Compreendei bem meu pensamento, quando vos falo de desenvolvimento do psiquismo até a gênese do espírito, isto sem intervenção de uma força exterior, mas por um processo automático. No meu sistema, a Substância, mesmo em suas formas inferiores γ e  β, inclui, em estado potencial e latente, todas as infinitas possibilidades de um desenvolvimento ilimitado. Compreendei que uma criação exterior e antropomórfica é absurda. Não interpreteis mal meu pensamento, nem tenteis reconduzi-lo, à força, ao materialismo, porque se lhe conserva a forma, dele se afasta enormemente na substância, chegando a coincidir nas conclusões, com o mais alto espiritualismo. Não digais: então a matéria pensa. Dizei que, na vida, a matéria, elevada a um grau mais alto de evolução, é veículo capaz, pela íntima elaboração sofrida, de  produzir em maior medida o potencial nela incluído. É incomparavelmente mais científico, mais lógico e mais correspondente à realidade, este conceito da Divindade sempre presente e continuamente operando no âmago das coisas, precisamente na essência delas, do que o de uma Divindade que, num ato único, num momento determinado no tempo, à maneira de um ser humano, age fora de si, de forma imperfeita e, ao mesmo tempo, definitiva.

 O Absoluto divino só existe no infinito. Sua manifestação (existir - manifestar-se) não pode ter tido um início. Em sua essência totalitária, ele não age no tempo, a não ser no sentido de um átimo de seu eterno devenir, no sentido de uma particular descida Sua no relativo, e neste sentido devem ser entendidas e são compreensíveis as Escrituras. Além disso, o fato de que verificais um transformismo incessante e uma progressiva suscetibilidade de aperfeiçoamento em todas as coisas, fala-vos claramente de uma criação progressiva, entendida como progressiva manifestação do conceito divino no mundo concreto e sensório dos efeitos. O conceito de prodígio, com o fito de correção e de retoque, é inerente apenas à fraqueza e à relatividade humanas, não pode aplicar-se ao Absoluto e à Divindade.

 Não pode alterar-se a perfeição da Lei para espetáculo humano. O milagre, compreendido como violação e refazimento de leis, não é prova de poder, mas um absurdo que não pode existir senão na ignorância humana. Não tomeis justamente essa concessão à vossa fraqueza, como base apologética das religiões, porque com esse contrasenso, diminuís, ao invés de reforçar a fé.

 Vede que tudo o que existe provém de um princípio que age sempre, não de fora para dentro, mas de dentro para fora, princípio oculto no íntimo mistério do ser, que aparece como sua manifestação e expressão. Igualmente antropomórfica é a idéia do nada, inadmissível no Absoluto. Como poderão existir zonas externas ou zonas de vazio, senão no relativo? O fato que verificais, da indestrutibilidade e da eternidade da Substância, demonstra-vos o absurdo desse nada, que é apenas uma pseudo-idéia. Deus é o Absoluto e como tal não pode ter contrários nem pontos externos: nenhuma das características do relativo. Suas manifestações não podem ter princípio nem fim. No relativo podeis colocar uma fase de evolução, mas não o eterno devenir da Substância; no finito podeis colocar-vos a vós mesmos e os fenômenos de vosso concebível, mas não a Divindade e suas manifestações. Podereis chamar criação a um período do devenir e só então falar de princípio e de fim. Neste sentido falam as revelações.

 Compreendei-me, pois, e não vos escandalizeis deste conceito religiosíssimo da gênese do espírito. Este não é princípio infuso de fora (esta foi a fórmula necessária à tradição mosaica, para que os povos primitivos pudessem compreender), mas é princípio que se desenvolve de dentro, exteriorizando-se daquele centro profundo, no qual deveis comprovar que está a essência das coisas e o porquê dos fenômenos. Deus é a grande força, conceito que age no íntimo das coisas. Desse íntimo expande-se nos períodos do relativo, num aperfeiçoamento progressivo, progressivamente manifestando sua perfeição. O universo permanece sempre Sua obra maravilhosa; todas as criaturas são sempre filhas Suas; tudo continua  sempre efeito da Causa Suprema. Não pode haver blasfêmia nesta concepção; se não corresponde à letra das Escrituras, agiganta-lhes o conceito, eleva-as e lhes vivifica o espírito, até uma racionalidade de que o homem tem hoje absoluta necessidade, para que sua fé não se destrua.

 Dizer que o universo contém sua própria criação, como momento de seu eterno devenir, é apenas demonstrar e tornar compreensível a onipresença divina. Tudo tem de reentrar na Divindade, caso contrário, esta constituiria uma "parte" e, portanto, seria incompleta. Se existem forças antagônicas, isto só pode ocorrer em Seu seio, no âmbito de Sua vontade, como parte do mecanismo do Seu querer, do esquema do Todo. Em verdade, a obra humana também é manifestação e expressão em que se realiza e se exterioriza, como na criação, um pensamento interior. Isto justifica a concepção antropomórfica, mas não leveis o paralelismo até conceber uma cisão, uma duplicidade absoluta entre Divindade e criação. Isto não pode ocorrer neste meu Monismo.

 Não limiteis o conceito de Divindade a um ou a outro aspecto, pois esse conceito tem de ter a máxima extensão do concebível e muito mais. Não tenhais medo de diminuir-lhe a grandeza, dizendo que Deus é também o universo físico, porque este é apenas um átimo de seu eterno devenir em que Ele se manifesta. Onde vossa concepção é mais particular e relativa, a minha tende a manter compacto o todo, numa visão unitária, e fazer ressaltar os vínculos profundos que ligam princípio e forma. No caminhar das verdades progressivas, esta concepção continua, aperfeiçoa e eleva a vossa.

Deus é um infinito, e a essência de Sua manifestação vós a percebereis cada vez mais real, à medida que vossa capacidade perceptiva e conceptual souber penetrar o âmago das coisas. Deus é o princípio e Sua manifestação, ambos fundidos numa unidade indissolúvel; é o absoluto, o infinito, o eterno, que vedes apenas pulverizado no relativo, no finito, no progressivo. Deus é conceito e matéria, princípio e forma, causa e efeito, ligados, indivisíveis, como a realidade fenomênica vo-los apresenta, como a lógica vo-los demonstra, como dois momentos e dois extremos entre os quais se agita o universo.

 Que maior profundidade ética e, ao mesmo tempo, verdade biológica (extremos que jamais soubestes unir) existem nesta concepção: o corpo é o órgão da alma; não é o cérebro que pensa, mas o espírito por meio do cérebro; o corpo é veste caduca que a alma eterna constrói para si, para as necessidade de sua ascensão? Que maior altitude espiritual do que esta: cada forma existente, em perfeita fusão de pensamento e de ação, é manifestação divina, expressão daquele supremo princípio de uma centelha animadora, sem a qual qualquer organismo cairia repentinamente?

 A matéria subsiste, como poderia ser destruída? Mas está fundida com o espírito num complexo poderoso; como serva fiel, ajudou-lhe o desenvolvimento, recebeu-lhe a gênese em seu seio materno. Depois, completada a criação, inclina-se diante do fruto de sua elaboração e continua sendo serva, porque se, no todo, o baixo está ligado com o alto em fraternidade de origem e de trabalho, cada individuação não pode ultrapassar seu nível. Assim, a matéria, na vida, permanece no grau intermediário, e jamais o ultrapassa.

Depois deveis compreender que matéria, energia, vida e consciência, toda essa florescência incessante que do âmago se projeta para fora, não se deve a uma absurda gênese pela qual o mais se desenvolve do menos, o ser se cria do nada, embora automaticamente. Tudo isso é forma, aparência externa, é a manifestação sensível daquele devenir contínuo em que o Absoluto divino se realiza, projetando-se no relativo. Não penseis que os movimentos vorticosos, em que o complexo atômico transforma-se na vida, contenham e desenvolvam o espírito e o vosso pensamento, mas pensai que eles formam a mais complexa disciplina a que a matéria se submete, para poder produzir o princípio que a anima e corresponder ao impulso interior que a solicita sempre a evoluir.