Cristo

A pobreza evangélica e o correto uso da riqueza. A propriedade — função social.

Vimos como o Evangelho enfrenta o problema da riqueza. Vejamos agora como pode resolvê-lo o homem moderno. Qual é a correta posição que ele deve assumir perante a riqueza?

A moral condena, justamente, o excessivo amor ao dinheiro. Ora deve haver uma razão para este amor. Antes de condenar, é necessário compreender. Há dois fatos que explicam e justificam este amor:

1º) O homem emerge de um duríssimo passado biológico, constituído por uma batalha feroz pela sobrevivência. Se ele chegou até hoje, é porque enfrentou e venceu esta batalha. Mas nas camadas profundas do subconsciente ficou impresso o medo originário de lhe faltar o alimento necessário à vida, e se formou o instinto de assalto para se apossar de tudo. Este ó um impulso de defesa que deriva do medo da morte e representa, portanto, o aspecto negativo do problema.

2º) Mas há também o seu aspecto positivo, constituído pela atração para uma vida sempre mais plena e segura. Então o instinto de ganhar para possuir não deriva do medo de morrer, mas do desejo de crescer, impulso sadio dado pela lei de evolução.

Eis as duas formas de avidez básica, agressiva e insaciável, emergente de profundas raízes biológicas, correspondendo à premente necessidade de avançar, seja para libertar-se, saindo do AS, seja para conquistar, subindo para o S. É dessa forma que a vida, em vez de levar o homem a abandonar-se às várias promessas de uma Divina Providência, o incita a prover-se,  por si próprio, com o seu esforço a fim de garantir-se em forma concreta uma segurança cada vez maior, e isto a um nível evolutivo sempre mais alto. Assim o homem avança, seja porque acossado pelo terror do seu duríssimo passado, seja porque atraído pela esperança de um futuro melhor.

Eis aí a conquista dos meios que constituem a riqueza; enquanto necessários para viver e progredir, não podem ser condenados pela Lei, porque são instrumentos de proteção e de elevação da vida. Então aquela conquista representa uma forma de atividade legítima, porque executada para a ascensão evolutiva desejada pela Lei, em obediência aos seus fins. Segue-se daí que é legítima a riqueza, quando ela é um meio para realizar a ascensão evolutiva

Assim, a nobreza absoluta que, seguindo o Evangelho , conduz à renúncia franciscana, pode significar somente sufocação antivital e ser então condenável. Mas ela se explica e se justifica porque foi compensada, quando foi entendida e usada como meio de sublimação espiritual Este é o lado positivo do fenômeno no plano sobre-humano, e também no plano humano resulta correto na medida em que o lado negativo do fenômeno se condiciona ao plano super-humano. Segue-se disso que o exemplo de S. Francisco pode ser imitado apenas por homens superiores e maduros para tais sublimações, mas não pelas massas feitas de indivíduos imaturos, incapazes de executar tais saltos à frente. A estes, então, não pode cumprir outro trabalho senão o de glorificar o santo, de longe. Para os equilíbrios da vida, entre os sujeitos que compõem um consórcio social, tais casos não são admissíveis senão como exceções, como esporádicas procuras de novos modelos que por isso permanecem fora de série. Um povo de tipos como São Francisco morreria de fome. Hoje, um tal exemplo não seria sequer compreendido, porque não subsistem mais as condições sociais que então justificavam aquele exemplo.

E se aquela pobreza evangélica é um caso extremo, que não deixou, contudo, de exercer sua função e pode desempenhá-la ainda em casos excepcionais, tal negação absoluta perante a riqueza não pode assumir-se como modelo de virtude para o homem comum. Valha, à prova disso, o fato de os religiosos franciscanos terem contornado a questão, ficando pobres enquanto indivíduos, mas não sendo pobres em sentido coletivo, pois continuam possuindo como família constituída pela sua Ordem. Só assim eles podem reinserir-se em nossa sociedade, usufruindo seus produtos dos quais devem pagar regularmente a aquisição ou o uso. Eis então que para o homem comum a justa posição moral perante a riqueza não é o extremo praticado por S Francisco, isto é, a absoluta pobreza evangélica, mas o correto uso daquela riqueza.

Se na ordem do universo a Lei quer que o homem execute o seu trabalho de evoluir, e se para esse objetivo são necessários os meios indispensáveis para viver, eis que eles lhe pertencem de direito. O homem iria contra a Lei se não usufruísse dos meios de que tem necessidade para obedecer-lhe, e a Lei estaria em contradição consigo mesma se não lho permitisse de fato. E ela o permite. Os reinos da natureza estão hierarquicamente dispostos em posições subordinadas desde as inferiores até às superiores, e isto com uma dupla finalidade:

1) fazer com que os inferiores se tornem úteis, como meio de vida para os seres biologicamente mais avançados, colocados diante da evolução, para que estes a levem adiante;

2) arrastem em frente, neste caminho evolutivo, os seres biologicamente mais atrasados, incluindo-os em sua própria ordem e ensinando-lhes, assim, a viver em função de uma organização mais elevada.

Por isso, a virtude da renúncia, importante no plano espiritual, pode-se contrapor com a razão, e com a finalidade outro tanto importante para o nível biológico humano, a virtude do correto uso dos bens da Terra. Essa virtude pertence a um plano evolutivamente mais baixo, mas é mais acessível para as massas. Trata-se de um trabalho mais adequado ao seu grau de desenvolvimento, sendo essa a lição que cumpre aprender em tal nível. Assim não podemos enfrentar o problema da riqueza em sua excepcional posição, sublime virtude da renuncia, mas em seu aspecto normal e com aplicação, virtualmente correta.

Quando o Evangelho vai contra os ricos, visa ao abuso e não ao correto uso da riqueza e essa condenação não atinge, pois, o preciso problema que estamos abordando neste momento. Isto não significa que o Evangelho deixe de ser verdadeiro e atual também hoje, toda vez que se verifiquem os excessos por ele contemplados. Mas isto não impede que o problema da riqueza possa ser colocado e resolvido diversamente em outros casos, de maneira a que em vez de serem sumariamente condenados, sejam disciplinados por uma justa regulamentação do uso da riqueza.

É necessário, pois, distinguir antes de proceder indiscriminadamente a uma condenação. Sem dúvida, a riqueza pode ser objeto de cobiça, fruto de fraude, de furtos legalizados, de opressão e exploração do fraco. Há a riqueza ilícita, ensanguentada, maldita, por isso venenosa, que é dano para a sociedade, porque é a história de um usurpador de bens. É certo que uma riqueza conexa a tais males é repelida como perniciosa. Mas é também verdade que a riqueza pode ser fruto de operosidade, disciplina, poupança, inteligência. Assim há também a riqueza lícita, honestamente ganha, benéfica e bendita, que é vantagem para a sociedade, porque produto não de extorsão, mas de laboriosidade positiva. Eis então que uma riqueza deste outro tipo é aceita porque útil à sociedade e à vida.

Desse modo, o valor da riqueza depende do uso que se faz dela. Por si só é uma entidade neutra, é apenas um meio que pode assumir valores diversos conforme o fim para o qual for usada. Também  uma faca, conforme o uso, pode ser uma arma mortífera, embora de per si seja coisa inerte. E na intenção do homem, na vontade que dirige as suas ações, que estão bem e o mal, a virtude e o defeito, o merecimento e a culpa, a verdade e o erro. Com o dinheiro se pode diminuir tanta miséria e evitar tanta desgraça, como através dele se podem cometer os piores delitos.

Então, procurar melhorar as próprias condições econômicas mediante honesto trabalho é coisa lícita, porque sadia e benéfica. Desse modo, o bem-estar é evolução, porque permite emergi-la do embrutecimento da escravidão e das limitações que a pobreza impõe.

Para fugir à inexorável condenação do Evangelho sem deixar de possuir, o mesmo há de ser interpretado no sentido que o ser rico não impeça permanecer como o pobre de espírito para o qual Cristo vaticina o Reino dos Céus. Pobre de espírito quer dizer permanecer mentalmente desprendido daquilo que se continua a possuir materialmente. Ora, um tal estado de alma constitui-se, contudo, num fato interior que por ser invisível e portanto incontrolável, bem pode permitir que alguém se finja de desprendido a ponto de fazer-se de pobre de espírito, sem o ser verdadeiramente e sem renunciar a nada na realidade. Há, no entanto, a Lei para a qual o que tem valor são os fatos e não as palavras, a substância e não as aparências e em virtude da qual a hipocrisia não impede que tais erros se paguem.

   A vida dá, pois, ao homem o direito de ter, mas este direito é condicionado pelo cumprimento dos fins da Lei. Em virtude desta, torna-se, portanto, ilícita toda posse da qual não se faça bom uso. A Lei quer a propriedade, mas disciplinada, ou seja, só a legítima do administrador responsável que dê prova de sabedoria. Trata-se, assim, de uma propriedade condicionada, pois, na realidade, não vai além de um usufruto temporário, que dura apenas enquanto se viva, enquanto é concebido para servir de instrumento à realização de nossa evolução. E este modo de conceber a propriedade fica evidentemente, aos antípodas do modo corrente.

A vida não quer a propriedade monopolizante, exploração do próximo, mas uma propriedade função-social para o bem coletivo. É só a propriedade do primeiro tipo que o comunismo pode destruir, porque maléfica, em nome da justiça social. Mas se o comunismo tivesse encontrado uma propriedade do segundo tipo — a qual ela deverá realizar-se nos estados democráticos da futura civilização — então o comunismo pouco poderia contra ela, mesmo se em nome da justiça social.

A evolução conduz à destruição somente da propriedade que traz dano coletivo pelo mau uso que dela se faça, não destrói, ao contrário, consolida e aperfeiçoa a propriedade que seja útil à sociedade pelo correto uso que dela se faça. A vida, no seu sábio utilitarismo, não quer — porque contraproducente — a falta de retidão nos negócios, na manipulação do dinheiro, porque não quer o dano social que, via de regra, é provocado pelo improdutivo devorador de bens.

É por isso que, até nos países capitalistas, quanto mais se evolui, tanto mais o ilimitado direito de propriedade sofre restrições em favor dos interesses da coletividade. Sucede então que a ostentação de um luxo exagerado provoca reações, quando ao lado disso se vê a miséria que impera, fonte de muitos sofrimentos. Os países democráticos respeitam o direito da propriedade, admitem as diferenças econômicas, fruto de trabalho e de capacidade diversa, com uma economia de consumo que levam também a um maior bem estar. Mas os mesmos países, quanto mais se civilizam tanto mais são levados a proteger-se para que o dinheiro seja bem gasto, tanto pelo indivíduo como pela coletividade, porque cada desperdício acaba por tornar-se uma pedra coletiva a ser compensada com maior trabalho de todos.

A tendência da evolução não é a da abolição da propriedade, critério contraproducente, porque solapa o interesse individual, sem o qual o homem não trabalha. Este é ainda um individualista egocêntrico, imaturo para saber viver espontaneamente no estado de coletividade orgânica. Assim ele não pode chegar àquele nível senão à força, com formas de coação policialesca, contraproducente porque cheia de atritos, opressões e resistências. Logo a tendência da evolução é, pelo contrário, a de aperfeiçoar a propriedade, levando-a a formas mais profícuas para o bem estar e progresso de todos, sem açambarcamentos e privilégios individuais, até com sacrifício do indivíduo, compensados, contudo, por vantagens coletivas que são também suas. A evolução conduz sempre a um melhoramento, a uma crescente utilidade e é por este fato que a vida, que é utilitária, aceita a propriedade.

O comunismo quis antecipar demasiadamente os tempos presumindo no indivíduo uma maturidade que não existe, uma consciência coletiva que o torne apto a viver no estado orgânico, uma consciência ainda a conquistar, da qual se está ainda longe. Eis então que o comunismo pode cumprir uma função útil à vida — enquanto sob forma de imposição ou de coação — serve de escola que ensina a viver em forma coletiva e enquanto com a antecipação de um futuro hoje utópico, pode servir para lançar no mundo democrático ideias de justiça social que neste eram desconhecidas.

Assim, a evolução utiliza também o comunismo para nos avizinhar das suas notas mais remotas, que não são nem as dele nem as do capitalismo: a não-abolição da propriedade e a não-ilimitada liberdade, mas conservação e disciplinamento daquela propriedade. Tende-se, assim, ao caso limite no qual o proprietário não é senão um administrador dos bens que possui, responsável pela sua gestão perante a coletividade. Chega-se deste modo ao conceito de uma propriedade que não é mais mero direito individual, mas função social sem que com isso essa propriedade seja abolida como no comunismo, saindo das mãos do indivíduo que a possui.

Então, o direito de propriedade é correto como princípio de responsabilidade, pelo qual aquele direito permanece, porém disciplinado por uma responsabilidade tanto maior quanto maior é a propriedade. É o conceito de função social que investe sempre mais as várias atividades individuais, como já tínhamos visto estar acontecendo para o exercício da autoridade. Chegar-se-á, assim, a confiar a suprema direção de nossa vida não mais apenas, como hoje acontece, aos valores econômicos, mas também aos valores morais. Então o dinheiro será colocado no seu justo lugar, o que lhe cabe enquanto instrumento de vida e de civilização, de progresso cultural e espiritual, de ascensão biológica, como quer a, Lei de Deus, em direção a sempre mais elevados níveis de evolução.

A lei do “tudo-ganho”. Evangelho e evolução. Versão moderna do sermão da Montanha. A virtude da renúncia. O desprendimento dos bens. A esmola. A Divina Providência.

Para melhor compreendermos os fenômenos de que estamos tratando, é útil explicar como já exista em germe e como funcione também em nosso mundo de tipo AS, uma lei elementar de justiça que chamamos: lei do "tudo-ganho". Não se trata senão de um aspecto particular da grande Lei de Deus da qual falamos nos capítulos precedentes. Estamos sobre o terreno positivo de leis vigentes, cujo funcionamento é controlável pela observação. Só assim se pode chegar a conclusões objetivas baseadas sobre fatos, independentes das verdades de grupos ou escolas particulares.

Verifica-se no funcionamento da vida um princípio de justiça, pelo qual é estabelecida uma proporção entre o trabalho e a sua recompensa, entre esforço e gozo. Este se prende à  satisfação de uma necessidade e desaparece com a saciedade. Quanto mais possuímos de uma coisa, menos ela vale, e quanto menos dela possuímos, mais vale. Este é um princípio de economia, que regula a balança da procura e da oferta. Quanto mais uma coisa nos custa esforço, mais valor tem, e quanto menos nos custa esforço, menor é seu valor. Assim os ricos se habituam à riqueza e esta, que para o pobre poderia constituir uma fonte de felicidade, na realidade não os torna absolutamente felizes. Eis que podemos possuir tudo e morrer de tédio, devido à  saciedade.

Assim, a medida de nosso gozo não é dada pela medida de nossas posses, mas pelo esforço que fizemos para consegui-lo. A vida é dirigida também por esta lei de justiça, pela qual a alegria de possuir diminui a cada unidade possuída, isto é, em proporção inversa ao aumento da posse. Esta é a lei do "tudo-ganho". A justiça consiste no fato de que, se não se faz o esforço para se conseguir um gozo, não se tem direito a ele que, por isso, não é alcançado. Para que a coisa seja sã e vital é necessário que haja proporção entre o esforço e o gozo. Se este não é merecido, ele é um furto que, em virtude da mesma lei de justiça constituíra uma dívida a pagar. Então o gozo não é são e vital, mas doente e anti-vital, e a vida se revolta contra o indivíduo que dele se aproveita contra a justiça. Não faltam as vias gratuitas para se chegar ao gozo e estas são os atalhos do prazer. O mundo os conhece de sobra. Mas, então, a vida se vinga e as fáceis alegrias do vício se pagam bem caro.

Apliquemos, agora este princípio ao fenômeno da riqueza. Para ser sã e vital ela deve ser conforme a justiça. De outra forma ela é doente e antivital e a vida se revolta contra ela tendendo a destruí-la em quem a possui. Eis então que a riqueza para ser um bem deve ter sido ganha, isto é, merecida. Senão ela é deteriorada e venenosa. O que é de sinal negativo não pode trazer alegria mas somente dor. É necessária, então, que ela seja de sinal positivo, conforme a justiça. Para ser dessa forma é indispensável que a riqueza esteja ligada ao trabalho. Então ela se torna produtiva e saudável e por isso é lícita. A vida quer a nossa salvação e segundo a sua moral sé é lícito aquilo que é vital, sendo ilícito tudo o que é antivital.

A vida, pois, não é contra a riqueza, mas o é apenas contra a riqueza-furto, contra a exploração, contra a renda herdada sem esforço e gozada ociosamente, contra a riqueza parasitária, a qual é improdutiva para a coletividade e por isso danosa. A vida quer a riqueza produtiva, que se associa ao trabalho por ser fruto dele e admite também a riqueza hereditária, isto é, recebida gratuitamente, desde que seja a mesma fecundada por novo trabalho. A vida quer uma riqueza conforme a justiça. A que for injusta é negativa, perniciosa para quem a possui, é uma força lançada em direção antivital, uma planta deteriorada desde suas raízes, um débito a pagar.

Eis o que querem dizer as palavras de Cristo contra os ricos, pois, refere-se, com elas, ao tipo de riqueza maldita que Ele aconselha abandonar. E compreende-se que é um sábio conselho libertar-se de tal desgraça antes que ela nos envenene. O tipo de rico a que Cristo se refere é o da sua época, aquele que todos tinham então diante dos olhos, rapinador de bens, opressor de escravos, crápula e ocioso. Cristo não é contra a riqueza, mas contra o mau uso dela. Como podia aquele tipo de rico entrar no Reino dos Céus e uma tal riqueza não ser condenada?

Há rico e rico. Há, por isso, também o industrioso produtor de bens úteis à sociedade, por isso mesmo laborioso e organizador de fecundo trabalho para os outros. Tal riqueza é uma benção de Deus, uma coisa que é culpa abandonar, porque esse abandono equivaleria a um recesso na produção. Nos tempos de Cristo se ignorava a valorização do trabalho que caracteriza a moderna organização. Era somente esforço de escravos, opressão sem ganho. Nesse regime social qualquer reforma concreta era impraticável. Que podia restar a Cristo, para afirmar de qualquer modo o princípio da Justiça, senão apelar para um outro mundo onde se podia pensar que a mesma fosse possível?

Assim o Evangelho procura estabelecer o princípio de Justiça dizendo: "Ai de vós, ricos, porque já tivestes a vossa consolação (....). "Ai de vós que agora rides, porque mergulhareis na dor e nas lágrimas" (....), e, logo em seguida, acrescenta: "Abençoados vós que agora chorais, porque rireis (....). Naquele dia ficareis alegres (....), porque eis que uma grande recompensa vos é reservada no Céu" (....), eis o que quer a Justiça que os ricos que gozaram e riram, chorem; e que os pobres que choraram, riam; recebendo sua recompensa. Tudo na vida é colocado na balança e é pesado. Com isto o Evangelho expressa uma fundamental sede de justiça que faz parte da Lei de Deus.

Vimos que as leis biológicas, vigentes na Terra entendem a justiça noutro sentido, isto e, que o valor e o merecimento esperam ao vencedor na luta e não ao mais justo. Será, então, que o Evangelho nos engana e que o Sermão da Montanha não é verdadeiro? Não. Há dois tipos de justiça, um num baixo nível evolutivo, o vigente na Terra, e outro num mais alto nível, próprio de ambientes mais evoluídos. De um primeiro confronto entre o Evangelho e a realidade da vida em nosso planeta, pode parecer que o Evangelho não tenha razão e que não passe de um sonho irrealizável. Para compreender é necessário colocar cada coisa no seu justo lugar. O Evangelho não expressa a nossa realidade atual, mas uma outra mais evoluída, ele é uma ponte lançada em direção a ela para alcança-la, é um farol longínquo que orienta o caminho. É assim que o Evangelho é utópico e anacrônico só em relação ás involuídas leis biológicas de nosso mundo, mas não o é perante a Lei de Deus que sabe funcionar perfeitamente na Terra, no baixo nível evolutivo desta.

Logo, o Sermão da Montanha é absolutamente verdadeiro. O defeito não está no Evangelho, mas no homem involuído, incapaz de compreendê-lo, mas que por esta sua incapacidade não pode eximir-se de pagar as consequências dos erros que comete na sua ignorância do verdadeiro estado das coisas. Aquele "Ai de vós ó, ricos!" e aquele "Benditos vós que agora chorais", expressam reações positivas das Leis que, mesmo depois da vida atual, inexoravelmente entram em jogo fazendo justiça, como prêmio e como pena, conforme aquilo que foi feito. Eis o que significa o Sermão da Montanha. Trata-se de uma lição a aprender. O involuído atual é como se tivesse uma pele de crocodilo, dura como uma couraça. A Lei, submetendo-o a lições corretivas aplicadas à guisa de golpes de formão, deve conduzi-lo até que não reste senão uma pele sutil e sensível como a de um anjo.

Esta incapacidade de compreender as leis de um outro plano de evolução está plenamente justificada, quando os ricos em vez de chorarem porque como tais condenados por Cristo ao Inferno, alegram-se e, não obstante esta sua terrível desgraça, são até invejados pelos pobres. O contrário daquilo que ensina o Evangelho não convence ninguém. E como se explica que os pobres, que são tão afortunados por serem destinados ao Paraíso que é felicidade eterna, não se sentem nada felizes por esse fato e choram invejando os ricos, que são tão desventurados por serem destinados ao Inferno, que é pena eterna? Como a própria Igreja se aliou sempre aos ricos e poderosos, isto é, aos condenados ao Inferno? Mas então se Cristo era tão bom e tão piedoso deveria ter consolado os ricos que são os verdadeiros desgraçados, porque após gozarem pouco sofrerão eternamente, e deveria censurar os pobres, que são os verdadeiros afortunados, porque após sofrerem pouco gozarão sempre! Então santos deveriam ser os ricos que se sacrificam por pagar tão caro pouca alegria e pecadores deveriam ser os pobres que desfrutam a situação gozando tanto com tão pouco sofrimento! De outro modo onde estaria a justiça da Lei? Pois, enquanto esta quer que haja proporção entre trabalho realizado e prêmio recebido, neste caso, em vez disso, os ricos perderiam e os pobres ganhariam demais. Mas como podia Cristo oferecer justiça na Terra onde vigora a lei da força, enquanto a justiça é coisa que pertence a planos de existência mais evoluídos? Eis então que se Cristo queria justiça, não podia procurá-la em baixo nível, na Terra, mas nos céus, isto é, em mais alto nível de evolução. Assim Cristo propôs aquela que era a única justiça existente, procurando fazê-la descer sobre a Terra. Ora, deveria propô-la em forma de ideal, projetada para o futuro, sem permitir que se cumpra o erro que, dada a natureza humana, é inevitável, para não ter que corrigi-lo, mediante sanções, num segundo tempo e em outro ambiente. É assim que nos explicamos o fato de que, não obstante tantas ameaças, os ricos não se preocuparam com um hipotético Inferno, e os pobres não se sentiram satisfeitos com a promessa de um hipotético Paraíso. O que aqui interessa é o que está presente, material e não o que é longínquo e inatingível. Para ver tais coisas é necessário uma outra vista que o homem não possui. De fato ele aprende somente com a técnica do erro e da expiação.

Será, então, irrealizável toda Justiça sobre a Terra? A vida procura, todavia, realizar algumas aproximações, nos limites das condições ambientais. Já vimos como a Lei procura aplicar na Terra o princípio de justiça, fazendo pagar o mal feito, isto é, ensinando a custo de duras lições. Vimos, outrossim, como há na vida uma tendência natural que leva o rico ocioso a perder as suas riquezas e o pobre dinâmico a apossar-se delas suplantando-o. Isto sucede automaticamente porque o primeiro, dado o tipo de vida que leva, torna-se inepto, destinado, portanto a perder, e o segundo, sendo obrigado a lutar e assim a aprender, torna-se, por isso, apto a vencer. Esta tendência da vida corresponde a um princípio de justiça e expressa aquilo que neste sentido as Leis biológicas espontaneamente tendem a realizar. Trata-se de um fenômeno bastante comum que se verifica não só para casos individuais, pois estende-se a famílias e a inteiras classes sociais. Há um ciclo de ascensão, de florescimento e por fim de fatal descida, fases características do fenômeno. O mesmo desenvolvimento e fim das civilizações seguem este ciclo. Isto porque persiste sempre a expectativa da eventualidade que os estratos inferiores, emergindo de baixo, assaltem os antecedentes vencedores, embalados na sua cômoda posição de bem estar. Desmoronou a potência do Império Romano com a descida dos bárbaros, assim como foram liquidadas as aristocracias com a Revolução francesa e com a russa.

É dessa forma que, automaticamente, se compensam as duas opostas injustiças, a do rico que não trabalha e a do pobre que tem fome. Assim o rico deixa a ociosidade e o pobre se sacia. Da mesma forma a vida com um lento trabalho de erosão elimina a injustiça. Quando a justiça prevalecer, permanentemente, não haverá mais razão para as revoluções. Por este caminho se pode chegar à  completa e prática aplicação do Evangelho. Eis então que, biologicamente entendido, isto é, segundo as leis da vida, o Sermão da Montanha permanece verdadeiro. Eis como ele pode repetir-se em forma realista, como hoje ele pode ser entendido em sua prática atuação terrena.

“Benditos vós que sois pobres e, portanto, hoje sofreis pela injustiça social, porque é vosso o reino da justiça que o mundo se prepara a realizar. Benditos vós que agora tendes fome, porque conquistareis o direito a uma justa repartição dos bens e sereis saciados. Benditos vós que agora chorais, porque rireis. Isto pelo fato de os ricos ociosos serem destinados a enfraquecer-se no bem estar, devido a sua vida fácil, de gozo. Então vos será fácil suplantá-los e substitui-los na sua posição. Nesse dia alegrai-vos, estremecei de euforia, porque eis que uma grande recompensa vos está reservada, não mais apenas em forma nebulosa nos Céus, mas até sobre a Terra em forma utilitária e concreta.

Mas, ai de vós, ricos, porque já recebestes a vossa recompensa. Gozastes a ociosidade bastante e assim a justiça da Lei vos fará passar a classe dos pobres. Ai de vós que sois saciados, porque tereis fome. A vossa vida de gozadores vos tornará ineptos a defender-vos, os pobres que dominastes vos assaltarão, vos sacudirão das vossas cômodas posições e nelas vos substituirão para gozar em vosso lugar. Aí de vós portanto, que agora ris, porque ficareis na dor e nas lágrimas” (...).

Eis como, hoje, à realista mente moderna, pode o Sermão da Montanha soar realizável praticamente, de forma positiva e controlável, sem vagos apelos a sanções remotas num mundo que não se conhece. É desse modo que aquele sermão permanece verdadeiro e atual, sendo aplicável à moderna luta pela justiça social, de acordo com as leis biológicas vigentes. A vida é realizadora e não pode ficar para sempre no terreno das afirmações teóricas. No seu utilitarismo, ela as aceita somente como fase preparatória para sua efetivação. A vida as propõe como ideal a realizar e põe-se a caminho para alcançar aquela realização. A Lei quer chegar à justiça. Os homens falam, a Lei funciona. De um lado as palavras, de outro os fatos. Hoje a vida quer realizar. A fase da espera está superada, não sendo mais aceitas soluções hipotéticas e realizáveis em longo prazo. Atualmente, os problemas não são mais escondidos – como se fazia antes, julgando-se que, se não fossem vistos, estariam resolvidos – mas são enfrentam-se e se resolvem.

Cristo não podia usar tal sistema, os tempos não eram maduros como o são hoje para sua realização. Se Ele tivesse falado como hoje se costuma, teria incitado à violência sem nada obter, porque o poder que Ele condenava era bastante forte e toda a sociedade estava organizada de modo a reprimir todo anseio de justiça. Cristo tinha o dever de reconhecer os direitos dos escravos, mas ao mesmo tempo devia aplacá-los, coisa que Ele não podia fazer senão com a promessa de compensações celestes, cuja conquista não dependia de sua revolta, mas de sua paciência. Outra coisa, dada a sua imaturidade de seres subdesenvolvidos, não se podia então exigir. Eles eram absolutamente incapazes de fazer uma revolução construtiva, porque demasiadamente involuídos para se colocarem no lugar dos seus patrões.

Estamos observando como o pensamento da vida dirige tais fenômenos. Ela não conhece direitos a quem não tenha as qualidades necessárias para sabê-los conquistar e depois usá-los bem. Isto só é possível hoje que as classes mais desprovidas alcançaram uma certa consciência e capacidade de organização. Os primitivos não sabem fazer outra coisa senão uma guerrilha que nada constrói e resolve. E esta teria sido apenas uma dispersão de energias, coisa que à vida não interessa. Assim, a palavra de Cristo foi um reconhecimento de direitos, mas não com o objetivo de fazê-lo valer, mas como exortação a suportar uma situação injusta. Se isto redundou também num implícito encorajamento aos opressores a persistirem em seus métodos, toda a culpa foi dos imaturos, aos quais certos direitos não podem ser concedidos. Pela lei do "tudo-ganho" é justo que não possa gozar direitos quem não os tenha merecido. Os primitivos têm necessidade de serem guiados e não podem comandar, porque o seu instinto é de rebaixar tudo ao seu nível. Para ter direitos é necessário ter conquistado o direito de ter direitos. Isso só pertence a quem é biologicamente útil, em sentido evolutivo, e é negado ao involuído que tende a fazer retroceder em vez de avançar. A vida sustenta só quem serve aos seus fins. Então para os imaturos, não resta senão a resignação e a esperança, como propõe o Evangelho.

Hoje, estas virtudes de renúncia não servem mais e a elas se substituiu a do trabalho, virtude dinâmica e produtiva que implica no desenvolvimento da inteligência. Hoje não estamos mais na precedente fase de espera e de subterrânea maturação, mas numa fase de florescimento da vida que avança. Depois da fase de incubação da Idade Média chega-se agora á da realização. Já não se perde mais tempo a renunciar e a impor-se penitências, mas se trabalha e se produz, lançando as bases do bem estar material sobre o qual se possa construir uma nova civilização.

O Evangelho chegou a nós depois de ter atravessado os tenebrosos séculos da Idade Média, em que a vida estava reduzida como que a uma forma de desespero, a ponto de ser concebida em sentido negativo, como uma expiação de culpas inatas, como uma prova a suportar em vista da verdadeira vida que era uma outra, depois da morte, no Céu. "E tanto o bem que me espera que cada pena me é dileta", dizia S. Francisco. Então, a forma mental dominante a respeito da vida não foi de fecunda atividade, mas de absenteísmo e de evasão, sonhando para além dessa, uma outra vida melhor na qual houvesse salvação. A respeito da riqueza o próprio Evangelho tinha sugerido a atitude de renúncia. A vida hoje nos diz: trabalha. É verdade também que a vida atual não se pode valorizar senão vivendo-a em função de um seu futuro maior. Mas é pernicioso desvalorizar a vida terrena que tem a sua grande função construtiva também em sentido terreno. Pelo fato de se conceber a vida também neste sentido, se deve o progresso e a civilização, que são ótimos meios para conseguir, também no Céu, um futuro melhor. Não se sabe como seja possível construir no Céu uma humanidade de penitentes, que nada tenha sabido construir na Terra.

O Evangelho pareceria aconselhar-nos o desprendimento dos bens, propondo jogar fora as posses na Terra e acumular outras no Céu, abandonando-nos imprevidentes nas mãos de Deus. A esta voz responde a da vida com as suas prementes necessidades materiais que não admitem dilações, e com as suas severas sanções contra quem não observa a sua lei de luta pela sobrevivência. Cristo conhecia muito bem a realidade do mundo espiritual no qual ele vivia, dando a impressão de ter esquecido a realidade do mundo material na qual, no entanto, ao homem cumpre viver. Para Cristo o Céu (S) estava próximo e atual, mas para o homem situado em outro nível evolutivo (AS), aquele Céu está longínquo e irreal. Para este resta o fato da tremenda proximidade do mundo terrestre, mesmo que seja seu dever e seu bem procurar aproximar-se tanto quanto possível do mundo espiritual de Cristo.

Cada um destes dois ambientes tem as suas leis e fazer descer o alto até em baixo é um emborcamento que pode produzir efeitos opostos aos desejados. O objetivo do desprendimento é o espiritualizar-se, mas isso pode terminar com um maior apego ao dinheiro. Só o rico pode permitir-se o luxo de se desinteressar dele, porque o possui em abundância. Se ele se torna pobre, eis que as necessidades da vida o assaltam, e o dinheiro, que primeiramente para ele significava o supérfluo, torna-se uma questão de vida ou de morte. Se, antes, tendo dele em demasia podia ficar desprendido, agora, tendo pouco, ele deve ser apegadíssimo se quiser sobreviver. A necessidade de conseguir sobreviver o exige. E lei econômica aquela pela qual uma coisa vale tanto menos quanto dela possuímos, e vale tanto mais quanto menos dela dispomos. No primeiro caso o preço da mercadoria baixa, no segundo aumenta. É uma lei psicológica pela qual a privação aumenta o desejo e que a saciedade o extingue. Com efeito, a proibição que nos priva de uma coisa, a torna-a mais desejada.

O Evangelho aplicado em nosso mundo pode resultar contraproducente, porque a privação em vez de produzir o desprendimento pode produzir um apego ao dinheiro. É na pobreza e não na riqueza que se aprende quanto custa consegui-lo. Do mesmo modo sucede com o jejum e com a castidade. São os esfomeados que pensam sempre em comer; é a abstinência forçada que faz pensar sempre no sexo. Assim, se o rico segue o Evangelho e dá tudo aos pobres, ele passa da abundância à necessidade, isto é, do desprendimento ao apego. O rico pode ter tempo e energias para dedicar-se às coisas do espirito, não o pobre que está preso à preocupação avassaladora de se procurar os meios para viver. A verdadeira pobreza a indigência — é um degradante rebaixamento ao nível de vida animal que pode levar a um retrocesso involutivo e paralisar o desenvolvimento da civilização. A verdadeira pobreza é abjeção em ambientes malsãos, é miséria também espiritual, é, antes de mais nada, negatividade destrutiva das construções da vida em nível mais alto, as quais são as primeiras a desmoronar.

Existe, pois, ainda um outro fato: se o rico é desprendido da sua riqueza, não lutará para defendê-la. Então num mundo de assaltantes, lhe roubarão tudo. É necessário que ele tenha um certo amor pelas suas posses se quiser que as cuide e assim não as perca e não seja degradado ao nível de pobre. Tal desprendimento não seria considerado virtude, mas inaptidão e desinteresse. A realidade é que a vida não recompensa de modo algum aquele rico, mas o degrada a posições de inferioridade.

O que de fato lhe acontece depois que virou pobre? O Evangelho regula o assunto dando-lhe tesouros no Céu. Ora, estes lhe servirão no Céu, mas não resolvem o problema terreno, que permanece sem solução. E o Evangelho acrescenta ainda que a quem trabalha para o Reino de Deus e sua justiça, o resto será dado por acréscimo e que, portanto, ele não deve preocupar-se com o amanhã. Estas palavras podem fazer crer que a Divina Providência intervenha automaticamente provendo a tudo, de modo que baste deixar-se servir. Assim não acontece, as esmolas podem não existir, e se existem, não caem do Céu; elas são incertas e não garantem o necessário para poder-se dedicar a outra atividade. Com tal incerteza não se pode traçar um plano de trabalho e segui-lo. Mas, pelo contrário, a Divina Providência exige um esforço contínuo para que um determinado plano de trabalho funcione, com a responsabilidade, que satisfaça suas condições e esteja preparado a cada momento carente de sua ajuda.

Vamos considerar também o seguinte: se para o rico seus bens representam o fruto de um esforço pessoal, porque as riquezas não caem gratuitamente, será então justo que elas venham a ser gozadas por um pobre que nada fez, e provavelmente nada sabe fazer para merecer aqueles bens? Além disso, tolhendo àquele pobre o impulso da necessidade, aquela ajuda o instigará ao ócio. Logo, a esmola pode encorajar à preguiça petulante. A esmola pode encorajar os pobres ao parasitismo. Estes, porque pobres, iriam para o Paraíso — mas ficando no ócio porque providos do necessário — enquanto os ricos que os sustentam com o seu esforço, iriam para o Inferno pelo simples fato de serem ricos? Para cada santo a enviar para o Céu, deveria haver um diabo rico que, na Terra, o mantivesse. Como se vê, no caso prático é necessário distinguir um rico do outro e um pobre do outro, porque nem todos são iguais. Mas o próprio Cristo moderou as palavras acima referidas quando disse: "Quod superest date pauperibus". ("O que vos sobrar dai-o aos pobres"). Como se vê o problema não é tão simples assim, tomando ao pé da letra alguns trechos do evangelho.

A passagem do AS ao S. O nosso universo e o conceito científico de Deus. As intuições das multidões. As resistências do AS. Crucificação e ressurreição em um novo tipo de vida. Os dois campos gravitacionais S e AS. A salvação obstaculizada no AS é favorecida no S.

Nos capítulos precedentes, falamos rapidamente da passagem do AS ao S, sem nos podermos deter para aprofundar o estudo deste fenômeno. Fazemo-lo agora, separadamente dos outros problemas. Isto porque é este um problema de fundamental importância por representar a realização da redenção e o momento em que a tão almejada salvação é definitivamente alcançada, atingindo-se o ápice da escala da evolução, para além do qual se reingressa no S. Este é o momento crítico, resolutivo do ciclo involutivo-evolutivo, momento em que o mal é sanado e tudo volta ao S, no estado de perfeição no qual se encontrava antes da Queda.

Este fenômeno interessa de perto a todos os seres em particular, porque – apesar de alguns estarem mais adiantados e outros menos todos estamos a caminho em direção à mesma meta do retorno. Há um ponto em que o confim é transposto. É o momento do grande salto, o mesmo que Cristo viveu, constituindo-se num claro exemplo, para que nós todos possamos imitá-Lo quando nossa hora chegar. Sim, o caminho a seguir, a meta a atingir são os mesmos que Cristo seguiu e visou, isto é, o Pai expresso pela Lei de Deus, Lei esta que ficou viva no AS, que constitui o invólucro material do S, por efeito da Queda, projetado para a sua periferia, parte corrompida e depois regenerada pela evolução. Assim a parte anteriormente deteriorada e expulsa, acaba por curar-se e ser reabsorvida em Deus.

Este retorno é o resultado de um processo de purificação, que é eliminação de todas as qualidades de tipo negativo e reconstrução de todas as de tipo positivo. Assim Cristo era verdadeiramente o Filho de Deus, porque como elemento do S tinha sido gerado por Deus, a ponto de poder, agora, reentrar no S; Ele era Homem-Deus; Homem, porque emergia do AS, e Deus porque reingressava no S. Na Sua vida terrena Cristo encontrava-se no momento da passagem do estado humano para o divino. Por isso Ele podia possuir tanto as qualidades de homem como as de Deus. Assim concebida, esta Sua dupla natureza é fato logicamente compreensível e não uma suposição aceitável apenas por um ato de fé. Aquela vida humana de Cristo foi a Sua última na dimensão AS, isto é, do tipo de vida decomposta no dualismo positivo-negativo, vida-morte, modelo vigorante nesse mesmo AS. No S esta cisão dualística é superada e sanada num tipo de vida unitária, que não conhece mais a morte. Assim podemos afirmar que a ressurreição de Cristo foi verdadeira, pois Ele venceu definitivamente a morte e porque daquele momento em diante, entrando na vida eterna depois da Sua ressurreição, jamais teria voltado a morrer. O reviramento da pedra do sepulcro simboliza perfeitamente esta definitiva vitória sobre a morte.

É neste mais profundo sentido espiritual, e não no sentido material e corporal que há de ser entendida a ressurreição de Cristo. Desse modo permanecemos na ortodoxia ao admitirmos que Cristo era filho de Deus, pois Ele foi, com efeito, homem e Deus ao mesmo tempo, como ao admitirmos a Sua ressurreição, embora procuremos dar a estas palavras um significado capaz de torná-las, aceitáveis. Respeitemos a vontade do Cristianismo de deificar à sua maneira o Cristo para que sinceramente conheçamos a sua verdade. Mas ela é concebida em forma mitológica obtida com a velha forma mental das massas. Trata-se, portanto, de uma deificação de modo algum racionalmente compreensível, portanto sempre menos adequada à psicologia moderna, em rápida evolução.

A tal ponto aceitamos o conceito de Cristo, Homem-Deus, que distinguimos nitidamente entre Jesus Nazareno (O homem) de Cristo (Deus). Desse modo, nos ocupamos bem pouco do primeiro que fora utilizado e depois abandonado pelo AS; mas sobretudo nos ocupamos do segundo, isto é, daquele que não nasceu e não morreu senão no sentido de se ter antes revestido e depois despojado daquele instrumento físico necessário para manifestar-Se na Terra. É o Cristo que, percorrido o Seu caminho através do AS, pertence ao S, torna-se Divino porque regressou ao perfeito estado de origem em que foi criado. É de Cristo e não de Jesus que nos ocupamos, isto é, da criatura que retorna a Deus, porque esta é a Sua substância, o significado básico da sua vida na Terra, o fenômeno que nos concerne a todos de perto. Mais cedo ou mais tarde todos nós devemos viver aquele fenômeno que o colocou sob nossas vistas, para que possamos observá-lo, compreendê-lo e realizá-lo em nós mesmo.

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Que Cristo seja Deus não é aceitável senão concebendo-O como elemento do S, isto é, como um dos infinitos momentos dos quais este organismo é constituído. Depois da Paixão purificadora este elemento se reintegrou na sua posição de origem. Uma encarnação de Deus, isto é, de todo o S, num ser humano é coisa inimaginável. Procuremos agora fazer-nos uma ideia de Deus deduzindo-a da observação de nosso universo, o único fato positivo para nós suscetível de exame.

Calcula-se que no universo existam cem quintilhões de estrelas radiantes (um cento seguido de dezoito zeros). Suponhamos que uma só estrela num milhão tenha um sistema de planetas e que apenas um planeta num milhão se assemelhe à nossa Terra, isto é, que apresente as condições necessárias para o surgir da vida. Com tais astronômicas reduções ficam sempre cem milhões de planetas onde a vida é possível. Mas é provável que cálculo seja muito reduzido. Assim nos dizia um astrônomo.

A teoria das origens elétricas da vida, por nós sustentadas no volume: A Grande Síntese, está recebendo da ciência sempre novas confirmações. Além daquelas mencionadas em nossos escritos, lemos que a mesma Teoria é hoje sustentada pelo Prot. Harlow Shapley astrônomo em Monte Wilson e diretor do Observatório da Universidade Harvard (U.S.A). Ele sustenta que o surgimento da vida é inevitável quando as condições do ambiente são favoráveis. Ora, estas condições, assim como na Terra, verificaram-se em milhões de planetas. Segue-se disso que a vida deve ter aparecido também nesses planetas e que depois, dado — como nos é possível ver — que ela procede por evolução, deve ter progredido desde as primeiras formas de "protovida" em direção a outras formas sempre mais complexas e psiquicamente sempre mais evoluídas, como aconteceu para o homem.

Partindo das cifras baseadas em tais dimensões, há uma grande probabilidade que estas deduções correspondam à realidade. Não há como se negar que a evolução deve ser um fenômeno universal e não um modelo particular reservado só à nossa Terra. E se as condições que tornam inevitável o aparecimento da vida se verificaram em milhões de planetas, é altamente provável — estatisticamente — que existam neles milhões de humanidades pensantes. A aparição da inteligência faz parte desta evolução e é uma fase do próprio desenvolvimento da vida. Isto a ciência começa agora a reconhecê-lo, enquanto já o havíamos afirmado no referido volume: A Grande Síntese, com a teoria do físio-dínamo-psiquismo, segundo a qual a evolução de nosso universo, partindo da fase matéria, atravessa a da energia e alcança a do espírito.

Dessa forma não se pode excluir que a evolução bioquímica se tenha verificado em milhões de outros planetas, atingindo o nível psíquico como no homem e até além. Tudo isto leva a necessidade de redimensionar o homem como cidadão do universo, julgando-o não mais como escopo e centro do mesmo, mas como uma entidade muito menos importante de quanto o seu orgulho o tenha induzido a crer.

Agora — como dizíamos acima — podemos fazer-nos uma ideia positiva de Deus, deduzindo-a da observação de nosso universo. É evidente que, com tais premissas, não pode interessar-nos uma divindade humanizada para uso exclusivo de nosso planeta. Deus deve ser universal, como tal para todos os seres pensantes da Criação, existentes em todos os planetas sob todas as formas possíveis. Hoje o Céu não é mais um reino mitológico que a guisa do Olimpo funcione como uma sede para a Divindade. Hoje o céu é observado, começa-se a percorrê-lo e fazem-se as contas daquilo que ele possa conter. Nos antecedentes volumes explicamos a origem e a função deste universo físico que nós vemos. Logo, de Deus não poderíamos fazer-nos uma imagem dimensionalmente inferior àquela agora contemplada.

Para nós que devemos pensar a base de lógica e não de mistérios e trabalhar para compreender e não por fé, Deus é o organismo espiritual do S que constitui a contrapartida do organismo material de nosso universo que é o AS. Ora, que tal organismo — do S, do qual podemos imaginar o valor e a imensidade — possa degradar-se como nível evolutivo e descer como potência e dimensões até o plano humano, é coisa que não podemos conceber. Nem se compreende para qual fim visaria a sugestão de um absurdo tão grande. É para provar isto que quisemos fazer esta divagação astronômica, confirmando as nossas antecedentes afirmações e procedendo por eliminação das outras hipóteses possíveis. Assim, se quisermos compreender a vida terrena de Cristo, não nos resta senão entendê-la como a apresentamos aqui, isto é, como reintegração de um elemento no S. Ao contrário, se quisermos entender a vida de Cristo como o ato de um único filho de Deus para redimir a humanidade, deveremos também admitir que constituiria uma grave injustiça se isso não fosse repetido para a humanidade de cada um dos cem milhões de planetas que, como vimos, devemos supor habitados. Desse modo, o trabalho de redimir esta mais ampla humanidade exigiria, por parte do Filho de Deus, cerca de cem milhões de encarnações.

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Voltemos a observar o fenômeno da passagem do AS ao S, vivido por Cristo. Está escrito no plano de desenvolvimento do percurso do ciclo involutivo-evolutivo um progressivo manifestar-se de inteligência e espiritualidade. Com a evolução elas se revelam sempre mais potentes, até que a maturação do fenômeno conduz fatalmente a um ponto de ruptura: Nesse momento acontece que o princípio do S, embora tendo ficado sepultado com a Queda, permanecera, contudo, sempre vivo e ativo em sua estrutura íntima no centro do AS, e reaparece, enfim, em toda sua potência originária. Neste momento o ser não é mais um elemento do AS, mas do S, isto é, resulta constituído da pura Substancia de Deus, como era na hora da Criação primigênia. Por isso, Cristo pôde ser o Homem-Deus, ou seja, o homem que voltou a ser Deus, enquanto na sua passagem sobre a Terra era cidadão de dois mundos, o AS e o S, lutando para libertar-se do primeiro e reingressar definitivamente no segundo. Só assim, olhando-O com tais critérios racionais objetivos poder-se-á compreender o fenômeno do Homem-Deus.

Na verdade, Cristo foi o antecipador de uma experiência profundamente humana, como o desprender-se do mundo por ter superado os métodos deste, no plano evolutivo. A humanidade não compreendeu e por isso não pode explicar-se este caso de Cristo. Mas intuiu sua importância, tanto que, construindo sobre o mesmo um mito gigantesco, colocou-O no centro do universo. Isto prova que no fenômeno deve haver algo real e biologicamente muito importante, capaz de explicar tal reconhecimento. Tão vastos consensos nascem somente das profundas raízes da vida e não podem produzir-se artificialmente ou coativamente. Tais impulsos instintivos derivam de forças biológicas que levam a reconhecer a importância do fenômeno e a aceitá-lo; ainda que confusamente e sem discernimento fizeram sentir em Cristo o Deus reencontrado. Não se trata, portanto, de uma simples deificação de um homem, como costumavam fazer os pagãos, mas do reconhecimento de um fato biologicamente fundamental, como o reencontro de Deus por parte do homem. E qual fato poderia ser mais importante do que este em que se resolve o processo evolutivo de tal forma que, chegados ao ápice da evolução, regressa-se ao S, alcançando assim a meta final a que tende a vida.

Cristo não representa apenas a fraqueza de nossa carne, o que o torna semelhante ao homem, mas também e sobretudo a força do espírito que é potência divina. Cristo constitui o endireitamento de tudo o que foi emborcado pela Queda e constitui ainda o regresso ao Pai e a reconstrução da ordem violada. A crucificação não se explica como uma vingança imposta por um Deus egoísta que recebeu uma ofensa e exige que a mesma seja paga por um inocente. A crucificação explica-se como a desesperada resistência da negatividade do AS contra um ser que lhe escapa porque pertence quase todo à positividade do S. A crucificação revela os métodos destrutivos próprios do AS que quer aniquilar o que até aquele momento lhe pertenceu, antes que cedê-lo ao S. O AS não quer que se abra aquela única porta que permite a seus súditos voarem para o S. Quanto maior o número dos seres que se evadem para o S tanto mais este se reforça, e quantos mais ficam no AS tanto menos este se enfraquece. O AS sabe que estas evasões significam o seu fim e portanto as teme-as e dificulta-as.

Compreende-se deste modo toda a lógica da Paixão de Cristo, choque apocalíptico de forças opostas, no momento final do ciclo involutivo-evolutivo que redime a Queda. O AS se manifesta com o seu feroz assalto feito de dor (crucificação), o S com o seu luminoso triunfo na esfera da vida (ressurreição). Temos duas explosões opostas, uma ao negativo, a outra ao positivo. Com isto cada um dos dois universos revela a sua natureza. O primeiro manifesta-se infligindo derrota e morte, o segundo com a vitória da vida. Colocados frente a frente em seu antagonismo, crucificação e ressurreição dão-nos em síntese a solução do drama da Queda e a realização do prodígio da Salvação.

Por que existe tal psicologia agressiva no AS? Porque o evoluído que lhe escapa para reentrar no S é para ele um traidor, um rebelde. Quem doa a Deus é um inimigo do Anti-Deus, é um perjuro que passa para o lado oposto, um pecador indigno que há de ser punido. Por isso o AS desencadeia suas tempestades contra quem se torna culpável de rebelião ao método de viver de tipo AS. Satanás tenta Cristo nos momentos em que O reputa mais fraco. Mas Cristo tem a luz do S e não se deixa pegar. Quem chegou àquela altura não pode mais ser enganado. Mas Satanás se vingará duramente.

No último momento da Paixão, Cristo ficou sozinho. "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" A fadiga da superação devia ser toda de Cristo. Mas logo depois eis o "Consumatum est" ("Tudo se cumpriu"). Sucede, então, o desligamento do AS, que perde todo o poder sobre Cristo. Daquele momento em diante Ele é livre e encontra-se no S. A ressurreição significa um ressurgimento para uma nova vida que se substitui à velha, continuando sob outra forma, segundo outro tipo de existência, espiritual em vez de material. Eis que Cristo realmente morreu porque uma vida cessou para Ele, e ressuscitou de verdade porque iniciou uma nova vida. Eis, pois, como até perante a Sua morte e ressurreição podemos reputar-nos ortodoxos, enquanto as admitimos ambas, mas num sentido mais razoável e portanto mais aceitável. Nós também podemos afirmar que Cristo voltou ao Pai, porque o Pai é Deus, e Deus é o S, e retornou de verdade porque tinha percorrido todo o ciclo involução-evolução, voltou ao Pai do qual se tinha afastado com a Queda.

Somos ortodoxos, também, pelo fato de afirmarmos que Cristo foi Redentor, pois Ele foi mestre de redenção, da qual fundou uma escola ainda viva, que é o Cristianismo. De fato, é frequentando aquela escola e seguindo o exemplo de Cristo que cada qual pode redimir-se com o seu esforço. Foi por isso que as forças do AS se acirraram em modo especial contra Cristo, porque Ele era um gigante que abria e alargava uma estrada, o construtor de uma ponte para atravessar, o general de um exército de rebeldes contra o AS, do qual eles fugiam para salvar-se no S. Assim podemos também afirmar que Cristo foi o Salvador, porque ensinou a alcançar a salvação, realizando o cataclismo do endireitamento corretivo do cataclismo da Queda. Naquele momento Cristo venceu Satanás, o S venceu o AS, a evolução, tendo amadurecido, desembocou no Céu, nova pátria, à espera da hora do retorno.

O que significa reingressar no S? Significa sair da zona de atração do AS, para entrar na do S, significa sair do campo gravitacional de signo negativo para entrar no campo gravitacional de signo positivo. Quando isto acontece a posição originária resulta emborcada, perante o AS, mas endireitada perante o S. O mesmo fenômeno se dá no plano físico, com o afastar-se de um planeta para aproximar-se de outro. Ficamos então sujeitos a outras forças, porque ingressamos em sua zona de ação. Passa-se então da ordem de impulsos anti-Lei à ordem de impulsos inerentes a Lei. Daí em diante só estes entram em função e o dualismo desaparece. Isto porque, então, em vez de volver ao centro anti-Lei, dirigimo-nos exclusivamente para o centro-Lei.

Com isto, muda para cada ser o ponto de referência em relação ao qual ele funciona. No primeiro caso o trabalho se cumpre em campo e posição de signo negativo, sendo cada um impelido por impulsos de tipo oposto do outro campo. Isto significa dor, como corretivo do erro para pagamento da dívida contraída com a revolta perante a justiça da Lei; e dado que o centro de atração está em baixo, é inevitável que, para vencer aquela atração, se deva voltar a subir com o próprio esforço o caminho percorrido em descida com a Queda. No segundo caso a existência se verifica em campo e posição de signo positivo, sendo cada ser sustentado por forças de tipo oposto aquelas do outro campo. Isto significa conhecimento que permite evitar o erro e a dor; significa paz, porque a dívida contraída perante a justiça da Lei com a revolta foi paga; significa, enfim — porque agora o signo de atração fica no alto — continuar, segundo esta atração, a se dirigir espontaneamente e alegremente em direção ao mesmo.

Os dois campos existem em posições opostas. No caso do AS, sobre o ser que deve a suas custas redimir-se, pesa o esforço de vencer a atração do polo negativo do AS, para atingir o S. No caso do S, basta que o ser se abandone, docilmente, às forças do mesmo, porque elas, em vez de trabalharem, com as precedentes, a seu dano, trabalham em sentido oposto, em sua vantagem. Então o esforço ascensional do ser não é mais necessário, porque o percurso da evolução se cumpriu; no S o esforço do transformismo e a luta do dualismo cessaram. Então o indivíduo não se encontra mais em campo inimigo a mercê de impulsos contrários, mas em campo amigo à mercê de impulsos positivos que o secundam.

No primeiro caso, o trabalho para salvar-se deve vencer todas as resistências de um ambiente negativo, contrário à salvação, sem dispor de outras forças senão as do indivíduo que deve salvar-se com o seu esforço. Trata-se, pois, de uma vida de desesperados e de uma dura redenção. No segundo caso a salvação é realizada num ambiente construído para ela e só repleto de impulsos positivos. O primeiro é um ambiente de antagonismos e resistências, o segundo de concórdia e colaboração.

Eis, pois, em que consiste a passagem do AS ao S, isto é, o fenômeno vivido por Cristo para nos mostrar as vias da salvação. Se Cristo escolheu como missão encarnar-se no nível evolutivo do homem, isto nos revela o Seu desejo de mostrar-nos a técnica da passagem do AS para o S. Sem dúvida alguma, a figura do Cristo nos revela uma natureza bem diferente da do homem comum e superior à dos mais elevados exemplares da raça humana. Mas justamente isso nos prova que Ele havia alcançado o limite máximo da evolução, o que lhe tornava possível sair do AS. Isto significa que Ele viveu um fenômeno que nos concerne a todos, por representar o limite conclusivo do ciclo involutivo-evolutivo, ponto final da salvação que todos deveremos alcançar para reingressarmos no S.

Rico e pobre. A justiça social segundo o Evangelho e as leis biológicas. A evolução em direção ao estado orgânico. Funções, abusos e liquidação do rico.

Procuramos, até aqui, entender a figura do Cristo. Procuremos agora entender o Evangelho, sobretudo em relação aos problemas que ele levanta no campo social. Comecemos pelo problema, hoje tão vivo, do rico e do pobre, até agora não resolvido e que está na base de todas as agitações sociais. Vejamos como o Evangelho o enfrenta e resolve. A tal propósito o pensamento de Cristo perante a riqueza é tão claramente expresso que não deixa dúvidas: "Cada um de vós que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo". — "Se quiseres ser perfeito, vai, vende tudo aquilo que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me. — Sim, vo-lo repito: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus". — "Não acumuleis tesouros na terra, onde a ferrugem e o caruncho os consomem, e os ladrões os desenterram e os roubam; mas, pelo contrário, acumulai tesouros no céu".

Cristo continua confirmando: "Bem-aventurados vós que sois pobres, porque é vosso o Reino de Deus. Bem-aventurados vós que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados Vós que agora chorais, porque rireis (....). Naquele dia alegrai-vos, estremecei de alegria, porque eis que uma grande recompensa vos está reservada no Céu (....). Mas ai de vós, ricos, porque ia tivestes a vossa consolação. Ai de vós que fostes saciados, porque tereis fome. Ai de vós, que agora rides, porque ficareis na dor e nas lagrimas".

O homem moderno, que vive em diversas condições de ambiente social pode achar estranha e excessiva esta linguagem. No entanto ao se pensar naquilo que era o mundo no tempo do Cristo, deve-se reconhecer que uma tão dura condenação correspondia à justiça. Então a riqueza era fruto de rapina e delitos, enquanto que, por evolução, hoje ela é sempre mais produto da inteligência e da laboriosidade. Naquela época o pobre era um escravo de muito baixo nível cultural e econômico. Hoje ele é um trabalhador, frequentemente técnico e especializado, armado de direitos e protegido por todas as previdências sociais; no seu nível, constitui até uma roda do grande organismo coletivo da produção.

Um homem pratico, moderno, poderá achar confusa, no Evangelho, aquela mistura de problemas espirituais com os econômicos, que são, pelo contrário, cada um objeto de uma competência diversa, a do teólogo-moralista e a do economista. Mas é necessário compreender que nos tempos de Cristo a estrutura social era muito mais simples, pelo que eram mais fáceis estas aproximações entre extremos tão afastados, tais como o são a religião e a distribuição e administração da riqueza. Hoje estes dois extremos estão demasiadamente sujeitos, cada um, a uma sua técnica específica para que se possam misturar. Os dois campos se tocam, mas não se podem sobrepor e confundir. Levando isso em conta, o Evangelho há de ser entendido e não tomado ao pé da letra, dado que hoje os problemas por ele tratados no campo econômico apresentam-se em forma definida com mais exatidão e caracterizados por uma complexidade então desconhecida.

O Evangelho ressente-se de um simplismo só tolerável perante a economia elementar do seu tempo. Hoje não vivemos na sociedade caótica de então. Tudo, hoje, tende a ser disciplinado por um exato cálculo de direitos e deveres em regime de reciprocidade, próprio do estado orgânico que a sociedade tende progressivamente a alcançar. Para compreender os trechos do Evangelho acima referidos, comecemos por observar o problema da distribuição da riqueza na forma mais simples que ela assume na humanidade em seu estado primitivo e instintivo, não ainda controlado e disciplinado pela inteligência do homem.

Neste nível evolutivo a posse, não ainda legalizada em forma de propriedade reconhecida, e o resultado de uma rapina, é o sinal de uma vitória violenta contra todas as dificuldades do ambiente e as resistências de forças opostas. A posse é o produto de um esforço, de um perigo que se soube afrontar e superar, e prova de um valor; razão pela qual, perante as leis da vida, aquela posse representa um prêmio merecido. Neste sentido aquela posse corresponde a um princípio de justiça, pelo menos ao princípio de justiça em tal nível de evolução. É certo que aquela posse é produto de uma violência, porque gratuitamente não se consegue; mas ela presume no indivíduo uma força e uma astúcia, que naquele ambiente são as qualidades que dão direito à vida, reservada aos vencedores na luta. Como tais, eles têm mais direito do que todos os outros a sobrevivência, porque em relação aquele plano representam o melhor biótipo. Ninguém pode contestar ao leão a legitimidade do seu direito, matando os animais que quer, para devorá-los; direito baseado no fato de que esse leão soube capturá-los, e sabe defender a sua presa de qualquer outro animal que lhe pretenda roubá-la. Tudo é justo. Mas tal legitimidade baseia-se na força, rege-se só em função desta e cai logo que esta venha a faltar. Então o vencedor, tendo-se tornado um vencido, perde todo direito e isto em favor de um outro, o seu vencedor. Esta é a lei naquele nível de evolução.

Esta era a posição em que a humanidade se encontrava no passado. Então, o rico era um vencedor na luta, alguém que tinha sabido, com a força ou com astúcia, apossar-se dos bens alheios. A riqueza que assim possuía ele tinha dado prova de sabê-la conquistar, ela constituía, pois, uma sua legítima posse, conforme a justiça daquele nível de evolução. O pobre era então um vencido, um inepto que a vida não ajuda porque tal biótipo deve ser eliminado pela seleção do mais forte. Esta é a moral daquele mundo, a sua justa moral, proporcionada às finalidades que naquele nível a vida quer atingir. Tanto isto e verdade que quem vivia no bem estar, alcançado por qualquer meio, era considerado um benquisto de Deus que expressava o seu consenso, enchendo de bens o seu servo que tudo aquilo havia sabido merecer. Estamos ainda em baixo e até a religião não consegue expressar senão a lei que vigora naquele plano.

Nós podemos dizer que isto seja contra a justa Lei de Deus, mas só que a perfeição desta não se pode manifestar senão na grande perfeição atingida pelo ser que vive aquela Lei. O princípio fundamental desta Lei permanece idêntico em todos os níveis, e o ser procura subir sempre, mesmo que, em níveis diversos, até de modo diverso. O impulso é sempre ascensional, para melhorar, seja o do pobre que neste mundo quer tornar-se rico, seja o do crente que sonha com uma vida feliz em direção ao Paraíso. Ambos lutam e fazem sacrifícios pelo mesmo objetivo. O Paraíso não é senão um estado de riqueza e bem estar no além. A finalidade é sempre a de assegurar-se uma vida mais bela, seja durante esta existência, seja depois da morte. A atual satisfação dos pobres na Terra pode ser a de sonhar com o Paraíso e que eles serão os ricos de amanhã, excluindo das suas alegrias os ricos de hoje, como hoje estes os excluem “do seu bem estar”.

A moral que se pode extrair de tais constatações é que, se o Evangelho era e permanece justo nos seus princípios de base, todavia a forma em que estes se expressam e atuam muda com os tempos, de modo que na prática cada nível evolutivo tem o Evangelho a ele relativo, que a evolução não pode deixar de fazer superar levando o ser a mais avançadas formas de vida.

Cristo encontrou-Se perante o mundo do seu tempo. Que podia fazer? Nada daquilo que hoje é possível porque nós vivemos em outra fase de evolução. Ele devia contentar-se com o reconhecimento teórico dos direitos do pobre, começando com o dar ao servo, ao escravo, ao vencido, o voto e a dignidade de ser humano, afirmando, desse modo, direitos desconhecidos e inconcebíveis naqueles tempos. Mais do que isso não se podia fazer, porque converter tais ideias em realidade era coisa impraticável, devido a estrutura, o nível mental e o baixo grau de civilização da sociedade daquela época. Assim a voz do Cristo soou tão incrivelmente nova, que permaneceu totalmente incompreendida por parte dos próprios Hebreus, que, pelo contrário, queriam um Rei político que expulsasse de sua terra o dominador romano ou, se aquele Rei desejava ser apenas espiritual, que pelo menos o fosse somente para o povo hebreu e sua religião, e não, como Cristo queria, um Rei universal, de todos. Foi nesse sentido que, pelo contrário, se começou a entender a palavra de Cristo em Roma, entre os escravos - primeiros comunistas de há dois mil anos.

Foi devido a esta imaturidade dos tempos, tão longínquos dos nossos, que pela impossibilidade de realizar um plano social de reforma conforme a justiça, que Cristo teve de limitar-se a procura-la em compensações celestes que, se deixam indiferente o homem realizador de hoje, foram, contudo, suficientes para lançar a ideia e fazer despertar nas mentes os primeiros elementos de um sentido de justiça, totalmente desconhecido. A separação entre patrão e servo correspondia perfeitamente à separação entre vencedor e vencido (os escravos eram tomados dos povos submetidos na guerra), conforme a supracitada lei biológica da seleção do mais forte que se encontrava em pleno vigor no baixo plano biológico em que a humanidade vivia. Naquela época a justiça encontrava-se no nível força, pela qual os direitos pertenciam ao mais forte. A moral é relativa e os juízes estão em relação ao nível moral alcançado. Desse modo se acreditava conforme à justiça de Deus que o rico fosse rico e o pobre fosse pobre. Hoje o fato de nos encontrarmos em uma fase evolutiva mais avançada leva a uma moral mais alta. É assim que a injustiça social no passado era justa até para as religiões e, atualmente, ela é injusta para todos.

Quando se lê aqueles trechos do Evangelho é necessário transportar-se no tempo, retornando aquele período, para se compreender quão grande mudança a palavra de Cristo tenha procurado instaurar. Ela alvejava um mundo que a seu modo julgava poder ajustar-se, mas que podia alvejá-lo apenas em relação aquele ambiente e grau de evolução. É questão de relatividade. Aquelas ideias, métodos e verdades em relação aqueles tempos eram justas e verdadeiras, mesmo que hoje não possam ser aplicados, porque o mundo está totalmente diverso. Por isso o Evangelho transplantado e usado ao “pé da letra” em nosso mundo atual pode resultar anacrônico.

Procuremos compreender o desenvolvimento do fenômeno da justiça social, conforme as leis da vida. Somente assim poderemos entendê-lo porque teremos bases biológicas positivas em que apoiar-nos. O conceito de uma justa distribuição dos bens não existe no primitivo estado caótico da sociedade humana. Ele é um produto da evolução. Quanto mais passa a viver uma vida de tipo S, isto é, coletivista, altruísta, unitária.

Esta é uma lei biológica que dirige o transformismo evolutivo ao longo de uma dada linha de desenvolvimento. Pelo princípio das unidades coletivas (demonstrado no volume: A Grande Síntese), os elementos simples que aparecem nas origens tendem a combinar-se, reagrupando-se em unidades sempre mais vastas e complexas. Passa-se, assim, do estado caótico (próprio do AS) ao estado orgânico (próprio do S). Isso sucedeu na construção celular do organismo humano. O mesmo está acontecendo na construção social da humanidade. Esta, portanto, por lei biológica, é destinada a passar do estado caótico ao estado orgânico. O nascer e o realizar-se da ideia de justiça social faz parte desta transformação, a qual se opera em função da evolução e se realiza plenamente quando a sociedade humana atinge o estado orgânico.

Explica-se, desse modo, como nos tempos de Cristo esta ideia era desconhecida; compreende-se ainda a corajosa inovação e o fato de tê-la proposto, e como foi sucessivamente amadurecendo até hoje, momento em que toma corpo e procura realizar-se concretamente. Daqui se vê como a preparação mental foi necessária a uma ideia antes de poder atingir a fase de sua atuação, e como se chega a fase final por evolução, através de um lento amadurecimento. Disto se vê como Cristo, embora estivesse ligado ao tempo em que vivia, não pôde fazer mais do que permitir o grau de desenvolvimento então alcançado. Assim Ele não realizou nada no campo da justiça social, mas lançou a ideia de uma identidade de natureza e consequente igualdade de direitos entre senhor e escravo, entre rico e pobre — mesmo que isso não pudesse ser realizado há dois mil anos. Cristo operou aquela preparação mental que, como acabamos de dizer, era necessária para alcançar hodierna fase de realização. Isto porque, por lei de evolução, a tendência em direção a tal realização é constante.

Trata-se, portanto, de um processo evolutivo no qual Cristo se inseriu a partir de um caminho de vida em que só podia aparecer como um precursor dos tempos modernos. Não devendo fazer senão um trabalho de preparação mental, ou seja, o do terreno o qual deveriam depois tomar corpo as suas ideias, Cristo — não se encontrando como hoje na fase de atuação — só pôde apoiar-se no sentimento e em Suas incontroláveis construções idealistas com retribuições do Céu. Hoje, que se passa a uma real atuação, para muitos tais meios não servem mais. Não estamos somente na fase de preparação mental — assimilação de novas ideias — mas também na de sua realização prática. Devem-se, então, usar meios concretos, cálculos exatos, psicologia utilitária, isto é, técnica positiva e realista do construtor de fatos, que não é a do inventor de ideias. Eis que o trabalho de Cristo representa uma fase necessária no desenvolvimento do mesmo fenômeno, embora vivendo numa outra mais avançada.

Portanto, que o princípio da justiça social está escrito nas leis da vida e se afirma sempre mais como o progresso desta. Aquele princípio não é um produto da vontade humana, que só obedece à lei biológica que o impõe, mas está escrito nesta lei como o próprio destino da humanidade. Com a evolução, este destino se tornara realidade, mais dia menos dia, o que é inevitável, porque esta realização faz parte do universal processo de evolução, é a reorganização do caos do AS na ordem do S, isto é, o endireitamento de toda a negatividade do primeiro na positividade do segundo. Então, se a injustiça fora o ponto de partida, a justiça será o ponto de chegada. É assim que em nosso mundo existe a injustiça, porque ela é de sinal negativo, é corrupta e imperfeita, mas com tenaz tendência para a justiça, porque o dito mundo deve tornar-se de sinal positivo, isto é, são e perfeito.

Esta tendência já se revela também em nosso mundo com alguns sinais, pelos quais, mesmo em meio ao caos individualista, aparecem as primeiras e naturais aproximações da justiça. Então observemos: O rico não é apenas inevitavelmente um parasita da sociedade. Mesmo quando é um ocioso desfrutador do trabalho do próximo, vivendo ele em nível econômico mais elevado, cumpre a função de criar tipos de civilização mais requintados. Com isso ele lança novos hábitos, que seus dependentes tentam imitar e assimilar, depois, obedecendo à lei de evolução. Este é o trabalho útil que fazem as aristocracias antes de desmoronarem. Neste caso a vida em vez de procurar eliminar tal tipo, o aceita, pelo menos até que ele cumpra aquela sua função civilizadora, operando como pioneira da evolução das massas. A vida o aceita porque lhe serve e lhe serve porque ele é um vencedor, selecionado pela luta, um indivíduo que consegue chegar, que soube superar muitos obstáculos, é um criador e um condensador de valores, que custou esforço conquistar e que a vida não deseja desperdiçar. Ele serve à vida até porque é um protagonista da evolução, um antecipador, um construtor de civilização, função que as massas não sabem cumprir mas de cujos produtos elas têm necessidade para evoluir. Então a vida permite que o rico a cumpra, liquidando-o depois, quando se tenham esgotado os benéficos efeitos daquela função.

Esta liquidação é a própria vida que prevê, ao cumprir um concomitante ato de justiça. Esta permite que o rico goze o fruto do esforço que faz para enriquecer, o que não é um fato gratuito. A Vida paga cada esforço, e proporcionalmente também o de baixo nível. Mas a justiça quer também que este, uma vez pago, seja liquidado. Como a vida faz para conseguir as suas finalidades? Enquanto a riqueza corresponde a realização de um esforço, ela é biologicamente justa e a vida a respeita. Mas surge, depois, a injustiça, quando as, conquistas são legalizadas convertendo-se em privilégios permanentes. Assim apesar do homem ter procurado tornar hereditárias as posições alcançadas verifica-se que nenhuma delas é eterna. Inútil protegê-lo com leis. Desse modo, quando o esforço cessa para transformar-se num comodismo sem finalidade, unicamente volvido a parar a evolução, então a vida reage. É assim que com as aristocracias desmoronam tantas monarquias, tantas riquezas acumuladas. Tudo o que emerge acima de um certo nível está sujeito a saltos contínuos. Resistir implica saber vencer uma luta sem trégua. Manter um patrimônio exige capacidade e atividade quase equivalentes ao que foi necessário para criá-lo.

Há um outro fato que converge em direção às mesmas conclusões. O bem estar, justo prêmio ao trabalho que foi necessário para alcança-lo, cansa e ao mesmo tempo convida a prolongá-lo, mesmo quando supera os limites da justa recompensa. Então a natureza intervém fazendo apodrecer no ócio o indivíduo que se deixa demasiadamente seduzir por aquele bem estar. Este debilita-se cada vez mais, enquanto o esfomeado é reforçado pelo seu desespero que o impulsiona ao assalto. A necessidade aguça a inteligência e esgota a paciência. O resultado é que a riqueza passa do rico ao pobre que o suplanta. E a vida aprova porque ela recompensa quem luta, quem na luta dá prova de força e habilidade com o saber vencer. E paralelamente a vida castiga quem se acomoda e se torna inepto a lutar, encaminhando-se para a derrota.

É Biologicamente, justo que quem se tenha corrompido seja vencido, assim como é biologicamente justo que um organismo débil, assaltado pelo ataque do micróbio seja vencido, adoeça, e, não sabendo resistir, venha a perecer. Dessa forma vemos, frequentemente, os filhos dos ricos crescidos nas comodidades e ignaros da luta necessária para as conquistas, tornarem-se totalmente pobres. E vemos se converterem em ricos muitos originários de uma escola bem diferente, que haviam nascido totalmente pobres. Como as ondas, os bens passam de mão em mão, para gozo alternado, numa espécie de coletivismo natural, pelo qual eles são de todos e não são de ninguém. Esta é uma outra forma automática de justiça social, praticada pela vida, ainda que o seja de modo elementar nos seus baixos graus de evolução.

Martírio planejado. No S desaparece o egoísmo separatista. A potente personalidade de Cristo. O inovador. O Cordeiro de Deus. São Francisco. O método da não violência. Como o inerme pode vencer enquadrando-se na Lei.

Observemos a vida e a Paixão de Cristo ainda sob outros aspectos. Ele dá o grande salto em direção ao S e o vemos neste supremo momento em que se conclui o ciclo involutivo-evolutivo, porque o ser percorreu todo o caminho do retorno ascensional. Os executores da Paixão, tantos e diversos, cada qual a seu modo e movido por seu próprio interesse, coordenam as suas ações num quadro único e as fazem convergir ao fim visado por Cristo que todavia não conhecem. Isto faz pensar num plano preestabelecido, que não está na mente deles, mas na lógica da Lei, que funciona no momento devido. Cada um deles é um músico que conhece e toca apenas seu próprio instrumento e todos em conjunto formaram uma orquestra. Somente Cristo é consciente do verdadeiro significado de Suas ações que se dão no meio de uma multidão de ignaros. Em Cristo, o espírito se revela nítido e possante em cada momento. A cada passo, Ele mostra segurança, precisão, tempestividade, nenhuma vacilação própria de uma tentativa. Cristo exprime a luz, os outros expressam as trevas. Enquanto estes tateiam, Cristo sabe. Ele vai direto ao seu objetivo, os outros tergiversam, oscilam, movem-se ao acaso, a seu capricho, nada compreendem do jogo de Cristo e o executam como se fizessem seu próprio jogo. Assim eles ajudam, de fato, Cristo a levar a efeito seus próprios planos, enquanto acreditam fazer o oposto. Matando-O, eles não fazem outra coisa senão expulsá-Lo do inferno em que eles estão mergulhados, para fazê-Lo reingressar na felicidade do S.

Assim como aqueles que nada entenderam então, de Cristo, também de hoje, nada entende quem não tenha percebido o seu escopo. Trata-se de um trabalho perfeitamente enquadrado nos princípios da Lei, portanto planejado com exatidão. Mas como era possível, então, compreender que quando Cristo dizia vencer o mundo, Sua intenção era querer sair do AS para entrar no S? A questão é, acima de tudo, Sua, pessoal; e é de tal forma individual que ela se apresenta a cada um de nós para que um dia, uma vez amadurecidos, possamos imitar o exemplo deixado por Ele.

O   homem interpretou a seu modo a ideia de o Cristo querer vencer o mundo. O instinto de luta impeliu-o a entender aquela ideia não no sentido de superação, mas de esmagamento, enquanto para Cristo ela tinha um sentido construtivo e não destrutivo. Como superação, a ideia a encara quem está maduro para o S, como esmagamento, ela a vê quem está no AS. Para o evoluído a vida é harmonia e não oposição entre os seus diversos graus de desenvolvimento, porque estes não são senão fases sucessivas de um mesmo caminho. É, pois, absurdo sermos inimigos do mundo para vencê-lo, enquanto ele tem uma razão de existir num nível inferior necessário para alcançar outro superior. Se aquele nível é AS, ele é passagem obrigatória para desembocar no S. Em substância a contraposição é a mesma que existe entre a fase da criança e a de adulto. A predominante interpretação do antagonismo contra o mundo é devida ao instinto do subconsciente para o qual quem vale é o vencedor que derrota o inimigo e triunfa destruindo-o.

O caso proposto e vivido por Cristo pode aparentar um aspecto utilitário porque o evoluir e o reentrar no S representa um efetivo melhoramento de vida. Apela-se, deste modo, a um sentido de egoísmo a ponto de suscitar a seguinte dúvida: Tendo o Cristo podido prever tudo e, por conseguinte, até calcular a vantagem decorrente de Seu sacrifício não poderia porventura ter enfrentado tal sacrifício por um Seu interesse egoístico? Teria, pois, se sacrificado apenas para reentrar na felicidade do S? Não! Este foi o resultado implícito do Seu ato, mas não podia ser esse de maneira alguma seu único objetivo. A este resultado a Lei O conduzia, inevitavelmente, porque assim Ele agia, e Sua vontade, era unicamente a de conformar-se à ordem da Lei. Justamente porque Cristo regressava ao S, a Sua forma mental não podia ser senão deste tipo — isto é, orgânica e unitária — e não de tipo AS, isto é, individualista e separatista. Ora, uma atitude egoísta Cristo se teria oposto ao S seguindo a psicologia dualista própria do AS, negando-se, assim, a alcançar o fim que Ele próprio propunha. De tal modo Cristo teria feito o contrário daquilo que Ele desejava fazer, e isso é inadmissível.

O  princípio egoísta faz parte da cisão dualista do AS-S, e não pode ser aceito por quem, reingressando no S sai desse dualismo, portanto não existe mais isolado do Todo e apenas movido pelo seu próprio interesse. Tudo isto desaparece quando se chega às portas do S. Então fica apenas a necessidade de viver de ordem, aderindo a Lei; esta é a vantagem, o interesse, a satisfação que então se procura. Nisto consiste o endireitamento da forma mental de quem se encontrava emborcado no AS. Mentalidade excepcional para quem vive no nível comum.

Portanto, o principal fito de Cristo não era o pensar em Si próprio, mas no cumprimento do sou dever perante o Pai, seguindo a Lei. A indiscutível vantagem de reentrar no S, isto é, de ascender a um mais elevado tipo de vida, era um efeito consequência da atitude de Cristo, e o Seu escopo, agora, era o triunfo da Lei na ordem. Que Seu objetivo fosse o endireitamento vê-se no fato de que aquilo que para um homem comum teria ficado em primeiro plano, para Cristo torna-se secundário; enquanto o que para aquele homem é secundário, torna-se para Cristo a coisa principal. É natural que no S tudo se encontre em situação invertida em relação ao AS. E para poder ter acesso ao S, é necessário ter conquistado do mesmo a forma mental, porque esta acarreta um existir de tipo coletivo, que não admite elementos de tipo oposto, assim como em nosso organismo não deveria ter acesso nenhuma célula de tipo canceroso, egoísta e separatista.

Observemos um outro aspecto da Paixão de Cristo que tipo e o sacrifício? E que tipo de personalidade revela? Também São Francisco teve a sua Paixão, a dos estigmas, assim como a cruz foi para Cristo a apoteose da Sua vida. Trata-se, contudo, de outro tipo de sacrifício que revela uma personalidade diferente. Temos dois sacrifícios entre os quais o do Cristo se poderia chamar de ativo e o de São Francisco passivo. Cada um dos dois se oferece ao seu modelo, mas Cristo não se põe diante do Pai na mesma posição na qual São Francisco se põe diante do Cristo. A. obediência de São Francisco é a de um sequaz, a de Cristo é a de um iniciador. Quando Este obedece a Lei, Ele obedece, na verdade, a Sua vontade de obedecer. São Francisco imita o Mestre. Cristo é Ele próprio o Mestre. Ambos se submetem, mas o primeiro em forma masculina, o segundo — diríamos — em forma feminina. Cristo se submete livremente — por exigência de disciplina, por um princípio hierárquico de ordem — perante o Pai que Ele reconhece como seu Chefe, assim como se sujeita à Lei que é o Seu código. São Francisco se submete como um escravo, por amor, se oferece passivamente e com os estigmas recebe na própria carne a marca de Cristo. Este, pelo contrário, é independente, é um inovador, não um repetidor. Ele respeitou o Pai como no relacionamento do soldado para seu superior, não como amante, apaixonado.

Estas observações nos ajudam a compreender o significado da figura do Cristo apresentado como Cordeiro, como a vítima num rito expiatório. Cristo não foi nada disso, pelo menos na medida em que a sua imagem foi deformada por superestruturas posteriores, para satisfazer os desejos dos crentes. Cristo era uma personalidade possante e autônoma. Ele quis o seu sacrifício e não aceitou de ninguém. Ele obedeceu à  Lei porque assim quis e não porque fosse a Lei a impor-lhe de obedecer. Isto sucede apenas no AS onde o ser não tem consciência para autodirigir-se. O acordo se deu com espontaneidade e convicção, sem nenhuma passividade. Obedecendo à Lei, Cristo no fundo obedecia a si próprio, porque ingressando no S, Ele se identificava com a Lei. Na hora da Sua Paixão a vontade de Cristo era a vontade do Pai, pelo alcançado grau de evolução fazia do Cristo um elemento do S. Se uma dívida existia era necessário pagá-la e Cristo devia ser o primeiro a querer isso. Quem é um elemento do S é também um elemento da Lei, uno com o Pai.

Assim sendo, a qualificação de Cordeiro se adaptaria mais a São Francisco. Cristo era um leão que impôs a Si próprio comportar-se como cordeiro. Ele não foi nenhum imitador, nem repetiu o Evangelho de um outro, mas inventava o Seu. Ele não seguia nenhum outro, mas a Si próprio, pois, unificado com o Pai, personificava a Lei, a qual é, antes de mais nada, justiça; só em segundo lugar pode ser amor. É bem neste sentido — segundo a Lei — que devemos entender o Cristo, isto é, no sentido de um amor não gratuito para todos, mas que há de ser merecido e retribuído, porque a Lei quer justiça e não usurpação por parte de aproveitadores da bondade de Cristo. É por isso que muitas dissertações sobre o amor de Cristo não passam de mera retórica.

Cristo não era só um brando consolador, mas sobretudo um forte modelo de potência, um verdadeiro Super-homem em sentido espiritual. A confirmação destes nossos conceitos, citemos as seguintes palavras de Gibran Khalil Gibran, que retraduzimos da edição italiana de seu livro Jesus o Filho do Homem: "A humanidade vê Jesus, o Nazareno, nascendo e vivendo como um pobre, ofendido como um fraco, crucificado como um criminoso, e chora-O e lamenta-O (....). Jesus não viveu como um covarde e não morreu sofrendo e queixando-se Viveu como um revolucionário, foi crucificado como um rebelde e morreu como um herói (....). Jesus não veio para tirar os homens vigorosos das suas ocupações e fazer deles padres e monges; mas para insuflar na atmosfera deste mundo uma alma nova e forte capaz de destruir desde seus alicerces os tronos e os palácios erguidos sobre os túmulos, e derrubar os ídolos impostos ao espírito fraco dos humildes".

Façamos então outras observações para melhor compreender o significado da vida de Cristo. Perguntamos: como foi possível vencer na Terra — a ponto de implantar-se solidamente sobre ela por dois mil anos — um indivíduo que, apesar do sua potente personalidade, impôs a Si mesmo a posição de cordeiro, pregando e vivendo uma doutrina de sacrifício. Como é possível que um ser inerme, que professa e pratica o método da não violência, tenha chegado a triunfar neste nosso mundo que é o próprio reino da força (AS), da qual tudo se faz depender? Os cordeiros na Terra não vencem, mas são devorados; muito raramente sendo seguidos e glorificados. Não haverá, então, em Cristo uma outra força que Lhe permitiu vencer, dado que num mundo de luta só com a força se vence? E se Ele repelia a força do mundo, qual seria, então, esta outra força?

A cada nível de evolução, a vida é defendida por um diverso e apropriado tipo de forças No plano humano temos a força animal e violenta da opressão, tanto na luta individual quanto naquela coletiva das guerras. No nível do S, temos a força espiritual da Lei. Cristo com o método da não resistência e do perdão, pôde vencer a força do plano humano porque possuía aquela da Lei, do Pai, do S, feita de ordem, verdade e justiça. Se bem que esta força — porque mais sutil — escape à percepção grosseira, material, do nível biológico humano, todavia essa força é bem mais poderosa do que a de que dispõe o cidadão do AS, o qual, além disso, se encontra na desvantagem de ter em sua frente algo para ele invisível, que o golpeia e do qual subestima ou até ignora a existência. A diferença de potência entre os dois impulsos emerge do fato de que a do mundo produz vitórias efêmeras, sempre sujeitas a desmoronar, enquanto as outras vitórias são mais consistentes e duradouras.

Na hierarquia dos poderes, o inferior não compreende nem pode vencer o superior, enquanto o superior compreende e pode vencer o inferior. Ora, o máximo poder, ao qual todos os outros ficam subordinados, é o da Lei, do Pai, do S, de Deus. Eis então que o mais potente não é o violento, violador de todas as normas, o rebelde a ordem divina, o individualista isolado no seu separatismo perante tudo, aquele que se põe contra a Lei, mas quem se insere nela disciplinadamente e por ela se deixa conduzir trabalhando em harmonia com ela. Vence então este último porque dispõe da potência ilimitada da Lei, enquanto o outro não vai além de suas forças individuais, limitadas e sujeitas a esgotar-se rapidamente. Este, por outro lado, não é secundado pelos impulsos da Lei, mas por ela obstaculado porque se move não a favor mas contra tais impulsos; deverá, pois, vencer fortes resistências que rapidamente o desgastam. E assim que os fortíssimos da Terra estão sujeitos a fracassar, enquanto um ser que aparenta fraqueza, perante eles pode vencer.

É por isso que Cristo pôde ensinar a não-violência sem deixar o indivíduo indefeso à mercê dos assaltos do AS. Cristo testemunhou a presença da Lei de Deus, também em nosso mundo. Muito se discutiu sobre o problema da violência e muitos não deixam de admiti-la como necessária para vencer na Terra. E isto é compreensível porque estamos no AS, que não conhece outra força. Mas Cristo que já era do S pôde, contudo, vencer com a não violência, coisa incompreensível no ambiente terrestre que não pertence ao S. Por isso explica-se como Cristo, mediante um pacifismo inerme tenha conquistado o mundo.

O indivíduo do AS é débil, porque desgastado pelo atrito de seu próprio egoísmo contra o dos outros. O indivíduo do S forma, pelo contrário, forma uma unidade incindível com todos os outros, pois as forças de cada um se somam, em vez de se elidirem. O indivíduo do AS é anárquico e se manifesta de forma centralizadora contra todos os outros indivíduos, que o limitam nisso, colocando-se contra ele. O indivíduo do S é ordenado, disciplinando-se de maneira orgânica, de modo que cada elemento colabora, apoiando um ao outro. Ele conhece os limites dos seus direitos e deveres, respeitando os de seus semelhantes. O ser do AS não conhece outros limites para o seu egoísmo invasor senão a resistência que lhe é oposta pelos outros egoísmos, que constituem seu único freio. No primeiro caso goza-se de segurança e paz; no segundo, sofre-se com a desconfiança e a luta corrosiva no caos. No primeiro caso, disciplina, confiada ao sentido de responsabilidade do indivíduo, no segundo à reação do próximo, num contínuo estado de guerra.

O emborcamento, próprio do AS, com que cada fragmento desejasse fazer-se centro do todo para domina-lo, em vez de subordinar-se como parte ao centro. Ele é a causa da fraqueza do cidadão do AS, enquanto o comportamento contrário é a fonte da  verdadeira força do cidadão do S. Disto se vê a quão grande diferença e a quais trágicos efeitos conduz o método de vida do princípio separatista do AS, em contraste com o princípio-orgânico unificador próprio do S. Assim, o primeiro é fraco e fica vencido, e o segundo é forte e vence. Eis qual era a força de Cristo em veste de cordeiro: Ele possuía a força da Lei e do Pai, que é mais poderosa do que todas as forças humanas. Eis como o Cristo, sem recorrer à força do mundo, indefeso segundo a lógica desta, ficou defendido pelas forças da vida e — inerme, mas poderoso — pôde vencer.

E por isso que Cristo voltou-Se para o Alto, jogou tudo por tudo e deu Sua vida, porque Ele tinha a certeza de vencer. Esta segurança Lhe vinha de Seu conhecimento da Lei. A conduta de Cristo não revela nele dúvida alguma. Ele sabia que estava com o Pai e que o Pai estava com Ele, constituindo a Sua Lei garantia de vitória. Parecia que Ele estivesse arriscando, mas bem sabia que a vitória final Lhe pertencia.