"S. Vicente, 11 de dezembro de 1955.

Nazarius,

Escrevo-lhe sem esperar sua resposta, porque você tem muito trabalho, agora, e não tem tempo, final de ano.

Eu sou diferente, você, também, é diferente. Somos dois seres diferentes da comum raça humana, egoísta, que se encontraram no deserto. Somos feitos de medida, contra todas as outras medidas feitas mais de mal do que de bem.

Você terá uma grande tarefa, uma verdadeira missão a cumprir, perto de mim e pela minha Obra. Você será o que Frei Leão foi para S. Francisco. Concorda? O que acha?

Hoje, à noite, tive um sonho. É a história de um passarinho e um peixe que se tornaram amigos. Escrevi-a. É a história de uma grande amizade entre dois seres diferentes, por fora, mas muito vizinhos por dentro, uma amizade estabelecida por Deus e que começou na Terra e acabou no céu. Quando acordei, estava chorando. Enviá-la-ei na próxima carta. O nosso encontro não foi por acaso. Trata-se, verdadeiramente, de dois destinos ligados. Este encontro tem um sentido profundo na eternidade, para ambos.

Da dor e do Amor no sacrifício daqueles dois seres, saiu hoje, domingo (11 de dezembro), uma composição maravilhosa, em português, que dedico a você. É uma fábula que por fora, tem sentido moral para todos. É a nossa história por dentro. Vou copiá-la a máquina e corrigir a língua, para depois publicá-la.

Acaba assim:

“O primeiro dos dois amigos já tinha fugido para o céu, um estava esperando o outro. Logo que este morreu foi ao encontro dele. Abraçou-o. O anjo do sacrifício abraçou o anjo da inocência e o Amor deles no desterro do tempo, no mundo, foi confirmado na eternidade dos céus. O anjo do Amor, na dor, levou consigo o anjo do Amor, na humildade. Levou-o consigo para o ninho que tinha aprontado para ambos no seio de Cristo.”

Assim acaba a história. Parece-me inspirada, é nossa mesmo.

Deus o abençoe sempre.

Pietro Ubaldi"

COMENTÁRIO

Essa fábula foi publicada em 1956, na revista Santa Aliança do Terceiro Milênio e mais tarde em Pietro Ubaldi e o Terceiro Milênio, uma biografia anexada ao primeiro volume da Obra. Eis os parágrafos mais importantes da fábula:

“Num grande lago, uma multidão de peixes ferozes vivia comendo-se uns aos outros.

Deus, que eles não conheciam e que os estava olhando do alto, teve compaixão deles e um dia chamou os seus anjos e assim falou: “Meus filhos, aí embaixo na Terra, no abismo de um lago fundo, está um povo de peixes ferozes porque são ignorantes. Eles também são vossos irmãos. Mas a luz não chega àquele abismo escuro. Para que a luz chegue até lá, é necessário que um mensageiro da verdade, um anjo, encarne-se no meio deles e se sacrifique para viver junto deles, na profundeza e nas trevas. Ele sofrerá muito por isso. Mas o sacrifício é a lei do amor. Quem de vós quer sacrificar-se para levar a minha luz até lá, encarnando-se num corpo duro de um peixe?”

Os anjos ficaram calados e tristes. A prova era dura demais. Perder as asas, a liberdade e a luz dos céus, para abismar-se nas águas pesadas e escuras e ficar fechado naquela profundeza – só de pensar nisso perdiam o ânimo. O amor era grande, mas o susto também. A maioria ficara indecisa, sem saber o que dizer.

Só um anjinho, o menor de todos, ficou de lado envergonhado de si mesmo, por ser a sua veste menos branca do que a dos demais. Ele olhava para si, sem ter a coragem de falar. Pensou: “eu sou assim feio porque prometia com facilidade e depois não costumava manter a minha promessa. Agora, é a minha vez de ir para purificar-me ainda mais. Agora, é a mim que cabe ir e não aos outros. Devo resgatar-me num sacrifício absoluto até enfrentar o martírio e a morte.”

O pobre anjinho olhou para Deus, olhou tremendo, sem ter a coragem de falar. Deus olhou para ele e compreendeu tudo. Viu o sacrifício desta alma ardente e o seu grande amor, e aceitou a oferta.

 

Só para confirmar a oferta e aceitação, Deus lhe falou: “Então, meu filho, tu queres ir?” O anjinho respondeu tremendo: “Quero”. Deus acrescentou: “Vai, meu filho, a hora chegou. O teu destino se cumpre. O Cristo mesmo te ajudará, ficará sempre perto de ti, será o teu anjo da guarda”.(...)

Uma grande floresta crescia perto do lago, cheia de pássaros livres, voando no ar. Entre eles havia um passarinho humilde e bonito, todo azul, cor do Céu, como o nosso peixe. Ele era feliz na sua liberdade. Era muito jovem e tinha a alegria despreocupada da juventude. Só começava a ficar um pouco triste por não achar Amor e verdadeira amizade no seu mundo. Sentia-se sozinho! Procurava, mais não achava. Que teria então acontecido?

Voando, olhava do alto para o grande lago e, às vezes, descia até à sua margem e, apoiando-se sobre os ramos que se espalhavam na superfície da água, olhava para o fundo, para descobrir o mistério deste outro mundo escuro, desconhecido para dele.

Um dia, quando estava assim olhando, mais triste que de costume, viu o peixe azul nadando quase fora da água, aproximando-se sempre mais, sem medo algum do pássaro. Este não pensou em agredir o peixe para comê-lo. Para o peixe, este era o primeiro ser encontrado que, por não agredir, lhe inspirou confiança. Era tanta a fome de bondade e Amor em ambos que estes dois seres, o peixe e o passarinho, continuaram se olhando, procurando aproximar-se, embora de espécies tão diferentes, foram atraídos por uma instintiva afinidade de alma.

O diálogo continuou por muito tempo, sempre que aquelas duas criaturas de Deus se encontravam. (...)

Um belo dia o passarinho desceu do ramo mergulhado na água, para continuar a conversa com o seu querido amigo. Mas este não apareceu.

Somente no lugar onde ele costumava chegar, o passarinho viu o corpo morto de um peixe a flutuar na água. As árvores amigas, que escutavam as suas palavras, tinham deixado cair à sua volta uma roda de folhas, homenagem da natureza inferior ao sacrifício de um anjo.

Ali, chorou todas as suas lágrimas, até que chegou, para ele, também o fim da vida.(...)

Ali ficou no mesmo lugar onde tinha jazido morto o peixe, seu amigo.

As árvores amigas deixaram cair à sua volta, desta vez, uma roda de flores perfumadas, homenagem merecida pela inocência deste outro amigo.”

O final da fábula é o que se encontra na carta em epígrafe.

Fundamental na fábula é a lição de humildade: o peixe pegou todas as qualidades positivas, que lhe pertenciam de direito, e as colocou no passarinho e apanhou as qualidades negativas do passarinho e as colocou nele. Por isto fica difícil a identificação. Pecados demais para um santo e excesso de virtudes para um pecador. Como o peixe era humilde por natureza, tinha de escrever a fábula daquele jeito, trocando a ordem das qualidades. Esta é a virtude dos grandes, que só tem uma preocupação: conquistar o céu.