O problema da não resistência. A liquidação dos bons. A resistência passiva. O dualismo macho-fêmea. A personalidade de Cristo. O Evangelho, código moral que o tipo masculino repele, enquanto o tipo feminino o aceita. Como a Lei alcança: os seus fins. Cristo - mais leão do que cordeiro - fala aos fortes para: corrigi-los. Um novo passo para a frente na compreensão do Cristo. Salvar os valores do passado.

Esgotado o tema da não-previdência, tratemos agora da não-resistência. Já referimos a este respeito as palavras do Evangelho de S. Lucas: "A quem te bate numa face, oferece a outra" (....).Consideremos agora o trecho do Evangelho de S. Mateus, que nos permitira penetrar mais a fundo no âmago da questão. "Vós ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente Mas Eu vos digo que não deveis opor resistência a quem vos fizer mal. E se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e a quem quiser chamar-te em juízo para tirar a tua túnica, dá-lhe também a capa. E se alguém quiser obrigar-te a caminhar uma milha, anda com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas a quem quer de ti um empréstimo. Ouviste que foi dito: Amarás ao teu próximo e odiarás ao teu inimigo. Eu, pelo contrário, vos digo: amai aos vossos inimigos, fazei o bem aqueles que vos odeiam e orai por aqueles que vos perseguem e vos caluniam" (....).

Logo retornam a mente — a respeito deste problema da não resistência — as mesmas considerações expressas a propósito da não-previdência. É certo que num mundo de assaltantes as exortações de Cristo poderão ser-lhes motivo de muito agrado, porque adaptadíssimas para imobilizar suas vítimas e para tirar maior proveito de sua paciente virtude. Também aqui surgem as mesmas objeções nascidas — a propósito do problema da na não-previdência — sobre a inaplicabilidade da doutrina de Cristo à realidade da vida. Se esta se baseia sobre um sistema de luta, como é possível praticar a não resistência, sem que isto se resolva num suicídio? Ainda neste caso o Evangelho se nos apresenta em contradição com as leis da vida. O método evangélico é então um método para chegar à liquidação dos bons e para, às suas custas, fazer sobreviver os piores? Como Cristo pode dizer aos primeiros: "Não vos defendais para sobreviver — como teríeis direito de fazer, porque sois os melhores — mas deixai-vos destruir, a fim de que vivam os piores? Isto redundaria em combater os melhores, entregando-os, amarrados, nas mãos deles. Então esse Evangelho pareceria estar contra a Lei de Deus porque em vez de proteger a evolução como quer a mesma lei, parece proteger quem quer abandonar-se a uma descida involutiva. Isto representaria um emborcamento no absurdo.

Também neste caso, para sair do labirinto das objeções e aparentes contradições, devemos, primeiro, procurar compreender. Nos perguntamos então: A quem se dirigia Cristo, aos bons ou aos maus, aos fracos ou aos fortes, aos agredidos ou aos agressores? É certo que Cristo falou a estes últimos — os mais rebeldes — para corrigi-los, os quais são, todavia, os menos dispostos a obedecer-Lhe, enquanto mais dispostos a isso são os que, por serem bons e fracos, teriam, de preferência, necessidade do conselho oposto. Em geral quem dá a bofetada é o tipo forte, macho, ativo, de signo positivo, quando escuta o Evangelho; e quem esta disposto a escutá-lo e recebe bofetadas na outra face é o tipo fraco, feminino, passivo, de signo negativo. Mas é paradoxal que —na prática — o Evangelho, que é a Lei do amor, se resolva a afirmar uma moral tão feroz. É, com efeito, impossível que a aplicação do Evangelho leve a resultados tão pouco evangélicos. Deve, por isso, haver um erro de interpretação pelo fato de os conceitos estarem fora do seu devido lugar. A solução não pode consistir em repelir o Evangelho como errado, mas em explicá-lo.

Esclareçamos, ante de mais nada, o conceito da não resistência. Não será que na sua condenação o Evangelho inclui também a da resistência passiva? Ora, o fato de ser passiva, não significa que deixe de ser resistência. Ela não representa a não-aceitação da luta para chegar, através de uma recíproca compreensão, a um acordo e — por esse caminho — à pacífica convivência, mas é este um particular tipo de luta, para vencer sem nada ceder ao opositor. A própria palavra “resistência” expressa a ideia de oposição. Só que esta não reveste a forma de ataque ou de violência, consistindo em negar concessões, não respondendo com contra-ataques e sim, com a própria imobilidade. Mas, em substância, esta resistência passiva continua sendo reação e oposição. Assim, a passividade de tais atitudes não significa pacifismo. Trata-se de um método de luta pelo qual não se tem a mínima intenção de renunciar aquilo que se quer, sacrificando-se pelos outros, pois, tenciona-se vencer como deseja o violento, embora apenas pelo sistema da tenacidade em manter sua própria posição em sentido contrário. Eis então que na eventual condenação do Evangelho haveria de se incluir também este tipo de resistência.

O método de vida com base no princípio da não resistência, como aquele aconselhado pelo Evangelho, investe, pois, em profundidade contra as leis biológicas, devido ao fato de se colocar nitidamente como antítese da conhecida lei fundamental da luta pela seleção. Observemos agora aquele princípio evangélico sob este aspecto. O nosso mundo é dualista, não representando senão um aspecto do dualismo universal, cujos fatores componentes – um positivo e o outro negativo – correspondem ao macho e à fêmea no plano biológico, sendo o primeiro de tipo ativo, inicia- dor e inovador, enquanto o segundo é passivo, receptivo e conservador. Um exemplo concreto do comportamento de dois termos opostos e complementares - espermatozoide e o óvulo-celular como na luta do macho para eliminar o outro macho - elementos de mesmo signo.

Este dualismo conduz a dois diversos métodos de vida. Um utiliza uma técnica de tipo masculino, positivo, outro utiliza uma técnica de tipo feminino, negativo. Não é que uma seja melhor e mais justa do que a outra. Trata-se só de dois aspectos do mesmo princípio dividido em duas formas opostas e complementares, feitas para compensar-se reciprocamente ao acoplarem-se, reconstruindo a unidade. Ambas se propõem ao mesmo fim: a defesa da vida. Pois bem, propõe-se o Cristo a regular com normas morais a técnica do tipo masculino, deixando na sombra a do outro tipo. Explica-se esta preferência pelo fato de — até ontem — ter sido o macho, na raça humana, o seu protagonista, iniciador e diretor, enquanto a mulher era a sua cópia, sua seguidora, em tudo a ele submissa. Isto era verdadeiro sobretudo nos tempos de Cristo, quando a mulher era um objeto de posse do marido, que tinha todos os direitos, enquanto ela era destruída de qualquer justiça para que não fosse levada em consideração.

   Fica, assim, fora de dúvida que Cristo, como homem, representava o tipo viril, afirmativo, criador. Seu exemplo e sua moral, pois, não podiam seguir outro modelo. E por isso que, quando nos quer mostrar o caminho da salvação, Cristo golpeia, para eliminar os defeitos de tipo masculino, mais do que os de tipo feminino. As tentações a que Ele próprio foi submetido eram do primeiro tipo. Satanás não lhe oferece ócios, mulheres ou banquetes, mas glória, poder, domínio sobre todos os reinos do mundo. A maior tentação que Cristo venceu foi a de tornar-se Rei da Terra, chefe de uma rebelião política. Vejamos como Ele se inflama de sagrado furor quando expulsa os vendilhões do Templo e também quando investe contra os ricos, e sucessivamente contra os Fariseus, dos quais denuncia, todas as culpas. Contra os primeiros não se cansa de dizer: "Ai de vós, ricos". Numa só página do Evangelho de S. Mateus, Cristo repete sete vezes a invectiva: "Ai de vós, Escribas e Fariseus, hipócritas". Trata-os de tolos e cegos de serpentes e raça de víboras! Encontramos, portanto uma terminologia que não deixa dúvidas.

São estes os pecados típicos do macho. Como se comporta Cristo perante os pecados não menos graves, mas de tipo feminino? Vemo-lo no caso da Madalena arrependida. Eis que um dia levam a Cristo uma mulher surpreendida em adultério. Em vez de acusá-la, Ele se dirige aos machos, igualmente responsáveis, fazendo com que eles próprios reconheçam serem também culpados e — como tais — sem o direito de lançar a primeira pedra. Volta-se, em seguida, para a mulher, e fazendo-lhe notar que ninguém a condenou, tranquiliza-a dizendo-lhe: "Nem eu te condeno". Enfim, a despede, aconselhando-a apenas a não pecar mais. Não podia ser mais evidente a diversidade de tratamento de que Jesus deu prova nesses dois casos.

Isto nos mostra que devemos reconhecer no Evangelho um código moral de tipo viril como viril era o seu protagonista. Por isso existe um Evangelho com norma de vida para o homem, mas não existe um Evangelho volvido a servir como norma de vida para a mulher. Nas condições de inferioridade e até mesmo de quase nulidade em que versava a mulher no passado, um Evangelho feito para ela é impensável. Segue-se disso que os defeitos visados pelo Evangelho são os de tipo masculino e não os de tipo feminino. Por este tipo queremos caracterizar a pessoa que possui qualidades de temperamento opostas à do macho, mesmo sendo homem normal. Com efeito, há homens de tipo doce, obedientes, sentimentais, introvertidos, passivos, enquanto há mulheres de tipo audacioso, rebelde, calculador, extrovertido, dinâmico. Tudo isto sem interferir de nenhum modo com o sexo. O dualismo permanece, mas não está ligado à forma física. A diferença não está, pois, na forma física, mas na estrutura da personalidade. Eis então que o Evangelho golpeia os defeitos de tipo masculino, não importando em quem estes se encontram.

Ora, acontece que o Evangelho atual é apresentado como unidade de medida para todos, isto é, para ambos os tipos, mesmo que ele seja feito só para um. Segue-se disso que o tipo feminino não se encontra aí, fustigado nos seus defeitos, que são diversos em relação aos do macho, os únicos — no mesmo — alvejados. O Evangelho diz que se deve amar e a mulher não deseja nada de melhor; o Evangelho fala ainda em pobreza, e a mulher esta habituada a deixar o macho possuir tudo, cabendo a este fazer os negócios e protegê-la. Diz ainda o Evangelho: Não vos preocupeis! E a mulher é feliz que se preocupe quem a protege. O Evangelho fala ainda em não resistência. Ora, a mulher foi sempre — até hoje pouco tempo — habituada a suportar a prepotência do macho, e é, até biologicamente — construída para funções que não são as da luta. E assim por diante... suas virtudes naturais são: paciência e resignação, de modo que ela se encontra — conforme o Evangelho — naturalmente virtuosa.

O que isso significa? Se bem observamos, veremos que na realidade da vida o fator base de cada escolha ou de cada ação é estabelecido pelo tipo de impulsos oriundos das forças constitutivas da nossa personalidade. Este é o ponto de partida, o antecedente instintivo, axiomático, com o qual tudo o que vier em seguida haverá de conformar-se. Assim os princípios, a moral, os ideais são escolhidos, ajustados e aplicados para este fim, isto é, o de cada um satisfazer os impulsos e as exigências da própria personalidade. Preferem-se, deste modo, e defendem-se os princípios que se revelem para a mesma edificantes, isto é, capazes de fazer com que suas qualidades sejam julgadas virtudes e não defeitos. Em suma, se preferem os princípios que possam servir de manto para embelezar e de coberta para esconder. Neste sentido, para defender a vida, provê instintivamente o subconsciente.

Dá-se, então, o seguinte: o tipo masculino repele o Evangelho, que lhe fustiga os defeitos, enquanto o tipo feminino aceita o Evangelho, pelo qual não se sente castigado em seus defeitos, pois lhe permite satisfazer os próprios impulsos sem ter que ser condenado. Que há de melhor do que encontrar guarida num texto tão excelso quase universalmente reconhecido como a própria palavra de Deus? Explica-se, por isso, facilmente a espontânea aceitação feminina da moral evangélica e pouca espontaneidade e convicta repulsão masculina da mesma. Para a mulher, melhor explicação e justificativa para sua natureza não seria possível encontrar.

Em consequência disso, o Evangelho é seguido por seres dotados de qualidades femininas e repelido pelos outros, masculinizados. Vemos assim que, independentemente do sexo, as igrejas são de preferência frequentadas por indivíduos do primeiro tipo, pois ali se encontram à vontade. Vai ali quem crê e reza, esperando do Onipotente a proteção para a sua fraqueza, assim como a mulher a espera do macho. Mas muito menos se sente atraído a seguir-lhe o exemplo o indivíduo de tipo macho, que prefere resolver seus problemas por si próprio, sem pedir ajuda ao mundo celeste.

Ora, este é um acontecimento comum e eles fazem isto inconscientemente, sem se darem conta do engano, nem podem ser culpados por isso. Este fato, porém, não pode impedir à Lei de cumprir sua função, que consiste em corrigir o erro. Por isso, a Lei reage na forma que corresponde ao comportamento do indivíduo, ou seja, no caso do macho anti-evangélico, deixando-o sozinho e baratinado a mercê da luta, conforme exige o seu caráter orgulhoso e auto-suficiente; e no caso da fêmea — que pretenderia desfrutar o Evangelho usando-o à guisa de um manto protetor para esconder seus defeitos e aparecer virtuosa — desilude-a em sua vã expectativa. Assim a Lei coloca cada coisa no seu devido lugar.

Neste trabalho, também o tipo fêminino cumpre a sua função útil. A Lei confia a este tipo a tarefa de mostrar, a cada passo, o Evangelho ao tipo macho, a fim de que o aplique, o que redunda em toda vantagem da fêmea para a sua própria defesa. Assim para ser utilizado como escudo protetor do fraco, o Evangelho encontra neste um defensor, que tenazmente o propõe, no seu próprio interesse ao oposto tipo macho que acaba usando o Evangelho para o seu verdadeiro fim, isto é, para a correção dos defeitos do macho. Finalmente, permite a Lei que se faça do Evangelho o uso que se quiser; mas não admite ser defraudada no escopo que constitui sua razão de ser. Assim também aquela ambígua posição de mal-entendido dá, nas mãos da Lei, o seu justo rendimento.

A este expediente de utilizar o Evangelho para disfarçar seus próprios defeitos, não só recorrem os indivíduos, mas também os povos. Desse modo, os povos fracos, de tipo feminino, para esconder a própria inércia se fazem evangélicos, espiritualistas, pacifistas, e se vangloriam daquela sua virtude perante os povos de tipo másculo, vigorosos, laboriosos, acusando-os de serem anti-evangélicos, materialistas, guerreiros. Mas isto não impede que a Lei funcione, pela qual os fortes acabam destruindo-se a si próprios e os fracos afundando-se na lama. É assim que a Lei, como agora dizíamos, reage do mesmo modo com que é violada e tanto os indivíduos quanto os povos, todos pagam cada um a seu modo na proporção de suas próprias culpas. Mas, entretanto a Lei se realiza também no sentido em que os povos femininos, propondo tenazmente, para sua defesa, o Evangelho, aos povos másculos, os induzem a toma-lo em consideração e assim a emendar-se dos seus defeitos antievangélicos.

Vimos que há correspondência entre defeito e tipo de correção. Isto porque o objetivo da Lei é corrigir e não punir, e sem esta correspondência ela não poderia cumprir a sua função retificadora. E como se para cada defeito houvesse um específico anticorpo, atraído para o ponto que lhe corresponde e com a função de eliminá-lo. Verifica-se, assim, também no campo moral um jogo de ação e reação semelhante aquele que se verifica no campo fisiológico, no caso do assalto microbiano, no ponto de menor resistência do organismo, exatamente para corrigir a sua fraqueza que naquele ponto o torna vulnerável.

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Vimos neste capítulo como se comportam o tipo viril e o tipo feminino perante o Evangelho, para resolver o grande problema da sobrevivência na Terra, conforme as leis desta. O primeiro repudia o Evangelho e se defende com a sua força. O segundo procura com astúcia uma proteção, fazendo desse Evangelho um escudo contra os fortes, de maneira a corrigir-lhes a prepotência. É este o uso que as que as massas fizeram daquela doutrina. Às massas não se podia negar o direito de fazer da mesma o uso que mais agradasse às suas necessidades, porque a vida não pode aceitar o que não é utilizável para o seu desenvolvimento.

A muitos agradou imaginarem um Cristo todo doçura e sentimento, que se sacrifica por amor, enquanto a sua doutrina é a do tipo viril. Se na mesma doutrina apareceu a oposta nota feminina, isto não foi porque Jesus tivesse esse caráter, mas porque a conduta do suave cordeiro se lhe impôs em obediência à Lei, e então, colocando-se como exemplo, para ensinar aos homens como Ele — porém unilaterais na sua vontade de afirmação  o equilíbrio e a integração com as qualidades opostas á suas.

Cristo era um forte. Lembro-me, a este propósito as palavras de Gibran Khalil Gibran no seu volume: Jesus, o filho do homem. "Dizem que Jesus de Nazaré era humilde e manso (....).Sinto-me mal e as minhas vísceras se agitam e se rebelam quando ouço os débeis de coração chamar Jesus de humilde e manso para assim justificar suas próprias fraquezas (.....). Sim, o meu coração se sente mal perto de tais homens" (....). Cristo era um forte. Mas é necessário entender em que sentido, Ele não o era no comum sentido do baixo nível animal, mas em alto nível espiritual. Cristo era um forte, mas de uma potência de alma, muito diversa da humana força bruta tendente à violência.

Cristo fala aos fortes, denuncia-lhes as culpas, é a eles que diz para oferecerem a outra face, para não desencadear uma luta. Dizer isto aos fracos não teria sentido, porque eles não têm a força para reagir e lutar. Trata-se do comando de um domador, comando que pode dirigir-se ao lobo e não ao cordeiro. Conselhos de brandura podem-se dar ao primeiro, não ao segundo. O freio pode servir para quem correr demais, não para quem não tem força para caminhar. Para este é necessário um impulso e não um freio, é necessário dizer-lhe: "Move-te"! E não "Paciência"!

Assim, o mundo imaginou um Cristo a seu modo, adequado a seus próprios gostos. Isto não foi traição, porque foi uma necessidade. Sem isto Cristo não teria sobrevivido na memória da humanidade, que não se teria interessado por quem não fosse útil para o seu desenvolvimento. De outra forma o Cristo não teria podido cumprir a sua missão. Está de acordo com as leis da vida se até hoje o Cristo ainda não foi realmente entendido, mas como mais agradava era também útil para todos que assim aparecesse. Um Cristo tal qual Ele foi realmente e proposto com aquela plenitude, não teria sido assimilável até hoje. Então a do passado pode ser considerada como uma primeira aproximação da plena compreensão do Cristo, à qual se poderá um dia chegar por ulteriores e mais exatas aproximações.

Esta visão do fenômeno não retira em nada o valor da antiga interpretação do Cristo, enquanto a considera a melhor possível no seu tempo, pois, reconhece a sua relativa duração histórica, e daquele passado justifica a superação, confirmando o valor de suas sucessivas e sempre mais perfeitas aproximações. É natural e ninguém deve surpreender-se que, pelo fato de ter atingido um mais alto grau de maturidade intelectual, a Humanidade de hoje procure dar uma interpretação do Cristo, mais exata e completa em relação à  do passado. É com tal método que uma figura e uma doutrina podem ficar sempre aderentes à vida, vivas como esta, fugindo ao envelhecimento graças a uma ulterior renovação.

Para que as finalidades da vida sejam alcançadas, é necessário que possam combinar-se entre si a figura do profeta com a sua doutrina de um lado, e a vida com as suas exigências, do outro. Assim sendo, um profeta, destinado a afirmar-se com o cumprimento da sua missão, não nasce ao acaso, mas no justo momento em que a vida tem necessidade dele para alcançar os seus próprios fins, porque ela poderá corresponder-lhe, valorizando-o, ou seja dando pleno rendimento ao seu esforço. Para poder alcançar tal resultado deve existir proporção e afinidades entre o pensamento e a ação deste por um lado, e o momento histórico por outro. O inovador deve propor à vida alguma coisa que lhe seja útil, quando se quiser que esta o aceite e o secunde.

O progresso de uma religião é uma obra coletiva na qual colaboram vários elementos. Em primeiro lugar surge o profeta inovador, depois nasce a sua doutrina, em seguida uma religião se organiza veiculando-a e dirigindo assim as massas que a aceitam. Trata-se de um processo unitário, para o qual concorrem vários elementos, movidos pela finalidade comum de fazer avançar a vida sob um seu determinado aspecto.

Isto é o que se deu com Cristo. A construção terrena do organismo da Igreja prova sua aceitação por parte das massas humanas. A função de uma Igreja no desenvolver-se deste fenômeno religioso é a de conservar e difundir, administrar e dirigir com autoridade, mas sabendo ainda auscultar e secundar os impulsos do subconsciente coletivo no qual se exprime a vontade da vida que é a força propulsora do fenômeno. Se a Igreja quiser sobreviver, não pode deixar de seguir e satisfazer aquele subconsciente.

Com o amadurecer das massas também as verdades eternas mudam, apesar de continuarem a chamar-se eternas. Desse modo a corrente inovadora da vida domina tudo, mesmo que venha a ser moderada pela função conservadora da Igreja, necessária para garantir uma certa estabilidade nas inovações. É assim que hoje, para fazer sobreviver o Cristo em nosso mundo, pode ser necessário substituir a velha interpretação da sua figura e doutrina, isto é, o velho Cristianismo, para recomeçar, desde o fundamento, com uma outra interpretação mais correspondente aos tempos novos.

As condições de vida e de ambiente aliadas o desenvolvimento da inteligência fazem agora ver como são inadequados os velhos métodos cristãos, pelos quais muito se culpa o clero. Deve-se, porém, reconhecer que um Evangelho vivido integralmente — conduzindo a um santo suicídio — teria impedido à Igreja de cumprir a sua função. Dados os tempos que teve de atravessar, se ela não se tivesse adaptado ao mundo, não teria podido fazer chegar Cristo até nós. Eis que a Igreja é justificada se as necessárias adaptações às condições históricas e sociais dos tempos passados levaram-na às vezes a contradizer o próprio Cristo. Deveria então concluir-se que o erro esta na doutrina dele? Uma tal hipótese é absurda e seria meter-se contra as leis da vida se jogássemos fora em bloco uma tão preciosa série de valores espirituais que tanto custou para que fossem erguidos e que iriam, irremediavelmente, ser perdidos, pois nada teríamos para oferecer em seu lugar.