As considerações do capítulo precedente levaram- nos ao interior e à substância do instituto jurídico-social da propriedade, esse com que o homem disciplinou o fenômeno biológico, comum até aos animais, da aquisição dos bens, fato que interessa sumamente à vida porque representa os meios necessários da sua continuação. Mas vimos que essa disciplina pára na superfície e que sozinha não é suficiente para regular estavelmente as forças do fenômeno. Não se nega com isso a importância dos ordenamentos jurídicos, mas observa-se que eles não sabem ordenar senão até certo ponto, e devem ser por isso completados com princípios mais perfeitos, que nos permitam penetrar mais a fundo na substância do fenômeno. Trata-se de progredir e sabemos que a evolução é processo de progressiva harmonização. Não se trata por isso de demolir nenhuma das preciosas conquistas já realizadas, frutos de fadigas e obra de gênio, mas tão-somente de continuar o caminho, de ajuntar coisa nova ao que já está feito e aperfeiçoar-se mais. Chegado ao mais alto grau de maturação espiritual, o homem espontaneamente se apercebe da insuficiência da disciplina jurídica para atingir a justiça, meta instintiva da vida, para conseguir a estabilidade, condição necessária à fruição. Nasce então a necessidade de completar-se, o que implica em mudança de posição e renovamento de método. Como na superfície das coisas há imperfeição, caducidade, agitação e desordem e, na profundidade, perfeição, estabilidade, calma e harmonia, assim também no fundo das coisas há justiça, embora a injustiça apareça no exterior. A evolução, levando o centro da vida para o interior, torna atuais e vivos, fazendo-os emergir do fundo, esses estratos mais inferiores. Vem assim à tona e se afirma a justiça, a que, também nos eventos humanos, é reservada a última palavra, não importa depois de que longas vicissitudes. Com a evolução aflorará mais evidente a substância das coisas, mais facilmente esta se revelará, reduzindo ao  mínimo o obstáculo da ignorância humana. Então, o método atual da força ou da astúcia será considerado como método de primitivos ignorantes das leis da vida, método de natureza falsa, desequilibrado, destinado por isso à ruína, método inútil, pelo menos em face do objetivo que se prefixou. Chegado ao mais alto grau evolutivo, o homem compreenderá que de fato no fundo, na realidade das coisas, existe balança de justiça, representada pelo equilíbrio desejado pela lei e que nela é inútil pretender colocar pesos falsos para obter de Deus uma falsa medida em vantagem própria, inútil porque essa força representa invisível peso verdadeiro, que cedo ou tarde faz tudo voltar à medida certa, segundo a justiça e a verdade. Dar-se-á então o valor merecido a este íntimo imponderável que, todavia, tanta força possui e a que hoje geralmente fugimos; compreender-se-á então como os valores reais, interiores, possuem, comparativamente, maior poder que os valores fictícios, exteriores.

Dado que a posse dos bens é buscada e necessária à vida, até imposta pela lei como coisa inderrogável, ela também representa um direito. Mas, para este poder realizar-se, é indispensável se verifiquem as condições supra mencionadas. Em tal caso, o direito atua espontaneamente; em caso contrário, embaraçado pelo próprio homem, não pode obter seu cumprimento. Se o homem seguisse a Lei, esta naturalmente proveria todas as suas necessidades. Essa é a base do fenômeno da Divina Providência, sempre pronta a intervir espontaneamente, apenas nossa conduta lhe permita, pondo-nos nas condições necessárias para que ela possa verificar-se. A garantia dos bens não nos pode ser dada por simples enquadramento exterior, que de modo algum é decisivo, mas acima de tudo pelas íntimas qualidades por nossa conduta conferidas ao próprio fenômeno, pela força com que o tivermos construído. É verdade que a posse dos bens constitui direito e o mundo está farto de bens a serem gozados pelo homem. Eles estão prontos à espera disso, debaixo das nossas próprias mãos; mas à posse se antepõe obstáculo criado pela ignorância humana, que não sabe apreendê-lo ou o apreende mal, violando a justiça substancial jacente no fundo do fenômeno da posse; ele se desfaz sem ela, que é necessária para que o direito de posse, inerente à vida, possa exercitar-se. Torna-se necessário compreender o erro e superar a ilusão. O que mais vale não é possuir, na forma exterior, mas na interior; não nos efeitos, materiais, mas nas causas, espirituais; não nas garantias legais, mas nas nossas capacidades e qualidades. A única verdadeiramente segura é essa riqueza inalienável que não pode ser roubada porque é inseparável da personalidade, dada pelas nossas próprias qualidades. É segura e duradoura porque é a única verdadeira, honesta, justa, em equilíbrio com as forças da vida. Isso deriva das próprias qualidades, é filho do mérito porque as qualidades só com o próprio trabalho se conquistam e nos tornam conceituados porque foi a nossa atividade e fadiga que as gerou e fixou. Se as possuímos é porque as conquistamos: Só então os bens são verdadeiramente nossos porque temos, fixadas em nós como instintos, as capacidades para sabê-los manter; e se os perdemos, para saber reconquistá-los. Doutro lado, quando possuímos as capacidades e, portanto, o mérito e, assim, o direito, o dinamismo do fenômeno é cheio de desequilíbrio e se esgota, cedo ou tarde: Então os bens tendem a fugir-nos das mãos; perdemo-los porque não os sabemos administrar e, perdidos, não sabemos reconquistá-los. Eis como finalmente, não obstante todas as protetoras barreiras humanas da injustiça, a interior justiça da lei emerge. Esta, através das mais profundas forças da vida, tende a exercitar essa justiça, com todos os seus meios. E o homem que procura usurpar esta justa posição que não corresponde a seu mérito é, com seus métodos de usurpação, o construtor da injustiça social. Bastaria seguir a natural lei de Deus para que espontaneamente reinasse a justiça econômica e houvesse o necessário para todos e por si mesmo se verificasse o equilíbrio entre capacidade, mérito, direito e gozo, equilíbrio que a lei quer e o homem com tanta fadiga procura violar.

Tudo quanto dissemos em relação à disciplina jurídica da propriedade e à posse dos bens não é senão aspecto do dinamismo fenomênico e dos equilíbrios de que ele se compõe e se sustenta. Pode dar-se a tudo isso sentido mais universal. Poderemos então dizer que a cada plano de evolução, corresponde grau respectivo de realização da justiça e nada mais. Quem age no nível das leis animais e lhe segue os métodos poderá obter posse, poder, domínio, vitória, como prêmio da sua fadiga, mas o prêmio será efêmero porque a estabilidade é característica de planos de vida mais evoluídos e harmônicos. Poderá servir-se da força e da astúcia, mas espere também ilusão e engano. O sistema da vida não contém, naquele nível, maior grau de justiça que esse. O homem não peça nem espere mais. Não fale mais de justiça verdadeira quem vive no reino da força; e não a espere também. A verdadeira justiça, que ele procura em vão, pertence a plano de vida mais alto e dele fica excluído quem venceu à custa dos métodos do mundo animal. Que ele se contente de dominar, vingar-se, esmagar. Isto lhe exaure o direito, porque já recebeu mercê. Apenas se enfraqueça, não invoque a bondade e a justiça, mas considere-se inexoravelmente vencido. Só o evoluído seguidor do evangelho se ri desse alternado jogo de desequilíbrios, entre vencedor e vencido, rico e pobre, patrão e servo. Mas só ele tem o direito de liberar-se porque só ele desfez a miragem necessária para induzir o involuído egoísta a afrontar fadigas e provas que doutro modo jamais seria induzido a suportar.

Os homens são desiguais; não pertencem ao mesmo grau evolutivo. Se os bens para manutenção da vida são-lhe indistintamente necessários, o modo por que os homens os procuram lhes exprimem a evolução, isto é, assume o papel de índice revelador da natureza humana. Aprofundemos a classificação dos tipos humanos com base no real valor biológico, de acordo com a real natureza do indivíduo; em face dessa natureza, como já dissemos, as distinções sociais têm valor todo fictício. Escalonemos, assim, os vários tipos humanos conforme os métodos de aquisição dos bens. Três podem ser esses métodos: furto, trabalho, justiça, próprios dos três tipos biológicos que sobem do involuído ao evoluído, isto é, o selvagem, o administrador, o espiritualista. Constituem três raças de homens, correspondentes às três leis da vida: fome, amor, evolução (História de um Homem – Cap. 23 e A Grande Síntese – cap. 78).

O primitivo escolhe, como meio de aquisição dos bens, o furto, ainda frequente neste mundo que chamam civilizado. O raciocínio é este: “Por que hei de cansar-me, procurando, com o suor do trabalho, ganhar o necessário, se posso facilmente conseguir tudo, roubando meu vizinho?” Nesse nível, a ignorância das reações das forças da Lei é completa; assim é inconcebível o princípio do coordenamento coletivo; e atingem o máximo a inconsciência do indivíduo e sua falta de preparação para formas de vida superadoras de animalidade. Psicologia desagregadora, caótica, anárquica. Manifesta-se desregrado e sem controle o instinto de subtrair para si mesmo tudo quanto satisfaça necessidades e desejos. O progresso é que, cada vez mais, ordena as coisas, visto que a evolução significa subida ao encontro de Deus e aplicação sempre maior de Sua Lei. De fato, apenas a humanidade retrocede, em crises de revoluções ou guerras, e a superestrutura jurídica desaba, a vida involui e, então, se reativa esse método do primitivo. E a disciplina jurídica, representada pelo instituto da propriedade, vacila e retorna ao furto, fase precedente mais involuída, de que a sociedade conseguiu emergir. No trabalho de construir e manter-se no alto, as coletividades humanas passam por esses períodos de cansaço, descensão e aniquilamento, em que retornam às primitivas formas de aquisição. Então, prosperam os involuídos, oprimidos pelo enquadramento da ordem social. A opressão só é sentida pelos involuídos, porque imaturos; no entanto, para os mais adiantados, essa ordem constitui a forma de vida espontânea e normal. Admitem-se os involuídos a conviver, nessa ordem, com os mais evoluídos, justamente para que aprendam; e, se de qualquer modo conseguem enriquecer, começam a participar dela; então, de inimigos transformam-se em seus mais tenazes defensores. Agora lhes interessa, ao máximo, defender a ordem e as instituições que antes combatiam e são produto de tipo biológico mais evoluído. Para maior fruição dos resultados do furto e da conquista violenta, procuram discipliná-los no Direito e estabilizá-los na legalidade. Assim, lentamente, pelo menos na forma, apropriando-se dos métodos de vida dos mais evoluídos, os menos adiantados procuram evoluir. Isso, porém, é apenas forma e sabemos que, na realidade da vida, vale a substância, não a forma. Os retardatários, os excluídos do banquete, os estratos sociais profundos aguardam a passagem dos vencedores da vida, que cresceram na forma e não melhoraram na substância, para fazer-lhes exatamente o mesmo que eles fizeram aos outros. E assim por diante. Neste plano, formado em grande parte pelo plano humano, só pode dominar um regime de perpétua luta, baseado na força e no aniquilamento, em estado de instabilidade completa. Esse método de aquisição não atinge; assim, o objetivo aparente, o de possuir, mas alcança o objetivo recôndito e real, o de induzir o involuído à aquisição de experiência e, portanto, a evoluir.

Essa desordem, porém, só pertence a este plano evolutivo. O sistema de forças constitutivas do fenômeno contém até mesmo os impulsos tendentes à própria auto-reordenação. Do que acenamos se vê como esse caos tende a harmonizar-se em mais evoluídas formas de vida. A fase da força tende a evoluir para a do Direito; o furto, a estabilizar seus resultados na fase de propriedade; e desponta novo método de aquisição de bens: o trabalho. Gradativamente se disciplina, desse modo, o desencadeamento caótico da agressividade conquistadora. O método do furto, inorgânico e violento, reordena-se no do trabalho, orgânico e pacífico. O egoísmo sobrevive, mas, suprimida a força, fica disciplinado no hedonismo econômico do "do ut des2", primeiro rudimento de justiça expresso no balanço entre o “deve” e o “haver”. A defesa não é mais a força, os músculos ou as armas, mas o Direito, o cérebro, a legalidade, a astúcia. Aqui o dinheiro é arma e o capital, poder; a violenta luta biológica para conquista dos bens torna-se a luta econômica de classe, do capital contra o trabalho e ao contrário. A indústria organiza-se; o Estado e o Direito regulador intervêm, para garantir, ressarcir, prever. Estamos em fase orgânica de coordenamento e estabilização. Essa a grande criação iniciada pelo Direito romano. Mas, ai de nós! Disciplina, e não justiça. Construiu-se a balança; ninguém, todavia, nos garante ser o peso justo. Cristo, solapando os fundamentos do Império, já pregava, muito mais que a disciplina, a justiça. Mas também é verdade: para chegar a esta, necessário se tornava passar por aquela. Não se poderia passar do plano da força ao da justiça, sem percorrer o trajeto representado pelo equilibrado método "do jus romanum3". As fases biológicas são contínuas e sucessivas. Hoje o mundo vive na segunda fase, a do Direito, isto é, a da disciplina da força e do furto, da organização da conquista, da legalização e estabilidade, mais ou menos completa, de seus resultados. Fase mais adiantada e complexa que a precedente; instável, mas ainda menos do que ela; tentativa de equilíbrio e não, ainda, o equilíbrio; e por isso tudo, fase em grande parte insegura, funcionando aos arrancos, em crises, quedas e novos surtos; tentativa de justiça, não, porém, justiça. Civilização de nome e forma, não de fato e substância.

A nova conquista de nosso século, sua grande realização histórica, é o advento da justiça social. Por isso, tantos sistemas, tantas lutas e destruições. A fase puramente jurídica e de economia hedonística, fase de disciplina e não de justiça, não basta para o homem novo do III milênio nem para as novas consciências coletivas dirigidas para justiça mais substancial. A afirmação do conceito de Estado; a nova concepção orgânica da vida social; a necessidade de sabedoria espiritual que guie a nova potência conquistada pelo homem, através da Ciência e da técnica; mais alto senso crítico da vida, que a maturação dos ânimos dá; eis outros tantos impulsos que se dirigem para ordem mundial mais justa e abrem caminho para nova fase biológica, em que a distribuição mais equitativa dos bens garanta a vida de todos e, finalmente, atue o princípio de justiça anunciado pelo Evangelho. Trata-se de inaugurar o sistema da estabilidade fornecido pelos equilíbrios espontâneos e substanciais, correspondentes às necessidades e aos valores intrínsecos, às qualidades e ao mérito; ele substituirá o sistema precedente, instável e involuído, das violações  contínuas e da justiça trabalhosamente atingida apenas através do exacerbamento de reações corretivas. Atuação difícil e demorada, porque o novo sistema presume o tipo, que falta, de homem mais evoluído. Na prática, ao invés, domina o imaturo, que, apenas com psicologia de involuído, sabe empregar esse sistema e desse modo o engana, desfruta e destrói. Todavia, o progresso não pode parar e essa é a sua direção. Trata-se de leis biológicas fatais, de objetivos que a evolução deve atingir e aos quais encaminha todas as forças, fazendo pressão para superar os obstáculos; trata-se dessa ordem divina presente na substância das coisas, ordem cuja realização é o objetivo da vida e deve, pois, cedo ou tarde, inexoravelmente realizar-se. Assim é que à primeira fase, caótica, baseada na força, em regime de violência, no qual a propriedade se conquista com o furto, se seguiu a atual fase de disciplina da força pelo Direito, em que o método de aquisição passa a ser o do trabalho; a esta segunda fase sucederá a terceira, orgânica, coletiva, de mais estreita disciplina do Direito pela justiça, e nessa serão títulos de posse: as qualidades, o mérito, o valor, as capacidades pessoais.

Temos; pois, três tipos humanos, que se revelam no método de aquisição dos bens, a saber: 1) o involuído ou selvagem: concebe apenas a defesa de si mesmo e o sistema do furto; 2) o civilizado: vive em sociedade, administra, organiza; concebe a defesa da família e do Estado e emprega o sistema do trabalho; 3) o evoluído: superou o egoísmo individual do primeiro tipo e o egoísmo coletivo do segundo; espiritualista, completamente desprendido dos bens materiais, administra-os apenas porque percebe ser essa sua missão e emprega-os somente como instrumento de trabalho para obtenção de objetivos morais; o tipo biológico, que vive conforme a justiça e não aceita bens senão de acordo com a necessidade, as qualidades, o mérito. Neste último caso, o limite e a medida das aquisições não se encontram, como nos dois primeiros, no Código, e não se impõem por meio de sanções punitivas; estão na consciência, espontaneamente inscritos. Infelizmente, os sistemas coletivos, chamados de justiça social, necessitam, para serem dirigidos seriamente, desse tipo raro de homem, e dificilmente poderão construir-se estavelmente com o tipo de homem hoje dominante, que em última análise pensa, de si para si, em coisa bem diferente da justiça social. Para compreender e exercitar essa justiça, princípio evangélico, é preciso ter alcançado o grau evolutivo do homem evangélico, isto é, do terceiro tipo. Mas os sistemas, embora inadequados aos homens, podem, por outro lado, servir para educá-los, amadurecê-los, prepará-los, assim, para futura realização. Para chegar a essa realização, torna-se necessária dupla e paralela maturação, individual e coletiva; sozinha, nenhuma delas basta. A primeira conduz a nova concepção da vida, do trabalho, da propriedade, a novo modo, consciente, orgânico e harmônico, de o indivíduo sentir e comportar-se no seio da coletividade humana e do funcionamento do universo. A segunda leva ao enquadramento do indivíduo em sistemas sociais orgânicos e passa, não por vias interiores, de persuasão, mas por vias exteriores, mais ou menos coativas; consegue, por isso, resultados formais, e não substanciais, porque, se os sistemas não são sentidos, sua atuação não é integral.

Para obter essa atuação, que deve ser estado espontâneo e de convicção, seria necessário aplicar o sistema ao tipo evoluído ainda inexistente em grande massa, de que é ilusão presumir-se a existência; para a formação desse tipo, todavia, esses sistemas podem contribuir, através da prática educativa e formadora de novos hábitos e instintos.