Observando no capítulo precedente o fenômeno da universal bipolaridade, explicamos algumas atitudes das religiões, sobretudo do Cristianismo. Examinando-as em função não de abstrações teológicas, mas de positiva realidade da vida, foi possível compreender como nasceram e se manifestam, porque existem e quais as soluções que pretendem alcançar. Assim explicamos que a contradição e luta entre o Evangelho e o mundo são apenas oposição de dois termos complementares, feitos para se compensarem reciprocamente, não constituindo verdadeiro antagonismo. Perguntamo-nos: o que significa e que função tem, no campo do fenômeno biológico, um Evangelho que aspira a inverter as leis vigentes em nosso plano de evolução? Ora, não podemos negar uma realidade existente, conforme os desígnios de Deus, em nossa própria natureza; realidade na qual nos encontramos, sem possibilidade de escolha, inexoravelmente imersos e prisioneiros. Se de fato existe o Evangelho —    e se apresenta biologicamente como um absurdo, porque julga que possamos evadir-nos da lei animal imperante na Terra, a luta pela sobrevivência — o que significa ele e qual o objetivo desta sua presença em nosso mundo?

No capítulo anterior, o problema de tal dualismo foi enfrentado em sentido horizontal, permanecendo no mesmo nível evolutivo, como bipolaridade macho-fêmea, cisão e reunião desses dois opostos, mas ficando no plano de nosso mundo e olhando a religião como produto de forma mental humana. O nosso ponto de referência era a Terra para compreender, em função dela, todos os acontecimentos. No presente capítulo, a questão é encarada verticalmente, em diversos níveis de evolução, como bipolaridade involuído-evoluído, superação do plano terrestre, observando as religiões como uma antecipação de progresso, a realizar-se no futuro, como resultado de uma psicologia super-humana. A nossa perspectiva não será mais este mundo, mas um nível evolutivo mais avançado, para compreender como o homem poderá alcançá-lo. No caso do capítulo antecedente, a complementaridade entre positivo e negativo era entendida pelos tipos macho e fêmea. Agora, a mesma complementaridade é expressa pelos modelos involuído e evoluído. Nos dois casos permanece idêntico o principio dualístico da unidade bipolar, representada pelos dois sinais + (mais) e - (menos). Mas, aqui, não observamos mais o choque entre eles no mesmo plano evolutivo humano. macho-fêmea, mas em dois diversos níveis de evolução, isto é, ideal e mundo. Mudam as perspectivas, observando-se o fenômeno de outros pontos de vista, e, proposta de outra forma, a exposição assume aspectos diferentes.

Cristo vem ao nosso planeta e propõe-se inverter as leis biológicas aqui vigentes. Ele diz: "Abandonai todas as armas, amai o próximo, sede ovelhas. " A vida replica: " para que o inimigo vos vença, o próximo vos explore, os lobos vos devorem". A conclusão é que os piores engordam à custa dos melhores e que, deste modo, a seleção se realiza ao contrário, a favor dos primeiros, aos quais é o próprio Evangelho que oferece o material para explorar. Esta seria, então, a verdadeira consequência da vinda de Cristo à Terra. Aqui continuam a dominar as leis deste mundo, segundo as quais o mais forte vence, e os bons seguidores do Evangelho, como tais considerados débeis, ineptos para a luta, são eliminados. Resultado negativo, o que significa falência do ideal.

Estes fatos explicam por que aqui o Evangelho não é de fato vivido e como o Cristianismo, à força de adaptações, se tenha tornado uma coisa diferente da que foi pensada por Cristo. Enquanto se afirma que Cristo venceu o mundo, na realidade: este venceu aquele. As leis da vida, em vez de cederem, reagiram e dobraram a seu modo o ideal. Mas, se a negação do que é inferior, por parte do que é superior para conduzir à superação, quer dizer levar novos pesos á dura vida do inferior, é natural que ele se rebele e tenha repulsa pelo ideal. Lamentavelmente, enquanto sonha com o paraíso, tem diante de si o inferno. Perante as leis da Terra, deixar-se matar, mesmo que seja por um ideal, constitui derrota, é loucura propô-lo como exemplo a imitar. Ele é apresentado em nome de leis que, neste planeta, não têm sentido e conduzem á ruína. Todavia, aqui se introduzem com a pretensão de ensinar, muito embora como estrangeiros em terra estranha. Mas aconselhar o perdão é encorajar os prepotentes. Deste modo, favorece-se o desenvolvimento dos piores, sacrificando os melhores em seu favor. Esta é a moral dos fatos, diversa das palavras. O próprio Cristo com a sua bondade se fez crucificar, o que significa a vitória das forças do mal sobre as do bem, de Satanás sobre Deus. A desforra de Cristo com a ressurreição somente depois se pôde manifestar, como uma fuga nos céus, quando as forças do mal terminaram o seu banquete, imperturbáveis no seu triunfo.

Compreende-se porque a Igreja teve o cuidado de não seguir tal exemplo e de fazer de Cristo uma organização terrena; do céu e do ideal, um cálculo de interesses econômicos e políticos Explica-se como a Igreja, que proclama o Evangelho, que condena a riqueza, possa economicamente ser avaliada como a segunda potência financeira do mundo, precedida somente pelos Estados Unidos, mas superior a todos os outros países do globo, incluídas a União Soviética e a Inglaterra. Assim, o ideal desceu para inverter o mundo, mas foi emborcado por ele. Encontrando-se na sua própria casa, o mundo colocou-o a seu serviço. Logo, o meio mais eficaz e utilizado para fazer apreciar as coisas do espírito é pô-lo em evidência, revestindo-o com valores mais apreciados em nosso mundo, como pedras preciosas e ouro, e tornando-o concreto com meios materiais, como construções, estátuas, pinturas, sem que o espírito, por sua natureza imaterial, se perde inatingível e despercebido. Verificam-se, assim, contínuas distorções: com as coisas sagradas feitas de matéria preciosa, transformadas em tesouro que excita cobiças; com os valores apreciados do espírito, cobertos de riqueza, também cobiçada, julgando que se rende homenagem a Deus através da pompa religiosa com apresentação mundana etc.

Em outros momentos de nossa exposição, observamos o ideal se posicionando superior ao mundo, no instante da sua descida, para aqui realizar-se. Examinemos agora o mesmo fenômeno, não olhando para o alto, mas para baixo, a fim de verificar o que sucede, quando o ideal pretende entrar em ambiente estranho para transformá-lo a seu modo, isto é, para fazer do indivíduo um evoluído.

Procuremos compreender o fenômeno deste outro ponto de vista. Já noutro lugar, vimos a função biológica e a finalidade evolutiva da descida dos ideais na Terra. Este trabalho não pode ser confiado ao involuído, que nada entende de tudo isso, estando bem à vontade em seu plano de vida animal. Esta tarefa deve, então, ser empresa do evoluído. É necessário definir o que entendemos por evoluído, para evitar um mal-entendido. O homem, que ingenuamente vive o Evangelho, obedecendo às suas normas, pode julgar-se tal, embora não o seja; imaginando sê-lo, enquanto é apenas um simples indivíduo honesto, de boa fé. Assim é grande parte dos seguidores de Cristo: suaves ovelhas, ótimas para serem devoradas pelos lobos. É assim que o tipo de pseudo-evoluído serve, sobretudo, como pasto para os ferozes involuídos de que é constituído o mundo, aqueles que o ideal pretenderia civilizar. Essas ovelhas não são adequadas para este trabalho. Seu destino é ser derrotadas na luta pela vida. Eis que o ideal para afirmar-se na Terra tem necessidade de outro tipo de evoluído.

Quando perante o homem do mundo, que sabe, por sua dura experiência, qual é a realidade da vida, aparece um exemplar de idealista que crê no Evangelho como num sonho de fácil realização, ele o observa e, julgando-o de seu ponto de vista, pensa: "Este vive fora da realidade, não conhece a vida. E simplesmente um ingênuo, um ignorante. Não pode servir senão para ser‘ explorado. Demos-lhe, portanto, razão, alimentemos o seu sonho, cultivemos a sua ingênua ignorância, façamo-lo crer que o ajudamos a realizar o seu ideal, seguindo-o a seu lado. Poderemos, assim, melhor explorar a sua estupidez, transformando-a em nossa utilidade concreta".

Ou, então, o homem do mundo pode pensar: "Este é um astuto que colocou a máscara de idealista para melhor enganar o próximo. É necessário, pois, secundá-lo aprovando tudo, mas tomando cuidado de não acreditar nele, nem lhe cair na rede".

Em ambos os casos a verdade consiste em enganar para explorar. Esta é a verdade do involuído, aquela com que ele se expressa, dado que a sua natureza o leva a conceber tudo em função de sua vantagem egoísta, tanto que o universo não serve a ninguém senão a ele. Eis em que terreno traiçoeiro cai o ideal. O mundo o espera para destruí-lo. O resultado desta descida é guerra, lei da Terra, conduzida falsamente pelas vias subterrâneas da hipocrisia e, assim, tornada mais dura e pérfida.

Se o  indivíduo, por temperamento ou por educação recebida, acreditou no ideal fácil, tanto pior. Ele é um primitivo do espírito e deverá aprender a não ser, mesmo no bem, um ingênuo. O ambiente terrestre lhe ensinará que não se chega ao céu só por ternura sentimental, que a descida dos ideais significa dever imergir no pântano, que a cruz de Cristo não é só um belo ato de amor mas significa abraçar a fera humana para ser por ela dilacerado. O idealista deve aprender em que mundo vive, a desconfiar e lutar antes de acreditar e amar. O próximo se incumbe de ensiná-lo à força de golpes massacrantes. Quem se faz instrumento da descida dos ideais deve saber e ser não somente anjo da paz, mas também forte lutador; e mais do que todos os outros, porque o é em forma pacífica, sem armas; deve fazer guerra em duas frentes, a da Terra para sobreviver, e a do céu, que confia nele para a descida do ideal.

Chega-se, destarte, a outro conceito de evoluído, isto é, ao tipo inteligente, por ter atravessado e experimentado a zona involuída da besta, conseguindo superá-la. Não mais o evoluído ingênuo e inocente, acabado de chegar ao plano do espírito, mole e frágil, sonhador e enamorado, convencido de que se pode alcançar o céu com voos de fantasias, sonhos de poeta, evangelicamente terno para com o próximo, porque ainda não lhe conhece a verdadeira natureza. Pelo contrário, temos um evoluído que subiu todos os Calvários e foi crucificado em todas as cruzes das muitas velhacarias humanas. Portanto, conhece-as e não cai mais nelas, dado que lhe deixaram o sinal na pele, para sua permanente lembrança; um evoluído verdadeiro, tornado tal por ter amadurecido através de todas as provas. É assim aquele que leva consigo a experiência do mal superado, ou porque lhe foi feito pelos outros, ou porque, tendo sido feito por ele, experimentou as duras consequências a que conduz. Como vítima sacrificada, ou mesmo como carrasco convertido, deve conhecer todo o mal de que transborda a Terra. Os ingênuos não vão para o céu, mas ficam neste mundo para aprender. O paraíso não pode ficar cheio de meninos que brincam de ideal. Deus os manda ao nosso mundo para que vejam o de que verdadeiramente se trata e voltarem depois mais maduros, terminada a escola.

Trata-se de compreender que o bem e o mal não são somente o próprio bem-estar ou o mal-estar individual e presente, como crê o primitivo, mas que o verdadeiro bem pode ser dor, e o mal prazer. Quanta coisa é necessário experimentar e entender para ser realmente evoluído, soldado do ideal!

O santo, que não conhece o mundo e não está encouraçado contra os seus assaltos, é eliminado pela vida como um inepto que não ajuda a descer na Terra nenhum ideal. O verdadeiro pobre, aquele que sabe o que é a pobreza e luta contra ela com qualquer meio, pensa que fazer-se pobre por amor ao Evangelho seja um esporte de luxo para os muitos saciados; julga-o um capricho dos ricos, uma aventura de gente que não conhece a realidade. Prepara-se, portanto, para derrotá-lo. Quem experimentou a luta pela vida sabe que não há margem para brincar com os ideais e que com eles se pode arriscar à morte. Cuidado com os ingênuos, fáceis em acreditar, que se deixam seduzir pela glória do guerreiro e do santo, sem terem estofo para tal! A vida baseia-se num jogo de força ou astúcia, não sobre a justiça. Na Terra, quando alguém consegue devorar o seu inimigo, diz que Deus o ajudou. Enquanto o idealista contempla o seu sonho, o mundo prepara o assalto. A sua voz de sereia encantadora fala em nome das coisas mais elevadas, mas ninguém a escuta. E, se alguém a ouve, entende-a a seu modo, ou seja, que ela vale somente enquanto pode ser utilizada para explorar o cantor, dado que este é o único meio com o qual aqui ele pode servir para alguma coisa. Ele é uma flor frágil do campo, adaptado ao céu, enquanto a Terra é feita de tempestades e de vida dura que não admite bondade. Entretanto, julga poder encontrar em tal ambiente enamorados do ideal que celebrem com ele o seu canto sobre-humano! Neste mundo o homem não pode ser um honesto ingênuo, mas deve ser um honesto astuto, para não ser enganado por todos os astutos; um honesto lutador, para não ser destruído pelas agressões de todos os lutadores.

Conforme as leis do plano animal-humano, a vida coloca o problema em sentido completamente diverso. Para ela o trabalho a realizar é a conquista do conhecimento terreno. É atividade que procura o novo e explora o desconhecido, porque a sua finalidade maior é evoluir. Para isso experimenta todos os caminhos. E, se a tentativa foi mal dirigida e resultou em erro, em todo caso vale mais do que a inércia, que não constitui experiência alguma. Se esta acabar mal, poder-se-á corrigir. Porém ela é já uma esperança, enquanto a inocência do ignorante não representa coisa alguma, não contém qualquer atividade, nem experiência, nem conhecimento. Para a vida o inerte vale menos que o rebelde. Este ao menos se move, arrisca, luta, à sua custa faz alguma coisa. Por este caminho ele pratica o mal, mas se prepara também para aprender que aquele mal lhe cairá em cima e que, portanto, será mais conveniente não repetir a experiência. Quem não faz nada não se dispõe a aprender coisa alguma. Ele se afasta da vida, porque nem sequer inicia a senda da experimentação. O outro, ao contrário, mete-se na estrada e vai em busca de qualquer coisa. De algum modo ele tomou uma iniciativa, por isso caminha, e quem assim procede, porque já se encontra em posição de marcha, tem mais probabilidade de chegar do que quem está parado. Quantos santos na juventude foram tristes indivíduos! A santidade não pode ser ignorância e ingenuidade, mas sim, conhecimento por experiência adquirida. Para chegar aos altos níveis da vida e empreender a 1uta do santo, é necessário ter primeiro atravessado os planos mais baixos e não ignorar a luta que neles se trava. O santo não é um débil, sem potentes impulsos, sem músculos e garras, mas um forte com ímpetos dirigidos para o alto, com a sua força colocada ao serviço do bem. Só assim se pode representar o ideal na Terra e ser instrumento da sua realização.

Para que isto suceda, o ideal não pode ser confiado a ovelhas, que, não sabendo fazer outra coisa senão deixar-se matar, servem apenas para fornecer alimento destinado a engordar lobos, que continuarão a devorá-las enquanto elas os convidarem com a sua bondade. A vida quer a evolução e o esforço para executá-la; não protege, portanto, essas fugas. Ela quer que os bons lutem e construam uma barreira que sirva de obstáculo ao avanço dos malvados. Por obra desta resistência, o número destes e dos seus golpes bem sucedidos deve diminuir cada vez mais. E esta transformação a vida confia à ação das próprias vítimas, que devem tornar-se sempre mais espertas e inteligentes, de modo que não se deixem mais enganar. A evolução é uma arrancada da injustiça para a justiça. O ideal desce tanto para os justos como para os injustos, com o escopo de levar todos em direção ao S. Para encontrar vítimas, os astutos desonestos devem inventar sempre novos enganos, a fim de que, sofrendo-as, também elas aprendam. E inevitável a chegada do momento em que, havendo elas experimentado e aprendido todos os ardis, esgote-se o repertório, e nenhuma astúcia poderá mais servir, por falta de ingênuos que neles creiam. Então, o mal, tornando-se cada vez menos produtivo, acaba por ser cada vez mais posto de lado, já que sempre traz consigo mais risco e falência. Chegados a este ponto, os bons terão vencidos os malvados, que deverão admitir que doravante a velhacaria não lhes pode trazer senão dano. No final os exploradores da bondade do próximo devem reconhecer o seu erro e chegar a um acordo com os explorados, se quiserem viver. Quando não se encontrar mais quem faça o papel do enganado, não é mais possível viver enganando. O jogo deve cessar por falta de elementos com quem praticá-lo. É assim que o desonesto tem de se tornar honesto, porque a resistência dos atingidos por ele faz com que para si seja danoso ser desonesto. Com esta técnica nos seus níveis mais baixos, a vida, por meio da luta, impulsiona a subir, indo ao encontro do ideal que desce do Alto.

É por isso que a vida expõe a inocência do primitivo a todos os assaltos, a fim de que ele faça alguma coisa e aprenda. Ela o deixa indefeso com esse objetivo. Num plano superior o super-homem pode dizer: "Eu sou honesto, vivo o Evangelho, isto basta, Deus, então, me recompensa. Se sou paciente e resignado, com a minha virtude caminho em direção à felicidade". No nível humano, pelo contrário, a vida diz: "Se não te sabes defender, serás morto. Se fores paciente e resignado, os outros aproveitarão disso a te explorar para vantagem deles". O ideal diz: "Segue Cristo até ao martírio. Este é o triunfo do espírito". A vida diz: "Acabar como Cristo é morte horrível. Isto não é triunfo, como te querem fazer crer, mas a pior das derrotas. O homem é feito para viver e não para seguir tal mortífero exemplo. Cristo é filho do céu e se apressou a voltar para lá; o homem é filho da Terra e aqui deve ficar. Deixemos que os ingênuos caiam no engano. Por isso são eliminados. Mesmo encorajando-os a se sacrificarem, aproveita e engorda com a sua virtude e renúncia" Como se vê, trata-se de duas leis diferentes, cada uma própria de determinado ambiente. O fenômeno da descida dos ideais verifica-se desde o plano do evoluído ao do involuído, agora descritos, para transformar o segundo no primeiro e fazê-lo, portanto, passar a um nível e lei de vida mais altos.

Este é o trabalho que espera ao evoluído. E ele que deve trazer o céu à Terra, resistindo ao assalto de quem quiser destruí-lo. Com o seu grande sonho no coração, ele deve descer até à luta. Ao seu amor o mundo responde com a agressão; à sua generosidade, com a carência das necessidades materiais. A luz do céu se torna sangue: o ideal, dor. O AS procura aniquilar o S, que pretende entrar no seu reino. A tentativa de endireitamento é seguida de contínua e oposta vontade de emborcamento. Antes de poder concluir com a ressurreição, o ideal deve ser crucificado. Ele é luz, mas deve mergulhar nas trevas para transformá-las naquela. É uma subida que implica uma descida para fazer ascender quem está em baixo. Para poder existir na Terra, a ideia deve ser fechada numa camisa-de-força que a defenda e a torne sensível aos outros, sem o que não sobrevive e sequer é percebida. Descer no mundo significa ficar aprisionado dentro dele.

Para chegar a realizar-se, a intuição do evoluído deve sujeitar-se a retrocesso involutivo, a uma queda de dimensões, adaptando-se a contorções e mutilações.  O ideal deve penetrar num mundo antagônico, onde as virtudes se tornam fraqueza e defeito; a lógica do bem, um absurdo no meio do mal; a verdade, uma forma de mentira para enganar os ingênuos; a ordem, a paz, a felicidade, miragem para esconder a realidade, que é caos, luta, dor. O mundo entende a seu modo o impulso do ideal em direção ao Alto, isto é, como um assalto à sua integridade, ao qual resiste por legítima defesa e que repele com as suas armas, porque deseja permanecer como tal. O mundo é dividido entre fortes e fracos. O evoluído que não entra em guerra e não vence é colocado entre os fracos e liquidado. Enquanto ele oferece escola ao involuído para civilizá-lo, este mostra a experiência ao primeiro para fazer-lhe compreender a realidade da vida. Se o ideal representa o futuro, o presente é bem diverso; se aquele é uma esperança, uma expectativa, este é uma realidade dura e atual; se o primeiro é a coisa mais bela que possa existir, o segundo é o bruto que de fato existe. Ai de quem não conhece esta realidade e se mete dentro dela desarmado! Isso lhe pode custar a vida. Fazer na Terra o papel de evoluído é perder-se nos sonhos do céu, deixando-se seduzir pelo encantamento do ideal; é ignorância que a vida, no nível do involuído, castiga sem piedade.

Procuremos aqui compreender o significado biológico deste contraste entre o ideal e o mundo. Na Terra existe luta não apenas em sentido horizontal entre indivíduos do mesmo plano, mas também, verticalmente, entre representantes de níveis diferentes. É natural que, sendo transformismo o existir, dado que tudo é evolução, quê, deve sê-lo também a luta que é necessária para realizá-lo. A conclusão a que nos leva a constatação desse contraste entre os dois termos opostos, mundo e ideal, é que o primeiro é feito de involuídos, ao qual o grau de civilização do Evangelho não é ainda aplicável, ou então, este é uma utopia que a vida não pode aceitar, porque vai contra as suas leis. Se, de fato, esses dois constituintes são inconciliáveis, o defeito que disto é causa deve estar em uma das duas partes. Ou em ambas, isto é, no sentido de que o mundo tem razão, mas só no seu nível animal-humano e não no do ideal; e o Evangelho também está certo, porém apenas no seu plano super-humano e não no do mundo. Assim, é natural que cada um dos dois, transportado para fora do seu ambiente, não seja realizável.

Não há dúvida de que o ideal na Terra representa um transplante em campo que não é seu. Assim se explica por que ele existe mais como aparência do que como realidade, mais pregado do que vivido. Compreende-se também o fato de ser ele uma adaptação e um artifício; apenas uma bela "toilette" com a qual o orgulho humano procura esconder a sua animalidade; um artifício com o qual aparenta uma espiritualidade que não possui. É natural que o ideal neste planeta apareça sobretudo em forma de mentira, aparentando aquilo que na realidade não é.  No entanto, se tudo é transformismo, esta posição não pode ser definitiva.  Ora, o que significa isso? Se é verdade que na Terra o ideal ainda não pôde penetrar plenamente, contudo ele começa a fazê-lo cada vez mais. Trata-se, pois, de progressiva percentagem de realização por lei de evolução.

Na verdade, o ideal está só tentando entrar no mundo, mas se encontra no início desta sua operação. Nosso ambiente terrestre ainda pertence ao nível evolutivo animal, e o Evangelho, a um plano superior. Partindo do seu estágio atual, o homem está destinado a alcançar essa realidade mais avançada, guiado para isso pelo Evangelho, como por um farol de luz alta e longínqua que lhe mostra o caminho a percorrer e o modelo segundo o qual se deverá construir. O Evangelho só é hipocrisia nesta fase, porque tende sempre mais a tornar-se verdade vivida; tampouco é utopia, em sentido evolutivo, perante o futuro, porquanto se tornará realidade. Então, nossa fé no Evangelho, em contraste com o mundo, não é ingenuidade de inexperiente, mas antecipação evolutiva, já que corresponde a um impulso da vida em sentido criador, tendente a civilizar um mundo ainda selvagem.  Isso, entretanto, só pode ser compreendido por quem está amadurecendo para superar o nível biológico da humanidade atual e está em via de transformação. Só este pode entender qual é o tipo de vida de um plano mais avançado, porque, com uma forma mental diversa, pode ver aquilo que o homem comum, bem instalado no seu nível, de onde não sabe sair, nem sequer suspeita possa existir. Para ele, em plena consciência, mesmo que isso seja hipocrisia, este é o melhor modo de atuar e, portanto, está convencido de estar fazendo o bem de tal maneira.

O tipo biológico que melhor pode fazer compreender o fenômeno do contraste entre ideal e o mundo é aquele que se encontra em fase de transformação evolutiva, que o leva à superação do nível humano e o prepara para entrar em plano mais alto. Ele pertence um pouco a ambos os níveis, está suspenso entre os dois, que se podem mostrar nele encarnados. Chamá-lo-emos santo, porque assim, na Terra, se costuma designar este tipo espiritualmente elevado. Com esta palavra, contudo, entendemos cada tipo de evoluído, ou super-homem, seja ele cientista, artista, pensador, filantropo, herói etc., isto é, o indivíduo que levou ao estado de sublimação o seu particular tipo de personalidade. A sua esporádica existência no mundo permite-nos observar o seu especial modo de comportar-se, a sua luta para fazer descer na Terra uma realidade mais alta e a reação do mundo contra esta oferta.

Desta maneira, é fácil ver o contraste, porque os princípios opostos dos dois planos se podem apresentar encarnados em seres vivos e em ação, enquanto estão realizando a sua natureza. Eles fazem-se guerra, usando duas formas mentais e seguindo duas estratégias diversas, o que gera um mal-entendido contínuo. Enquanto o santo se oferece para abrir o caminho a um tipo de vida mais alto e feliz, o involuído, incapaz de compreender as vantagens de tais ascensões, revolta-se como para proteger-se de um perigo, julgando tratar-se de um ataque, como é normal na luta pela vida. Pelo fato de que se lhe pede esforço e renúncia, ele interpreta a oferta como se fosse uma tentativa de sufocação dos seus impulsos vitais. Daí o mal-entendido e a reação. Porque o indivíduo quer o desabafo e não repressão dos instintos. Mais do que o esforço da ascensão prefere a cômoda via da descida; ao bem a conquistar com o seu trabalho prefere o mal merecido pelo prazer imediato. Ora, se o santo já vislumbra outra forma de vida superior, o involuído só conhece a terrena. E, não sabendo imaginar coisa melhor, porque esta vida esgota todas as suas possibilidades e aspirações, agarra-se a ela desesperadamente. Isto é natural, porquanto, perdido este tipo de existência, nele não existe o amadurecimento necessário para ele poder ressurgir espiritualmente em um nível mais alto, restando somente o vazio e a morte. A sua capacidade de existir está restrita apenas ao plano biológico humano. Assim ele se coloca contra o santo para vencê-lo na luta pela vida, ficando exclusivamente no âmbito dos problemas terrenos. Mas a luta do santo é por outro tipo de existência. Privá-lo do mundo não significa tirar-lhe toda a vida como sucede com o involuído mas somente a sua inferior, mutilando-a, ele se liberta de um obstáculo à ascensão, é ajuda para ascender-se, rompendo a casca da matéria e saindo do cárcere da animalidade, reino do involuído.

Mas existe ainda outro fato: o santo exerce atração. O involuído sente isso que se torna objeto de sua simpatia. O instinto inconscientemente o leva a submeter-se a este fascínio.  Isto tem a sua razão de ser. A beleza da mulher seduz, porque isto serve à vida para a reprodução. O ideal se apresenta belo, e a sua beleza encanta, porque serve à vida para a sua evolução. Ele é um absurdo na Terra, mas corre-se para vê-lo, porque certamente é uma maravilha sonhar para viver como ele ensina, quando a realidade na Terra é feroz e assim quer permanecer. Também o involuído, por um obscuro pressentimento, sente que o santo representa a realização de uma fase evolutiva mais avançada, colocada no seu futuro, aonde ele próprio um dia chegará. Esta ânsia de ascensão é comum a todas as formas de vida, e a sentem também os seres inferiores. O santo apresenta o grande sonho alcançado, que nele se encarnou, mostrando uma forma de superior felicidade; e todos procuram, ardentemente, ser felizes. As massas desejariam roubar-lhe essa felicidade já que ele a possui. Avizinham-se dele, esperando por vias oblíquas poder, pelo menos, roubar-lhe um pouco, sem compreender que cada alegria não pode ser possuída senão se sujeitando ao esforço individual necessário para merecê-la.

Há outra razão mais positiva e imediata pela qual o santo atrai: ele é a boa ovelha que se deixa devorar. Oferece, portanto, a satisfação mais ambicionada na Terra: poder, impunemente, banquetear-se devorando o próximo. O santo satisfaz o maior desejo da vida no plano animal: sufocá-la aos outros em favor dela própria; ele não reage, não faz guerra, ao assalto responde com o perdão; em vez de luta e riscos de derrota, oferece a outra face, isto é, a vitória fácil sem perigos e fadiga, sem ter de pagar o desabafo gratuito dos piores instintos. Que se pode desejar de melhor? Cristo deu a maior satisfação possível à feroz cobiça dos seus crucificadores. E eles puderam saciar-se sem arriscar ou pagar coisa alguma, ao contrário do que acontece na guerra, onde existe um inimigo armado em lugar de uma vítima paciente. Eis outra razão pela qual o santo atrai.

Como se vê, também ele representa uma força na vida. E aqui o vemos em ação, cumprindo a sua função de fundamental importância biológica para realizar a sua parte na técnica da evolução. Estas observações nos permitem delinear a posição do santo em relação ao mundo, quando ele entra em contato com este. O exame que agora fazemos se poderia chamar: psicanálise de fenômeno da santidade.

O valor do trabalho, que a vida oferece ao evoluído, isto é, a função biológica de preparar a realização da ascese evolutiva não é reconhecida na Terra, mas apenas o valor do trabalho produtivo de vantagens concretas e imediatas. Ele deve, portanto, executá-lo nas mais difíceis condições. Se não é econômico e socialmente valorizado, todavia, entre todos os trabalhos, é o mais importante para os fins da vida. Dado que por essa razão ele tem de se realizar, deve ser protegido por forças estranhas ao nosso mundo, superiores às comuns avaliações humanas. Não é, pois, com o homem que o santo pode contar, mas somente com Deus, isto é, com as forças inteligentes da Sua Lei. A intervenção do mundo a respeito do santo é totalmente negativa, pelo menos enquanto vive e trabalha na Terra. A glorificação virá depois, quando ele não tiver mais necessidade de ajuda alguma. Mas, enquanto for vivo, terá de ser pobre, virtuoso, crucificado. Porque deve ser pobre, ele é privado dos meios para realizar o seu trabalho, já que vive num mundo, onde sem o estímulo do dinheiro ninguém o segue e, se faltarem condições para viver, toda a energia e tempo serão empregados na necessidade de lutar para conseguir essas condições, sem as quais não se vive. Ele deve ser virtuoso e trabalhar com as mãos presas, enquanto os demais que não são santos as têm livres. Ele, enfim, deve estar pregado numa cruz de dor, porque assim é difícil trabalhar para o próximo e produzir, mesmo que seja espiritualmente, podendo apenas santificar-se e ir para o céu.

O mundo funciona com outros princípios. É organizado para outras finalidades e joga fora da sua corrente quem não a segue. O ideal na Terra é um luxo de ricos que podem abandonar-se a sonhos por terem resolvido o problema econômico. O pobre, pelo contrário, assediado pelas necessidades materiais, deve subordinar tudo a estas, mesmo o ideal.  É  natural, portanto, que procure utilizá-lo em tudo aquilo que lhe seja possível. É  assim que a religião pode servir para tantas coisas não religiosas, mesmo anti-religiosas. Quem vive num baixo plano de vida não tem, nem deseja margem para meter-se a antecipar formas mais altas, porque isto custa trabalho e sacrifício. Para ele já é muito conseguir resolver os problemas do presente, do seu nível. Ele tem outras necessidades e não vai prever problemas futuros, ou planos mais altos. Não há lugar para enfrentar superações, quando se é martelado pelas exigências quotidianas. O mundo enxerga o santo através de sua ótica, e somente pode tratá-lo em função dela.

Na Terra, não vigora a moral da superação, mas a da sobrevivência; é justo, é bom aquilo que serve para viver, e é injusto, é mau aquilo que conduz à morte. Segundo a moral biológica, a experiência de Cristo foi um erro e uma culpa. E, de fato, essa moral o castigou com a morte. Ora, o ideal desejaria derrubar essas leis. Mas é natural que, quando ele oferece a miragem de uma vida superior, ao nível humano isto possa soar como um engano e uma traição. O instinto de conservação não foi, porventura, dado por Deus para a finalidade da sobrevivência? E devemos nós violar esta lei? Para a moral biológica quem faz isso é um suicida, expulso da vida porque é culpável, por não a ter defendido, como seria seu dever. E, no plano humano, a vida é física e terrena, não celestial. Ser privado aqui daquele tipo de vida significa perdê-la toda. Como exigir, então, que a vida humana não se rebele? E, se o Evangelho, para quem segue o exemplo de Cristo, mata, como pode a vida aceitá-lo? Afinal que se pode reclamar de um ser filho da moral biológica, dentro da qual cresceu e à qual deve o fato de ter sobrevivido até hoje, vencendo com tenacidade a luta pela vida? Para contê-lo um pouco dentro de uma disciplina moralizadora necessária à convivência social, foi preciso o terror do inferno, desenvolvendo nele instintos de sadismo, enquanto do outro lado permanecia, pouco convincente, um paraíso feito de nebulosos bens futuros e de alegrias espirituais dificilmente compreensíveis.

Eis que, quando o santo, terminado o seu trabalho terreno, vai-se embora, o mundo, que se põe a glorificá-lo, não muda por isso a sua forma mental, nem a sua atitude em relação a ele. E assim que também nesta glorificação há um cálculo utilitário. Fazer de outro modo seria contrário às leis da vida. Começa, pois, a indústria do santo, porque este utilitarismo, que é lei biológica, leva a industrializar tudo: ideal, religião, espiritualidade, salvação final etc. Na Terra, também essas coisas acabam revestindo-se de formas humanas, como fama, glória, meios econômicos, poder psicológico, domínio de massas, e assim por diante. Então, daquele pedacinho de céu que o santo trouxe à Terra se apossam os homens de ação. Tiram-lhe toda a utilidade possível, mas o usam para as suas finalidades de grupo, como sua própria bandeira, exemplo para os outros e justificação de posições adquiridas. O santo está morto, mudo, podendo-se fazer dele aquilo que se quiser. Ele arrastava as massas atraídas pela sua luz antecipadora de evolução e, por seu intermédio, pode-se continuar a atraí-las para vantagem própria e à maneira de cada um. Isto significa adaptação. Pode ser até desvio, mas trata-se também de um momento do fenômeno da descida do ideal, dado que o seu rebaixamento é necessário, se quisermos que ele possa alcançar a Terra. Aqui um ideal de absoluta pureza não consegue existir. E, para que possa resistir, é necessário um certo grau de acomodação, o que significa a sua corrupção. Para sanear o pântano é preciso que a pureza nele penetre e fique manchada.

Ocorre que o santo é incorporado ao grupo dos seus seguidores, que o acompanham levando cada um a sua vantagem. Em geral o santo atrai meios econômicos, como as esmolas, os quais constituem a suprema atração no mundo. Vemos isto, atualmente, no caso do Padre Pio de Pietralcina na Itália. Eis o resultado: milhões de liras, construções, enriquecimento do lugar, fanatismo, aglomeração do povo. Para os outros: a indústria do santo. Para ele: tribulações.  Transformando-o numa preciosa e rendosa propriedade de um grupo. Depois de morto, ele se torna santuário, peregrinações, esmolas etc. Eis em que o inundo transforma a santidade. O dinheiro por sua natureza atrai os piores, e à volta dele começam: luta, rivalidade, irregularidade administrativa, acusações, escândalos e a algazarra humana.  A autoridade eclesiástica, ora aprova, ora condena. Defenderá só depois da morte do santo, se, apoiada por um consenso universal, puder incorporá-lo sem risco de se enganar. Então, intervém oficialmente e santifica. Com isso a utilização do santo é legalizada e definitiva. Durante a sua vida, não lhe resta senão penitência, amargura, isolamento, incompreensão, exploração e frequentemente condenação.  Com mentalidade materialista, a espiritualidade é relegada ao último plano e, no caso acima, reduzida ao fenômeno físico dos estigmas, levada ao nível que o mundo compreende. Isto reduz tudo àquilo que a sua forma mental exige para seu uso. Ele oferece ao santo glória e dinheiro, as coisas que mais lhe dão fastio, mas que melhor servem aos seus seguidores, que se preparam para substitui-lo, tornando seus herdeiros e administradores, fazendo da santidade uma coisa que lhes é útil e não ao santo. A este se deixa o sacrifício de todas as virtudes, extraindo deles a glória com seu rendimento. Esta substituição é o primeiro passo de desenvolvimento do fenômeno da descida de um ideal. O instinto dos seguidores é utilizar o santo para si, é tomar posse dele e submetê-lo às suas próprias finalidades.  Tentaram, assim, envenenar São Benedito de Norcia e fizeram desaparecer as regras da Ordem de São Francisco, para ficarem discípulos fiéis em arrecadar esmolas, mas não na vida de penitência.

Pode-se ver como na descida dos ideais seja inevitável aquilo que sucede também com as religiões e espiritualidade na Terra, isto é, a luta entre dois planos evolutivos diferentes: o do espírito e o do mundo. Cada um deles exige satisfação às suas necessidades. O santo diz: o homem é involuído e o solicita a subir; o mundo grita: o ideal é utopia que mata e o adapta às suas próprias comodidades, freando o impulso do santo. Este debate-se entre os liames da matéria para dela se libertar; o mundo luta para não morrer na atmosfera rarefeita do espírito. O santo quer amar, com um amor diferente, e se o fizer, será destruído.  O mundo cuida de banquetear-se com a carne da doce ovelha que gostaria de amá-lo. Grande parte da paixão de Cristo serviu para divertir as feras humanas do seu tempo.

Com a mente cheia de ideias e o coração repleto de paixão, o santo deve salvar-se dos mercadores do espírito e da involução das massas, que, com a força do número, como clientes compradores dos produtos espirituais, impõe os seus gostos. O mundo quer o ideal rebaixado ao seu nível, porque de outro modo não o entende e não o utiliza. Assim, também o santo deve acabar por tomar a cor da Terra, em que vive. Ambos não podem deixar de se manifestar segundo o seu ponto de vista: o santo, com inteligência e bondade; o mundo, com astúcia e egoísmo. Cada um dos dois enfrenta o outro com os meios que possui! E para lutar se abraçam. Deste modo se realiza o trabalho da transformação evolutiva. Tal é a técnica da evolução na qual o evoluído é plenamente envolvido como instrumento realizador.

O contraste é evidente e depende da absoluta diversidade dos princípios colocados como base da vida. Às vezes temos vontade de perguntar se não é uma pretensão absurda inverter as leis biológicas do  planeta para substitui-las.  Como se pode pedir que se ame o próximo, quando cada concessão feita em favor da vida deste, que é um inimigo, significa uma limitação da sua? Não resta senão adaptar o ideal, restringindo-o às formas externas, à superfície, impedindo-o de intervir na substância, que, dessa maneira, ele não perturba. Este, de fato, é o ideal que existe no mundo: falsificado, reduzido à hipocrisia. Que pode fazer o evoluído, levado a tomá-lo a sério? O homem pode escolher entre estes quatro caminhos: 1) concordar com o mundo, isto é, viver conforme a lei terrena, embora dissimulada com práticas religiosas, usando a inteligência para camuflar-se de pessoa de bem, formalmente no seu lugar; 2) rebelar-se contra o mundo; isto leva a um estado de guerra pouco evangélico e requer um instinto de agressividade que o evoluído não possui. Só ao involuído podem agradar tais métodos de difusão de um ideal, os quais implicam: absolutismo, intransigência, proselitismo e afins; 3) rebelar-se contra o mundo em forma pacífica, mas sofrendo4he a reação e acabando como mártir, para vantagem dos sucessores; 4) isolar-se do mundo para seguir o seu próprio caminho. Este é o único modo que evita a mentira, a guerra, a exploração.

Isolar-se não significa consumir-se a favor dos outros mas, sim, estiolar-se como solitário, isto é, não correspondido pela compreensão, bondade, comunhão de vida. É  um extinguir-se que nos deixa ainda mais sozinhos. Mas outra coisa não se pode esperar de um mundo que se rege por outros princípios. No fundo, permanece o fato indestrutível da distância evolutiva e da dificuldade de preenchê-la. Ninguém pode deixar de ser aquilo que é, nem pode pertencer a um plano evolutivo diverso do seu. A verdadeira superioridade é um fato interior que o mundo não vê, e quem a possui não deseja mostrá-la. Ele baseia a sua avaliação sobre aquilo que ele é, não sobre o que aparenta. De fato, não procura louvores e glória, porque a exaltação da sua pessoa não pode acrescentar nada àquilo que é. O santo baseia-se no consenso de Deus, não no dos homens. No entanto, é fácil cair na lisonja da glória e ficar por ela seduzido, estando ela ligada à fama de santidade. Portanto, é sábio não mostrar virtudes para não ser exaltado, visto que o cheiro da bondade atrai imediatamente os astutos, que procuram explorá-la. Para trabalhar em paz é melhor confundir-se com a multidão e colocar as vestes de um normal pecador, mesmo que não o seja. A pessoa boa é presa fácil, gratuita e atrai os caçadores. Aparecer como santo também aos de fora, dado o mundo em que se vive, pode excitar-nos outros qualquer instinto inferior e impedir que se seja santificado verdadeiramente. Em vez de estar numa atmosfera de espiritualidade, o santo encontra-se imerso na baixa luta humana que, para os seus próprios fins, procura desviá-lo dos objetivos que ele pretende alcançar. Então, o mundo pretenderá julgar o seu caso, intrometer-se nas suas relações com Deus, e ele será levado perante o tribunal da opinião pública, curiosa, vá e egoísta. Oferece-se, assim, a tantas nulidades ocasião de divertir-se, de desabafar os próprios instintos, de penetrar nos sagrados recessos de uma alma para sujar e estragar. O mundo não merece tais sacrifícios, para ele uma verdadeira exploração. Mesmo os valores do espírito são preciosos e não podem ser desperdiçados.

A santidade é um fato individual e interior, que vale por si mesma e não é reconhecida, glorificada e medida pela autoridade religiosa para as suas finalidades. O santo é Deus quem faz, não os homens. Quem sabe quantos santos não são conhecidos do mundo! E, se o foram, até que ponto chegaram a ser reconhecidos como tais! Poderá o homem julgar esses casos? Servirão os pontos de referência de que ele dispõe? O consenso popular tem um valor relativo: corresponder a um desejo da massa que o santo satisfaz. Mas o subconsciente coletivo não possui a unidade de medida para julgar tais fenômenos, que superam o plano de evolução em que estão situadas as massas. O alto pode julgar o que está em baixo, mas o contrário não é possível. De tudo isso a mediocridade não pode compreender senão a satisfação dos seus instintos. Assim, os concílios podem revelar aquilo que a maioria pensa e quer. Mas a verdade está por cima desses acordos, nem se constrói por consensos coletivos. Estes oferecem uma verdade relativa para os usos da vida em dado momento, sujeita à contínua evolução, como de fato acontece, servindo à autoridade para aliviar a própria responsabilidade e justificar assim as suas decisões.

Neste exame da técnica evolutiva, observamos a posição do mundo perante a do santo como instrumento realizador da descida dos ideais, isto é, diante da função do santo, que é o elemento mais alto do fenômeno, o ativo e positivo; examinamos a função do mundo, o elemento mais baixo desse fato, o passivo e negativo, que se expressa com movimentos de resistência. O processo evolutivo realiza-se com o contato e conjunção, em forma de luta, entre esses dois extremos de sinal oposto. Desta maneira, o quadro completo resulta não apenas de como aparece o ideal visto pelo mundo, mas também como este se mostra observado pelo ideal. Analisemos agora melhor, colocados juntos do lado alto do fenômeno que desce do céu, a sua parte mais baixa que está na Terra

O ideal, quando desce no mundo, concretiza-se na forma de um edifício constituído de elementos humanos que, à guisa de células, se dispõem automaticamente, consoante a sua forma mental, valor e função, no seio do processo evolutivo que estamos vivendo. A base da pirâmide é a mais extensa, mas recolhe os tipos mais elementares. Esta é a parte que menos entende, a mais passiva, que apenas aceita. Ela é a massa ignorante, que segue por fé, por sugestão, sem pensar, sem compreender. Ela crê e vai atrás dos pastores; tem necessidade de ser guiada e se deixa conduzir; é o povo que forma o grande corpo das religiões O interesse dos dirigentes é tê-lo quieto e submisso para dominá-lo mais tranquilamente. Para este objetivo a fé é um ótimo calmante, alivia as dores presentes com a esperança de um bem futuro acessível a todos, para que se pratiquem as virtudes da paciência e resignação.

A seleção produziu, contudo, uma classe mais desenvolvida em inteligência. Trata-se naturalmente do grau mais elementar da intelectualidade: a astúcia para vencer na luta pela vida. É  uma das primeiras emersões evolutivas. Ela serve apenas para melhor viver na Terra e ignora ainda o valor do ideal, que se limita a explorar. Trata-se, portanto, de astúcia destinada somente a ser utilizada para finalidades terrenas.

Aparece, então, a classe sacerdotal, que, em todos os povos e tempos, procura dominar em nome de Deus. Ela se instala na sociedade colocando a religião como base do seu poder material. É proselitista para aumentar com o número a própria potência e condena as outras religiões e respectivos sacerdotes, porque rivais no domínio das massas.

Uma vez entrada a religião plenamente no jogo dos interesses terrenos, a ela se aliam os ricos e os poderosos para utilizá-la naquilo que para eles também é premente: o domínio sobre as massas. Forma-se espontaneamente, segundo as leis utilitárias da vida, o acordo e a simbiose. Temos, assim, a classe dos bem pensantes, das chamadas pessoas de bem, religiosas praticantes, exibindo grandes demonstrações de fé, as quais, uma vez compreendido o jogo, o aprovam e apoiam, juntando-se à classe sacerdotal, a fim de que isso sirva para manter quieto o povo e não perturbar o banquete deles.

Do nível dessas classes feitas de indivíduos, para sua conveniência coligados em grupos, podem emergir outros tipos isolados, que se preparam para um trabalho pessoal. Pode aparecer, então, o tipo de idealista que se diz investido de uma missão. Podem ser de vários modelos e alturas. Há o tipo ligeiro e inexperiente que se faz de idealista para se vangloriar. Coloca-se uma auréola fingida de santo para a fazer crer verdadeira e receber a veneração. Nisso caem os ingênuos, embora depois os admiradores, a seu serviço, exijam daquele as mais pesadas virtudes, como pagamento da homenagem tributada.

Pode também haver o malandro que se faz de idealista para enganar o próximo, para explorar a sua boa fé, enquanto tem em vista finalidades materiais bem mais concretas. Ele se apresenta envernizado de santa virtude, de nobre espiritualidade, porém, na realidade, entretém-se apenas com os seus interesses. Dada esta premissa, pode-se imaginar o que ele poderá recolher. Pretendendo entrar no lado dos ideais, a fim de invertê-los para objetivos terrenos, ele se expõe às reações da Lei, contra a qual se choca, porque ignora o funcionamento desta. Nesta altura a hipocrisia não serve, antes provoca o contragolpe e, da mesma forma, destrói o engano.

Uma posição perante o ideal menos perigosa, porque possui ao menos a virtude da sinceridade, é a do ateu convicto, que reconhece com franqueza as leis do plano animal-humano e repele o ideal, julgando-o utopia, como estranho à realidade da vida.

Além destas formas híbridas de primeira aproximação, existe o verdadeiro evoluído, o genuíno homem do ideal, aquele que em nome deste luta no mundo para superá-lo. O seu jogo não é o comum de vencer no plano humano, mas realizar um tipo de vida superior, mesmo que esteja em contraste com a vigente. Ele é suficientemente inteligente para compreender tanto o jogo do mundo, como a sua baixeza e seus perigos, sendo bastante honesto e forte para os repelir. O mundo oferece-lhe o seu método e diz-lhe: "Deves ser astuto como eu. Mostra-te cheio de virtudes, mostra-te pessoa de bem, digna de toda a confiança; poderás, deste modo, melhor realizar o teu interesse enganando os ingênuos; utiliza esta sapiência que o mundo te oferece já verificada pela sua longuíssima experiência, portanto com resultados garantidos". Assim lhe fala o mundo. Mas ele sabe que se trata de uma ilusão traiçoeira e não cai na armadilha.

Ele está nos antípodas do mundo. Este vê as coisas em sentido oposto, isto é, no ideal uma miragem pela qual é perigoso deixar-se enganar. Uma vez que quem nele crê é julgado um ingênuo, e não se pode utilizar de outro modo senão o explorando. Assim o ideal é sustentado, enquanto é utilíssimo para realizar esta exploração. É erro, é culpa isto? Mas é a própria vida que o exige. Estas são as leis do plano humano; estes são os métodos que ele pratica para alcançar os seus fins. Não será utopia pretender inverter tudo isso? Não será próprio de um tolo ignorar este estado de fato? E não será justo que se paguem as consequências desta ignorância? Na Terra o ideal não pode existir senão enquanto serve para viver; neste caso, é um meio cômodo e sutil para adormecer o próximo e assim enganá-lo melhor. Lança-se o anzol com o ideal como isca e se pescam os crentes que a mordem. Eis para que serve a fé.

Na Terra, somente existem duas posições: a do pescador e a do peixe, de quem pesca e de quem é pescado. Os seres, mesmo no nível humano, vivem comendo-se uns aos outros. Paga por todos o peixe de boa-fé que se deixa pescar. Quem se sacrifica pelo ideal é liquidado, o caso fica resolvido. Cristo mostrou-nos com o seu exemplo que o ideal mata. Não é que ele se mate, mas o mundo destrói quem esquece a luta pela vida, perdendo-se atrás da perfeição. A lei da vida é luta, fora de qualquer ideal. Este, ou se reduz a uma arma para lutar e, por isso, serve para viver, ou se toma a sério e, então, serve para morrer. O idealista é um sonhador que não se dá conta do nível biológico em que vive o homem, que, todavia, o exalta e o apresenta como exemplo para criar outros idealistas e fazer deles um viveiro para os seus banquetes. Assim, faz-se do santo uma bandeira a seguir, uma isca, e se pesca. Entretanto, se ele não se deixar aprisionar dentro dos interesses de um grupo e quiser fazer-se de santo sozinho, independente, não sendo, então confiscável, é combatido, porque não serve a ninguém. Do ideal existe na Terra apenas o uso que dele se faz. Quando o céu desce à Terra, o homem o faz tornar-se mundo. O santo, o verdadeiro evoluído, o genuíno representante do ideal, está do lado oposto, do lado de Deus, mas por isso tem o mundo contra ele. E, sozinho com Deus, em tal ambiente, ele deve cumprir o trabalho que a vida lhe confia.