A vida é uma obra na qual o fruto dos nossos trabalhos está humanamente destruído. Onde se construiria, então, com estabilidade? No espírito. A vida é, como a criação, uma afirmação que, com a evolução sempre criadora, se faz sempre mais clara e mais forte.

O nosso personagem chegava, já agora, ao outono da vida e não enfrentava a velhice e a morte com a amarga desilusão de ter perdido o seu tempo, após as instáveis construções do mundo. Vários anos se passaram desde a sua reação e ressurreição, durante os quais ele aplicara o preceito evangélico "ama o teu próximo", prodigalizando-se por todos os meios, superando todos os obstáculos, consumindo a sua existência para o bem dos outros. Assim ele cumpria inteiramente a sua fadigosa missão e coroava o edifício espiritual de sua vida, fazendo recair sobre os outros o fruto de sua própria experiência.

Os impulsos de seu destino estavam, assim, saciados e tranqüilos pela sua realização. O seu destino cumpria-se. Ele o compreendera e seguira-o. Percorrera o seu Calvário e dera sua pequena mas obrigatória contribuição para o bem dos homens. O espírito vencera, mas seu instrumento físico já não reagia, estava abatido, exausto. Mas já agora ele podia partir. Tinha esse direito, depois de haver carregado a sua cruz e cumprido a sua missão. Antes não o poderia ter feito. Não se tratava da fuga antecipada para fugir às provas, mas era a paz da alma que se coloca nas mãos de Deus depois de ter cumprido sua obrigação. A sua vida dera seu rendimento. As adversidades, em lugar de serem evitadas como obstáculos, tinham sido compreendidas e guiadas de modo a ajudar. Ele falara, trabalhara e agora se retirava em silêncio para ceder o passo aos novos rebentos, a esta maré de humanidade que tem sede e dever de viver no seu reino terrestre. Ele, que vivera no espírito, podia agora ressuscitar no outro mundo, além da morte.

Que imensa fila de gerações o precedera e quantas o seguiriam! Quantas lutas, que infinitas dores antes da sua para reparar as conquistas espirituais e materiais de que ele se beneficiara! Organicamente, intelectualmente, moralmente, no bem e no mal, ele era o resultado de um interminável caminho percorrido e do qual seguira apenas um último trecho. E consignava agora aos outros o patrimônio comum de miséria e de força, como dos outros o recebera com o imperceptível acréscimo da pequena semente deposta pelo seu cansaço de uma vida – uma gota no oceano, um átomo no infinito. No entanto, uma gota e um átomo são mundos.

No fundo de sua infinita pequenez, sentia a infinita grandeza do indestrutível, a beleza da confraternização entre as gerações, a sabedoria do plano orgânico da evolução. E se abandonava à lei de Deus, sorrindo – do providencial pequeno egoísmo posto em defesa de cada um para que o todo se cumpra, sorrindo da aparente dispersão do seu pequeno eu, ele que se sentia saciado de sua ressurreição no todo e de sua indestrutibilidade numa tão vasta vida coletiva.

Retraía-se, agora, em silêncio para contemplar o trabalho realizado. Como os outros, envelhecendo se comprazem na contemplação dos filhos que os circulam, e as terras, as riquezas, o poder, a glória conquistadas com seu trabalho – assim ele se satisfazia contemplando sua obra literária, nascida da sua mente e do seu coração, a sua obra construída com tanto amor e trabalho. Como os outros, dera o seu fruto, embora diferente. Como os outros deixavam filhos e obras, ele deixava o seu pensamento e o seu exemplo, atirados sobre a terra como semente para que se multiplicasse no coração dos homens. Se na primeira parte de sua existência enfrentara o problema e carregava a cruz da própria vida, só na segunda parte contemplara a obra enfrentando o problema do bem dos outros, ajudando-os a carregar a cruz de suas vidas. O trabalhador fica satisfeito com a contemplação da própria obra e recorda a fadiga suportada, as dificuldades superadas e só agora, contemplado o trabalho, tem dele inteira consciência. Só agora, também, ele compreendia a lógica de seu destino e a justiça das provas humanas e compreendia que só quem cumpriu o seu dever é que se pode apresentar de cabeça erguida diante de Deus na hora da morte. O que está feito será creditado.

De outro lado, esquecendo-se de si mesmo e do seu passado trabalho e olhando para frente, aparecia-lhe cada vez mais clara a radiosa visão do futuro do mundo, que viveria em maiores medidas, com a sua mesma lei, a sua mesma pequena experiência. Quantas lutas, trabalhos e perigos desfeitos! Mas a vitória final estava garantida. Via as forças em ação no destino do mundo, observava a direção dos impulsos, e as sementes, apesar das dificuldades, deviam amadurecer. E via esplender, no alto, o triunfo do espírito, via realizada a utopia, compreendendo que o Evangelho não o enganara e não enganava o mundo e que o reino dos céus anunciado por Cristo desceria verdadeiramente à terra.

O futuro biológico dos povos não está apenas no progresso econômico, social, científico, cultural –, mas sobretudo na ascensão espiritual e moral que é a base de todas as outras ascensões, sem a qual essas não poderão se suster. Via, agora, frutificar o sangue dos mártires, o tormento dos incompreendidos, o cansaço dos solitários repudiados e condenados. Via os ideais, depois de tanta luta e tantas quedas, realizados numa humanidade melhor para a qual o inferno terrestre se transformara num paraíso terrestre. Então, também para o homem o trabalho estaria terminado e ele poderia se comprazer na contemplação de sua obra e, junto à conclusão de seu destino humano, entregá-la nas mãos de Deus, dizendo: "Eis, Senhor. Obedeci às tuas ordens, o teu pensamento está realizado, a obra que me confiaste está pronta. O teu operário, ao fim de sua jornada no mundo, entrega-te. O caos se tornou ordem. Carreguei tanto a tua cruz que a dor se transformou em alegria. Tanto errei que a ignorância se transformou em sabedoria. Tantas vezes caí que o mal se transformou em bem. Tanto caminhei que cheguei ao fim e te encontrei. Retomei, com meu trabalho, o caminho da redenção. Agora, o antagonismo entre a terra e o céu já não terá sentido. Cairá e ambos se confundirão num único abraço para que a redenção se complete. Terminará a grande ilusão do mundo. A figura de Cristo brilhará na glória dos céus, triunfante e vitoriosa".

Neste triunfo longínquo o nosso personagem via reviver o seu sacrifício, sua pequena contribuição, dada com tanta fé, com tanta paixão, com tanto trabalho e sem restrições. Nesta visão ele podia morrer satisfeito, agora que seu caminho chagava ao fim. Via tudo reviver ao longe, no tempo, nas gerações futuras. Seu egoísmo dilatado eclodira no altruísmo e não era aquela utopia que o mundo julgava. Em verdade, ele renascia e revivia nos outros. O altruísmo não fora vão, nem mesmo para ele. Haver-se dado não fora perda, mas lucro. O maior rendimento lhe vinha justamente da segunda parte de sua vida, na qual se esquecera de si mesmo para se ocupar apenas do bem alheio. No triunfo das gerações futuras ele revalorizava o seu trabalho e se reencontrava.

Compreendia agora que o amor e não o ódio, o bem e não o mal, são a verdadeira lei da vida, tão fundamente potente e irresistível que supera todos os obstáculos. Compreendia que aquela lei é a espinha dorsal do organismo do mundo, a estrada real sobre a qual caminha e avança a evolução. Compreendia a vaidade final do contínuo esforço das trevas para vencer a luz. Compreendia que os assaltos do mal e a queda do homem não eram senão pequenos episódios ante uma ordem maior que dizia: " Progresso e amor". Compreendia que destes se esperava a vitória final, não obstante as resistências e os sofrimentos.

Sua vida terminara como se termina um processo experimental do que ele tivera lúcida consciência em sua significação interior. Seguira o seu caminho pelas imponderáveis estradas do espírito e com os métodos e as diretrizes objetivas da ciência positiva. Vivera o fenômeno do seu destino sempre controlando o seu desenvolvimento. Chegado à última fase, estava diante do resultado final: para ele, a significação de sua vida e para o leitor talvez a conclusão do livro. Este resultado diz que quem vence na vida não são as forças negativas e destrutivas, mas as que afirmam e constróem. A luta será longa e terrível, a fadiga enorme, os assaltos atrozes, os obstáculos tenazes – mas ao fim, o bem e a luz triunfarão, porque o homem é feito para o bem e para a luz e não para o mal e para as trevas que ele sente, com inflexível instinto, como sendo a sua infelicidade e a sua mais triste condenação.

A moral de sua vida, como a deste livro, é que o mal está contido entre os limites do bem, somente permitido para os fins do bem; que diante do verdadeiro Deus do bem não há um contra-Deus do mal. O dualismo é apenas humano, transitório e aparente – é um contraste necessário para permitir o movimento ascensional. Mas no centro, na substância, reina um único princípio, e seria absurdo que ele abrigasse o germe de sua própria destruição. Um Deus que tem que descer para lutar frente a frente com um contra-Deus já não é Deus; é uma gradação de potências diretoras seria politeísmo.

O bem vence. O bem é o padrão. Há, sem dúvida, no universo, uma grande lei de dualidade segundo a qual tudo o que existe é composto de duas partes que se completam, dois impulsos contrários que se equilibram. Cada unidade é dada por este par de forças que é um contraste e um acordo e que está na base da existência. Mas, se cada coisa e cada conceito tem o seu oposto, os dois termos não têm a mesma força. O termo afirmativo está na direção da evolução e da vida, o termo negativo é contrário. O primeiro segue a corrente, o segundo é resistente. Não bastante este fundamental antagonismo, necessário para o trabalho do progresso, quem está destinado a vencer, dada a construção orgânica do universo – não é o mal, mas o bem; não as trevas, mas a luz; não a dor, mas a alegria; não é o não, negador e destruidor de Satanás – mas é o sim, a afirmação construtora e criadora de Deus. Esta é a conclusão da vida e do livro. Aqueles que concluíram ao contrário pertencem às forças negativas, satânicas, de destruição. Este livro é construtivo. Não demole negando, mas cria afirmando. Está do lado de Deus. De tanta dor nasce para o nosso homem, para si e para o mundo, o mais radioso otimismo. Estas afirmações, feitas com tanta segurança e firmeza, baseadas na experiência, servem de conforto aos que lutam e sofrem pelo bem. Se outras vidas e outros livros querem concluir em contrário, isto quer dizer que o homem tem a liberdade de fechar os olhos para não ver e de se mutilar e suicidar para não progredir. Mas quem nega destrói primeiramente a si mesmo, dirige-se à morte e não à vida. E as trevas são terríveis e a descida é espantosa para o ser que foi feito para subir. Os que têm olhos amam a luz e quem tem pernas precisa caminhar. A evolução dirige-se para a alegria e a vida; a involução se dirige à dor e à morte.

A caminhada humana do nosso personagem chegava ao fim. Ele a compreendera e vivera em plena consciência, como indivíduo por si e depois pela coletividade. Compreendera o momento histórico em que vivera e procurara integrar-se plenamente nele. Harmonizara-se não só com as forças do seu destino, mas também com as que operam o destino do mundo. Considerava esta areia sutil dos homens que formam os povos, como as praias do oceano sobre as quais se abatem as grandes ondas da história. E essa areia recebe e registra a marca dos grandes golpes dos gênios, das revoluções, das reformas sociais. A marca se imprime e a resposta nasce na alma do homem comum, mas tão multiplicada no número que se torna tão grande como o oceano. A alma é memória conservadora, acumuladora e elaboradora. É a grande reserva biológica da qual tudo nasce e à qual tudo chega e se estampa. Tudo o que se vive permanece este imenso reservatório de registração, de experiência, de sabedoria e de valores biológicos como uma síntese constante de vida que depois renasce a cada passo na vida e para a vida.

Quem nela atirar uma semente, reviverá com ela. O passado é uma força criada por nós, que ressurge sempre, indestrutível no destino individual como no coletivo. Bem e mal, vitória e derrota, mérito e culpa – tudo se escreve no sangue dos povos e forma o patrimônio da própria riqueza ou o fardo dos próprios débitos. Tudo volta a nós, como uma onda propícia ou inimiga e temos que a suportar e esgotar. O nosso passado nos segue e nos persegue e não haverá paz senão quando vier a exaustão. É esta fatal solidariedade que encadeia uma à outra as gerações, como no indivíduo liga os vários momentos de sua vida. Quem no passado concebeu um ideal, seja ele homem ou povo, moveu uma força naquela direção, cedo ou tarde verá que ela ressurge, ativa, para se realizar, ajudando-o a elevar-se até àquele tipo. A concepção ideal é um impulso que, uma vez excitado, tem irresistível tendência para se realizar. E assim, de modelo em modelo, se faz a escalada para a evolução. Aos povos sem ideal falta também a capacidade de plasmar o futuro, falta o impulso do progresso, falta a linha vital da renovação e do aperfeiçoamento. Os povos que não têm um alvo sempre mais alto para atingir, são povos incapazes de ascender, sem futuro, destinados à desaparição. Quem se fecha, morre. Onde falta o ideal à frente da vida, os povos não tem história e são inexoravelmente sobrepujados e submersos.

No caso de sua vida, o nosso personagem olhava em torno. Via que, apesar de tudo, o mundo lutava para avançar, tentando realizar a justiça social, em direção a um novo estado orgânico harmônico, moral, consciente. Era este o trabalho construtivo que se cumpria em sua hora histórica. A nova realidade se preparava, estava iminente. Na plena consciência do momento, ele dera a sua pequena contribuição apesar de todas as dificuldades, lutando e sofrendo na sua dura vida de trabalho. E nessa semente ele sobrevivia. Sua missão era, portanto, verdadeira; ele a cumprira e seu destino se desenvolvera logicamente até o fim. Apesar de todas as tentações, jamais renegara a Cristo e Cristo não o traíra. A árdua experiência evangélica dera resultado. O bem vencera contra todas as forças do mal. O ideal não fora utopia; permanecia, contra todas as negativas do mundo. Isso dera uma grande luz á sua pobre vida, transfigurando as provas e as dores, dando-lhe uma significação potente e uma altíssima finalidade.

Estas conclusões lhe vinham dos fatos, da realidade de uma vida que fora vivida no mundo, uma vida que o conhecia bem, por tê-lo enfrentado. Seguira pelo caminho do espírito como força viva e vital. E agora levava consigo o resultado moral desta gigantesca experiência. Individual e coletivamente, sua vida não fora vivida em vão.

Percorrera corajosamente até o fim o caminho da cruz, vencendo todos os obstáculos e todas as resistências. Compreendera e vivera a fatalidade da lei biológica da cruz, sem a qual o ideal não desce à terra. Mas tinha, depois de tanto lutar e sofrer, compreendido por fim a fatal continuação e conclusão daquela lei, vivera a fatal conclusão do ciclo que, a todos os que têm a coragem e a força de segui-lo até o fim irresistível e inexorável, impõe esta conclusão: Ressurreição.