A Lei é ordem e justiça. A Redenção gratuita. O sacrifício de um inocente que paga as culpas dos outros.

Via de regra os livros sobre Cristo tratam dos acontecimentos de sua vida terrena, segundo a narração dos evangelhos. A nós, pelo contrário, interessa conhecer o Cristo na sua essência, compreender o significado da sua descida sobre a Terra e a sua paixão, as suas relações com a Lei e com o plano divino da redenção. Formulamos, pois, as seguintes perguntas: "Quem era o Cristo e o que Ele quis fazer? Quais eram os fins que se propunha alcançar?

Foi para melhor responder a estas perguntas, enfrentando a fundo o problema que quisemos tratar em primeiro lugar dos fenômenos fundamentais do ser, isto é, a primeira Criação e a Queda, para poder depois nelas enquadrar a figura e a obra de Cristo.

No Capítulo XIV: "A essência do Cristo" do volume Deus e Universo, escrevi na Itália em 1942 e publiquei no Brasil em 1954, estas palavras: Sinto que nestas páginas se aproxima a visão do conceito da essência do Cristo numa primeira aproximação, prelúdio de uma compreensão mais profunda que alcançará seu ápice no último volume, coroamento de toda a Obra". Ao concluir o referido capítulo eu confirmava: "Encerro esta visão sobre a essência do Cristo, primeiro esboço de visões maiores". Tinha consciência assim, desde aquela época, que minha compreensão do assunto constituía-se num fenômeno em evolução.

Chegamos, hoje (em 1970), àquele último volume e com ele aquela pré-anunciada mais profunda compreensão. Aquela consciência, então, apenas pressentida e anunciada, definiu-se agora com maior precisão graças ao amadurecimento alcançado no decorrer dos doze volumes da II Obra, que agora nos fornecem novos elementos de juízo dos quais antes não dispúnhamos. Com efeito a nossa interpretação do Cristo não tinha ainda superado a interpretação religiosa tradicional da qual era um derivado. Naquela fase de desenvolvimento do pensamento da Obra não era ainda possível um mais exato enfoque da questão. O leitor poderá, percorrendo o caminho que eu segui, realizar também para si próprio o mesmo processo de maturação que me levou até aqui. Na II Obra ele encontrará um conjunto de escritos que redundam numa escalada de argumentos convergentes para estas últimas conclusões, de modo especial no que concerne à relação do S e AS, à  Lei e à  sua técnica funcional. Estes novos conceitos oferecem-nos outros pontos de referência anteriormente ignotos, o que nos permite vislumbrar mais vastos horizontes e assim levar em conta, na argumentação, também as objeções positivas dos críticos descrentes.

No estado atual de nossas investigações e demonstrações podemos afirmar a presença de uma Lei que dirige o funcionamento de tudo quanto existe A existência objetiva de tal Lei não é questão filosófica ou ato de fé, não é afirmação arbitraria e gratuita, ou construção mítica, não e mistério aceito por tradição, ou verdade imposta por autoridade, mas e uma realidade efetiva, racionalmente provada e experimentalmente controlada, porque podemos verificar que tal Lei está presente e vigora em todo tempo e lugar.

Como tal conceito de base e novo ponto de referência, a colocação dos problemas se torna mais exata, a sua solução mais exaustiva, a visão da verdade se faz mais completa porque racionalmente mais aprofundada. Aparecem então elementos de juízo diversos, antes ignorados. Podem-se assim explicar, sem as negar, algumas afirmações teológicas que de outro modo permanecem misteriosas. E é pelo fato de serem impostas como mistério que por muitos elas são repelidas como inaceitáveis. Ao passo que assim muitas verdades religiosas adquirem consistência e com isso durabilidade, porque elas resultam expressas como verdades racionais e positivas e não apenas construções míticas; como tais acabam, mais cedo ou mais tarde, por ser superadas por construções mais avançadas.

Esta Lei fixou as normas e constitui o impulso motor do funcionamento de nosso Universo, o AS dominado pelo S, cujo centro é Deus É assim que na realidade fenomênica, em todas as suas dimensões e níveis evolutivos, desde o mais baixo, a matéria, até o mais alto, o espírito, constatamos que tudo é regulado por Leis invioláveis, sem arbítrios e exceções, pelas quais tudo é previsível e calculável. Uma vez compreendida a Lei de um fenômeno podemos estar seguros que ele continuará a verificar-se na forma por ela estabelecida. Imaginemos o que aconteceria ao nosso Universo se os fenômenos não obedecessem a uma disciplina, seguindo o seu curso como foi preestabelecido! Tudo desmoronaria no caos, por um desencadeamento de conflitos entre movimentos desordenados. Os fatos que conhecemos nos dizem, pelo contrário, que isso não acontece. E não há razão para admitir que os fenômenos morais e espirituais devam estar isentos daquela regulamentação universal e submetidos a um regime de tipo diverso.

Para poder reger tudo com uma tal ordem, a Lei deve ser matematicamente justa. Isto não impede que exista também o Amor, mas este já não pode violar a ordem e emborcar a justiça, porque isso geraria o caos e a injustiça, o que é anti-Lei O amor não pode existir senão enquadrado no seu setor em posição subordinada aos equilíbrios fixados pela Lei.

Dado isto, podemos afirmar que é injusto, isto é, anti-Lei e anti-Deus, que um inocente pague por culpas dos outros, enquanto é justo, conforme a Lei de Deus, que cada um pague as suas próprias culpas. E é ainda mais injusto que tais culpados aproveitem da bondade daquele inocente para fazer dele, perante a divina justiça, um bode expiatório eximindo-se assim do pagamento que os espera. Esta não poderia ser senão uma moral invertida, produto do AS de tipo anti-Deus. Ela perante a moral do S, isto é, perante Deus, é um emborcamento e uma culpa.

Disto se segue que não é lícito para o homem — porque injusto e imoral — pretender fazer-se redimir pelo sacrifício de Cristo. O esforço da subida do AS para o S deve pertencer ao ser que com o seu erro provocou a descida do S no AS. Trata-se de cumprir um trabalho daquela íntima elaboração que se chama evolução, trabalho que não se pode delegar a outros, porque consiste na transformação de si mesmo. É impossível que eu me possa mudar a mim mesmo pensando com o cérebro de outro, e aprender, fazendo sofrer um outro, a lição que deve corrigir a mim, que cometi o erro. Isto é como se eu mandasse para o hospital uma outra pessoa para um tratamento necessário a curar o meu organismo, ou então, é como se, para poder me instruir, encarregasse um outro de seguir, em meu lugar, o meu curso escolar. Acredita-se, contudo, em tais absurdos, porque tais usurpações e escapatórias agradam ao comodismo humano. Não se trata alias senão de instintivos produtos do subconsciente. Mas em tais coisas não pode acreditar quem compreendeu que a divina Lei de Justiça é inviolável. Pense-se apenas, qual desordem reinaria no campo moral, qual emaranhado de injustiças e qual conflito de valores se verificaria, se tais abusos fossem possíveis sem uma proporcionada reação corretiva por parte da Lei, encarregada de restabelecer a ordem e a justiça, castigando o culpado!

Não obstante isto, o Cristianismo apresenta-nos um Deus inocente que desce na Terra para pagar os pecados dos homens. Ora, esta é uma contabilidade que não resiste à exata justiça da Lei de Deus. O Cristianismo reconheceu no homem uma culpa de origem e a necessidade de um pagamento desta dívida à justiça divina. Como procuramos demonstrar em outros de nossos volumes, é isso que corresponde à verdade. De fato, cada um paga a sua própria dívida mediante o esforço evolutivo. O que não se sustenta perante a justiça da Lei é a ideia propugnada pelo Cristianismo segundo a qual o pagamento das dívidas possa ser feito por um outro, que não tem obrigação alguma de fazê-lo — porque inocente — a favor de quem não é inocente.

Há ainda um outro fato que não corresponde aquela justiça e que consiste na desproporção entre o preço pago e a culpa cometida. Cristo com menos de 24 horas de martírio teria pago as culpas de bilhões de homens, quem sabe por quantos milênios, incluídos os futuros. Objeta-se que se trata da dor de um Deus Ora, antes de tudo, pode ser esse Deus submetido à dor, se esta é só uma qualidade do AS, isto é, de um estado corrompido do S? É admissível que Deus se reduza a tal estado de corrupção? Além disso é lícito perguntar-nos: se e por que a dor de um Deus deveria valer mais do que a dor de um homem, como se este, quando sofre, sofresse menos de quanto o poderia um Deus? Parecer-nos-ia então, mais lógico e mais justo, que, para pagar as culpas de bilhões de homens por tantos milênios, fosse necessária a dor de bilhões de homens por outros tantos milênios. Só assim as contas encaixam porque o pagamento é proporcionado à culpa e o esforço para regressar ao S cumpre a cada ser, assim como pesa sobre cada um a culpa de sua queda no AS Pode-se imaginar qual desordem se instauraria na justa moral da Lei, na falsa hipótese da súbita extinção de uma tal dívida, perante um ganho não justificado mediante um esforço proporcional: Que caos se verificaria, na série dos fenômenos — todos orientados num progressivo sentido evolutivo — se fosse dado um instantâneo enorme salto em direção ao S! Isso violaria a necessária gradatividade da ascensão devido a transformação instantânea. E se o escopo da evolução há de ser visto na reconstituição de todas as qualidades perdidas, um salto tão brusco pelo fato de suprimir uma considerável etapa do caminho evolutivo, levaria de vez às portas do S seres que, por não terem evoluído o suficiente, não estariam de modo algum reconstituídos, isto é, não seriam suficientes evoluídos e, portanto, imaturos para nele ingressar.

Compreende-se então porque desta ideia de redenção gratuitamente e concedida por Deus a seres que não a mereceram e que não têm nenhuma intenção de ganhá-la, por ser prodigalizada às custas do inocente, demanda um certo grau de inconsciência e de egoísmo para ser aceita. Um tal modo de conceber a redenção é tipicamente antropomórfico e reflete a forma mental própria das criaturas do AS. Estas podem pensar aquilo que mais lhes agrade. Mas isto não afeta em nada a Lei, que continua a funcionar conforme a justiça de Deus.

É compreensível, e perdoável que o homem do passado se tenha deixado levar por impulsos do subconsciente, mas isto não é mais perdoável hoje, pois ele está saindo da menoridade. É chegada a hora de ver em Cristo não apenas o seu amor e sacrifício, que outrora tanto nos confortava, mas, antes, e sobretudo, um exemplo de justiça que nos induza ao seu cumprimento e não a evadirmo-nos dela. Chegou a hora de o homem se colocar com sua consciência perante o dever de evoluir com o seu próprio esforço, de reconhecer a sua posição, de compreender a sua responsabilidade, de assumi-la ele próprio perante a Lei, sem ilícitas sub-rogações.

É injusta, mas historicamente explicável, esta ideia do sacrifício de um inocente que paga as culpas dos outros. Aliás, pode-se dizer que a paixão de Cristo integra-se na tradição. Na Bíblia surge continuamente a ideia de sacrifício, base da aliança com Deus, como se Ele estivesse a exigir de ser pago de uma dívida para com Ele, contraída pelo homem em troca da divina proteção que lhe era concedida em contrapartida. Então o sacrifício era material e cruento e continha também os conceitos de expiação de culpas e de propiciação da Divindade. Estes conceitos permaneceram através do tempo, mas desmaterializando-se de seu aspecto físico e purificando-se do aspecto sanguinário. É triste ver quão forte importância tiveram nas religiões do passado a matança de uma vítima e o espargimento de sangue, e quanto seja difícil livrar-se da lembrança de métodos tão ferozes para a aproximação da Divindade. Eles se refinaram, mas ainda não se cancelaram, embora tendam a purificar-se até desaparecer com a evolução espiritual do homem.

Estes conceitos, se bem que reduzidos o mais possível ao estado imaterial e incruento, se encontram ainda na Eucaristia, concebida ainda como sacrifício. De fato, nela se fala, se bem que o seja em forma invisível e simbólica, de corpo e de sangue, o que constitui uma recordação e um vestígio dos antigos sacrifícios feitos pelo homem involuído e ainda remanescentes, no fundo, nas representações do rito. De martírio de corpo e espargimento de sangue, de que era ávido o passado, ficou apenas a ideia; mas mesmo esta deverá desaparecer nas religiões mais civilizadas do futuro, em direção às quais preferimos dirigir o olhar, porque nelas o homem descobrirá outros métodos espirituais para avizinhar-se da Divindade.