma; Cristo substituiu-os pelo amor fraterno. Há vinte séculos já se anunciou e teve início a atuação desses novos ordenamentos sociais, de que hoje o mundo tenta aproximar-se de novo. E, enquanto Roma fazia funcionar o plano da organicidade social, Cristo iniciava o da justiça social, que ainda hoje provoca tanta luta. Perante exército baseado na forma, Ele vence com exército de pacíficos mártires. O sistema desarmado, porém mais elevado, vence o sistema armado, porém menos evoluído. A estupefaciente e incrível subversão dos valores torna-se realidade. A Lei de Deus substitui a dos homens e os vencedores deixam de ser os mais fortes, juridicamente organizados, para serem os justos, os oprimidos, os vencidos, isto é, os credores, segundo a Lei. Cristo proclama outras vitórias e exalta outro tipo de vencedor. O cidadão romano não podia entender nada disso. A solidariedade social não é garantida mais nem pelo direito, pela disciplina da força, nem pelos institutos jurídicos coordenadores, e sim pela reciprocidade do dever e do amor, a que livremente aderimos. Para o cidadão romano, essa nova e convicta liberdade era anarquia; o superamento, absenteísmo; a paciência, vileza; a obediência, debilidade; o sofrimento, derrota. Tão grande diferença impossibilitava a compreensão. A conceituação do direito é atingida em cheio e abalada em seus próprios fundamentos. O direito não é mais filho da força, mas resultado de conquista, concessão ou pacto. O novo direito prescinde da força e, por constituir-se essencialmente de justiça, é até mesmo contrário à própria força. Baseia-se em princípio completamente diverso do jurídico romano, participa de outro sistema e de outro mundo. Não se trata mais do direito humano da força, mas do super direito do merecimento. Não é mais o homem quem, como nos mercados, toma da balança e pesa o “deve” e o “haver” dos direitos e obrigações; as forças íntimas da vida é que, de acordo com o critério da Lei de Deus, distribuem ou não os bens, premiam ou castigam. Perante esse super direito substancial, o velho conceito romano torna-se valor formal, relativo, de referência, coisa miserável e mais digna de piedade que de ser combativo. Os líderes e os imperadores são derrubados do trono e, se nele permanecem, isso acontece apenas enquanto são instrumentos de Deus.

Desse modo, toda a diretriz humana se abala, o mundo não mais se conserva fechado em si mesmo nem apenas em si mesmo vê os seus objetivos, mas se abre para o céu e nele se completa. Entre a ideia romana e a de Cristo vai um abismo, o mesmo que vai do homem ao super-homem. Para o homem que atingiu o segundo, o primeiro perde naturalmente todo valor. O reino da força, habituado a enfrentar o inimigo tangível e concreto, não estava preparado para resistir a esse assalto negativo e foi vencido. Tudo isso constitui novo modo de conceber o mundo, nova corrente de pensamento, e, ao mesmo tempo, a indiferença, grau mais baixo da desvalorização, e a roedora traça, íntima e invisível, que decompõe o velho mundo. As coisas humanas, a vida do império, tornam-se consequências secundárias; as bases da ação não se acham mais na terra, o centro de gravidade do universo deslocou-se, tudo gira em torno de outro eixo e, mesmo quando é necessário ocupar-se das coisas terrenas, tudo assume significado e função diversos. O mundo transforma-se por dentro e não por fora. A grande revolução se processa em silêncio na intimidade das almas. Tudo quanto era principal e preponderante acabou subordinando-se a algo novo, recém-nato, que, há pouco desconhecido, tornou-se, agora, o mais importante. O velho mundo não mais encontra rebeldes a serem submetidos, e sim mártires que, perdoando, se deixam matar. E desnorteou-se. Como combater esse inimigo? A força, desprovida de inteligência, apressa-se a fazer a única coisa que sabe: destruir. Mas engana-se, porque na realidade não destrói. Pelo contrário, reforça o inimigo, pois sem dúvida as perseguições exaltam. Mata, porém cria heróis, causa morticínios, mas torna-se instrumento de propagação. Então, a força revela-se o desencadeamento cego que verdadeiramente é, ignorante do jogo delicado de reações por ele começado, sem de modo algum compreendê-lo e, por isso, incapaz de furtar-se às suas consequências. O pensamento romano é apanhado por novo mecanismo, sob a forma de pensamento inexplorado, cuja direção não pode assumir, por incompetência e falta de preparação. O povo, principalmente, sem responsabilidade nos crimes do poder e bem próximo das fontes da vida, é o primeiro a receber a semente e a intuir, em sua simplicidade virgem, despida dos preconceitos e artifícios do saber. O povo, por instinto vital, percebe a verdade nova; o povo que sofre tem, por isso mesmo, os olhos abertos e os ouvidos atentos, pois não dorme nas comodidades. Verdadeira campanha de reabsorção do ódio pelo amor, da violência pelo perdão. Não mais uma das costumeiras revoltas à base de desequilíbrios, revoluções aparentes e fora de época, o habitual vai-vém da substituição de pessoas, porém nas mesmas posições; mas revolução à base de equilíbrios, de substância, de saneamento, lenta, mas de posição estável, colocada organicamente no dinamismo da Lei e da evolução, feita para durar, como vem durando através dos séculos. E, assim, o império que vencera as batalhas da força perde a batalha sem armas.

Observemos ainda mais de perto o encontro entre os dois princípios, na pessoa de seus representantes: Cristo e Pilatos. Este, homem interesseiro, vil e insignificante, passou à História apenas porque se encontrou com Cristo, de quem não entendeu coisa alguma. O representante oficial do império de Roma, o intérprete da lei, a autoridade que deve dar o exemplo, embora tente assumir atitude formal, é vazio por dentro e por isso tem comportamento hesitante e equívoco, que deixa transparecer esse vazio interior e a insuficiência do sistema de força e da forma, isoladamente considerado. É inútil querermos, na vida, esconder-nos dessa maneira e justificar-nos, como se as aparências tivessem força de realidade e a forma valesse como substância. A verdade interior acaba, cedo ou tarde, revelando-se também no exterior, pois as reações dependem das convicções, que ao mesmo tempo lhes dão nascimento e lhes servem de guia. Esse homem típico de sua época e de seu mundo não possui nenhum senso interior que o guie e a letra da lei não basta para socorrê-lo no encontro supremo. Cristo fala-lhe de verdades eternas e ele pensa no imperador Tibério e na própria carreira; é um verme que rasteja no pó, algemado aos interesses pessoais e nem de leve suspeita do significado das palavras que ouve; sua alma é surda e Cristo, percebendo-o, não lhe responde. Apenas este argumento o comove: ser ou não ser amigo de César. “Se soltas este, não és amigo de César...” (João, 19:12). Confunde Cristo e seus acusadores na mesma raça inferior, pois um só direito e uma só grandeza podiam existir na sua mente: os do vencedor. Com a cabeça quadrada de romano e modelo de todos os homens práticos e positivos, Pilatos não entende nada. Do alto de sua grandeza moral, armado de poder mais elevado e de autoridade bem diferente da autoridade moral do representante da Lei, Cristo perscruta-o, íntima e demoradamente, e cala. A grave desprezível e distraída pergunta atirada sem o desejo de receber resposta: “Que é a Verdade?” (João, 18:38), quando proposta, como o foi, por indigno cético, Cristo responde com o silêncio. Cristo despreza até mesmo a própria defesa, pois prefere abandonar-se à Lei e à vontade do Pai a render-se às razões humanas, que constituem a arma inaceitável do sistema humano de Pilatos. Cristo não desce até esse plano. Pilatos pergunta-lhe: “Nada respondes? Vê quantas coisas testificam contra Ti. Mas Jesus nada mais respondeu, de maneira que Pilatos se maravilhava”. (Marcos 15: 4-5). Não podia conceber o método de Cristo e seus objetivos sobre-humanos. Para ele, era absurda a psicologia do martírio. Cristo respondeu-lhe apenas para dizer-lhe que em verdade era rei e para colocar no devido lugar a autoridade deste mundo, traçando-lhe os limites exatos. Pilatos diz-lhe: “Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima te não fosse dado”. (João,19:10-11). Assim, outro poder se manifesta por detrás e acima do poder humano, transformando o árbitro vencedor em simples instrumento nas mãos de Deus.

Poderão objetar que Pilatos não era, certamente, tipo exemplar de magistrado romano e, por isso, não representava a romanidade toda. Porém, não se trata aqui apenas do caso de um homem que por baixeza traía um sistema perfeito; trata-se, isso sim, de sistema que põe a nu os seus pontos fracos, pois não corresponde aos objetivos da vida e do progresso, quando o confiam a um homem qualquer e o fazem defrontar problemas mais elevados e, no entanto, fundamentais para a sociedade humana. Quantas vezes, quem sabe, Pilatos não teria ouvido em Roma as vazias e tediosas discussões de gregos filosofantes, estabelecidas com propósito exclusivamente pecuniário, habituando-se, desse modo, à ideia de que não se chegava à conclusão alguma, discutindo-se a respeito da verdade, conceito que em seu espírito deveria ter adquirido o sentido negativo de vacuidade e de mentira. Mas esse ceticismo, incapaz de levar a sério qualquer filosofia ou teoria, não era a forma mental de Pilatos apenas. Em sua psicologia aflora a do século, de que ele não era senão um expoente. Pela boca de Pilatos falam os tempos já incapazes de acreditar seja lá no que for, fala o materialismo de Roma, que os alimentava e representava. E como a Roma imperial não dispunha dos elementos necessários para saber compreender e levar Cristo a sério, assim também Pilatos não O compreendeu nem O levou a sério, isto é, não se mostrou capaz de fazer nem mais nem menos do que seu mundo sabia fazer; de um lado, Cristo; de outro, um mundo repleto de incompetentes. Em Pilatos encontravam eco. Roma e o seu tempo. Ele era filho e produto de ambos, como o efeito que, ligado à causa, não pode deixar de exprimi-lo e representá-lo. Não apenas substancial, mas até mesmo oficialmente, Pilatos era, como magistrado, o representante do povo e do pensamento de Roma, da autoridade imperial que, de fato, não o desaprovou e, assim, subscreveu-lhe o ato. Concordou com ele; logo, tornou-se co-autora. A desonra do Gólgota não constituiu, pois, apenas erro e culpa do homem, mas também erro e culpa do sistema que fizera o homem assim, e o obrigava a comportar-se desse modo. O erro continuou, de fato, por séculos e séculos e sempre com novos mártires, exatamente porque esse sistema não era capaz de entender senão a autodefesa; encerrado no próprio egoísmo, não sabia elevar-se a visões de conjunto tão vastas ao ponto de abrangerem a evolução do mundo.

Para lutar é necessário ter afinidade e compreensão, ter algo em comum que una e divida. Cristo e Pilatos representam dois mundos diferentes. Estranhos um ao outro, senhores de dois campos diversos, encontram-se por acaso, sem se haverem procurado; cada qual raciocina com todo rigor lógico, mas o raciocínio de um e de outro são reciprocamente absurdos. Cristo compreende, perfeitamente, o outro e por isso se cala. Mas, ao contrário, a forma não compreende a substância, a força não compreende a justiça, mostra-se cega, apenas capaz de golpear e, assim mesmo, de golpear às cegas, sem compreensão, dando-se a espetáculo tão escandaloso que demolirá sutilmente, durante séculos e séculos, o princípio de autoridade baseado na força. O poder humano condena e assim, em virtude de poder mais alto, atrai sobre si a condenação do mundo. A força, quando não guiada pelo espírito, comete enganos e fracassa; e a justiça mais perfeita do espírito triunfará apesar da injustiça humana. A batalha, sintetizada naquele primeiro encontro de Cristo e Pilatos, continuará a travar-se durante milênios, seguindo o desenvolvimento dos impulsos que ela representa. Se no drama Cristo e o Sinédrio estão frontalmente opostos, como verdadeiros antagonistas, no campo moral do bem e do mal, que lutam, porém, não se entendem; ao poder civil nem mesmo essa honra se concede: Judas e o Sinédrio vão diretos aos seus objetivos. Pilatos é uma série de contradições, incertezas, mal-entendidos. A própria inscrição indicativa do título da condenação “Jesus Nazareno, rei dos judeus” não passa de mal-entendido. A mente de Pilatos girava em redor de centro totalmente diverso. Assim, para se esquivarem, procuram ridicularizar. Para livrar-se de Cristo, manda-o a Herodes. Declara duas vezes: “não acho nele crime algum”. (João, 19:4) e: “nenhum crime acho nele”. (João, 19:6). E pergunta: “Pois que mal fez este?” (Lucas, 23:22). Portanto, nenhuma culpa acha no acusado, reconhece-lhe a inocência e deixa executar-se uma condenação que podia e devia anular. Torna-se, desse modo, cúmplice do Sinédrio que, ao invés de promover um julgamento, tramava a morte já preconcebida e preordenada com propósito deliberado. “Então”, diz Mateus (27:24-25): “Pilatos, (...), lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo: considerai-o vós. E, respondendo todo o povo, disse: O seu sangue seja sobre nós e sobre nossos filhos”. Eis a figura “daquele que por vileza foi o autor da grande recusa”. A recusa foi grande e vil. Pilatos se convencera da inocência de Cristo, pois o chama justo. Pergunta: “Pois que mal fez?” porque percebeu a falsidade da acusação, movida apenas pelo ódio. “Porque ele bem sabia que por inveja os principais dos sacerdotes o tinham entregado”. (Marcos, 15: 10, 14). Repete: “Não acho culpa alguma neste homem” (Lucas, 23:4, 22) e procura libertá-lo; no entanto, deixa-o caminhar para a morte. Poderia e, mesmo, deveria ser juiz e administrar justiça; porém, não soube nem mesmo resistir à injustiça e transformou-se-lhe em instrumento e em escravo. Todavia, percebeu a injustiça e tentou evitá-la, mas só enquanto pôde fazê-lo sem muito trabalho e sem dano.

No vão esforço de fugir à responsabilidade, Pilatos experimentou quatro expedientes. O primeiro foi mandá-lo de novo à presença de Herodes. O segundo, a flagelação, como simples castigo para, em seguida, pô-lo em liberdade. O terceiro, permitir ao povo escolher a libertação de Cristo ou a de Barrabás, ladrão e assassino. O quarto expediente, a tentativa de mover a multidão, à piedade, apresentando-lhe Cristo: “Ecce homo!12”. Miseráveis contemporizações, subterfúgios vãos, imperdoável incerteza! O destino impunha a Pilatos que, em tão grande momento, tomasse posição clara; não soube, porém, e calou-se para todo o sempre entre os vis e os irresolutos, “desagradável a Deus e a seus inimigos”.

Na realidade, Pilatos tem medo da multidão, cede a suas intimações; a sentença que proferiu não resulta de julgamento regular, é uma farsa. Entre tantos julgamentos, não houve um só verdadeiro; no entanto, Cristo foi reconhecido réu de morte. Nesse momento, a justiça competente por direito humano, não funciona e cala. Pilatos abdica do poder, pactua com a turba, procura voltar as costas a essa responsabilidade que não tem a coragem de assumir; no entanto, sua obrigação era afirmar a inocência de que já se convencera, ao invés de deixar-se arrastar à condenação de Cristo. Pilatos serve de joguete para os judeus que, conhecendo-lhe o lado fraco, o servil temor de Roma, fazem-no decidir, ameaçando-o da maneira mais eficaz: “Se soltas Este, não és amigo de César” (João, 19:12).

Assim a História julga os juízes e processa a autoridade processante. Esse foi o exemplo do representante do poder civil, do procurador Pilatos, modelo da justiça humana baseada no sistema da força, símbolo do involuído amoral, expressão do espírito daqueles tempos, do homem que cede às pressões humanas e permanece indiferente às superiores realidades do espírito. Permaneceu ainda por vários anos no seu ofício e não pagou por seu crime. Mas a justiça humana ficou manchada e há vinte séculos não sai da berlinda. Sua posição em fato histórico de tamanha importância será como um ferrete que ainda a seguirá através dos tempos. A justiça humana desonrou-se. A injustiça do Gólgota constituiu injustiça da justiça e descrédito permanente do resultado dos julgamentos humanos. Esse caso tornou-se o símbolo de todas as condenações do justo, tornou-se exemplo clássico que inaugurou uma tradição, o hábito quase, de erros judiciários providencialmente destinados à glória das vítimas e a transformar-se em instrumento de seu triunfo. Propagou-se, desse modo, o conceito de uma justiça superior, seguida por mártires e heróis, que devem pagar tributo à formal justiça humana, simples e honesta aplicação da lei do tempo. E, assim, começou a notar-se na História a presença desse fenômeno necessário, de contínuo superamento das ideias e das leis; compreender a função e dar o devido valor aos revoltados contra o antigo estado de coisas, revolta manifestada na luta em prol de novo e mais elevado ordenamento. Em face dessa inexorável necessidade de evoluir, o respeito pela ordem existente caía do plano dos valores absolutos no dos relativos. E os habituais rebelados contra qualquer ordem, os habituais e interesseiros homens de partido, tomaram da nobre auréola dos mártires inovadores para com ela fingirem-se mártires também e, assim protegidos, satisfazerem-se com mais facilidade. Na terra tudo se utiliza. Porém, no coração humano permanece sempre impagável o vestígio da iniquidade sofrida pelo grande afirmador da verdade e do fundador de novo reino na terra, que é promessa ainda viva e vital, mesmo depois de vinte séculos, e que constitui a única esperança no futuro.

Falamos de erro judiciário. O caso de Pilatos, porém, é muito mais grave do que quaisquer dos erros habituais imputáveis à imperfeição humana. Compreendeu exatamente a inocência de Cristo e, por isso, defende-o, mas apenas enquanto pode fazê-lo sem prejudicar-se. Quando não pode, o interesse julga mais conveniente mudar de rumo. Então, Pilatos, homem da lei, aparentemente o homem talhado para o cargo, mas no íntimo reles aproveitador, revelando o espírito egoísta de seu tempo, entrega à morte a vítima inocente. Todavia, mesmo a limitada e apenas esboçada defesa que Pilatos faz da inocência de Cristo funda-se em razões bem diferentes das capazes de conduzi-la, valorosamente, até o fim. Se Pilatos compreendeu a inocência de Cristo, considera-O simples inocente, defende-O em vista de relações jurídicas e por motivo de direito, e não por causa de razão situada acima do direito. Comporta-se, desse modo, como qualquer materialista míope que, através da forma, não enxerga a profunda realidade das coisas. Da superioridade de Cristo em relação a todo o seu mundo, da transformação social, da Sua missão e do Seu pensamento, Pilatos não entende coisa alguma.

Não podemos, sem dúvida, dizer que Pilatos seja Roma, isto é, toda a Romanidade. Mas podemos afirmar que naquele momento e por causa de sua conduta, outro tribunal se ergueu diante do tribunal humano e lhe aplicou a indelével marca da infâmia; tudo isso se passou por obra e com os recursos da paz e da mansidão. Por isso, este é também um encontro de sistemas, em que o da força leva a pior e permanece condenado através dos séculos. A força, embora juridicamente organizada, demonstrou ser instrumento capaz, abandonado a si mesmo, sem o concurso e a orientação do espírito de constituir não auxílio, mas obstáculo ao progresso, não um meio para estabelecimento de ordem, mas de desordem. Naquele dia se fez ao mundo esta advertência: Cuidado, essa concepção é insuficiente, falta-lhe algo de essencial. Completai-a. Ela tem sua razão de ser, mas deve progredir ainda. A legalidade não basta, se representa traição, se em alguns casos, ao invés de função que impulsiona para a frente a evolução, pode transformar-se no freio que a detém. Ao homem não satisfaz mais justiça que torna possível, embora nem sempre aconteça, condenar inocente e benfeitor e libertar malfeitor. Algo protesta no fundo da alma humana, aí onde a Lei clama por justiça. A consciência sabe distinguir; por isso, condena o poder e a autoridade capazes de trabalhar pelo que não deveriam e de causar dano ao bem e à vida, ao invés de defendê-los. Pilatos não é Roma toda, mas sem dúvida significa um sistema jurídico que lhe revela as insuficiências, um estado humano involuído que lhe demonstra a cegueira. Quando o ponto de partida é a força, então a dura necessidade de defesa individual e social pesa sempre sobre a função judicante, que pode até tornar-se seu instrumento, transformando-se em injustiça. Apenas Cristo atingiu a essência do problema, dizendo: "Não julgueis". Quem, como o homem, está empenhado na luta, não pode conservar-se imparcial e, por isso, não pode julgar. Onde pode encontrar-se um juiz sem mácula? Só em Deus e é em Deus que o homem, insatisfeito com todos os demais, procura o verdadeiro juiz. Nas mãos da justiça humana, baseada na força, a espada é mais poderosa do que a balança e prevalece contra ela. A espada pesa e faz a balança pender do lado de quem a maneja, conquistou para si e a conserva para si. Não há outra solução; evoluir, evoluir, evoluir, para tornar cada vez mais leve o peso da espada, que sobre nossos ombros a involução atual coloca. Evoluir ao longo do caminho traçado por Cristo. A espada é a desordem pertencente ao passado, a balança constitui a ordem pertencente ao futuro. Trata-se de requilibrar as forças desequilibradas durante a luta. A evolução caminha da espada para a balança. Do dilema não saímos: ou melhoramos nesse sentido e, por meio da bondade e da lógica, alcançamos a verdadeira justiça, superando a força e pacificando-nos com a não-reação ou, então, continuamos a sofrer, quem sabe quanto, as consequências do sistema em vigor. No primeiro momento, sem dúvida, todos se aproveitaram do justo e pacífico seguidor do Evangelho. Se, porém, a força dá vantagem imediata, a lei de justiça está inscrita no coração do homem que, por instinto, condena a força e se sente obrigado a eliminá-la. Inaugurar o novo método no mundo feroz de nossos dias é, por certo, trabalho de mártires; mas a verdade é que, sem martírio, não se inicia civilização nova.

Esse o significado daquele primeiro encontro da Romanidade com o Cristianismo, primeiro impulso de renovação biológica. Problema relativo ao passado, ao presente e ao futuro. Hoje, dois mil anos depois, a humanidade aí retorna, um pouco mais madura apenas, com ânimo e estilo diversos, sem a intuição e a paixão dos mártires, mas com atitude racional, armada de ciência e técnica, de planos orgânicos sociais, de vastos recursos de enquadramento, secundada por grandes massas, mais ágeis e unificadas. O esforço é tremendo; a tentativa, enérgica; o momento, decisivo. De duas uma: ou sobre essas bases criar nova civilização e melhorar a vida ou, então, suportar durante séculos as tristes consequências do bárbaro e atual sistema da força. Sem dúvida, o pensamento social de Cristo é elevado, mas muito elevado mesmo. Mas, exatamente por isso, pertence ao futuro. A vida impõe o progresso e necessita de ascender. O Evangelho é o cume, o objetivo máximo. Quem quer que suba, porém, tende a atingir o ponto mais alto. De tempestade em tempestade, de revolução em revolução, a humanidade não pode ir a outro lugar. De guerra em guerra não pode encontrar senão a paz. O pensamento de Cristo representa o ciclo biológico da humanidade. Ninguém lhe escapa. É o objetivo da vida e aguarda-nos. Isso constitui verdade sempre nova; o tempo passa e ela se torna cada vez mais verdadeira e atual, porque se aproxima cada vez mais da realização. O Evangelho é um programa. A humanidade futura será fruto de sua execução.