A Grande Síntese

  Entendemos a evolução do fenômeno guerra como momento da evolução da força para a justiça, por meio do direito, como fase de ascensão coletiva. Disse-vos mais atrás que, num mundo que se arma todo contra si mesmo, só existe uma defesa extrema: o abandono de todas as armas. Essa frase pode parecer um absurdo e é mister explicá-la. Expus, então, o grau mais elevado, do qual o homem se aproxima por graduais passagens. Mas o esforço precisa ser total a fim de alcançá-lo, como nos caminhos da evolução individual, introduzindo na vida dos povos o máximo de disciplina suportável. Infelizmente, nas coletividades mais involuídas, o uso da força pode constituir uma necessidade, especialmente de defesa, a fim de impedir a explosão do mal. Nos primeiros níveis, as civilizações não podem erguer-se, senão cercadas por uma barreira de violência que as proteja da própria violência e uma defesa ampla e previdente pode implicar também em uma ofensiva. Hoje, porém, o mundo possui vários focos acesos de civilização e a zona de barbarismo influi sempre menos, e menos ainda se justifica um regime de violência. Assim como no progresso que vai da força à justiça, no direito interno, também as forças da vida trazem um progresso da guerra para a paz: disciplina de forças e coordenação de energias, atuantes no direito internacional. Assim a evolução produz, mesmo neste caso particular da força, um progressivo cerco contra a guerra, tendendo a eliminá-la. Os absolutismos pacifistas, idealizados e isolados, hoje são utopia como realização, embora já lhe brilhe o ideal das aspirações humanas; eles constituem objetivo e tendência, e tanto se luta para consegui-lo.

   Hoje, os armamentos são uma dura necessidade, mas testemunham, com demasiada evidência, o estado selvagem do homem atual. Tendo em vista a fase atual de inconsciência coletiva da humanidade, esse mal é necessário. As armas não podem ser depostas, porque constituem indispensável condição de vida, enquanto a arma do vizinho está erguida  e pronta a golpear, guiada por uma psicologia de estreito egoísmo. É necessário aos povos se conhecerem para que - como acontece com os indivíduos na formação do direito privado - os círculos das liberdades individuais aprendam a tocar-se e respeitar-se, a fim de coexistirem e aderirem na unidade coletiva da humanidade; e aprendam a ceder aos direitos alheios, a fim de ser concedido lugar aos próprios, num estado de consciência coletiva superior. Um verdadeiro e próprio direito internacional não existe hoje e as relações entre nações ainda se encontram em estado caótico.

   Também aqui o equilíbrio tende a estabelecer-se pela lei do menor esforço; não um pacifismo inerte e teórico, mas uma ordem internacional que representará tão grande vantagem social que, logo que a consciência coletiva conseguir compreendê-la, po-la-á em prática. Hoje, a humanidade vive numa fase de transição, em que se compreende a utilidade da paz, mas ainda não se sabe superar a necessidade da guerra. Entre essas duas leis oscila, e prevalece uma ou outra, de acordo com a maior ou menor força moral de que disponha. Entretanto, surgirão sólidos institutos jurídicos internacionais, hoje utópicos, que garantirão a vida e o trabalho dos indivíduos coletivos, os Estados, da mesma forma que as instituições privadas disciplinarão a garantia do ser individual. Em cada forma jurídica, a zona de justiça conquistada e da força que deve ser superada serão mais ou menos amplas, de conformidade com o grau de evolução atingido, e constantemente se deslocarão, exprimindo seu nível na própria forma.

   Todavia, a força dos armamentos, mesmo subsistindo como necessidade e preparação contra eventuais conflitos, tem de sofrer uma limitação contínua que lhe discipline o emprego. Só pode haver, no entanto, uma razão para existir: a de constituir defesa da justiça. O primeiro dique que se ergue é a grande responsabilidade moral de um estado que provoca uma guerra sem necessidade que a justifique. Dessa necessidade tem de prestar contas ao mundo que o observa. Eis um primeiro rudimento de autorização jurídica: o sentido da responsabilidade e o peso das consequências recaem sobre quem tem o poder de lançar a infernal máquina da guerra. Até há pouco tempo, os homens se matavam diariamente, como fato normal. Mas, como é mais difícil hoje movimentar a máquina dos exércitos, que se tornou complexa e gigantesca, em proporção às grandes unidades estatais! As armas permanecem, mas seu uso torna-se tão mais disciplinado e excepcional que, muitas vezes, sobrevivem somente como símbolo decorativo. A guerra requer cada vez menos ferocidade e mais inteligência, afastando-se do instinto sanguinário do selvagem. A disciplina é uma conquista biológica que eleva o homem, do estado original de anárquica rebelião contra tudo e contra todos, para um estado de coordenação de esforços e de organização de trabalho.

   Assim se introduz o elemento justiça, que limita o elemento força, reduzindo esta cada vez mais a uma fase de transição, realizando a libertação gradual do mal, tornando-a meio de evolução e construção do bem. Cada vez mais se sente a necessidade de refrear a expressão da força por meio de um conceito mais elevado, com uma alma mais nobre que lhe proporcione uma justificação; vê-se sempre mais a necessidade moral e racional de tornar o uso da força aderente a um princípio de justiça, porque se percebe que é justamente nesse imponderável que reside seu poder maior, o equilíbrio mais íntimo e mais alto, que domina e governa os equilíbrios mais externos e mais baixos da força material. Por isso, esta procura, espontaneamente, sua única justificação, que só pode ser um fim pacífico.

   Como a dor e o mal contêm em si os impulsos para uma auto-eliminação, assim a guerra existe para engolir a si mesma. O progressivo caráter mortífero dos meios bélicos, preparado pelo progresso científico, torná-los-á sempre mais desastrosos; seu maior poder destrutivo destruirá a guerra, porque a crescente sensibilidade humana e a consciência mais profunda sentirão cada vez mais horror e medo. Os organismos sociais obedecem sempre menos aos impulsos irrefletidos do momento e a ordem futura se prepara, com visão distante e a longo prazo. Também existe a Lei que intervém, impondo como reação a dor, para cada violação. Coage assim o homem inapelavelmente para a via da justiça: "Quem usar a espada morrerá pela espada". Acima da força dos exércitos, transparece cada vez mais evidente a outra, mais sutil dessa Vontade suprema, que leva à ordem e, assim, esmaga o mais forte. Há uma força mais alta à qual a outra obedece. Quando os exércitos mais aguerridos se precipitam, aparece a mão de Deus e as forças da vida se insurgem para dominar o rebelde. A história também está regulada por esses equilíbrios mais profundos, que se erguem e se impõem, força mais forte que todas as forças humanas. De nada vale o poder material se estiver maculado na base por essa fraqueza substancial; o arbítrio humano do mal é cerceado pela Lei dentro dos limites inexoráveis do bem. Mesmo na fase atual, para obter seu rendimento, a força tem de harmonizar-se com esses impulsos maiores de justiça; sua justificação só pode dar resultados estáveis como reconstrução da ordem.

   Como observais, não falo de formas nem de métodos, vou sempre à raiz dos fenômenos. Falo de maturação de forças biológicas. Não enfrento os homens, mas as leis que os movimentam, penetro nas causas, não nos efeitos. Concomitantemente, levo em conta a natureza humana como é atualmente e a lei que impera nesse nível. Se a guerra existe no mundo, ela corresponde ao instinto da maioria, porque esta é a forma atual da seleção biológica, porquanto corresponde a funções automáticas de equilíbrios demográficos. O homem normal é feito para a guerra (seleção); a mulher, para a maternidade (conservação). Enquanto vos moverdes neste ciclo e a guerra persistir na alma egoísta do mundo, as relações internacionais se basearão na força e será necessário a quantidade como meio de vida e de grandeza. Mas lembrai-vos de que a quantidade jamais poderá criar a qualidade; o valor supremo do homem não consiste em abandonar-se irresponsavelmente à função animal de procriar, mas reside em enfrentar consciente e responsável a função moral de educar. Não sendo assim, a quantidade degrada a raça. Será possível sempre o mesmo círculo vicioso: aumentar o número para guerrear e depois destruir-se? Será possível que as duas grandes forças da virilidade e da maternidade fiquem sempre fechadas num ciclo de autodestruição?

   Ao contrário, esse ciclo abre-se por ascensões progressivas, para sublimação desses instintos. Num nível mais alto, o homem é feito para o trabalho, para a criação material e espiritual, para o domínio sobre a natureza e sobre si mesmo; a mulher é feita para o sacrifício e a formação de almas, esta é a meta substancial.

   Se em vosso nível humano a guerra é meio proporcional à vossa baixa forma de evolução e sua abolição é utópica, essa guerra, ainda que hoje um mal necessário, só pode ser aceita como mal transitório, meio que leva a um bem mais elevado, como holocausto do presente bárbaro que se enfraquece pelo atrito, apenas para a construção de um futuro mais radioso. Para mostrar um conteúdo de justiça à guerra não basta uma superprodução populacional concentrada em uma parte do globo terrestre. Isto é apenas choque de forças demográficas. É preciso dar à guerra um conteúdo ideal de civilização; tornar suportável esse mal, por sua transformação em instrumento de bem. Assim a guerra se nobilita com heroísmos, anima-se pela espiritualidade, idealiza-se pelos martírios. Elevada a guerra a esse nível, a ferocidade do sangue derramado transforma-se em apoteose de sacrifício. Porque então já não mais se luta pelo heroísmo ou pelo saque, mas por uma fé que paira no alto. A guerra então atinge sua mais alta meta de formação da alma coletiva: torna-se imolação de si mesma no altar da pátria e é denominada santa.

   O homem pensa mandar e, no entanto, obedece sempre, constrangido pelo instinto, à vontade da Lei. Instituições, leis, todas as manifestações sociais não são substância, são forma, são a veste exterior de forças biológicas. Os verdadeiros responsáveis, mais ou menos iludidos ou guiados, são os povos que, com justiça, carregam o peso da própria involução. Os chefes apenas transmitem um comando que não seria compreendido nem obedecido, se não correspondesse a uma ordem mais profunda que domina a todos. Eles são escolhidos e elevados a seus postos só enquanto sentem os instintos da coletividade, exprimem-os e a eles obedecem. Os grandes caudilhos foram meramente expoentes que personificavam a verdade do momento e executavam essa função coletiva, porque a Lei não abandona jamais os destinos dos povos ao arbítrio de um homem. Não confundais a forma com a substância, habituai-vos a vê-la nos fenômenos históricos; em cada manifestação, pesquisai sempre a ação sutil e substancial dos impulsos biológicos, que fazem de povos e de chefes um organismo único, dirigido para metas idênticas.

   Entretanto, à proporção que a evolução ergue o homem para cada vez mais longe de suas origens animais, também se eleva a forma da luta. Aos três tipos de homens que estudamos, correspondem os três métodos de combater, que lembram os três níveis da substância:γ , β, α . Assim temos: luta material, ou seja, supremacia brutal do mais forte, embora ilícita e injusta. Luta nervosa e volitiva, supremacia do poder da vontade, dos meios mecânicos, econômicos, mesmo que isto não constitua convicção nem verdade. Luta espiritual, em que o dinamismo físico-muscular, como o volitivo-nervoso, é superado por uma supremacia espiritual e conceptual, propriedade do super-homem. Sua luta é fundamentada na justiça e mobiliza o dinamismo das forças cósmicas. Neste sentido ele é o mais poderoso, embora humanamente inerme. Lembrai-vos, porém, que no alto o arbítrio se anula e a desordem é recalcada para baixo. Ah! Se soubésseis quanta harmonia reina nos planos mais elevados!

   Sei muito bem que o homem de hoje só se eleva até o segundo tipo de luta, sendo arriscado pedir-lhe antecipações imaturas e precipitadas do futuro. Existe uma lei de estabilidade no desenvolvimento do que é novo, e é mister ajudá-la. Para abandonar o velho, precisa antes ter criado o novo. Depor os instintos de luta, mesmo na forma mais baixa, pode significar para os povos de hoje fraqueza e decadência. É necessário antes ensinar-lhes a superar a atual fase evolutiva e a conquistar instintos mais altos: como sempre, é preciso transformar o homem antes dos sistemas, a substância antes da forma, começando por alcançar a consciência da responsabilidade, que implica o uso da força. O progresso não reside na renúncia à força - que pode ser fraqueza de impotentes - mas no domínio da força, que constitui consciência dos poderosos.

   Deduz-se de tudo isso o quanto é impraticável, apesar das afirmativas dos idealismos teóricos, um programa imediato de paz universal, se antes não se souber determinar as condições biológicas necessárias à sua manutenção. A paz universal será obtida, mas pensai de que edifício imenso ela representa a construção. Para atingir a conquista mais elevada, é indispensável amadurecer antes todas as que a condicionam. Só então essa paz não será utopia, porque o mundo e sua alma estarão transformados e maduros. Os atuais idealismos pacifistas, que exprimem a grande aspiração e indicam o caminho, são, biológicamente, conceitos recém-nascidos, menos solidificados nos instintos; os equilíbrios estão menos estabilizados e, portanto, prestes a cair ao primeiro choque. Todas as construções ideais, mesmo codificadas, estão expostas a esse perigo de degradação que, à primeira sacudidela, reconduz os novos equilíbrios, por demais delicados, a estabilidades mais baixas e mais simples, porém mais resistentes. Sempre pronto a ressurgir logo que desabe a superestrutura, está o substrato biológico das necessidades animais, para onde retrocede o equilíbrio muito arriscado, a fim de garantir a vida.

   A escada da ascensão não se sobe senão degrau por degrau, solidificando antes as bases. Não são fáceis vôos pindáricos nem ressonâncias retóricas, para que a paz não seja utopia, mas um trabalho de aproximação, áspero, tenaz e prático. Têm que amadurecer antes as condições biológicas e psíquicas. Já é muito ter visto e compreendido pela primeira vez na história do mundo, o absurdo lógico, moral e utilitário da guerra. Esse absurdo torna-se cada vez mais evidente e repará-lo é mais urgente. Concomitantemente, a mortalidade progressiva pelos armamentos e crescente peso econômico despertarão o interesse coletivo, que se rebelará a tantos gastos. O mundo aterrorizado pela possibilidade de destruições incalculáveis, armar-se-á concordemente apenas contra quem queira perturbar a ordem, arriscando a destruição da civilização. Então a força sobreviverá somente como instrumento de justiça, não mais de desordem, mas de ordem.

   Esse mesmo reconhecimento de direitos e deveres, a que se chegou nas relações entre cidadãos, terá de ser alcançado, também, nas relações entre povos. O direito internacional está em seus alicerces. Por que seriam lícitos o homicídio e o furto, na guerra, quando dentro do país é proibido pelas leis? Isto demonstra que as relações entre povos ainda esperam um direito que as discipline, pois ainda estão no estado caótico da violência, na fase sub-legal; a ética internacional apenas nasceu. Este "eu" maior coletivo, que é a consciência nacional, ainda se encontra na fase embrionária; tem de conquistar sua moral, que venha a exprimir a lei das coordenações nacionais. Nascidos há pouco, os organismos estatais, apenas formados, ainda não sabem reordenar-se como células componentes do organismo mais amplo: a humanidade. Como o indivíduo no estado de bárbaro, as nações têm apenas a força, não a lei, para defender suas vidas. As nações são indivíduos isolados que, no máximo, buscam reagrupar-se em alianças, a fim de formar maiorias protetoras e equilíbrios de forças. Os povos vivem fora da lei e fora da ética; o trabalho de gerações futuras será de criá-las.

   Com o progresso, as forças da ordem unir-se-ão contra as forças da desordem; os povos rebeldes serão cercados e isolados, tal como dentro do país se cerca e isola o delinquente, como perigo social. Nascerá nova ética internacional, mediante o choque de tantas guerras; a dor e o sangue, através de aperfeiçoamentos contínuos, ensinarão a gerá-la. Pois, esta é a finalidade da luta e seu único resultado duradouro: a evolução dos conceitos diretores e a conquista de uma consciência coletiva mundial. Se já custou tanto esforço e tanta dor a construção do instinto da convivência social entre indivíduos, quanto maior esforço e dor não custará a construção desse instinto muito mais complexo, de convivência internacional? Por isso, cada guerra não acontecerá em vão; os povos se chocam para conhecer-se e compreender-se; agridem-se, porque dos choques alternados entre vencedores e vencidos, aprenderão a reconhecer de toda parte o direito que tem qualquer povo à vida; viver e não sobreviver apenas, não dominar nem oprimir, mas coordenando-se na unidade maior para a qual sobem: a humanidade.

   O instinto das massas transformar-se-á em dinamismos igualmente viris, porém mais elevados; em produtividades mais benéficas e morais. Outras batalhas incruentas aguardam o homem: coalizões pela defesa das conquistas do espírito, contra quaisquer atentados de degradação da estrutura social; outras lutas, não de armas nem de povos, serão as do amanhã: lutas de idéias, a guerra santa do trabalho, a virilidade do dever, o esforço da construção de consciências. O grande inimigo será o desconhecido: as forças da natureza, os baixos instintos que têm de ser superados; o grande trabalho será a direção das leis da vida e a ascensão humana. Somente então, emergindo do desembaraço da desordem, o homem conquistará nova potencialidade na ordem. Aí os mais fortes, os melhores, serão os mais justos. Da soma de tantos impulsos produtivos, emergirão povos supremamente fortes e vitoriosos.

   Como no direito, a força evolui para justiça, também o egoísmo evolui para altruísmo. À proporção que a vida eleva os indivíduos para mais altas especializações, reorganiza-os pelo princípio das unidades coletivas, em unidades sociais cada vez mais complexas e compactas. A diferenciação dos tipos e das aptidões levaria ao afastamento das criaturas e ao desregramento social, se outra necessidade não os aproximasse e outra força não os reorganizasse em formas de convivência, em que a atividade de cada um pudesse obter maior rendimento. A evolução produz, então a demolição progressiva do egoísmo, como produzira a da força, porque precisa de novo instinto coletivo de altruísmo, que constitui o cimento precioso que amalgama os impulsos egocêntricos e exclusivos das criaturas. Na evolução social, o egoísmo terá de sofrer profundas modificações. Como todos os impulsos da evolução, ele domina enquanto o progresso o exige, depois se supera e se transforma diante de novo progresso. Assim se explica como pôde nascer, num mundo de necessidades ferozes, os princípios de altruísmo e de bondade, tão mortais para o eu, tão antivitais no sentido restrito, num momento em que se inicia uma ordem de vida que revoluciona todas as precedentes.

   Não basta dizer que são duas leis sucessivas. Indispensável dizer que a mais elevada é sempre mais útil do que a menos elevada. A natureza, extremamente econômica e conservadora, não comete prodigalidades gratuitas. Se as faz, é visando a utilidades coletivas e a longo prazo. Assim nascem os altruísmos do amor, a abnegação materna, os heroísmos em defesa de um povo, de uma idéia. De modo que o altruísmo é apenas um egoísmo mais amplo. Tanto mais amplo, quanto mais esteja dilatada a consciência individual e o campo que ela abarca. O primitivo vê somente seu pequeno eu e se isola no momento; não se sente viver nos tempos e na humanidade. Em sua miopia psíquica, isola-se em seu próprio bem pequeno, separando-se do bem coletivo. É absolutamente inepto para viver num regime de colaboração, em que a consciência mais evoluída tem necessidade de multiplicar-se.

Essa consciência coletiva é uma força, a força do homem civilizado. Por isso, o selvagem, embora isoladamente mais forte e belicoso, torna-se inferior na luta, porque não sabe organizar-se, nem manter-se organizado em amplas unidades coletivas, que formam a potência de meios e de resistência do civilizado. Quanto mais o homem é evoluído, mais fortemente sente a Lei que lhe impõe olhar para trás e doar-se para auxiliar a caminhada dos menos evoluídos, para que a evolução caminhe compacta.

   Já vimos ("Evolução do princípio cinético da substância") que a Lei guia a energia para inclinar-se sobre a matéria a fim de animá-la com seu impulso e elevá-la ao nível da vida e depois impor à vida, filha da energia, a elaboração da matéria até o psiquismo. Essa mesma lei de coesão, que obriga a uma retomada de movimentos inferiores para que revivam em oitavas mais altas, faz que o alto se volte para baixo, para que este seja sempre retomado no ciclo evolutivo, e nada fique abandonado fora do circuito e apodreça no fundo, fora da grande caminhada. Essa lei que assim quer, é a mesma que impõe ao super-homem (santo, herói, gênio) que se sacrifique pelos irmãos menores: é o móvel de seu instinto irresistível de altruísmo e de martírio. Incompreensíveis dedicações em vosso mundo, em que não se realiza um esforço sem que seja pago: o mais forte manda; o mal é evitado apenas por medo do castigo e o egoísmo triunfa. Pequeno círculo este, que não tem portas para a compreensão da grande Lei. No entanto, aqueles são altruísmos lógicos, verdades simples, forças racionalmente vinculadas de um extremo ao outro das fases de vosso universo e de vosso concebível.

   Paralela à formação e desenvolvimento do psiquismo ocorre também esta dilatação do egoísmo que, sentindo-se uno com todos, acaba abraçando a todos no próprio cálculo hedonístico. É um agigantar-se da compreensão, até que aconteça o amplexo a todas as criaturas irmãs. A amplitude do abraço indica a amplitude da compreensão; processo de auto-eliminação das formas inferiores, como vimos na evolução.  Não um altruísmo abstrato, sentimental, irracional e sem utilidade, mas um altruísmo sólido e resistente, porque utilitário. A Lei não se manifesta como princípio abstrato, mas aparece continuamente como manifestação concreta, personificada nos seres que, em suas formas de vida, representam os seus artigos. O egoísmo é expressão de insuprimível força concêntrica e protetora das individuações. A luta contra tudo aquilo que não é o eu, é a primeira expressão e a prova da formação de determinado tipo de consciência: logo que assoma na vida, tem que defender-se. Consciência e egoísmo do indivíduo, da família, do grupo, do povo, da raça, cada vez mais amplos; consciência de uma distinção absoluta entre o eu e o não-eu. A dilatação só pode ocorrer, para conservar a estabilidade dos equilíbrios, quando acontece a estabilização do tipo de consciência e de egoísmo inferior.

   Altruísmo, por isso, não é renúncia, mas expansão de domínio; não perda, mas conquista de progresso e de compreensão, ascensão da vida. Reunir em torno de si, como seus semelhantes, um número cada vez maior de seres é multiplicação de poder; é reencontrar-se e reviver neles uma vida centuplicada. Mas se estes casos máximos de altruísmo são patrimônio do super-homem, o homem atual, que raramente sabe estender o altruísmo além do círculo familiar, tomá-los-á, hoje, como casos extremos, para aproximar-se deles; lutará em sucessivas aproximações, ampliando as fronteiras do eu, até compreender um dia a humanidade terrestre e tantas humanidades do universo que conhecerá. Quando o herói morre por sua nação, o mártir pela humanidade, quando o gênio se desgasta pela ciência, seus egoísmos são tão amplos que não os concebeis mais. Nesse momento, eles podem dizer: eu sou a nação, eu sou a humanidade, a ciência, porque sua consciência unificou-se com isso.

   Até o animal percorreu esse caminho e fixou, na fase de assimilação composta pelos instintos, esses altruísmos que são apenas egoísmos coletivos, porque o animal realizou sua evolução social em formas mais simples, mas em sua simplicidade, mais evoluídas e estabilizadas. Ele vos dá exemplos de altruísmos que ainda deveis conquistar. A abelha morre picando, em defesa da colmeia; não pica se está sozinha; produz o mel que, depois de sua vida breve, as operárias irmãs, que ela não conhecerá, comerão, assim como as que ainda deverão nascer; não sobrevive isolada, mesmo se tiver todo o necessário, porque a virtude de sentir-se célula do organismo coletivo, nela se tornou instinto e necessidade; morre de fome, pois deixa, no caso de faltar tudo, o seu próprio mel para a rainha, a fim de que só ela sobreviva, porque representa a raça. Altruísmos heróicos para vós, na fase de formações coletivas; grandes virtudes que fixam os instintos do futuro; equilíbrios já agora espontâneos, estáveis, porque utilitários, ou seja, porque correspondentes à lei do menor esforço; instintos assimilados, não mais virtudes (isto é, não mais fases de formação), nas sociedades animais já constituídas.

   Quando a abelha se sacrifica por sua família, não é ela que realiza um ato de altruísmo, mas é a família que, conquistado o instinto de um egoísmo coletivo mais amplo, egoisticamente lança a célula abelha e a sacrifica para seu próprio bem. O homem julga heróico esse ato porque o aplica a si mesmo, aplica à abelha aquele conceito de altruísmo que, em circunstâncias semelhantes, aplicaria a si mesmo; mas não compreende que sua natureza é totalmente diferente, porque ele se encontra em outra fase. No homem, o instinto coletivo está em formação; na abelha já está fixado, maduro, completo. No homem, esse ato não é a expressão de uma necessidade imposta por um instinto definitivamente assimilado, mas está na fase criativa (virtude) em que, já vimos, o ato requer esforço e é sentido pela consciência. Se na abelha esse ato se realizou na fase instintiva, subconsciente, espontânea, no homem só atingiu a fase inicial de formação, fase heróica, virtuosa, trabalhosa, consciente. Mesmo a vós, a necessidade de trabalho imporá a colaboração como uma vantagem, para alcançar metas cada vez mais altas. Doutra forma não se poderiam alcançar-lhes, obrigando esse abraço entre as gerações velhas e novas, que hoje apenas se conhecem. Um princípio de coordenação política mundial se imporá como grande poupança de energias,as quais se canalizarão para uma utilidade mais elevada, que a luta recíproca entre os povos. Colaboração e supressão da forma cruenta de luta compõem o caminho da ascensão social. As estradas do altruísmo são paralelas às da evolução moral.

  A figura do super-homem representa o ponto de chegada da evolução do universo trifásico, compreendido pelo vosso concebível. A vida completou seu produto mais alto, a potência que sintetiza todo o passado. Mas a ciência, em suas aproximações entre gênio e neurose, já tinha tido o pressentimento de uma lei profunda, que volta neste limite extremo, manifestando-se como um cansaço da vida, uma tendência a decair, após ter exaurido sua função criadora. Observemos o fenômeno. Falamos de renúncia, de superação da animalidade, que condicionam a afirmação do psiquismo; de uma espécie de complementaridade entre o impulso destruidor da natureza humana inferior, e o impulso construtor dos instintos espirituais do super-homem; de uma espécie de inversão, na passagem do primeiro ao segundo momento de evolução: fase animal e fase psíquica. Expliquemos cientificamente esses fenômenos de caráter místico.

   Como na desintegração atômica existe uma dissolução da matéria no ápice da fase γ; como na degradação dinâmica existe uma dissolução da energia no ápice do percurso da fase β ; assim, na evolução, existe uma paralela degradação biológica, pela qual a vida, como vida, dissolve-se e se opera a gênese de seu produto, α . Atingida essa criação de consciência, a evolução assoma às portas de novas dimensões, hoje superconcebíveis pela normalidade, no limiar de novo universo trifásico15.

   Trata-se de fenômeno comum e contínua verificação, este da degradação biológica, de uma progressiva fadiga no fenômeno da vida, um envelhecimento no indivíduo, na raça e nas civilizações, um esgotamento profundo do ciclo de cada unidade. Cada um tem sua jornada, aurora e crepúsculo; cada ser vive apenas às custas de envelhecer. A vida só pode existir à custa de uma degradação dinâmica e contínua. Nas espécies, quanto mais o indivíduo é simples, mais violento é o ritmo de sua reprodução. Como no indivíduo, quanto mais jovem é a vida, mais ativo é o seu metabolismo orgânico. Em poucas horas os bacilos produzem centenas e centenas de gerações de indivíduos; quanto mais a vida é próxima das origens, mais próxima está do nível de suas estruturas primordiais; mais é lábil em suas construções e proporcionalmente veloz em sua permuta de vida e de morte. Mas não é morte nem fraqueza, essa fragilidade de construções, ao contrário, é uma agilidade toda juvenil, uma flexibilidade e um poder de adaptação; é um frescor de forças que defendem e garantem a sobrevivência. Com a evolução biológica, porém, torna-se mais complexa a estrutura orgânica e mais complexas se tornam  as exigências da vida; mais difícil é sua defesa e menores seriam as possibilidades de sobrevivência individual, se paralelamente ao processo vital não se desenvolvesse uma sabedoria protetora, um psiquismo dominador dos objetivos, sempre mais complexos a alcançar. A evolução não poderia alcançar uma forma de estrutura orgânica mais complexa, se antes não tivesse realizado - só enquanto o realizou - um psiquismo mais profundo que rege essa estrutura.

   Há como que uma libertação progressiva da rapidez e labilidade do ritmo de vida e da morte; uma formação de equilíbrios cada vez mais complexos e ao mesmo tempo mais estáveis. A vicissitude alternada de nascimento e morte retarda seu ritmo, alarga-se o passo da onda da vida entre as amplitudes máxima e mínima; há uma progressiva tendência à extinção da forma, exatamente como em β  vimos extinguir-se a onda por progressiva extensão de comprimento e diminuição da frequência vibratória. Também na vida, a onda tende a amortecer-se: degradação universal, inerente ao processo evolutivo que pode dar-vos a razão íntima de muitos fenômenos. Tal como a energia envelhecera para tipos de vibração mais lenta e comprimento de onda mais amplo, assim também no fenômeno biológico o mesmo processo de degradação leva a um amortecimento de potência vital. Retornos paralelos, no vértice de cada fase; momento de degradação inerente ao desenvolvimento do fenômeno evolutivo.

   Idêntico processo de amortecimento da onda vital ocorre no indivíduo. Em sua juventude, tudo é exuberância de forças vitais, flagrantes as capacidades reconstrutivas do metabolismo, maior maleabilidade e a adaptabilidade ao ambiente, ativíssimo todo o dinamismo orgânico, que se revela um desencadear-se indisciplinado e violento de forças primordiais. Depois, tudo se vai esgotando pelo choque das provas; extingue-se como dinamismo vital, indo para um dinamismo mais sutil de caráter psíquico. Dessa explosão sobrevive uma consciência, uma potência diferente de julgamento que antes não existia e que só os maduros possuem.

   Então, nada se destrói, nem para o indivíduo, nem para a raça, mas tudo na substância se transforma e ressurge em roupagem diferente. Como na desintegração atômica, a matéria não morre, mas renasce como energia e na degradação dinâmica a energia não morre, mas se prepara para a gênese da vida; logo, na degradação biológica, a vida não morre como vida, porque seu desgaste condiciona a gênese do psiquismo. Em qualquer lugar e sempre a substância renasce de forma diferente. Trata-se, sempre, do mesmo fenômeno que, se parece destruição e desaparecimento da forma, aos vossos sentidos e meios de pesquisa, na realidade nem desapareceu nem acabou, mas apenas mudou de forma, anulando-se, como sempre, apenas no relativo. Portanto, o fenômeno da degradação biológica não é extinção. Nada envelhece, substancialmente jamais, nem na senilidade do homem, nem da raça, nem da espécie. Simplesmente a substância transforma-se na fase α , o espírito, e realiza sua mais alta criação em vosso universo. A morte de uma forma, como sempre, condiciona também aqui o nascimento de outra mais elevada. Degradação biológica, portanto, não é demolição, mas ascensão.

   Aí está o significado daquela necessidade de demolição da natureza animal inferior, que é condição para a ascensão espiritual. Só nesse enquadramento universal de conceitos pode definir-se o significado científico da virtude: norma evolutiva, caminho das ascensões biológicas para o vértice do psiquismo. Pode falar-se de uma ética racional, que esteja em relação com toda a fenomenologia universal. Nesta ética, quem vive a virtude é bom e louvável, porque segue a direção do transformismo, que constitui a essência do universo. Já dissemos: bem = evolução, ou seja, direção positiva ascensional; mal = involução, isto é, inversão do movimento de valores.

   Nada se destrói. O que se perde em quantidade de energia, ganha-se em qualidade; perdem-se as características da vida, apenas para adquirir as do psiquismo. Se o ambiente impõe ao princípio dinâmico da vida uma constante dispersão de forças, contudo elabora o princípio que absorve do ambiente e torna suas todas as experiências. Se a vida, à força de progressivos aumentos de desequilíbrios no equilíbrio do metabolismo, acaba por ser vencida, há uma paralela e contínua reconstrução mais no alto. Esse renascimento é progressivo e proporcional à sutilização orgânica (superação da vida animal, renúncia, virtude), que a prepara e a condiciona, como se faz com os fenômenos inversos e complementares. A degradação da vida, pois, não é uma doença senil individual ou da espécie, mas é um processo evolutivo normal, que possui verdadeira função biológica criativa. O fruto senil do psiquismo, a sutileza do sentimento até a pseudo neurose do super-homem, não é produto de decadência, mesmo que assim possa parecer aos povos crianças, fecundos e combativos. O equilíbrio biológico seletivo, conseguido pela mulher que gera e pelo homem que guerreia e mata para vencer, é ultrapassado pelas formas mais perfeitas da vida, cuja obtenção é a aspiração maior dos povos jovens, os quais para ela tendem, assim como toda juventude tende para a velhice, fatalmente.

   Desse elevado ponto de vista, os fenômenos de senilidade do indivíduo, como das civilizações, assumem significado totalmente diferente. A degradação das formas biológicas tem a função específica de amadurecer o aparecimento das formas psíquicas, e existe sempre uma inversa proporção entre umas e outras: onde é máxima a potência vital, a potência psíquica é mínima, em seus primeiros albores. Com a evolução, a potência vital tende a enfraquecer-se, mas a potência psíquica torna-se cada vez mais ampla e evidente. Tanto o indivíduo quanto a raça valem, então, muito mais como qualidade, embora seu ritmo reprodutor enfraqueça e a quantidade diminua. É lei da natureza que os povos civilizados se reproduzam menos.

   Então, não é decadência o pressuposto enfraquecimento das civilizações maduras. Naturalmente, cada valor maior tem de ser pago. Na degradação das civilizações, se os povos envelhecem, suas almas amadurecem por meio das experiências da vida coletiva; e quando uma civilização cai, nada morre em sentido absoluto. Vede que ela produziu uma flor delicada e esplêndida, é colhida e será o germe das civilizações futuras. À parte a sobrevivência dos indivíduos, que mais tarde voltam à Terra amadurecidos, aptos a retomar o mesmo ciclo de civilização para levá-lo ao alto, também em vosso mundo sobrevive uma potência de conceito, sem a qual a força criadora dos jovens jamais seria fecundada e eles, em consequência, vagariam na incerteza.

O produto de tanto trabalho de experiência é destilado em poucos princípios, que têm a força de erguer uma nova civilização. O passado jamais morre, sempre ressurge indestrutível. Todas as conquistas espirituais realizadas permanecem no mundo como força real e ativa, base para novos impulsos, eterno testemunho e índice, que mede a evolução realizada. Assim, não será decadência o envelhecimento individual, se souber reviver renascendo, continuamente, no espírito. Cansaço e velhice são momentos normais no metabolismo da vida, onde se revela o amadurecimento do fenômeno biológico, sem nenhum desgaste, nem deterioração dinâmica substancial.

   Só assim é possível compreender profundamente o fenômeno pelo qual a vida produz consciência. Não bastava ter explicado o mecanismo da formação dos instintos e da estratificação das experiências. A degradação biológica é parte integrante do fenômeno evolutivo e existe como condição do processo genético do psiquismo. Como a evolução dinâmica impõe um processo de degradação da energia, assim a evolução biológica implica um processo de degradação do fenômeno da vida. Nesses fenômenos, age o mesmo princípio do esgotamento do impulso originário, um decréscimo das qualidades cinéticas, do potencial sensível das formas. O processo evolutivo implica nesse sentido uma degradação progressiva de potencial. A razão profunda desses fenômenos está na natureza do transformismo evolutivo. O mesmo gradual amortecimento cinético na fase energia para vida, como na vida para espírito, é apenas a constante e substancial característica do fenômeno evolutivo. Isto acontece porque, reduzida a sua fundamental substância, a evolução é movimento, isto é, um processo de descentralização cinética, uma expansão do princípio cinético que se dilata do centro à periferia, uma realização que age pelo esgotamento de um impulso, originado de um precedente e inverso impulso involutivo de concentração cinética e condensação dinâmica, de concentração de potencial da substância, a que agora se contrapõe o processo inverso de subida.

   Assim, a energia tende agora à difusão, justamente porque vosso universo está em período evolutivo, enquanto no período inverso precedente, tendia e dirigia-se à concentração (condensação das nebulosas). A evolução ou sua inversão para o negativo (involução) é caminho inviolável, porque é a direção do devenir da substância, que se manifesta no relativo. Por isso, todo o fenômeno é irreversível.

   Nessa ordem de idéias pode haver lugar para a inconsciência individual, mas não para a inconsciência do Criador. Em qualquer caso, mesmo no mais atroz destino, podeis crer na ignorância e maldade dos homens, mas jamais podeis acreditar na insipiência ou maldade de Deus. É inútil criticar aquele que personifica as suas próprias causas da dor. Trata-se, frequentemente, de instrumentos ignaros, logo, irresponsáveis e movidos por distantes e profundas causas de vós mesmos. A vida é gigantesca batalha de forças que temos de compreender, analisar e calcular. Ninguém pode invadir o destino alheio, só pode semear loucamente alegrias e dores no próprio destino. Uma vida, tão substancialmente perfeita, não pode existir à mercê de um capricho e da louca alegria de atormentar-se mutuamente. Assim, não tem sentido maldizer-se nem rebelar-se, tanto mais que isso nada modifica, ao contrário, agrava o mal. É melhor orar e compreender, porque a dor só cessará depois de termos aprendido a lição que lhe justifica a presença.

   Nessas idéias situa-se, também, logicamente, o conceito de uma Divina Providência, como fato objetivo e cientificamente demonstrável. Se registrásseis em grandes séries o desenvolvimento dos destinos individuais, veríeis ressaltar do resultado uma lei em que aparece evidente a intervenção de uma força superior à vontade e ao conhecimento individuais. Mas o homem se comporta como se estivesse sozinho, isolado no espaço e no tempo. Sua ignorância da grande Lei que governa tudo, fá-lo crer que vive num caos de impulsos desordenados, abandonado apenas às próprias forças, sendo estas sua única lei e amparo. Seu egoísmo é um "salve-se quem puder" de todos contra todos. O homem fica só, um átomo perdido no grande mar dos fenômenos, no terror de ficar torturado por forças gigantescas, agitando seus pobres braços para defender-se, pequena luz em meio às trevas. Refugia-se, então, na inconsciência do carpe diem, que é a filosofia do desespero; cegueira intelectual e moral, que uma ciência que não conclui deixou intacta.

   Cegueira, inconsciência, porque num universo em que tudo brada causalidade, ordem, indestrutibilidade; em que tudo é função, equilíbrio automático e justiça, tudo está ligado por uma rede de reações, vinculado ao funcionamento do grande organismo. Tudo tem uma razão de ser e uma consciência lógica. É absurda qualquer anulação, tanto no campo físico, quanto no moral, como é loucura acreditar numa possibilidade de violência, de usurpação, de injustiça, só porque o homem a quer; pensar que ele, apenas um ponto do infinito, possa impor sua vontade, modificando a Lei universal.

   Com a demonstração científica da ordem soberana, coloquei-vos, agora, na encruzilhada: ou negar, aceitando a inconsciência, criando em torno de vós um mundo caótico, onde estais sozinhos, com vossas forças contra todos os fenômenos, rebeldes, ridículos e tristes, perdidos no mar de trevas; ou então, compreender e ir à frente, enquadrados no grande movimento, como soldados de um grande exército em marcha. A presença de uma ordem suprema resulta aqui já demonstrada: o homem só pode existir imerso na grande lei divina. Isso faz ser absurda qualquer culpa, qualquer baixeza e torna altamente utilitário o caminho da virtude. Cada coisa que existe nasce com sua lei, é a expressão de uma lei, só pode existir como desenvolvimento de um princípio e obedecendo a uma lei. Em qualquer forma, sempre encontrareis uma lei como sua alma, sua substância, única realidade constante através de todas as transformações da ilusão exterior. A forma acompanha sempre essa lei, que a guia e a modifica, para realizar-se em ato. Cada momento resume o passado e contém a linha do futuro, tanto nos organismos físicos, quanto no vosso organismo psíquico. O equilíbrio sustentou-vos até aqui, no presente, através da viagem pela eternidade e agora vos sustenta e guia para o futuro, sabendo e querendo, antes de vós, à revelia de vossa vontade e consciência.

   Ao conceito limitadíssimo de uma força vossa, individual, que dirija os acontecimentos, é necessário substituir o conceito vastíssimo de uma justiça que impõe seu equilíbrio e suas compensações ao destino. Dentro dela, violência e usurpação são absurdas antecipações de um átimo, que se terão de pagar, mais tarde, com exatidão matemática. Dentro dela está presente e age a divina providência. Não uma providência no sentido de um guia pessoal por parte da divindade, de uma ajuda arbitrária que possa solicitar sem merecê-la e que possa escapar-vos dos esforços obrigatórios da vida, mas uma providência que é um momento da grande Lei, permeada de equilíbrio, aderente ao merecimento, mantida por contínuas compensações que levantam quem cai se merecia subir, e esmagam quem sobe, se merecia descer. Trata-se de um princípio de ordem, uma força de nivelamento que ajuda o fraco e substitui os impulsos da prepotência humana; uma força com justiça, muito mais sutil, real e poderosa.

   A providência divina representa esta força maior, a justiça em ação, não só para levantar, como para abater. Por lei espontânea de equilíbrio, vereis que ela sabe dosar as provas para que não ultrapassem as forças; vê-la-eis levantar-se, gigantesca, para proteger o humilde indefeso e honesto que a opressão humana tencionava arruinar; vereis que ela dá a quem merece e tira de quem abusa, premiando e punindo, distribuindo além das partilhas humanas16.

   Tremei vós, vencedores pela força humana, diante desse poder da justiça, que impulsiona todo o universo; e vós, fracos, não acrediteis que a providência seja inércia ou fatalismo, amiga dos preguiçosos; não espereis que essa força vos afaste do sagrado esforço de vossa evolução. Conceito de justiça e de trabalho, conceito científico do mundo fenomênico, não é base de um afastamento gratuito de sanções de dor e significa direito ao mínimo indispensável às forças humanas para ascender o cansativo caminho da vida; significam repousos merecidos e necessários, não ócios gratuitos e perenes, como quereríeis.

   Nada mais falso que a identificação da providência com um estado de inércia e expectativa passiva. Isto é invenção de indolentes iludidos, é exploração dos princípios divinos. Ela está presente para reerguer o homem que, na luta, perde suas forças, como o está ao abater o rebelde, mesmo se gigante; ela está ativa sobretudo para o justo que quer o bem e com seu esforço o impõe. Então o inerme, sem forças humanas, sem apoio, sem meios, apertará no punho fechado as forças mais altas da vida; as tempestades do mundo se acalmarão e os grandes se dobrarão, porque ele personifica a Lei e sua ordem. Enquanto permaneceis sozinhos na luta, abandonados apenas às vossas pobres forças, situado na profunda organicidade do real, recolhe-as de todo o infinito. Se parece abandonado e derrotado, uma voz lhe grita: tu não estás sozinho. O inerme pode então dizer a grande palavra que ribomba em todo o universo: falo-vos em nome de Deus.

Outra força que o homem moderno teria de compreender é a dor. A atitude de vossa mentalidade diante do fenômeno da dor é a de defesa e de rebelião. A ciência fez faiscar em vossas mentes a ilusão de uma possibilidade de paraíso imediato na Terra e desencadeou uma guerra contra a dor, mesmo à custa de qualquer prostituição moral, num paroxismo de terror que revela como, mesmo nas dobras de sua audácia, esconde-se numa zona cinzenta de fraqueza, uma alma cega diante dos objetivos supremos. Mas essa atitude de espírito não alcançou sua meta e jamais, mesmo no estrondo de tão grande progresso, a dor assanhou-se tanto mais aguda e profunda; nunca se viu maior vazio no espírito, faltando a coragem de lutar e saber sofrer. A ciência não compreendeu que a dor tem uma função fundamental de equilíbrio na economia da vida e como tal, não pode ser eliminada; ela é íntima função de ordem, função biológica construtiva, como excitante de atividades conscientes. O tão criticado estado de alma, de resignação paciente, é uma virtude de adaptação, de resistência e de defesa, que os povos modernos estão perdendo. A ciência movimentou-se para eliminar as causas próximas da dor; ela, porém, corresponde a uma lei de ampla causalidade, cujos primeiros e distantes impulsos é mister pesquisar. Essas causas estão na substância dos atos humanos, na natureza individual. Enquanto o homem for o que é e não souber realizar o esforço de realizar-se a si mesmo, a dor será parte integrante de sua vida, com funções evolutivas fundamentais. Portanto, é irredutível fator substancial que impõe a evolução. Sei muito bem como é o homem moderno e não lhe peço a perfeição imediata. Digo-lhe, entretanto, que, se não for capaz de melhorar-se e enquanto não modificar-se, todas as dores que lhe sobrevierem serão justas e bem merecidas.

Pobre ciência: muda diante dos problemas substanciais! Pobres crianças que odiais a dor que vós mesmos quisestes e que semeastes; que tendes a ilusão de vencê-la, calando-a e escondendo-a ao invés de compreendê-la. Os problemas só se resolvem quando são enfrentados com lealdade e coragem. No meio de tanto progresso, cada um caminha mudo dentro de si mesmo, a sorrir numa máscara de cortesia, que esconde seu fardo de males secretos. A cada dia, novos excessos em todos os setores, excitando novas reações de sofrimentos futuros. Se o homem tem de ser livre e, no entanto, ignora as consequên -cias de suas ações, uma dor atroz que o flagele é, para seu bem, a reação necessária e proporcional à sua sensibilidade. Isto é inevitável, quando a orientação da vida for toda errada. A lei das coisas nem por isso se modifica, mas reage a cada momento para fazer-se compreender. Em sua ingenuidade, o homem pretenderia violar e modificar a Lei, torcendo-a a seu favor; está iludido de que pode e sabe tudo, fraudando a todos; ri-se das reações e considera o irmão caído como um falido, ao invés de estender-lhe a mão, para que a encontre estendida para si quando for sua vez de cair. Deveria, ao contrário, compreender que, num mundo em que nada se cria e nada se destrói, também no campo das qualidades morais sutis, só se neutraliza um efeito ao reconduzi-lo invertido para a sua causa, a fim de aí encontrar sua compensação. Não se anula uma quantidade de caráter consciente e moral, se não for absorvida pela vida. A mentalidade moderna míope limita-se ao jogo da defesa imediata, contra uma força que volta sempre. Com constante esforço expulsa-a, ao invés de absorver-lhe o alívio que a esgota; para não ver e para atordoar-se nos prazeres, aumenta-a com novos erros, que voltam sempre em forma de novas dores. Assim, homens, classes sociais e nações transferem-se uns aos outros essa massa saturada de débitos, que circula por todos, passa de geração em geração e fica sempre a mesma, porque ninguém a absorve. Cristo, que morreu na cruz, redimindo a humanidade com sua paixão, é o grandioso símbolo que resume e convalida esses conceitos.

 Que diremos ao homem comum que sofre, mesmo ignorando? É bem triste, por vezes, o quadro das reações naturais, que denominais castigo divino. Inútil negá-lo: todos sofrem mais, ou menos; todos se debatem entre os braços do monstro. Pobre ser, o homem! Não só permaneceu pagão, mas bestial na substância, abaixa tudo a seu nível: religião, estado, sociedade, ética. Para adaptá-los a sua condição, realiza uma contínua redução de todos os valores morais; permanecendo nos instintos primordiais do furto e da guerra, precisa atravessar dores ingentes, porque só elas poderão fazer-se entendidas, abalando sua inconsciência. A alma humana, que hoje amontoou sobre si um fardo tão embaraçoso de inútil cerebralismo, não vê esses equilíbrios espontâneos e simples. No paroxismo de um dinamismo frenético, sua alma é fraca e primitiva. Que poderia fazê-lo recobrar a razão, mesmo deixando-o livre, se não a imensurável massa de dores? Está equilibrado em seu nível, oprimido por áspera luta e por uma realidade de dores. Iludido, insensível, inconsciente, o homem resiste a qualquer melhoria substancial; corre atrás dos sentidos, ambiciona a ascensão exterior, econômica, ávido para abusar de tudo, imerso no egoísmo do momento, ignorante do amanhã, fechado em seu horizonte. Se o gênio não se abaixar até ele, certamente que nada saberá fazer para alçar-se até o gênio. As verdades são julgadas, mas o desfrutamento dos ideais é tão velho quanto os homens e a sociedade habituou-se a considerá-los mentira. Cada um sabe, por instinto, filho de experiências seculares, que por trás de tantas ostentações de coisas grandes, existe a própria miséria moral e material; que aquelas são retórica e esta a realidade; acredita nas verdades em que todos crêem, a festa do próprio ventre é a vitória por qualquer meio. A palavra é dada à dor, única marteladora eterna de destinos e forjadora de almas. Ela ficará enxertada no esforço da vida, gotejando cada dia, e com grandes lufadas periódicas coletivas, para atingir as almas e deixar nelas suas marcas.

 Para chegar à solução do problema é indispensável o aperfeiçoamento moral, o remate do amadurecimento biológico do super-homem; é preciso subir com Cristo à cruz e refazer a vida individual e coletiva nas bases do amor; é necessário saber reencontrar na dor uma força amiga, da qual se compreendem as causas, a função, e delas se utiliza para a própria ascensão. A dor é o esforço necessário da evolução, é a essência e a razão da existência; contém o germe de uma felicidade cada vez mais alta que o homem "deve" conquistar. Esses equilíbrios são insuprimíveis e indispensáveis à respiração do universo.

Se a dor faz a evolução, a evolução anula progressivamente a dor. Esta, reabsorvendo a reação e eliminando o débito, operando a gradativa harmonização e atuação da Lei no Eu, elimina-se a si mesma, enquanto faz progredir o ser. Isso demonstra a justiça e a bondade da Lei, que não é lei de mal, nem de dor, mas lei de bem e de felicidade. Por isso é necessário seguir um caminho de gradual redenção em várias etapas: primeiro, reabsorver as reações livremente excitadas no passado, sofrer pacientemente as consequências das próprias culpas; depois, reconstituído o equilíbrio, manter-se em estado de harmonia com a Lei, evitando qualquer nova violação e reação. É indispensável conceber o universo não como um meio para a realização do próprio Eu, seu centro, mas como um universo regulado por uma Lei suprema, dentro da qual só é possível realizar o próprio Eu, quando em harmonia com tudo o que existe. É necessário conceber a dor não como um mal devido ao acaso, mas como uma forma de justiça, como uma função de equilíbrio que ensina ao homem, mesmo respeitando-lhe a liberdade, os verdadeiros caminhos da vida, e o "constrange", após tentativas e erros, pelo único caminho possível, o do próprio progresso. A dor não pode desaparecer, se não for pago o débito à Lei de justiça, que, no campo moral, social, histórico, econômico, físico e químico, é sempre a mesma Lei, a mesma vontade, o mesmo Deus. Não se rouba, não se escapa, no tempo, à sua ação; rebelar-se é excitar maior choque de reações; sua elasticidade (divina misericórdia) é tão grande que pode conter todo o livre-arbítrio humano, terminando sempre por devolver-vos como fato inexorável.

 A anulação da dor é feita corajosamente através da dor. Por isso, ela pode ser colocada no caminho das ascensões humanas. Recusai a utopia que o materialismo vos pôs na mente e percebei esta solene verdade da vida. Entre o impulso frenético de vossos tempos para todas as felicidades, entre a série lastimável de todas as experiências humanas, diante da desilusão, com um sonho vão nas pupilas da felicidade não atingida, tenha o homem a coragem de olhar esta realidade mais profunda, abrace fraternalmente sua dor. Que ele aprenda e progrida na arte de saber sofrer. Talvez julgueis este tom prevalentemente negativo, mas ele é apenas sob vosso ponto de vista humano, não das reconstruções super-humanas, onde jaz minha maior afirmação. Na tábua relativa de vossos valores éticos, estais sempre embaixo e vossas virtudes violentas e guerreiras, necessárias ao vosso estado atual, não serão mais virtudes e serão superadas amanhã. Tudo é proporcional ao próprio nível e o exprime. Há muitas formas de dor, esta é tanto mais grave, quanto mais baixo estiver o ser. A medida do contragolpe doloroso, que recai sobre quem movimentou a causa, é obtida pelo cálculo de responsabilidade e vimos, modifica-se com o grau de evolução, a qual sutiliza a cadeia férrea das reações.

 Observai como o castigo quase se volatiliza, no processo da espiritualização progressiva. No mundo subumano, a dor é derrota sem compaixão; o ser sofre nas trevas, cheio apenas de ira, num estado de miséria absoluta, sem luzes espirituais compensadoras. É a dor do condenado, cego, sem esperança. E o homem tem liberdade de retroceder para esse inferno, se não quiser aceitar o esforço de sua libertação. No mundo humano, a consciência desperta, pesa e reflete; o espírito tem o pressentimento de uma justiça, de uma compensação e de uma libertação, e espera. É a dor tranquila de quem sabe e resgata;  é o purgatório confortado por uma fé; o castigo pára nas portas da alma, que tem seu refúgio na paz. A mente analisa a dor, descobre-lhe as causas e a Lei, aceita-a livremente como ato de justiça que trará alegria; de um tormento faz um trabalho fecundo, um instrumento de redenção. Quanto já perdeu a dor de sua virulência! Muito diferente é o sofrer esperando e bendizendo, pois, o golpe contra a alma assim encouraçada é menos amargo e, no espírito defendido por essa profunda consciência, tem menor força de penetração. A visão substancial das coisas dá, a cada caso, a sensação da justiça, uma grande fé e um absoluto otimismo; entre as dissonâncias do ambiente, forma-se na alma um oásis de harmonia. Chega-se, assim, por graus, ao mundo super-humano, em que a dor perde seu caráter negativo e maléfico e transforma-se numa afirmação criadora, em poder de regeneração, numa corrida à vida. Ergue-se, então, o hino da redenção: felizes os que choram.

 A dor, obrigando o espírito a dobrar-se sobre si mesmo, prepara o caminho para as profundas introspecções e penetrações, desperta e desenvolve suas qualidades de outro modo latentes, multiplica-lhe todas as potencialidades. Sobretudo para as grandes almas, a dor é uma força de valorização e criação. A expansão da vida, constrangida para dentro, atinge realidades mais profundas e o choque da dor obriga a seguir os caminhos da libertação. Novo mundo se revela a cada golpe que parece trazer ruína, algo referve e nasce do âmago do Eu; a cada golpe da dor que parece mutilar a vida, algo se reconquista, que a faz crescer e a eleva. A dor desapega e liberta de um invólucro denso de desejos e de sensações; a alma, a cada pedaço de animalidade arrancado, dilata-se em mais amplo poder de percepção, em forma mais intensa de vida, em realidade mais profunda. Imaginai a mais titânica das lutas, o mais tremendo dos esforços, a mais impetuosa tempestade. Há um dilaceramento silencioso no âmago das leis biológicas; uma disputa palmo a palmo no campo da vida; um encarniçamento de retornos atávicos para baixo, uma atração irresistível para o alto. Espírito e animalidade lutam, vinculados e inimigos, como na hora da alvorada lutam a luz e as trevas, para que surja o dia. Na fase super-humana a dor não é mais apenas expiação, que se conforta com a esperança: é o ímpeto frenético das grandes criações espirituais. No meio da luta pela libertação, a sensação dominante é juventude, na expansão das energias é ressurreição; enfraquecidas as paixões e dominadas as prepotências da natureza inferior, a sensação do espírito vitorioso é o doce repouso de quem aporta num oásis de paz. O espírito olha então com mais calma dentro de si. A dor e a luta sutilizaram seu ouvido e ele pode ouvir. Então evoca-se o canto do infinito. Então, lentamente, do âmago da alma, entoa-se a grande sinfonia do universo. As notas que aí cantam são as estrelas e os mundos, as flores e as almas, as harmonias da lei e o pensamento de Deus.

 Levanta-te ó alma, tua dor está vencida! Morta, entre as coisas mortas, está tua dor, lá em baixo, inútil instrumento jogado fora, lá embaixo, na margem deserta de um caminho triste. No infinito, o universo canta: levanta-te, tua dor está vencida. Todas as coisas transformaram-se diante do olhar de Deus; o canto tem tal profundidade de doçura, que a alma se desorienta. Pela alegria da mente, caem os véus do mistério; pela alegria do coração caem as barreiras do amor. Abre-se o universo. Uma vibração onipresente de amor transporta o espírito fora de si, de visão em visão, de felicidade em felicidade. Ele não luta mais: abandona-se, esquece-se em Deus. As forças da vida o sustentam e o arrastam, lançam-no para o alto onde está o novo equilíbrio. Decepadas as cadeias, ele está verdadeiramente livre e pode subir; o passado persegue e é necessário percorrer até o fundo os caminhos do bem, tanto quanto para os maus é preciso que se afoguem até o fundo, nos caminhos do mal. Então o ser não pertence mais à Terra de dor: imerge cada vez mais na luz do Cristo e aí se aniquila num incêndio de amor.

 Estas não são rarefações utopísticas da respiração da vida, senão enquanto não for deslocado o centro da personalidade para o mundo super-humano. O conceito de dor-prejuízo e de dor-mal evolui, desse modo, por gradações, para o de dor-redenção, dor-trabalho, dor-utilidade, dor-alegria, dor-bem, dor-paixão, dor-amor. Há como que uma transhumanização da dor na lei santa do sacrifício. Nesse paraíso, o milagre da superação da dor através dela própria está realizado. O mal transitório, o estridor das violações, o choque violento entre a livre ação e a lei esgotam-se em suas funções; a dor existe para engolir-se a si mesma; cai o desacordo à proporção que atinge a harmonia. Por meio desse sábio mecanismo, pelo qual a liberdade é obrigada a canalizar-se para o progresso, chega-se à unificação do Eu com a Lei. Então desaparece qualquer possibilidade de violação e de reação e a dor se anula em sua causa. Então a alma brada: "Senhor, agradeço-Te por esta, que é a maior maravilha da vida: que minha dor seja Tua bênção"!

 Mesmo por outros caminhos inferiores e coletivos, a dor tende a anular-se. Este é o último anel da cadeia: involução, ignorância, egoísmo, força, luta, seleção. Mas o ímpeto evolutivo transforma a fase da força em justiça, o mal em bem. Demolindo as mais baixas condições de vida, opera a transformação da dor. Coletivamente, a força - por um jogo de reações coletivas, por progressiva aproximação e pela lei do mínimo esforço - tende, com o uso, à auto-eliminação, quase reabsorvida em si mesma e ressurgindo em forma de justiça; assim coletivamente a dor tende a anular-se como fator transitório inerente às mais baixas fases de evolução. Absurdos seriam um mal e uma dor incondicionais e definitivos. O maior ímpeto da vida, a evolução, leva, necessariamente, o mal ao bem, a dor à felicidade.

Mostro-vos todas as gradações da verdade, para que cada um escolha a mais elevada em seu concebível. Dizei-me como sabeis sofrer e vos direi quem sois. Cada um sofre diferentemente, de acordo com seu nível: uns amaldiçoando, outros resgatando, outros abençoando e criando!  Das três cruzes iguais sobre o Gólgota, partiram três gritos diferentes. Só justiça e amor é a reação dos Grandes. Cabe a vós saberdes extrair do esforço da vida a maior ascensão do espírito, utilizando a dor, ao invés de combatê-la, transportando cada vez mais para o alto o centro de vossa vida.

 Certamente que nestes níveis não estamos na ordem comum das coisas humanas atuais, e tudo isso pode parecer fuga e demolição de virtudes positivas; mas eu vos disse que é fuga, para uma afirmação mais elevada. Isso pode parecer mutilação de aspirações e de vontades, supressão de energias sadias, produtivas, mas aquelas aspirações jamais vos farão sair do ciclo da vida nos níveis inferiores, nos quais cada vitória tem que contrabalançar-se com uma derrota, cada juventude com uma velhice. Aí, cada grandeza precipita-se sempre em sua destruição. O que vos indico, porém, é sublimação da vida, numa forma de ação mais alta, dirigida a conquistas que são as únicas eternas; ação mais enérgica e civilizada que o desperdício inútil da agressão comum, que desorganiza; ação mais produtiva, porque consciente das forças naturais, entre as quais ocorre.

 Não vos indico como ideal supremo humano a figura primitiva do herói da força que violenta e vence, mas - ainda que as massas não nos entendam - mostro-vos o super-homem, em que a vontade do dominador, a inteligência do gênio, a hipersensibilidade do artista e a bondade do santo fundem-se; o lutador sobre-humano que perdoa e ajuda a seu semelhante, só ataca as forças biológicas e as submete, ser de nova raça, lutador da justiça, senhor de si mesmo, para o bem coletivo.

A santidade não morreu nem foi superada, apenas começou e tem que subsistir no mundo moderno uma santidade nova, culta, consciente, científica, que ressurja das velhas formas no coração de vossa vida turbilhonante; é mister que volte a lutar pelo bem e, com vossa psicologia objetiva, enfrente heroicamente o choque de vossa rebelde alma nova. Se hoje o lema é força, que seja a força superior do espírito; seja uma beleza espiritual que ouse mostrar-se viva no mundo como um desafio, para que este, se não compreender, dilacere-a e dilacerando-a, aprenda. O santo, nesse sentido amplíssimo, passa em missão, só é grande por inclinar-se a educar e erguer para essas superações da dor.

Muito lento é o caminho das massas inconscientes, embaixo. Esperam elas a fecundação da parte desse ser, ponto culminante, para o qual converge todo o transformismo fenomênico, sustentado e querido por todas as forças da evolução, fenômeno realizado da transformação biológica. No último produto do grande esforço da vida, a criação dobra-se sobre si mesma para retomar, no movimento evolutivo, as camadas mais baixas. O impulso torna a descer para elevar e para aliviar a dor; estende a mão ao homem que caminha sob o peso de sua ascensão, e carrega sobre si a dor do mundo. Esta retomada ascensional, que já estudamos como característica fundamental no desenvolvimento da trajetória típica dos movimentos fenomênicos, aqui se torna inerente ao impulso da evolução e nela representa ainda uma tendência à eliminação da dor.