A Descida dos Ideais

  I – Os Pontos Básicos

Quando, na vida, encontramos um indivíduo que tem as nossas ideias e sentimentos e passou pelas mesmas vicissitudes, sentimo-nos irresistivelmente atraídos para ele, movidos pelo sentimento de simpatia fraterna. Por este motivo falo de Teilhard de Chardin.

Os pontos de contato são três: 1) as teorias defendidas; 2) os sofrimentos morais causados pela dolorosa posição de incompreensão e condenação por parte das autoridades religiosas; 3) a paixão pelo Cristo, concebido racionalmente como ponto de convergência da evolução da vida. Observemos os três pontos para compreender o pensamento e a nobre figura moral deste cientista, filósofo e crente, assim como o significado da sua obra perante a renovação atual do mundo. Este exame poderá levar-nos além do caso particular, para observações de caráter e interesse geral.

1) As teorias defendidas por Teilhard de Chardin e pelo autor.

Em Teilhard, encontramos os seguintes conceitos: transformismo, evolucionismo, estrutura orgânica do universo e tendência do ser a alcançar um estado cada vez mais orgânico, de unificação. O homem é um elemento consciente que existe em função de um todo organizado, destinado a tornar-se sempre mais consciente desse todo e dessa organicidade. A evolução é orientada, por um íntimo impulso telefinalístico, em direção a um ponto conclusivo: Deus. O fim supremo da existência é a convergência das diversas consciências individuais na consciência única e total do centro Ômega, último momento e fim da evolução: Deus. Teilhard não acrescenta nada mais. Mas isto implica e deixa entrever a possibilidade lógica de que este ponto possa ser também o Alfa de todo o processo que, para ser completo, deve conter ainda a sua contrapartida involutiva precedente, como demonstramos claramente no volume: O Sistema.

Continuemos escutando o que nos diz Teilhard. O universo está completamente impregnado de pensamento, que se torna cada vez mais patente com a evolução da vida, através da crescente complexidade estrutural que a matéria, desse modo, alcança. Eis um pan-psiquismo que é um pan-espiritualismo e um monismo, que pode parecer materialista, mas que não é, porque aqui o materialismo é impulsionado até tornar-se espiritualismo. O condenadíssimo evolucionismo darwiniano não é expulso, ao contrário, adotado, está implícito e, logicamente, enquadrado neste evolucionismo tão vasto que compreende também o espírito. A função da vida consiste em fazer surgir este espírito, avançando em direção a ele através de um transformismo biológico (o darwiniano), cuja função não é senão a de veste exterior e de um instrumento de expressão, experimentação e laboração de um outro transformismo mais substancial, de tipo psíquico, escondido na profundidade, que anima a forma.

Teilhard intuiu uns laivos de consciência incipiente mesmo nos graus ínfimos da existência, no plano físico do universo. Para ele, a matéria inorgânica é antes uma matéria previvente, e num sentido lato, preconsciente. A evolução levou esta consciência a revelar-se imensamente mais avançada e potente no homem. Ora, a organicidade do todo implica uma lógica e seria absurdo determo-nos neste ponto do caminho sem continuá-lo. Teríamos um fenômeno partido ao meio, que de repente para, sem completar toda a sua trajetória e alcançar a necessária conclusão, ambas implícitas na lógica de desenvolvimento do próprio fenômeno. Que imensos horizontes nos abre para o futuro conceito, necessário, no prolongamento do processo evolutivo!

Hoje, portanto, um cientista nos confirma que a matéria está cheia de vida e a vida cheia de inteligência. Nós acrescentamos: Cristo pode ser proposto à ciência positiva como superbiótipo do futuro, supremo modelo que a raça humana poderá atingir com a evolução, e o Evangelho como a lei social da unidade coletiva representada pela super-humanidade do futuro.

Não obstante as tentativas humanas de conciliação, o Evangelho apresenta-nos Cristo e o mundo como dois inimigos inconciliáveis, os quais no entanto devem coexistir na Terra. Mas é necessário compreender o que entendia Cristo por mundo. Isto não significa ser Ele contrário à vida. Referia-se a um estado de fato, que o mundo estava e ainda está imerso num estado primitivo animal, pleno de egoísmos e lutas ferozes. Cristo condenava somente esta forma de vida inferior. A inconciliabilidade não se refere a um mundo de evoluídos e civilizados, pois, Ele quer transformar a humanidade atual, precisamente, num tipo mais avançado de vida, que o Evangelho chama de reino dos céus. Com um tal mundo Cristo está plenamente de acordo, justamente por isto, nele se realiza toda a Sua Lei. Veio para ensinar-nos este novo modo de viver, dando-nos as normas no Evangelho.

Voltemos a Teilhard. Vemos que, orientado assim, ele resolve o dualismo espírito-matéria, no qual parece encontrar-se dividida a obra de Deus num antagonismo bem-mal, Deus-Satanás, em que o Cristianismo se debateu durante milênios. Teilhard o resolve a favor do espírito, ao qual chega partindo do materialismo científico e levando-o até às suas mais audazes consequências; isto é, partindo da teoria da evolução para desenvolvê-la até atingir os seus mais altos resultados. Não nega a matéria como a ciência a viu, mas acrescenta o que a ciência não viu, a alma de um sopro espiritual que explica as suas funções, mostrando-nos as suas razões, e justifica a sua existência. Assim a torna transparente, luminosa de conceito, elevada de negação a expressão do pensamento de Deus. Tudo se fez e continua sendo feito por este pensamento. Isto representa a afirmação racional e a descoberta científica da sua presença em tudo o que existe, isto é, a imanência de Deus.

Fica assim esclarecido o sentido de todo o processo da evolução, numa síntese lógica e harmônica na qual concordam as verdades provadas pela ciência com os princípios finalísticos da concepção religiosa. Chega-se a uma conciliação de extremos opostos, a uma fusão orgânica, a uma unificação. Tudo isto pode parecer um materialismo místico, mas pode significar também as bases científicas do Cristianismo, que delas se aproveitaria porque atualmente não as possui, fato que o mantém fora do terreno positivo da ciência. Teilhard foi julgado, por alguns, um novo S. Tomás, cristianizador, não de Aristóteles mas de Marx e Darwin. Poderia, desse modo, ser sanada a cisão entre ciência e fé, para passarem da inimizade à colaboração. Muito teriam que dizer-se uma à outra. A fé teria, finalmente bases positivas, a ciência poderia ser iluminada e vivificada pelo espírito.

O evolucionismo darwiniano ficaria, mas só exteriormente, limitado à forma. Intimamente, é constituído pela evolução de um pensamento, é impregnado e orientado por um exato telefinalismo, nele imanente. Naquele evolucionismo, até agora entendido materialmente, há lugar de sobra, existe inclusive a necessidade da presença de um Deus, centro de um pensamento continuamente criador. Assim a matéria, de inimiga inerte do espírito, vincula-se, logo nos primeiros graus, ao processo universal da revelação do espírito, verdadeira e fundamental realidade do universo. O homem, no seu nível, faz parte deste processo. Num plano de existência muito mais alto, a evolução realiza-se no homem, através do homem que exprime uma fase dela, arrastando também o movimento de todo o processo, em direção a planos de existência cada vez mais altos. O progresso social revela a sua mais profunda natureza, a de um processo biológico cuja direção o homem deve tomar, agora mais que nunca, guiando com a sua inteligência a evolução. Até hoje ela apenas realizou, por um jogo de determinismos estabelecidos e impostos pelas leis da natureza. Trata-se agora, não de aceitar passivamente a evolução, mas de conduzi-la, tornando-nos conscientes dos seus fins, como operários de Deus, seus colaboradores na obra de construção do nosso setor da existência. O homem não viverá mais à mercê das leis da natureza, mas, consciente e responsável, dirigirá o seu próprio destino

Teilhard trata assim de chegar a uma “Nova Teologia” em que tudo se santifica por meio da universal presença do pensamento de Deus imanente, sem que por isso seja negado o seu aspecto transcendental. Chega-se a uma “Santa evolução”, que corrige o velho criacionismo pueril antropomórfico, não mais adaptado à mente moderna. É um novo evolucionismo consagrado no altar de Deus. O mundo move-se e, ainda os que não o queiram, têm de mover-se por força. O transformismo substitui a velha imobilidade. Podemos ver o que há de verdade no panteísmo evolucionista, condenado sem discriminação. Mas que haverá de mais vital do que ver Deus por toda a parte e, através de uma visão evolucionista do universo, não poder concluir senão com a sua espiritualização? Não poderá tudo isto conduzir-nos a um cristianismo, racionalmente mais aceitável para quem pense, e a um Evangelho mais demonstrado e convincente, ao mesmo tempo a uma ciência espiritualizada, mais nobre e santa?

Eis a vida levada à sua verdadeira essência. A substância da existência, a estrutura mais íntima do ser é de natureza psíquica, a vida é pensamento coberto de morfologia; a espiritualidade, base das religiões, é colocada no ápice da evolução. Cristo é um superego hoje transcendente, mas amanhã ponto de chegada para a raça humana, ponto no qual o egoísmo separatista, vigente na luta pela sobrevivência, será substituído pela solidariedade coletiva unitária do amor evangélico universal. Teilhard nos apresenta uma maravilhosa espiritualização do universo, elevada sobre bases científicas. O Evangelho representa uma transformação de leis biológicas e significa a imensa revolução operada pela passagem da vida de um nível de evolução a outro superior.

Quisemos reproduzir, em traços genéricos, o pensamento fundamental de Teilhard com a alegria de ver que ele corresponde plenamente ao nosso pensamento, exposto na obra chegada até agora no seu 21o volume, em mais de 8000 páginas. Uma tal concordância de conceitos com os de um cientista de tão grande valor, com um cristão honesto e convencido, cheio de bondade e de cultura, significa que as ideias por nós sustentadas não podem estar nem cientificamente erradas, nem serem moral e teologicamente condenáveis, como já se pretendeu. Os escritos das duas partes são contemporâneos (Teilhard 1881-1955)1 , e apareceram sem que tivesse havido conhecimento recíproco, em ambientes e países completamente diferentes. O mundo começa a compreendê-los só agora. Este fato parece mostrar-nos que o pensamento humano, na primeira metade de nosso século, quis exprimir os mesmos conceitos por estes dois caminhos, e em forma tão diversa, porque o mundo está chegando a uma nova maturação e deles tem necessidade. Tanto é assim que a religião mais conservadora prepara-se, com Teilhard, a examiná-los, pela necessidade de atualizar-se. Por isso, o seu caso é importante e desperta interesse; porque ser útil às religiões para alcançarem o nível das últimas descobertas científicas, perante as quais elas ficaram atrasadas.

Se as conclusões coincidem no conjunto, há, no entanto, uma diferença entre os dois casos, porque se desenvolveram em posições e com métodos diversos. Como religioso, Teilhard estava preso, a priori, às afirmações categóricas da sua fé, da qual não podia afastar-se, e a favor das quais, sem possibilidade de escolha, tinha de concluir seu trabalho a qualquer custo. Isto podia pesar sobre a interpretação dos fatos, tendendo a torcê-los num determinado sentido, em prejuízo da verdade objetiva. Ora, a investigação do cientista deve ser livre. A ela não se podem antepor e impor premissas axiomáticas. Mais do que à descoberta se tende à conciliação, a objetividade está comprometida pelo preconceito, a realidade deve ser vista através de uma particular forma mental pré-estabelecida. O recinto dentro do qual se permite ao pensamento mover-se, para investigar e concluir, é limitado por barreiras. Tudo isto paralisa a investigação, e não é científico. Em nosso caso, pelo contrário, tínhamos a liberdade de chegar a qualquer conclusão que os fatos nos indicassem e exigissem de uma forma positiva. A nossa finalidade era apenas descobrir a verdade e não concordar com uma religião. Foi assim possível chegar a conclusões mais vastas, aceitáveis mesmo fora das religiões, até pelo materialismo ateu, apesar de serem de natureza ideal e espiritual.

Nos dois casos, as condições de trabalho e os métodos foram diferentes. Normalmente, parte-se da constatação positiva dos fatos, alcançada com a observação e a experiência, construindo e verificando as hipóteses com as quais tratamos de explicá-los, para obter e fixar uma teoria provada por eles como verdadeira, ou seja, os princípios gerais segundo os quais os fenômenos observados funcionam. O pensador vai sempre subindo, do particular ao universal, eleva-se para conseguir uma visão de conjunto, mais vasta possível e assim mais apta a orientar-se-nos.

Em nosso caso o método seguido foi o oposto, pelo menos no princípio. Foi dedutivo e não indutivo. Procedeu-se do universal para o particular, em vez do particular para o universal, seguidos, assim desde o princípio, e não em busca de orientação. Não obstante, um segundo momento, os mesmos fatos, que para a ciência são um ponto de partida, nós, com o seu mesmo método de observação e experiência os examinamos, mas apenas para verificar se eles confirmam a visão geral e se ela corresponde a esses fatos. No primeiro caso a investigação é orientada só numa direção: fatos em direção à teoria. No segundo caso ela está orientada em duas direções: teoria em direção a fatos e vice-versa. Assim eles são utilizados para o controle da teoria, que não permanece assim como visão destituída de provas racionais, mas que, através dos fatos, demonstra-se ser verdadeira, respondendo à realidade.

Só com este segundo método, que chamamos intuição, se pode chegar a uma visão universal do todo, movendo-se com mentalidade positiva no terreno onde a ciência, com o seu método, não pode chegar; quer dizer: pode-se chegar ao terreno das maiores visões teológicas, obtidas com o único método possível, o da intuição. Trata-se de um voo. Mas sem voo não se alcançam os princípios universais da existência. Trata-se de um voo que em seguida se baixa à Terra, trazendo a fotografia da visão obtida, colocando-a em contato com os fatos, para verificar se é verdadeira. Procedemos assim e vimos que se confirmam, de modo que podemos dizer: corresponde à realidade. Não havia outra maneira para obter-se uma síntese universal, para consegui-la, a ciência está ainda muito longe.

Teilhard se orientou, já se começa a raciocinar com a ciência sobre problemas espirituais, e com as religiões sobre problemas científicos. Poder-se-ia chegar ao ponto de admitir que o produto da revelação, contido no Cristianismo, deveria ser levado seriamente em consideração pela ciência, como hipótese de trabalho, para aceitar que os fatos demonstram corresponder à realidade. Assim, uma revelação, positivamente controlada, poderia ser aceita pela ciência. A última confirmação de cada verdade pode ser confiada somente a uma verificação que demonstre que os fatos funcionam, realmente, como essa verdade afirma. Apenas deste modo, as intuições ou revelações podem dar garantias de segurança.

O mundo, apesar de tudo, caminha e ninguém tem o poder de pará-lo. A teoria da evolução foi combatida, até há poucos anos, nos ambientes religiosos. Hoje, para a quase totalidade dos biólogos, a evolução é um fato estabelecido, universalmente aceito, não mais uma hipótese. A maior parte dos cientistas já não põe em dúvida que biologicamente o homem provém do mundo animal superior. A evolução não é fenômeno que possa ser limitado à vida, porque, numa visão universal, tudo e todas as formas de existência devem estar nela incluído, se não quisermos ficar fechados num único setor do fenômeno evolutivo, limitados a um só trecho do seu desenvolvimento.

Teilhard nos apresenta uma evolução universal, dividida em três grandes etapas: matéria, vida, espírito, como também o Prof. Marco Todeschini, de Bérgamo (Itália) falou de Psicobiofísica. O universo astronômico, com a matéria, oferece-nos a base física, constituindo a geoesfera, coberta nos planetas de revestimento vivente, representando a bioesfera, cuja função, através da vida, consiste na revelação da consciência, que constitui a nooesfera, novo revestimento de pensamento e consciência. Trata-se, pois, de três fases sucessivas, cada uma das quais se eleva sobre as precedentes, depois de alcançada e vivida.

Esse conceito de um crescente psiquismo e progressiva cerebralização do ser, reproduz em palavras científicas, o conceito da progressiva espiritualização cristã, da ascese da alma em direção a Deus. Encontramos o fio condutor de toda a evolução: ela é um caminho que conduz ao espírito. A cosmogênese inicia o processo que continua porque se prolonga na biogênese, esta, por sua vez, desemboca na noogênese. Assim, finalmente, pode-se compreender o significado do processo evolutivo, alinhado ao longo deste seu eixo principal, que nos mostra o início, o desenvolvimento, a meta, desde o princípio até o fim. O ponto Ômega, de chegada, está hoje presente entre nós, em forma de ideal e está esperando a nossa evolução para realizar-se no futuro, O imenso trabalho que exige efetua-se em função desse futuro e representa o seu resultado, compensação de tantas das nossas fadigas, dores e perigos. A escalada evolutiva, descoberta e provada pela ciência, vai em direção a Deus; com outras palavras, as religiões nos ensinaram. Agora já não vivemos e não ascendemos como cegos. Devido a tudo isto, tendo a ciência conseguido conhecer o caminho percorrido que nos trouxe até aqui, podemos deduzir qual será o de amanhã e até onde nos levará. No terreno das nossas conquistas espirituais, à fé das religiões, sucede agora a certeza científica.

Voltando à comparação com a nossa obra e às suas concepções, constatamos que a cosmo-bionoogênese de Teilhard corresponde ao físio-dínamo-psiquismo de A Grande Síntese. Ele também tentou uma síntese ou fenomenologia do universo até no campo filosófico e teológico, ou, pelo menos, dos seus escritos transparece uma tentativa de orientação universal neste sentido. No entanto, concebeu os três momentos ao longo dos quais se desenvolve o eixo central da evolução, como matéria, vida e espírito; e não como: matéria, energia e espírito. Isto se explica, sobretudo, porque sendo geólogo e paleontólogo, não valorizou adequadamente, na economia do universo, a importância da física nuclear e do fenômeno da desintegração atômica, coisas que então acabavam de aparecer. Teilhard passou da matéria à vida sem ver o termo intermediário, a energia, sem a qual não se explica a origem da vida por evolução. Ele não explica a passagem da química inorgânica à química orgânica, que representam formas exteriores e não a substância do fenômeno. Escapou-lhe a continuidade do processo evolutivo: matéria, desintegração atômica (base da gênese dinâmica), eletricidade que é forma de energia mais evoluída, da qual se passa à substância da vida, esta não é dada pela forma orgânica, mas pelo psiquismo que a constrói e rege, psiquismo de origem elétrica, como o demonstra a sua base de apoio, nervosa e cerebral.

Quando se escreveu A Grande Síntese, por volta de 1933, com uma física nuclear ainda no início, tais afirmações podiam parecer fantasia. Hoje, experimentalmente, procura-se provar a verdade da teoria das origens elétricas da vida. Em 1952 o químico americano S. L. Miller, pensando que a vida pudesse estar relacionada com a descarga elétrica do raio, tratou de reproduzir em laboratório as condições em que deveria encontrar-se a Terra antes que aparecesse a vida. Infelizmente não pôde adiantar suficientemente as suas experiências. Ora, o bioquímico inglês Cyril Pannamperuma, através das suas experiências, concluiu que a matéria inorgânica, sob a ação das descargas e raios cósmicos, pode transformar-se em matéria orgânica. O raio daria a energia necessária.

Existem, pois, algumas diferenças com Teilhard. O ponto novo e central, isto é, que a vida serve para desenvolver e revelar o espírito, foi captado também por ele e admitido plenamente: não é pequena a revolução dentro do Cristianismo. Com essa teoria, podemos acrescentar e explicar a tremenda lei da luta pela vida, que leva ao devorar-se recíproco. Ela, se bem que feroz, justifica-se como meio para o desenvolvimento da inteligência, processo iniciado desde os primeiros planos da existência, obrigando ao esforço para a defesa, e se revelando em forma cada vez mais evidente num processo de espiritualização, para o ser que mais avança no caminho da evolução.

Há ainda uma outra diferença com Teilhard. Falando de “nova teologia”, não atinge as primeiras origens do universo, da criação e suas consequências, como o resultado final de imensa obra. Continua sem explicação: como das mãos de um Deus sapiente, bom e perfeito, tenha saído o mal, a dor e a morte, como a Sua unidade possa ter sido (por Ele ou por outros?) despedaçada no dualismo em que existimos. Teilhard, no seu volume: L’activation de l’ernegie, chega a definir o mal como um efeito secundário, subproduto inevitável, no caminho do universo em evolução. O problema do mal, diz ele, não se coloca já, porque é estatisticamente impossível que numa multidão de fenômenos, em vias de acomodação, procedendo por tentativas, como se desenvolve a evolução, não se verifiquem os casos incompletos, mal terminados, discordantes da ordem geral. Mas respondemos: o mal, a dor, a morte, não são incidentes menores da evolução aos quais não se dê importância, ao contrário, estão de tal modo profundamente radicados no fenômeno da existência, tentando comprometê-la a cada passo, que, para salvá-la desta ameaça, é necessária a presença contínua e atividade saneadora da potência criadora de Deus.

Teilhard, como sistema filosófico e teológico, portanto, deveria ser, pelo menos, completo, para esgotar o assunto. Mas ele era sobretudo cientista e, além disso, neste outro terreno, devido à sua posição eclesiástica, estava ligado a uma ordem estabelecida, da qual era difícil libertar-se e proibido de sair.

O significado e importância do pensamento de Teilhard está, sobretudo, na tentativa de aproximar o Cristianismo da ciência e assimilar suas conclusões, até ontem condenadíssimas. As religiões representam uma massa enorme, a maioria das quais com uma forma mental elementar, lentíssima a compreender e evoluir. Cada alteração de pensamento deve ser feita com extrema prudência para não perder o equilíbrio, ultrapassando os limites da compreensão. Mas a evolução está hoje apressando o passo. Temos aqui um sacerdote acusado de panteísmo, monismo, materialismo, evolucionismo, darwinismo, marxismo e até comunismo, em muitos aspectos comparável a Rosmini, por isso o ouvimos falar e escutamos com interesse.

Eis, em ambiente eclesiástico, uma tentativa, semelhante à nossa, de realizar uma síntese, na qual se unem, como elementos complementares, os dois termos até agora em antítese, ciência e fé, matéria e espírito. A nossa tentativa foi, não obstante, mais livre, como pesquisa da verdade, porque, como já assinalamos, não estávamos obrigados a concluir conforme premissas já estabelecidas. Todavia, não se pode deixar de reconhecer em Teilhard um grande mérito: o de haver tratado de santificar o pecado de ser evolucionista (de que tantas vezes foi acusado), agora transformado em santa evolução. Estranho modo de avançar nas religiões, apesar de afirmarem que permanecem imóveis! Ao divino impulso da evolução não há conservadorismo que possa resistir.

Não se pode dizer que Darwin esteja errado, agora que a evolução se tornou um fato inegável. Ele é aceitável, porque a evolução pode ser considerada como um fato interior e a sua substância como um desenvolvimento de consciência; porque a sua mutação morfológica se julga com o transformar-se de uma veste exterior que acompanha uma evolução mais profunda, representando a sua verdadeira substância, ascensão espiritual em direção a um estado de perfeitíssima consciência, destinada a juntar-se a Deus. Assim a vida se move e dinamiza, transformando-se num caminho em direção a uma meta; aparece a visão de um imenso destino que corresponde ao homem realizar no futuro.

A evolução se santifica, porque dela se vê também uma outra face, além da natural, a divina. O natural é aceito como elemento que conduz ao divino, o divino como levedura imanente e razão final do natural. O processo evolutivo é assim entendido em sentido lato, isto é, como um processo que faz avançar a matéria, transubstanciando-a espiritualmente, santificando-a, até no homem e acima dele, conquistando cada vez mais consciência; o alfa se reúne ao ômega, a criação volta ao criador. Desta maneira o crescimento geológico e biológico desemboca na noogênese, isto é, termina na vitória final do espírito puro – pensamento já expresso por Carrel quando fala de “emersão do espírito da matéria”.

O que consola é ver como um catolicismo que nos meus escritos colocou no “Index” estas ideias, hoje, se bem que por outras vias, prepara-se para aceitá-las. É constrangido pela lógica persuasiva dessas ideias e pela sua difusão nos ambientes culturais, para salvar-se do ateísmo em expansão, porque hoje se pensa mais; quem pensa, para aceitar, exige ser convencido, pois a verdade como é apresentada, não satisfaz mais a exigência da mente moderna. Não obstante, parte do “rebanho” é constituída por ignorantes e supersticiosos, outra parte de ateus que exteriormente são ótimos praticantes. É necessário ao catolicismo tornar-se mais convincente, para resolver o problema da sobrevivência de uma fé com ameaça de ser superada.

2) Os sofrimentos morais devido à dolorosa posição de incompreensão e condenação

Teilhard foi mandado para Nova York para lá morrer em condições de verdadeiro exílio, depois de uma vida cheia de amargura pela dificuldade cada vez maior de fazer conhecer os seus escritos. O seu problema é de consciência, é o de um cientista que, havendo descoberto outras verdades, procura levá-las para o terreno religioso a fim de iluminar os crentes, honestamente desejosos de conhecer algo mais além da fé e para ficarem convencidos.

Sem dúvida, vivemos num momento de transição evolutiva no qual a ciência avança vertiginosamente, com conhecimento, transpondo as portas do mistério. Muda a velha forma mental, o modo tradicional de apresentar as verdades de fé e as torna de difícil aceitação. Em Teilhard, o drama é duplo: o de ter de admitir, em consciência, mesmo não ortodoxas, as novas verdades que lhe apareceram e das quais estava convencido; e o de dever fazê-las conhecidas de todos os que tinham necessidades delas para sair da dúvida, da falta de fé, da insatisfação em que se encontra a mente moderna perante problemas insolúveis ou não resolvidos com clareza convincente. O drama foi devido à sufocação destes dois santos impulsos, sofrido em nome do bem, quando o bem é o progresso, é da lei de Deus.

Muitos não querem cansar-se, pensar, arriscar-se, preferindo permanecer seguros nas concepções tradicionais. Na própria preguiça, considera-se elemento perturbador quem parece rebelde à velha ordem porque tem sede de luz, quer conhecer e fazer conhecer, subir e fazer subir, arde de uma contínua tensão espiritual que incomoda os que dormem quietos numa aquiescência passiva, que chamam fé e ortodoxia. A muitos não interessa um maior conhecimento e a conquista da verdade, só lhe serve grupo humano de que cada um faz parte, o seu poder terreno, o seu engrandecimento pela conquista de prosélitos. Entretanto, na vida, tudo se baseia na luta, e leva cada grupo humano a tomar uma posição de defesa, de encastelar-se no sectarismo, intransigência, dogmatismo, qualidades necessárias para poderem resistir e sobreviver. O problema não é de religiões, mas de tipo biológico, porque esta é a lei da vida no seu atual grau de evolução.

Além e para acima do universo físico, Teilhard viu, movido mais pela razão do que pela fé, o universo psíquico, isto é, o universo em nova dimensão, a do espírito, terreno supersensível das religiões. O cosmo, para ele, é um organismo funcionando e em evolução, orientado no sentido de fazer surgir e desenvolver a inteligência. Com isto ele realiza uma espiritualização da matéria e da ciência, estendendo assim ao infinito o terreno das religiões e fazendo delas um problema de interesse universal. Estas, em vez de fecharem, neste caso, as portas como perante um inimigo, deveriam abri-las para conseguir a sua imensa expansão. O problema para o cientista crente não é tanto o de compreender tudo isto, para ele evidente, mas o de fazer os outros compreendê-lo, para o evoluído o problema maior foi e será sempre o de fazer avançar os involuídos.

Como Santo Agostinho resumiu Platão e S. Tomás resumiu Aristóteles, cada um deles, formulando o Cristianismo segundo a linguagem do seu tempo; assim se espera que as religiões admitam, igualmente em seu favor, Teilhard formulando as mesmas verdades segundo a linguagem racional-científica de nosso tempo. Ele sentia a necessidade de realizar um exame crítico do pensamento teológico para atualizar-se perante as conquistas da ciência que o deixavam ficar para trás, enquanto as religiões, encaminhando-se para Deus, deviam estar logicamente na vanguarda, em vez se serem as últimas a chegar, arrastadas, a seu pesar, pelo progresso do pensamento laico. Estando em contato com Deus, em Quem se inspiram, as religiões deveriam ser as primeiras a compreender a verdade e não as últimas. Quem sente, como Teilhard, tais exigências, sente também o dever de falar, oferecendo a sua contribuição. Se as religiões não entendem e resistem, ele a oferece à humanidade, esta tem necessidade para progredir, mesmo sem as religiões porque não querem interessar-se por tais problemas.

Teilhard costumava dizer: “se não escrevesse, sei que atraiçoaria”. Procuremos explicar o caso com duas imagens. Ofereceram a um homem uma semente preciosa para que plantasse no seu vaso, mas aquela semente não agradava àquele vaso porque era diversa das outras ali contidas, então, atirou-o num campo. No vaso, aquela semente poderia crescer defendida, mas em terreno limitado que a teria impedido de desenvolver-se. Teria permanecido como ideia fechada num ambiente restrito, sem poder expandir-se. No campo, pelo contrário, a semente pôde desenvolver-se livremente, até tornar-se uma grande árvore, dentro do vaso não podia acontecer. Foi portanto um bem para a semente ser lançada para fora. A ideia que ela representava só assim podia tornar-se e se tornou universal. Eis o que acontece quando um grupo humano de ideias restritas rejeita uma ideia fecunda, capaz de novos desenvolvimentos.

Outra imagem. Dois galos fechados numa gaiola estavam se bicando com o fim de se destruírem, um ao outro, cada um pensando: se venço, serei dono da capoeira. Não percebiam que os levavam ao mercado e que pouco depois acabariam os dois na panela. Assim se comporta as religiões rivais enquanto se avizinha o cilindro compressor do comunismo ateu, que se prepara para nivelá-las todas na mesma liquidação.

Que fazer? Este é o grau de evolução da humanidade atual, explicar não serve para nada. O nível de unificação, hoje alcançado, não vai mais além da família e de grupos particulares, sejam religiosos, econômicos ou políticos, sempre limitados em função de determinados interesses comuns. Grupos mais vastos, nacionais ou raciais, estão apenas em formação. Cada unificação, na Terra, não chega a alcançar senão o grau de partido ou castelo fechado, armado e em luta contra os vizinhos, em estado de guerra para não serem destruídos, cada um quereria fazer o outro para seu triunfo. Enquanto a humanidade não superar esta fase de sua evolução, deverá ficar submetida às leis de tal plano biológico inferior. O evoluído que trate de elevar-se a um nível superior, para funcionar com outras leis e segundo uma outra compreensão da vida. Abaixo de seu mundo será sempre um intruso, um solitário, um condenado, como foi Teilhard de Chardin.

Tal biótipo, devido à sua posição avançada encontra-se fora dos grupos, porque o seu objetivo não é a defesa de nenhum deles, dentro dos quais se encontraria encerrado, mas o progresso da humanidade. O indivíduo, então, perante o grupo, pode escolher dois caminhos, segundo a sua própria natureza: o da liberdade ou da obediência. No primeiro caso pode seguir o seu ideal segundo a sua consciência, entregar-se na busca da verdade, pensar e falar livremente, cumprir a sua missão; porém, encontra-se isolado. Não tendo declarado sua adesão e obediência a qualquer grupo, não depende de ninguém, nem tão pouco recebe a defesa de que necessita para viver trabalhando pelo seu ideal. Se ele não se une aos fins de algum outro, ninguém está disposto a fazer-lhe gratuitamente o trabalho de protegê-lo. São estas as leis da vida no plano humano, é necessário ter a honestidade de reconhecê-las e declará-las tais quais são. Se esse indivíduo não pagar com sua submissão o seu pão, qualquer atividade intelectual lhe será impedida pela necessidade de ter, ele próprio de lutar pela existência. No segundo caso não haverá esta necessidade e se gozará da vantagem de uma proteção que garante a vida e a tranquilidade para trabalhar. Mas, pensamento e atividade ficarão submetidos ao grupo ao qual se pertence. Deve-se, por isso, pensar e trabalhar no interesse do grupo que, por fornecer o pão, tem o direito de exigir obediência espiritual e física. Quem dá e protege o faz por interesse próprio e, portanto, tende a escravizar. Quem recebe deve dar em troca obediência. Isto porque ao trabalho espiritual é dado o valor zero no mercado das coisas humanas, de modo que a liberdade de pensamento e atividade correspondente é coisa permitida apenas a quem possua independência econômica.

Observando as coisas do lado oposto, vemos que o grupo não é culpado de tudo. Este, por sua vez, está empenhado na luta pela sua existência, por isso, deve fazer dos seus membros os seus soldados para manterem a sua unidade, defendendo-a dos assaltos exteriores. A ele não interessa a evolução, mas o mais urgente: a sobrevivência. A isto é constrangido pelas condições da vida terrestre. O evoluído, pelo contrário, antecipa a evolução e, em vez de conservar e consolidar as posições, tende a fazê-la avançar. Por esta oposição de intenções, é temido e combatido como um perigo. Não representa a conservação, mas a arriscada aventura do progresso, precisamente aquilo que os imaturos, acomodados na sua preguiça, não querem. O reformador, desejando implantar uma ordem nova, sacode as bases do castelo no qual o grupo se aninha, leva desordem às sua filas, fato do qual os inimigos estão prontos a se aproveitar. É necessário compreender que a vida é um estado de guerra pela sobrevivência. Urge, portanto, como primeira coisa, a defesa e só depois, como luxo de ricos, é admitida a evolução. Tais tentativas de avançar são deslocamentos perigosos, dissipação de forças em tentativas que debilitam o grupo, e são consideradas saltos na escuridão. Quem os provoca deve, portanto, ser eliminado.

Perante o idealista, atraído pelo céu, está a dura realidade da vida. Não é lícito esquecer, nem por um minuto, que se trata de uma luta desesperada. Para quem é especializado nessa luta e não sabe fazer outra coisa, poderá parecer que não é verdade. Mas para o idealista dotado de outras qualidades e dedicado a outros trabalhos, o problema é bem diverso. Quereria, desesperadamente, gritar: na Terra não há lugar para o ideal. A humanidade deveria ajudar estes indivíduos que trabalham pelo seu progresso. Mas com que a humanidade se importa? Ela tem outras coisas para fazer. Deve pensar em matar e destruir tudo com as guerras, em enriquecer, e gozar a vida.

O problema, que o caso de Teilhard nos fez recordar, é, principalmente de biologia e interessa à humanidade, porque constitui o problema de evolução da vida. O ideal, antecipação da evolução, realiza-se na Terra através de diversos tipos de instrumentos. Não nos interessa condenar ninguém, mas conhecer a técnica dessa realização. De um lado temos os mártires do ideal, do outro os administradores e usufrutuários do ideal. Os primeiros, pouquíssimos, trabalham pela conquista de posições mais avançadas; os segundos, a maioria, ocupam-se em conservá-las, utilizando-as para si. Neste processo que vai desde o sacrifício do mártir à mecânica burocrática e ao parasitismo, o impulso do iniciador se desfaz, cansa-se, esgota-se, afundando-se no lodo humano, túmulo do ideal.

A massa, que forma o corpo da humanidade, é constituída por homens do segundo tipo. Lutam contra os do primeiro para reduzi-los ao seu nível. O inovador, por sua própria natureza e pela posição na qual está o coloca, já fixou o seu destino de incompreensão, isolamento e perseguição. Ele terá de trabalhar em condições difíceis, porque não segue os interesses imediatos do grupo, aqueles que os componentes melhor veem e sentem, e não os interesses superiores e longínquos, que não veem e por isso não entendem. Para poder trabalhar em paz, deveria concordar com o grupo, mas teria que renunciar à sua iniciativa, à independência espiritual, ao seu ideal. O drama existe por que o mundo não quer ser incomodado e afasta os indivíduos que tratam de o fazer progredir. Este é o drama de Teilhard de Chardin. É fácil constatar, historicamente, que a humanidade, antes de santificar, dá-se o gosto de sacrificar; trabalho nada espiritual da parte de quem o executa, mas, indubitavelmente, faz parte da técnica de santificação. Isto nos é demonstrado, em nosso tempo, pelo caso do Padre Pio de Pietralcina (Itália).

O que deve fazer então o indivíduo? Como se deverá resolver o caso e como o resolveu Teilhard? Se o mundo não quer ser salvo, o indivíduo, no entanto, deverá salvar-se a si mesmo. Para compreendermos, devemos referir-nos à moral positiva contida nas leis da vida. Primeiro de tudo, por que razão a autoridade possui o direito de condenar? Tê-lo-ia, se correspondesse a um critério da justiça. Mas não corresponde quando a condenação do que hoje se considera prejudicial fica contraditada pela aprovação de amanhã, quando o mesmo fato acaba sendo considerado benéfico. Este dizer e desdizer, à mercê das circunstâncias e das mudanças de opinião dos indivíduos que julgam, tem muito de provisório, incoerente e irresponsável, e não está de acordo com um tribunal de justiça. Será honesto aprovar somente uma idéia nova quando todos a aceitaram e, para defendê-la, não representa mais nenhum risco ideológico? Assim se chega sem perigo algum de enganar-se, mas é deprimente ser o último a chegar, arrastado pelos outros, a quem se deixa toda a responsabilidade das novas afirmações, a fadiga da pesquisa, a incerteza da tentativa, exceto o apropriar-se dos resultados quando tudo leva ao êxito.

Quem é imparcial, porém, justifica tudo isto. A vida se baseia na luta; o grupo tem necessidade de defesa para sobreviver. Luta contra as coisas novas para a sua conservação, nelas vê uma tentativa de destruição do passado sobre o qual se baseia a sua existência. Trata-se, portanto, de um caso de legítima defesa contra um perigo, uma ameaça de morte. O direito de julgar e condenar se baseia em dois fatos: 1) a posição do grupo perante o indivíduo é a do mais forte. Na Terra, basta isto para conferir o direito de estabelecer qual é a lei e, portanto, o de julgar. O grupo é mais forte porque é maioria perante o indivíduo que está isolado e é minoria, como é mais débil e não tem direitos. 2) A necessidade em que o grupo se encontra de defender-se para sua conservação, e o sagrado direito de todos à vida.

E o indivíduo? Por que ele é minoria, por que não possui o poder que provém do número, porque está só? Para ele não haverá justiça, possibilidade de trabalhar, para realizar o ideal, e fazer progredir a vida? O drama consiste no seguinte conflito: de um lado tal indivíduo, por intuição e raciocínio, compreende a importância e a verdade das suas novas afirmações, sendo honesto, sente que deve comunicá-las aos seus próprios semelhantes, para seu futuro progresso, viu e não pôde fazer outra coisa senão enunciar a nova verdade; o lado oposto, a autoridade encarregada da defesa dos interesses do grupo, preocupada pela sua conservação e pela conservação do grupo, mais do que pela pesquisa da verdade. Quer ficar fiel às coisas velhas nas quais baseia a sua posição, rejeita e condena cada novidade.

Os fins são opostos. O do reformador é o progresso, o do grupo, autoridade que o dirige, é continuar a viver com a menor fadiga e risco possíveis. Em virtude disto, é lógico que a autoridade imponha silêncio ao inovador. Assim o proíbem de falar e publicar, impedem-no de pensar, compreender e defender a verdade da qual está convencido. Então, as duas partes em conflito transformam-se em dois inimigos em luta, cada um com boas razões para agir à sua maneira. O inovador atenta contra a tranquilidade e segurança do grupo, que se defende. A autoridade atenta contra a liberdade do espírito, quer dentro do grupo, para deter ou torcer o pensamento, paralisando as mais nobres funções do ser. Isto não é senão um aspecto da luta entre o evoluído, este quer fazer progredir o mundo, e o involuído que não se deixa redimir com esse progresso.

Isto é contra Deus e pode ser feito em nome de Deus. É sufocação espiritual, é negação de ascensão, mas a autoridade pode fazê-lo porque é o mais forte e assim tem razão contra o indivíduo que, isolado, é mais débil. Por isso, deve submeter-se, apesar de lutar por um fim muito mais alto do que aquele pelo qual luta a autoridade. Todavia trata-se de duas funções, ambas necessárias, uma perante os homens por necessidade terrena, outra perante Deus por necessidade do ideal. Disto se deduz: se a autoridade, do seu ponto de vista, tem o direito de condenar, o condenado, do seu ponto de vista, tem o dever moral, perante Deus e a sua consciência, de não renegar o seu pensamento e de continuar a sua obra. Foi exatamente assim que agiu Teilhard. Mais acima quisemos simplesmente encontrar e expor as razões que justificam a sua conduta, para nos convencermos de que se trata de um bom exemplo. Baseamo-nos na observação das leis biológicas do grupo, que são verdadeiras para cada grupo, também para o religioso.

Teilhard obedeceu à autoridade, sofrendo em silêncio, mas sem nunca renunciar às suas ideias. Às almas simples do povo ele não ofereceu o escândalo da desobediência, que estamos mais dispostos a imitar, exemplo que a tantos oferece a oportunidade de sentir-se autorizados a seguir o caminho do mal. Para o homem do ideal, lançado em direção ao futuro, isto é martírio, mas a ignorância humana assim o exige. Ele o sabe e aceita. A posteridade depois julgará com outros critérios, e a autoridade tem tempo de entender e inverter o seu juízo. Hoje se vai reabilitando para ir utilizando o que pode ser útil e aceitar o que já não se pode deixar de admitir. Assim, vai-se desenterrando o condenado ao silêncio, com cautelosas sondagens da opinião pública, para ver até onde será possível atualizar-se sem perigo.

Aqui estamos só como observadores imparciais do fenômeno, para explicar-nos o seu funcionamento. Havia também um outro fato em Teilhard. Ele comia o pão da Ordem religiosa de que fazia parte e à qual estava moralmente comprometido de ficar fiel. Sendo honesto, sentia o dever de não se rebelar contra a família a que passara a pertencer, que o havia criado e agora o protegia no seu seio. Obrigações, práticas de dar e haver, pequena contabilidade terrena que, no entanto, os honestos levam em conta, porque receber sem dar em troca é explorar. Mas, nem todos têm um sentido tão perfeito de honestidade. Outros, feridos no orgulho, revoltam-se abertamente para satisfazer a própria reação pessoal. Passam, então, para outro grupo; conservando o mesmo espírito sectário, continuam lutando contra o grupo que primeiramente os hospedara. Trata-se de um homem de partido que, esteja de um lado ou de outro, permanece sempre igual, sem sair da sua velha forma mental.

Que aconteceu então no espírito do inovador honesto, que não obstante respeita a autoridade? Quais são os seus direitos, as suas compensações? Para ele existe o caminho da paciência, do trabalho, do martírio, caminho que é também o da sua santificação. Observemo-lo. Ele pode servir de exemplo e guia a quem se encontre em semelhantes situações.

Lemos no volume: O Jesuíta Proibido, de G. Vigorelli: “Não está ainda escrita a história secreta da “redução ao silêncio” de Teilhard de Chardin. Dos dois interlocutores um está sempre ausente; e, mesmo quando se faz presente, castiga, mas não entra no diálogo; a mão, a cada vez que castiga, se esconde (....). Drama sumamente cruel que durou mais de quarenta anos, mais ardente porque ficou coberto pelas cinzas”.

O seu confrade, Padre Pierre Leroy, no seu livro Pierre Teilhard de Chardin tel que je l’ai connu, testemunha: “Incompreendido e condenado ao silêncio, sofre de angústias, que algumas vezes o aniquilam (...). Com paciência suportava uma prova que esmagaria os corações mais fortes. Quantas vezes, na intimidade dos nossos encontros, tínhamos visto abatido (...). Sofria de crises de angústia, que mais tarde deveriam tornar-se mais agudas (...). Tinha crises de choro que o destroçavam.”

Continua Vigorelli: “(...) além do silencio, foi-lhe também imposto o exílio (...). Morria de dor por aquele exílio prolongado. Suplicou, muitas vezes, aos superiores um regresso, ainda que breve, à Europa, à França (...), as perseguições não cessavam (...). Não lhe era proibida qualquer tomada de posição teológica e filosófica, mas se chegou, depois do seu último afastamento de Paris, a negar-lhe também o livre exercício da sua atividade científica (...). Objetavam-lhe: “Porque levanta todos estes problemas e não se contenta a ensinar o catecismo? (...). Mas aqueles problemas não era Teilhard que os levantava, eram os seus contemporâneos a propô-los, e não podia iludi-los”.

“Morreu em 1955 em Nova York, seu último exílio depois de outros, longuíssimos (...). O seu enterro não foi acompanhado por mais de dez pessoas (...), ali ficou, uma vez mais no exílio e não foi ainda permitido trazer para sua pátria os seus despojos mortais (...).”

“Ele obedeceu e não se revoltou nunca; mas, ao mesmo tempo, Teilhard tampouco renunciou à sua verdade, negando-se a considerá-la uma heresia, porque a ciência a legitimava e demonstrava (...), obedecia, baixava a cabeça (...), mas não aceitou, na menor coisa, renegar as suas ideias ou sequer suavizá-las. A solução que Teilhard deu à crise foi: nenhuma ruptura; nem intolerância, nem desobediência, velhos recursos, táticas lesivas(...). O importante era permanecer fiel às suas próprias ideias (...). As ideias devem esperar o seu momento apropriado. A paciência, se é secundada pela intrepidez, pode valer mais que a revolta. Teilhard não se revoltou, mas nunca se deteve. Não abdicou. Rejeitou qualquer compromisso (...). Teilhard não foi nunca contra a Igreja: quem sabe se neste momento é a Igreja que não pode mais ir contra ele (...). “Não posso mudar”, dizia, e não mudou nunca: a esperança nunca o abandonou, nem a certeza, que um dia os seus adversários mudariam; um pouco de tudo isto já está acontecendo”.

Vimos, assim, com respeito a Teilhard, a sua vida de condenado, a sua atitude perante a autoridade. Penetremos agora no seu espírito para compreender “os segredos mais profundos que se debatiam somente na sua própria consciência, num diálogo direto com Deus”. Em Teilhard existe uma “exaltação religiosa, até mesmo mística, que chega à exuberância, investe e transcende a sua obra, à qual ficou ligado toda a vida, se não lhe serviu de salvo conduto para a Igreja, seguramente o foi perante Deus”.

Que nos ensinam estes fatos relatados aqui? Diante do mundo: incompreensão, condenação, martírio. Diante das ideias, próprias, das quais em consciência se está convencido: fidelidade absoluta. Obediência, submissão, humildade, tudo de exterior e formal que o mundo exige; mas inviolável liberdade do espírito, tudo o que de interior e substancial o mundo não vê. Perante Deus: comunhão, exaltação, segurança. Qual é, portanto, o balanço de quem se encontra como Teilhard? Não passivo, está o ataque do mundo (o silêncio imposto, o exílio), a suportar com paciência, mas fazendo dele um meio de santificação. Não existe nada tão grande como a inocência perseguida, que sofre para respeitar um ideal de ordem e disciplina. Este castigo tem valor e dá o seu fruto. É lógico, culpa e dano perante o mundo se transforme em virtude e recompensa perante Deus. Existe assim também o ativo dado pela própria santificação, pela afirmação da inviolabilidade da liberdade do espírito, e sobretudo por sentir-se puro perante Deus e pela satisfação de gozar no íntimo da própria consciência, do Seu consentimento, vizinhança e ajuda. É, segundo a sua natureza, revelando-se, que o indivíduo escolhe colocar-se do lado do mundo ou do lado de Deus. Estes são problemas que não interessam à maioria, que não está nestas condições, mas que são graves e vivíssimos para o homem espiritual que nelas se encontra.

O que queremos conhecer bem é o ativo que leva tal indivíduo a viver, com que forças pode sustentar-se para resistir àquela sufocação de alma. Se o dever da obediência procura matá-lo nas suas mais altas inspirações, deve aceitar a sua morte espiritual, ou seja, consentir no seu próprio suicídio? Não. Ele tem dois imensos recursos para sobreviver, não obstante a renúncia espiritual e obediência que se lhe impõem: tem para si a inviolabilidade do espírito, no qual nenhuma autoridade humana pode penetrar e a sua consciência tranquila perante Deus, convencida da própria retidão e inocência. Deste modo, traz consigo a sensação da presença de Deus e a segurança do Seu consentimento e ajuda. Sabe que existe um outro tribunal superior a todos os do mundo, uma justiça que não erra. Nesta confia e a ela se entrega. Vê-se possuindo uma riqueza de potência, de segurança e de paz que ninguém lhe pode tirar. Refugia-se em Deus e nenhum tribunal humano poderá alcançá-lo. Esta é a força do mártir: a derrota terrena, diante de Deus, é triunfo.

Há ainda mais. As leis da vida garantem, pois, o último triunfo do ideal, por ele, o homem espiritual se sacrifica. Diz o citado volume: “Depois de cinquenta anos de proibições e de admoestações, as ideias revolucionárias de Teilhard abrem caminho: O Concílio Ecumênico, que está em curso, no fundo e por necessidade, está entrando no sulco salutar daquelas ideias; e a Igreja terá tudo a ganhar e nada a perder, se se decidir a absolver Teilhard, depois de ser ignorado, contrariado, condenado (...). É um ato de liquidação a era constantiniana e do espírito sectário da Contra-Reforma (...). O concílio parece disposto a decifrar a ansiedade espiritual do homem de hoje (...). É um programa indubitavelmente teilhardiano”.

Quem conhece as leis da vida sabe que o fenômeno deve realizar-se deste modo, esta é a linha natural do seu desenvolvimento. Quando se submete a estas leis, e espontaneamente aceita tudo isto por convicção. A evolução deve ser o resultado de um esforço; a sua realização, o prêmio de uma fadiga. Esta pertence, por direito, ao mais evoluído que avança à frente dos outros, representando, por sua vez, a resistência a vencer, o obstáculo a superar, as trevas a iluminar. O mundo está embaixo, na retaguarda da evolução; em direção ao alto se lança o evoluído, para a frente, avançando em direção a Deus distanciando-se do mundo. Não está do lado do mundo, mas do lado de Deus, que o espera, convida-o, impulsiona-o para diante, atraindo-o e ajudando-o. A grande força, a potente indenização do condenado, mesmo que o tenha sido em nome de Deus, é estar ao lado da verdade, do justo, de Deus; é encontrar-se ao lado da Sua Lei, esta determina que no fim o bem vence o mal, a afirmação domine a negação. A força de quem sofre lutando pela verdade é está: o indivíduo trabalha para avançar na direção que a evolução determina, sendo arrastado, em cheio, pela sua corrente. O idealista, hoje, condenado, sabe que a ele pertence o futuro. Leva consigo o impulso irresistível da divina vontade da evolução que exige a ascese. É, precisamente, através dele que tal impulso se realiza, conduzindo tudo e todos onde quer, isto é, em direção a Deus. Que poder têm os homens contra quem tem a seu favor as leis da vida e a ajuda de Deus? Quem alcançou o plano do espírito vive por cima do mundo. Nenhuma pressão ou submissão pode agora alterar tal estado de fato. Quem viveu tais experiências pode compreender o que estes conceitos significam.

Observando as coisas de outro ponto de vista, poder-se-ia perguntar: têm os tribunais humanos o direito de infligir dores a um inocente? Mesmo segundo as leis do mundo, não é abuso de autoridade? Isto se justifica pelo fato de que a sua função é a de defender o grupo e, na desesperada luta pela vida, não há lugar para a debilidade. O grupo reclama o seu direito à legítima defesa da sua existência e, portanto, é justo esmagar qualquer um que atente contra ele. As forças em defesa do inovador condenado não devem vir da Terra. Esta representa a parte inferior da existência, a parte negativa, adequada à resistência. Aquele indivíduo pertence, pelo contrário, ao céu, que representa a parte superior, mais vizinha de Deus, parte positiva e dinamizante. Neste caso, verifica-se o mesmo antagonismo que, imediatamente, estabeleceu-se entre Cristo, o maior dos inovadores em favor da evolução humana, e o mundo disposto a ser Seu inimigo, à redenção respondeu com a crucificação.

Para quem compreendeu a estrutura do fenômeno, tudo está, portanto, no seu lugar; cada um atua e com isso revela a sua natureza. Devido ao estado involuído da humanidade, não é possível obter-se coisa melhor. Certamente, amanhã, graças ao trabalho de mártires inovadores, o mundo será diferente. Isto lhes corresponde o trabalho de transformar a humanidade com o seu próprio sacrifício. O caso de Cristo nos mostra que como, também com Ele, em idênticas condições, verificou-se o mesmo fenômeno: compreender a classe sacerdotal no momento em que se propõem as inovações. Mas, que mais pode pedir o condenado senão estar do lado de Cristo, ser tratado como Ele o foi, sofrer como Ele sofreu pelo progresso, que é redenção, junto a Ele, irmanado na mesma dor pela mesma causa? Que honra, que alegria, que amor existe maior do que este? Que se pode pedir mais?

Cada um reage segundo a sua natureza, demonstrando-a. O primitivo rebela-se contra a autoridade, atua imediatamente segundo a lei da luta, a lei do seu plano, manifestando a sua involução. O evoluído, ao contrário, pensa no “perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”, e obedece. Mas pode refugiar-se no céu, onde a autoridade não o alcança, perante o tribunal de Deus, onde os homens não são admitidos a julgar.

Uma humanidade, mais inteligente e civilizada, um dia, saberá evitar os conflitos dolorosos de consciência, saberá defender a fé, mais por convicção do que por obrigação, saberá abrir os braços, compreendendo os novos problemas e necessidades, a quem tem sede de verdade e honestamente a busca, em vez de afastar a quem pede mais luz. Tais casos, como o de Teilhard, não deviam mais poder surgir. Se eles se verificam, se o investigador honesto tem de refugiar-se em Deus, apelando a Ele, é porque há alguma coisa que não funciona no sistema atual. Por que sepultar, enterrar no silêncio, oprimindo as consciências, certos problemas novos que o mundo tem necessidade de resolver para poder continuar a crer como deseja, e não pode porque não chega a ver claro, como hoje a mente mais madura o exige? Não se pode impedir de pensar a quem tem cabeça, que não pode ser cortada somente porque a quem não a tem não lhe apetece pensar. Quando pensar se torna uma coisa proibida, pensa-se então por conta própria, fora das religiões, que ficam a um canto como coisa inútil. Para elas isto significa falência e morte. O investigador honesto, por sua vez, está obrigado por consciência, para resolver os problemas que mais o preocupam, a discordar de quem entende a fé como inércia espiritual e a construir a sua religião. É condenado por delito de preguiça, no entanto, representa a levedura do espírito e é mais crente e religioso do que os ortodoxos. Obtém-se, com isto, um rebanho de adormecidos, agradáveis porque obedientes, mas passivos e inúteis perante Deus.

Um espírito antievolucionista pode representar as forças negativas, cuja função é de deter a ascensão em direção a Deus. Ficar quieto, abaixando todos ao nível dos mais inertes, pode constituir um delito contra a evolução espiritual, que devia ser a maior finalidade das religiões. É certo que se deve controlar e disciplinar para não gerar anarquia, mas, paralisar, mesmo em nome de Deus, é contra o próprio Deus. A função das religiões termina e elas atraiçoam o seu fim quando o indivíduo, para encontrar luz e compreensão, deve dirigir-se a outro lugar. A autoridade é espiritualmente derrotada quando surge um conflito entre ela e a consciência, e o honesto se encontra convencido do seu dever de obedecer a Deus em vez de obedecer à autoridade humana. Não é lícito violar o sagrado direito de pensar e de procurar a verdade. Pode até mesmo acontecer: quem formalmente esteja fora de uma religião seja mais religioso e esteja mais próximo de Deus do que quem esteja dentro, em plena ortodoxia.

As reabilitações póstumas não podem sanear a condenação. Como são tardias, não servem para a obra do missionário, mas somente aos outros para seus fins. Aquele tem necessidade do consenso de seus contemporâneos, de uma ajuda em vida, de uma compreensão imediata do seu próprio tempo, que o mantenha na função de produzir. Acercar-se do próximo com compreensão pode ser uma forma de caridade cristã, de amor evangélico, sendo anticristão o contrário.

Nas religiões deveria existir uma seção de livres investigadores, uma espécie de laboratório para as experiências do espírito, um instituto de investigação religiosa. Diz Teilhard: “Estou preocupado com o fato de que à Igreja falta um órgão de investigação (diferente de tudo o que existe e se desenvolve à sua volta) (...). Esta investigação é uma questão de vida ou de morte (...). Fato que pode surpreender os teólogos na sua vida tranquila (...). Há, hoje, problemas que queimam, que ninguém coloca claramente, nem defronta senão nalguma conversa privada. Existem ideias, ainda em bruto e parcialmente equivocadas, mas libertadoras, que germinam e morrem no espírito de indivíduos isolados. Necessitaria, penso, de um órgão para recolher, centralizar, purificar tudo isto; quase diria um “laboratório” dedicado a estas experiências (...). Isto para prevenir um cisma entre a vida humana natural e a Igreja.”

De fato, o cisma atual é o mais perigoso, porque não se apresenta na forma já conhecida, ou seja, com o surgir de uma nova religião inimiga que se pode combater como no passado, mas aparece com a morte do espírito e do sistema de todas as religiões, com o seu apagar-se no materialismo e na ciência, que simplesmente não as tomam mais em consideração. Assim, no meio da diferença geral, o pensamento dirigente não se interessa e as abandona.

O objetivo da intuição, antes mencionada, deveria ser, ao lado do reconhecimento da necessidade de conservar, também o da necessidade de progredir. Como na ciência, também nas religiões, a investigação deveria ser livre, não fechada e condenada. As várias doutrinas deveriam ter, como tudo o que existe, também uma porta aberta para o caminho da evolução. Seria necessário superar aquela psicologia morta, pela qual comodamente se afirma que todos os casos possíveis já foram vividos, que por experiência dos séculos a todas as objeções já foi dada resposta, de modo que tudo já está previsto e resolvido. O fato é que, enquanto as religiões procuram detê-lo, o pensamento humano caminha e, porque estas o querem deter, ele se pôs a caminhar por sua conta, fora das religiões que são deixadas para trás e esquecidas, com todo o devido respeito, no meio das coisas velhas que não servem mais e se põe no museu. Assim nasceu a indiferença, o materialismo, o ateísmo e outros males semelhantes. Os micróbios patogênicos estão por toda a parte; mas o seu ataque vitorioso depende da nossa predisposição e debilidade orgânica. Ninguém pode fugir às leis da vida, que está pronta a liquidar tudo e não serve mais para a função que cada um deve cumprir.

3) A paixão por Cristo, racionalmente concebido como ponto de convergência da evolução da vida.

Também em Teilhard encontramos uma concepção mais ampla de Cristo. Aparece-nos assim a visão de um Cristo universal, quase diria super-religioso, num sentido que está por cima do sectarismo separatista no qual tendem a dividir-se as religiões; um Cristo que, em vez de isolar-se numa delas em oposição às demais, tende a uni-las todas, sendo concebido com a forma mental da imparcialidade científica, em termos vastíssimos em relação com as leis biológicas, como ponto de convergência e última meta divina da evolução da vida.

Trata-se de um Cristo muito maior, eixo espiritual do mundo, alcançável tanto pelas vias do misticismo, quanto pelas vias da ciência, ponto Ômega desta como o é da fé, significado e conclusão da história, princípio, guia e cume da evolução, só hoje concebível desta maneira devido à atual maturação do pensamento humano. Um Cristo total, não só religioso, fechado no passado, mas também progressista, atual, social, um Cristo que aceita a luz que vem do pensamento científico e reconhece o caráter sagrado da investigação, nobilita-a e santifica, porque é santo todo o conhecimento, como função e produto do espírito; um Cristo que não está contra mas com a ciência, com a ânsia de saber, com o espírito da indagação, com a paixão de evoluir; um Cristo que agora se desenvolva em dimensões vastíssimas, dentro da mente humana, hoje apta a concebê-Lo com outras medidas, mais racional, presente, dinâmico, universal, unitário, síntese suprema de fé, de pensamento, de vida.

É necessário assim refazer o nosso conceito do Cristo, que permaneceu entre nós como imagem feita de matéria, o Cristo crucificado e morto, para recordar-nos, para vergonha nossa, daquilo que fizemos Dele. É necessário fazê-Lo sair dos esconderijos onde parece ter-se refugiado, escapando do mundo, e onde jaz coberto de pó, atrás dos utensílios do culto, a fim de que ressuscite vivo entre nós; um Cristo que está conosco em todas as horas, com Quem convivemos dia e noite, assiste a todos os nossos pensamentos e obras, toma parte em nossas alegrias e dores, não um Cristo com o qual nos encontramos em horas fixas, ou quando decidimos penetrar no recinto dos templos, onde o isolamos fora de nosso mundo. Um Cristo imanente, próximo, que conosco enfrenta os nossos problemas e nos ajuda a resolvê-los, em vez de desaparecer transcendente nos céus, inalcançável na sua glória; um Cristo orientador da dinâmica da vida, operando junto de nós no imenso esforço criador da era moderna, potencializando-o com os Seus imensos valores espirituais. Um Cristo não mais monopolizado nas mãos dos seus ministros e fechado no âmbito de uma só religião; um Cristo a ser venerado, sem ter que litiga-Lo com as outras religiões, amar sob outras formas ainda que não ortodoxas; um Cristo que se avizinha dos espíritos com amor e não apenas para julgar e punir; que não os afasta com os raios da vingança; um Cristo feito de concórdia para fundir e não de rivalidade para dividir, é seguido porque convence e convence porque fala com compreensão à inteligência, em vez de apenas condenar como perseguidor de heréticos. Um Cristo refúgio de pureza, fora de toda a sujidade humana, mesmo daquela escondida sob as aparências de religião.

Eis algumas palavras de Teilhard de Chardin na sua Messe sur le Monde: “Já que, Senhor, aqui nas estepes da Ásia, eu não tenho nem pão, nem vinho, nem altar, elevar-me-ei por sobre os símbolos, até à pura Majestade do Real, e vos oferecerei, eu, vosso sacerdote, em cima do altar da terra inteira, o trabalho e a dor do  mundo (...). O meu cálice e a minha patena são a profundidade de uma alma amplamente aberta a todos os esforços que se estão elevando de todos os pontos do globo a fim de convergirem no espírito (...). A oferta que Vós, Senhor, verdadeiramente esperais, não é outra senão o engrandecimento do mundo agitado pelo transformismo universal”.

Cristo pertence a toda a humanidade, e nenhuma religião pode possuí-Lo com exclusividade. Não se pode isolar num templo particular, num grupo humano, porque Ele está no centro da biologia universal do espírito. É este Cristo de dimensões cósmicas, superior a todas as formas e dimensões humanas, situado no centro de uma super-religião de substância, no vértice da evolução da vida no planeta, nos antípodas da nossa baixa existência terrena, sempre presente para sanar com o Seu divino esplendor a nossa cegueira, e com a Sua potência e bondade as misérias de nosso pobre mundo: este é o Cristo que, junto a Teilhard, eu venero e amo.

II – Ciência e Religião

Voltamos a falar, para compreendê-lo melhor, do pensamento de Teilhard de Chardin. Observando os fenômenos, sobretudo no seu íntimo significado, ele chegou a uma visão do plano geral da existência, no qual domina o princípio da evolução, que faz do ser um transformismo em marcha. O conhecimento do passado hominal fez entrever a Teilhard as perspectivas em direção às quais se encaminha aquela marcha e, portanto, aquilo que o homem poderá no futuro realizar na Terra. Então Teilhard se sentiu iluminado por uma súbita luz orientadora. Se tudo caminha, é porque tudo se dirige a uma meta que com este movimento se deverá alcançar; tudo tende a completar-se e aperfeiçoar-se, porque sobe de encontro a um centro, em direção ao qual tudo quanto existe se eleva à medida que vai evoluindo. Não se trata de um centro físico do universo, mas de um centro-síntese, no qual a pulverização fenomênica se coordena, se organiza, chegando assim, da dispersão periférica a um estado unitário, orientado em direção àquele centro. A evolução se nos revela como fenômeno múltiplo, se síntese, que realiza muitas coisas: não apenas a ascese, o aperfeiçoamento, o melhoramento; não só alcança a complexidade e a organicidade, mas também a unificação. O ponto de chegada é o todo-uno.

Quando a consciência de uma verdade tão vasta e poderosa lampejou no seu espírito, Teilhard não pôde deixar de gritar: Eureka! Tinha-o conduzido até ali a ciência com o seu passo seguro, apoiada nos fatos. Não podia, portanto, duvidar. Tudo isto lhe diziam os fatos com mil vozes concordantes e convergentes. Então ele, tendo-se dado conta que este era o significado da existência, não pôde deixar de ver as consequências desta sua descoberta. Eis como acabou por dedicar-se, além da ciência, à filosofia, à metafísica e à teologia.

Ora, todo grupo humano de qualquer espécie, toda escola filosófica, religiosa, teológica etc. têm o seu patrimônio de ideias e terminologia própria, a sua linguagem particular, a sua forma mental, que enquadram o pensamento, cristalizando-o; e dentro dela pretendem encerrar e limitar também o pensamento de quem ataque de frente os problemas por eles tratados. Se depois, aquele pensamento chegou a uma fase avançada de velhice e de consequente cristalização, e fixou-se numa codificação de normas mecânicas para uso de uma determinada organização humana, tudo se estanca e, naquele campo, a evolução para. Então o novo é simplesmente julgado errado e portanto condenado. As verdades tratadas por aquele grupo e escola tornam-se propriedade sua, e portanto reservadas e intocáveis. De resto, isto é justo porque foram construídas por eles, que assim têm o direito de possuí-las em exclusividade e de defendê-las como coisa própria. O erro está em querer dar à posse da verdade um sentido diverso e maior do que de legítima propriedade reservada para uso e vantagem de quem a possua. O erro está no fato de que os grupos e escolas pretendem dar um valor universal, eterno, absoluto, às suas verdades particulares que, como tudo na Terra, não podem ser mais do que relativas e progressivas no tempo.

O que aconteceu então a Teilhard? Aconteceu o que acontece a todos inovadores que viram mais longe do que os outros aos quais quiseram fazer ver mais longe também, para além dos limites das verdades já vistas e codificadas por eles. É neste ponto que aparecem as condenações. Os precursores, desde Cristo a Galileu etc., são condenados como heréticos. Estamos observando imparcialmente um fenômeno que se apresenta o mesmo em todos os tempos e lugares, religiões e partidos, porque se trata de um fenômeno biológico que se verifica segundo uma lei da vida, toda vez que um indivíduo mais progressista queira arrastar os mais atrasados para frente no caminho da evolução.

Desse modo, Teilhard, uma vez iluminado pela visão de uma verdade muito mais vasta e convincente, se sentiu impulsionado a gritá-la ao mundo. Foram novos conceitos, com nova linguagem, porém dissonantes para os ouvidos habituados à velha terminologia tradicional, estranhos e inaceitáveis para a forma mental acostumada aos destilados processos lógicos da filosofia e teologia, um terremoto numa cidade adormecida, uma tempestade de absurdos sobre um lago tranquilo ou sobre um jardim bem tratado. Então os conservadores se precipitam em levantar barreiras de defesa, para calar aquele escandaloso “eureka” que pretendia tudo resolver, fazendo abandonar a velha estrada sobre a qual caminhava tão bem a sua antiga sapiência.

Este foi o martírio de Teilhard, como o é de todos os inovadores: tropeçar nestes obstáculos colocados no meio do caminho para que a evolução se detenha. Tropeçar, cair, lacerar-se a carne, porque quem é velho teve tempo de tornar-se poderoso na Terra, e tem bem agarrado nas mãos o fruto do trabalho executado no passado, a propriedade adquirida de conceitos, doutrinas, organizações, instituições, leis, autoridades etc., e quem é velho, está por lei biológica, pronto a usar estas suas forças como arma para defender a sua sobrevivência.

Mas a visão de Teilhard é esplêndida. Ele a vê e fica por ela fascinado. Os outros não a veem e a negam. Mas porque as autoridades condenam com tanta pressa? Talvez porque tenham medo do novo? Certamente que, dada a estrutura das leis da vida, o novo deve representar para o velho uma ameaça contínua porque tende a superá-lo para substituí-lo.  É a vida que avança. Assim se explica esta reação. Mas Teilhard viu e não pôde calar. Discute-se nos ambientes tradicionais se ele podia ou queria fazer teologia ou filosofia. Ora, se é justo que a solução de determinados problemas constitua uma propriedade reservada porque é o produto de certos ambientes particulares, nem por isso se pode declarar que tudo seja reservado como propriedade com o propósito de excluir os outros de um dado terreno fenomênico, de um dado tipo de investigações e conclusões, de um setor do conhecimento. Como é possível pôr limites ao pensamento humano, com que direito proibir ao cientista de ultrapassar os resultados imediatos, como impedi-lo de olhar mais longe do que eles e assim sair do terreno da ciência para expandir-se no da filosofia, metafísica e teologia? É impossível seccionar o conhecimento em compartimentos estanques, isolar um problema dos outros, deter-se no exame de um fenômeno e de uma lei sem ver em cada campo todas as consequências. Isso é impossível num universo unitário, regido por um princípio central único, mesmo que depois deste se vá tudo subdividindo em infinitas ramificações.

Como pretender de quem tenha visto o novo não seja imediatamente levado a colocá-lo na vida, no lugar do velho? Impedi-lo é atentar contra o progresso, é delito de lesa-evolução. Quem viu é levado a transformar-se em reformador, para fazer progredir o mundo. Eis uma razão mais para reforçar a condenação por parte dos poderes constituídos.

O problema é este: trata-se de indivíduos mais evoluídos, e por isso mesmo é difícil que possam ser subitamente compreendidos e aceitos. Eles, porque mais avançados, veem que muitas posições estão ultrapassadas e que necessitam renovar-se. Os outros, menos evoluídos, não se dão conta de nada. Para eles o mundo encontra-se bem, e deve permanecer como está. Ressurge sempre o princípio biológico da luta. Os jovens rebentos devem abrir caminho à força entre as ruínas das velhas árvores decadentes, que não cedem o posto à nova vida enquanto têm forças para resistir.

Como pode um cientista que viu, não fazer da sua ciência também uma filosofia e teologia, invadindo mesmo que não o queira, estes terrenos reservados? Ele sente que sua filosofia e teologia são as do futuro, aquelas que o mundo procura, porque quer viver e resolver cada vez melhor os seus problemas. Instintivamente sente que se renunciasse a ocupar-se deles, adormecendo sem lutar para avançar, ficaria abandonado, à margem do caminho da vida.

Quando num terreno encontramos escrito: “propriedade reservada”, “proibido o ingresso a estranhos”, seguimos para outro lado. E a bela propriedade fica intacta e deserta. Mas ela se torna vazia e morta, porque então a vida que ninguém pode deter, vai desenvolver-se noutro lugar, porque não é habitável uma casa que foi reduzida a um museu de antiguidades. Foi para evitar tudo isto, se bem que, por obediência, lhe era proibido, que Teilhard quis entrar como cientista, com conceitos novos e vivificantes, nos terrenos reservados a filosofia e a teologia.

A teoria evolucionista dá-nos um conceito novo do universo e da existência. O todo não foi feito por Deus de uma só vez para sempre, de improviso, num dado momento, mas antes se está continuamente formando. O todo é resultado de uma criação contínua, obra de um Deus sempre ativo e presente, não de um Deus que uma vez o construiu, se afastou da criação para ficar inerte a contemplá-la do alto da Sua glória, separado do fruto do Seu trabalho, que continua estaticamente a existir por si mesmo, agora independente da obra do Seu criador. Para imaginar a atividade de Deus, o homem não tinha na sua mente outro modelo senão aquele que ele podia ver na Terra, quando alguém constrói qualquer coisa; e o homem inconscientemente aplicou a Deus esta sua concepção antropomórfica, da qual de resto não lhe era possível sair, porque não lhe era possível superar os limites dentro dos quais estava encerrado o seu concebível, fixados pela sua experiência.

Hoje a concepção antropomórfica e estática da Bíblia tende-se a substituir outra dinâmica, mais verossímil, que melhor convence a mente moderna, mais madura. É certamente laboriosa mas fatal a superação dos velhos conceitos tradicionais. O homem não é já considerado segundo uma concepção egocêntrica, que o torna único objetivo da criação, situado num planeta que é o centro do universo. O orgulho pode ser considerado culpa quando há um rival que por ele se sente lesado, e por isso o condena. Mas quando o orgulho é de todos, torna-se uma auto exaltação coletiva; ao faltar a reação contrária ele é aceito por consenso universal e, sendo vantagem para todos, torna-se verdade. Hoje vemos o homem como elemento de uma imensa unidade orgânica. Ele não nasceu de uma vez, feito num só momento, é antes o resultado de um longo caminho percorrido, de formas biológicas inferiores superadas, que o precedem e que encontram nele a razão da sua existência, a continuação do seu caminho, a coroação da sua obra evolutiva.

Concepção nova, tanto mais vasta e dinâmica e que nos abre a mente para horizontes imensos. Ora, já que a ciência nos mostrou, saibamos que existe um caminho evolutivo, e que grandiosa visão se abre diante de nós se pensarmos até onde aquele caminho poderá levar-nos! Religião, ética, espiritualidade, ideais, tudo adquire um significado positivo, uma possibilidade de atuação concreta. Estas abstrações entram vivas e atuantes em nossa existência, não só como aspirações, mas para se realizarem em função do grande fenômeno da evolução. Só assim poderemos retirar as velhas concepções filosóficas e teológicas das estantes poeirentas, onde têm sido respeitosamente conservadas, e trazê-las para junto de nós para que se transmudem em formas de vida. Deveríamos compreender que o novo não surge para matar o velho, mas somente para substituí-lo, a fim de que a vida, que fatalmente lhe escapa, continue em novas formas, que não o excluem, mas somente o completam e fazem avançar o passado. Não há doutrina religiosa que possa deter estas leis, que são as leis da vida. Eis o que querem os inovadores, e através deles com seus instrumentos, eis o que irresistivelmente a evolução impõe-se.

Do evolucionismo nasce uma moral dinâmica para o lugar da velha moral estática. A nova ciência diz-nos que a vida evolui em direção à espiritualização e que nela consiste o nosso futuro. O passado mostra-nos qual deverá ser o futuro, porque este não pode ser senão o prolongamento daquele, a sua continuação lógica. Eis que a nossa vida adquire um significado profundo porque existe na direção de uma meta que podemos racionalmente prever qual seja. Caminha-se e sabe-se para onde vai. Do que nos mostra a nossa história geológica e paleontológica, podemos positivamente deduzir qual será o nosso futuro. Caminhamos em direção a novas grandes afirmações no campo intelectual e espiritual, com infinitas consequências de todo o gênero. Tudo assume um valor construtivo. O processo evolutivo tem as suas leis, mas o trabalho de realizá-lo está em nossas mãos. Somos nós que temos de executá-lo. Nós próprios somos os construtores de nós mesmos, cooperando com a contínua obra criadora de Deus. Nunca estamos sozinhos. Todas as outras formas de existência estão junto de nós e vão avançando conosco no mesmo caminho. A ciência já começa a coser os retalhos da especialização em que se ramifica e subdivide, e se dirige para uma síntese. Ligando os vários momentos do conhecimento, orienta-se em direção à unificação de todos os fenômenos num princípio central. Fatos isolados, dos quais primeiramente não se conhecia o nexo recíproco, se integram numa complexidade orgânica e funcional até formar uma imensa sinfonia, na qual se sente que deve consistir a suprema visão do universo.

Será irreligioso tudo isto? Mas esta é precisamente a mais elevada religião do futuro, a do homem inteligência e consciente, que substituirá o homem ignorante e instintivo de hoje. E a ética se transformará paralelamente. A esta religião maior, será possível que as atuais façam resistência. Vivemos hoje no momento crítico do emborcamento, isto é, no ponto em que o homem, por haver avançado ao longo da evolução, se vê obrigado a inverter a sua posição, porque não gravita mais em direção ao polo negativo do ser, representado pelo fundo da involução que chamamos de anti-sistema (AS), mas em direção ao polo positivo, representado pelo vértice da evolução, seu ponto de chegada, que chamamos sistema (S). Isto é, o homem, à força de subir, evoluindo do anti-sistema para o sistema, acaba por entrar no campo gravitacional prevalentemente positivo, saindo e afastando-se cada vez mais do que é prevalentemente negativo.

Esta é a mais profunda revolução da vida, porque agora muda o seu centro de atração e se inverte do negativo ao positivo o sinal do seu campo de ação. De hoje em diante tenderá a prevalecer o positivo sobre o negativo. Positivo e negativo significam dois tipos de existência oposta, sendo o segundo o dos planos inferiores, e o do primeiro o dos planos superiores, mais evoluídos.

Claro que se trata de conceitos novos, que também nós, junto com Teilhard, sustentamos, diferentes apenas nos detalhes, e não é de surpreender que desconcertem as velhas formas mentais que a eles não estão habituadas. Se bem que a maneira de ver de cada um seja diferente, o pensamento fundamental que rege o universo é uno, e não pode deixar de se perceber uma vez que o indivíduo tenha os olhos adaptados e saiba abri-los para ver. É natural que conceitos e terminologia sejam diferentes. Não mais oposição entre espírito e matéria. Estes não são mais do que pontos diversos de um mesmo transformismo fenomênico. Física e moral baseiam-se num princípio comum. Ciência e espírito, conhecimento e moral, têm as mesmas raízes. E Teilhard não podia deixar, ele também, de ver a unidade fundamental de todas as coisas. Quem viu compreende, e ama a Teilhard porque também viu. Quem não viu não compreende e condena porque não sabe usar a sua pequena e velha medida feita para medir limitados conceitos antropomórficos da Terra, e não as ilimitadas concepções galáticas do homem do futuro.

É natural, partindo de gigantescas premissas, que já não seja possível concluir unicamente em favor de um grupo particular humano. Superada a forma mental egocêntrica, que criou para si um universo antropomórfico, já não é possível dos princípios ideais fazer um meio para sustentar interesses humanos. Deverá assim automaticamente desaparecer o sectarismo partidário e o separatismo religioso. Estas são as fases primitivas do pensamento religioso que para descer à Terra, foi obrigado a submergir-se na sua lei, que é a luta de todos contra todos pela sobrevivência. A religiosidade do futuro transcende a Terra, o nosso mundo, as suas organizações, e não pode encerrar-se nas fórmulas de uma qualquer particular religião, isolada das outras, num clima de divisionismo, pela sua diversa interpretação da mesma verdade, rivais, dispostas a combater-se umas às outras. A cosmogênese não pode culminar e exaurir-se num só profeta. Trata-se de uma religiosidade tão vasta que pode abarcar todas as formas de vida, incluindo a que se encontra na matéria, incluindo a dos outros seres que vivem nos planetas das mais longínquas galáxias. Os conceitos tradicionais não servem mais. Mas isto não significa destruição; é ampliação. Está para surgir um novo testamento de todas as religiões, que inicialmente, as fundirá, ou, pelo menos, as aproximará uma das outras, irmanando-as como se constituíssem aspectos diversos e complementares da mesma verdade. Sem destruí-lo, este novo testamento não só continuará o velho, respeitando-o, mas o ampliará, completando-o ele será oferecido pela ciência a uma humanidade que sentirá a necessidade e terá a capacidade de compreender, a qual sucederá à humanidade do passado, que sem tal necessidade e capacidade, e não sabendo fazer outra coisa, limita-se a crer.

O que pode impressionar o homem é a angustiosa sensação de sentir-se um átomo perdido na imensidade do universo. No passado foi o medo das feras, do inimigo, dos elementos desencadeados. Hoje a ciência lhe fez ver um infinito cheio de novos mistérios, de vazios, de possíveis perigos ainda maiores. E quer chegar até à lua para saber o que lá existe. Deste medo nasceram as religiões para nos dar uma proteção, tornando-se propícia a divindade; foi delas que nasceu a fé para consolar-nos, suprindo com isso tudo que ainda não se sabe. Mistérios, religiões e fé estão de fato unidos por estrito parentesco.

Ora, a tarefa da evolução humana é aquela que a ciência hoje está realizando, isto é, a de substituir cada vez mais o mistério e a respectiva fé pelo conhecimento; é a de mudar a posição do homem afastando-o cada vez mais das trevas, da ignorância (AS), em direção à luz e ao conhecimento (S). Crer segundo as religiões, mas conhecer cada vez mais segundo a ciência; isto é, crer cada vez menos com os olhos fechados, como ignorantes, e cada vez mais com os olhos abertos, conhecendo; empurrar sempre o mistério para mais longe de nós, iluminando a estrada com a nossa inteligência. Fazer isto significa descer Deus cada vez um pouco mais à Terra, e nós não ficamos passivos na expectativa. Devemo-nos tornar ativos, manifestando a nossa vontade e esforço de conquista. No entanto vemos que do mistério se procurou fazer um cômodo refúgio para que nele se aninhem os preguiçosos, inimigos de toda a febre de pesquisa e de toda a novidade que perturbe o seu sono. Mas Deus quer o nosso progresso, quer que seu pensamento e sua vontade se realizem cada vez mais em nossa vida; quer que O compreendamos e com ele colaboremos como seus operários, para subir. Mas Deus não desce a Terra gratuitamente. O homem deve realizar o esforço de elevar- se em direção a Ele, para Dele extrair aquilo que pode sentir e compreender. Cabe- nos subir a montanha da evolução com nossas pernas. Devemos carregar a cruz da redenção em nossos ombros, porque é absurdo servirmo-nos dos ombros de Cristo para que seja ele o crucificado em vez de nós.

A ciência é um esforço da inteligência para subir a Deus, mesmo quando O nega, porque nesse momento ela representa a tarefa de resolver os problemas e descobrir a verdade com seu próprio trabalho, por si mesma, em vez de aceitar tudo pela fé, gratuitamente, já resolvido, sem labor a não ser o de abandonar-se passivamente nas mãos de um Deus, invocado por nós para nos socorrer. A época da concepção estática do universo e da vida está superada, a que encorajava a nossa inércia mental, qualificando-a como virtude. Hoje abre-se o caminho para a concepção dinâmica, que nos diz que o paraíso não se conquista só negando a vida terrena com a renúncia, mas sobretudo afirmando-se de um modo positivo, com o trabalho e a conquista no terreno do pensamento e do espírito. Então, se a ciência foi em princípio considerada inimiga das religiões, porque perturbava o sono de quem se tinha dentro delas acomodado (inimigo das descobertas destrutivas do mistério, elemento de domínio). Hoje a ciência representa o caminho para chegar à religião do futuro que, como a ciência, será universal, sem possibilidade de escapatórias, verdadeira para todos, convincente porque demonstrada pela lógica e pelos os fatos. Uma religião que, por ser demonstrada pela lógica e pelos fatos. Uma religião que, por ser mais inteligente e consciente, representará uma posição espiritual mais avançada, um maior grau de compreensão do pensamento de Deus.

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Se Teilhard de Chardin não pôde deixar de gritar: “Eureka”, quando teve a visão da unidade orgânica do universo, assim também não pode deixar de gritar “Eureka” quem, tendo obtido por sua conta a mesma visão, se apercebeu de que já não se encontra mais só, porque viu que também outro o havia tido, e, percorrendo a mesma estrada, nele encontrou um companheiro e um amigo. De resto é natural que sejam vários a ver a mesma coisa. A verdade em si é uma só. A nova realidade pré-existe à nossa descoberta. Esta não cria nada, apenas revela o que já está resolvido pela natureza e funciona sem que tivéssemos consciência disso.

Assim começa a delinear-se a nova religião científica, racional, comprovada, convincente, aquela que as religiões terão de referir-se e alcançar, se quiseram sobreviver na mente moderna. Já não mais apenas revelação, tradição, mas também ciência, ciência que se prolonga na religião, que se eleva e continua no plano espírito, que se completa com critérios positivos no terreno ético e social. Esta é a tendência atual, isto é, um desenvolver-se da ciência para dilatar- se cada vez mais, invadindo todos os campos do pensamento e da ação. Não se trata, apenas, de transformar as religiões para que sejam concebidas diversamente; trata-se, também, de transformar a ciência atual para que dela se adquira um novo conceito. Então o materialismo, o agnosticismo, o cepticismo, o ateísmo, tornam-se coisas superadas. A mente humana, pelo menos nas suas grandes linhas e orientação geral, avança em direção à solução do problema do conhecimento e assim, implicitamente, de muitos outros problemas menores. É inegável que as barreiras do mistério, anteriormente imóveis, está retrocedendo. Isto é fruto, não obstante, de um trabalho que se realiza fora das religiões, sem elas, porque a sua maior preocupação não é a pesquisa de mais vastas e profundas verdades, mas antes a conservação das velhas sobre as quais se baseiam as suas posições terrenas. Sucede então que, dado que não se pode parar o progresso do pensamento, ele continua a avançar por sua conta, deixando para trás as religiões.

O mesmo Teilhard afirma a possibilidade de um novo método de pesquisa, por nós já sustentado e praticado, que é a superação do racional por meio da intuição. O problema do conhecimento não se esgota mais no estudo dos aspectos positivos e científicos da natureza, mas exige que a investigação seja levada até o prolongamento espiritual e místico daqueles aspectos. Quando se chegou a compreender que matéria e espírito, hoje concebidos como dois termos antagônicos inconciliáveis, são redutíveis à mesma substância fundamental, os atritos entre a forma mental da ciência e a das religiões podem desaparecer, e é possível fundir, numa só, as duas concepções do ser. Elas, em vez de se excluírem, se integram indispensáveis uma à outra, como duas partes da mesma unidade. Hoje estes dois aspectos parciais e complementares da mesma verdade se estão combatendo, cada um pretendendo constituir o todo e não uma parte; estão-se negando reciprocamente quando são apenas duas afirmações incompletas, que se procuram uma à outra para completar-se; não são senão duas perspectivas da mesma realidade, diversas porque observadas sob dois pontos de vista diferentes, em função de distintos pontos de referência.

O conhecimento está hoje entrando numa nova dimensão de cosmogênese. A mente humana é levada pela evolução a amadurecer até chegar à compreensão de novas concepções. Daí nasce uma forma mental nova da qual deriva uma transformação da vida do homem em todos os campos. Até um passado recente, o homem se julgava nascido rei do mundo, a obra prima de Deus, num universo feito para ele. Hoje o nosso planeta tornou-se um grão invisível num universo que milhares de anos-luz não bastam para atravessar; e a nossa humanidade perante a vida universal espalhada nas galáxias, pode reduzir-se a uma microscópica cultura de bacilos. A humanidade está superando a forma mental no antropomorfismo que representava a sua interpretação pueril, a representação que ela refazia do universo. Começa-se a pensar tudo outra vez, em termos de uma nova cosmogênese, de dimensões imensamente mais amplas. Somente no início, tudo isto podia levar ao ateísmo os principiantes da ciência, demasiadamente apresados em concluir. Hoje tudo isto leva a Deus, mas através de um modo mais elevado e completo de O conceber. A tendência mais adiantada não é de destruir a ideia de Deus, mas apenas a de superar aquela ideia especialmente humana que o homem, até agora, com a sua cabeça produziu, limitando-se a projetar-se a si próprio. A luta é apenas contra o antropomorfismo; mas as religiões a entenderam como se fosse contra elas, porque se identificavam com este antropomorfismo. Combatê-lo era interpretado como combater essas religiões, quando o que se combatia era o modo de conceber Deus, ilógico e inaceitável, que levava ao ateísmo, e, combatendo o antropomorfismo, se lutava contra aquele ateísmo, em favor das religiões que ele ameaçava. O que leva ao ateísmo não é a ciência, mas o antropomorfismo religioso; só deste há necessidade de nos libertarmos e jamais da ideia de Deus.

Houve uma época em que a evolução aparecia como uma ameaça às verdades religiosas e por isso era condenadíssima. Atualmente ela pode ser entendida como uma sua confirmação. O conhecimento do passado animal do homem nos leva a vê-lo ao longo de um caminho de contínuas superações, o que significa observá-lo em função do seu futuro super-humano, no qual aquilo que se deve realizar é a espiritualidade intuída pelas religiões, é o ideal por elas sustentado, é o reino dos céus proclamado por Cristo. Eis então que, em pleno acordo com as religiões e a moral por elas pregada, e em pleno acordo com o evolucionismo científico, se pode implantar uma antropologia previsora, que estuda a antropogênese para levá-la para diante e dirigi-la em direção ao futuro, transformando-se num guia iluminado da evolução do homem. Realizações até hoje impossíveis para as religiões, que têm estado fechadas numa ordem de conceitos totalmente diversa.

Como sustentamos no volume Princípios de uma Nova Ética, trata-se de chegar a u’a moral positiva, científica, racional, demonstrada, que se substitua a atual, que é empírica, produto instintivo do subconsciente. Isto não quer dizer que ela não tenha o seu significado e valor, porque tudo quanto é produto da vida o tem, a qual sabe sempre o que faz. Mas neste caso, perante produtos mais evoluídos, controlados pela razão, trata-se de um produto mais elementar e involuído, como são os do subconsciente, depósito das experiências inferiores do passado. Repete-se sempre o motivo do velho e do novo testamento. E também isto prova a evolução. O velho fica, mas é arrastado mais para diante. Não é destruição, mas superação por amadurecimento. A vida nunca destrói em sentido absoluto: só transforma, e é neste sentido de ressurreição que mata o velho. Este íntimo trabalho do existir nunca se detém e ninguém poderá detê-lo jamais.

Continuando a ler Teilhard, notamos que ele soube ver e sustentar uma outra grande verdade, que nos leva a conceber a vida de outro modo. Para compreender o homem, é necessário vê-lo como ele é na realidade, não abstratamente, separada dela em nome de princípios a ela estranhos, mas em função de leis biológicas que regem o plano de evolução no qual o homem se encontra situado. Tudo o que diz respeito ao homem, ética, economia, política, religião etc., cada produto da sua atividade, se entende em função das leis da vida dentro das quais ele se move e às quais sem saber ele obedece. Tudo o que refere ao homem é portanto uma função biológica, que só biologicamente pode ser compreendida e que, inteligentemente, como fenômeno antes de mais nada biológico, está dirigido aos fins da evolução. Também tudo isso nós sustentamos e explicamos.

Até hoje o homem foi, por instinto, inconscientemente guiado por estas leis. Trata-se agora de conhecê-las para saber as que nos dirigem, para segui-las com conhecimento e consciência, até onde seja possível, para intervir ativamente colaborando com elas, com a adesão de nossa vontade acentuando a ação delas para alcançar melhor o que constitui a nossa vantagem, o fim supremo em direção ao qual tudo está evoluindo. A biologia se tornará assim uma ciência universal, tão vasta que abarcará também uma biologia do espírito, uma biologia do ideal, uma biologia das religiões, da teologia, da ética, da economia, da política, porque tudo aquilo que o homem faz é uma expressão das leis da vida, e em função delas é realizado. A questão é conhecê-las. A observação dos fatos as revela, e podemos lê-las escritas na realidade, onde a encontramos em pleno funcionamento. Então aparecem os vínculos que ligam e levam à unidade as várias formas de pensamento e de atividade humana. Todas elas não são mais do que uma manifestação do trabalho de um contínuo amadurecimento evolutivo, de uma íntima elaboração da vida para subir, sendo apenas momentos diversos, no espaço e no tempo, de um mesmo acréscimo orgânico e universal, que é a evolução, a qual, no seu irrefreável impulso, arrasta a vida, pois, tudo que existe é vida.

Eis a grande concepção teilhardiana: cosmogênese contínua em ascensão, e a constatação de que o homem, agora tornado adulto, está maduro para tomar a direção da evolução da vida no seu planeta e por isso deve assumir essa direção, ser dela consciente e responsável. Nessa tarefa imensa não falta trabalho para as religiões que deveriam inteligentemente cooperar na realização das leis da evolução e do seu imenso programa de ascensão que representa o conteúdo fundamental daquelas religiões. Não se trata da morte das religiões! Trata-se da morte da sua forma atual atrasada, para ressurgirem numa outra mais avançada e potente. Como sempre, também neste caso, que não pode fazer exceção, a vida destrói só para reconstruir mais acima. Seria absurdo o contrário, dado que a tendência suprema da vida é subir. As religiões deveriam compreender, que grande vantagem representa para elas o transferir-se para tais dimensões superiores nas quais, quer elas queiram quer não, a vida hoje exige que se situem quem quiser sobreviver. É inútil resistir às suas leis, e quem o fizer será eliminado, deixado para trás no caminho da evolução.

Eis as palavras de Teilhard  : “Até agora a antropologia havia sido considerada, de u’a maneira geral, como uma pura descrição do homem do passado e do presente, individual e social. De agora para diante o seu princípio centro de interesse deveria consistir em guiar, promover e operar a evolução do homem. Os não biólogos esquecem muitas vezes que sob as variadas regras da ética, da economia e da política, se encontram inscritas na estrutura de nosso universo certas condições gerais e imprescritíveis de crescimento orgânico. Determinar, no caso do homem, estas condições básicas do progresso biológico, deveria ser o campo específico à nova antropologia: a ciência da antropogênese, a ciência do desenvolvimento ulterior do homem”.

Conceitos novos e vitais de Teilhard que sustentávamos antes de conhecê-lo 4 . Não podemos verdadeiramente compreender o homem, colocando-o dentro de uma biologia que evolutivamente ele ainda não alcançou, cujas leis, portanto não são as suas. Isto serve para educá-lo, mas não para compreender as razões da sua conduta. O homem deve ser visto em função da biologia do animal, porque esta é a biologia do seu passado, através da qual o próprio homem se construiu tal qual é hoje, porque este é o caminho percorrido por ele para chegar até aqui com a sua história escrita no seu subconsciente, e que constitui a forma mental que o dirige.  É  certo que dizer ao homem que Deus o criou à sua imagem e semelhança pode ser útil para efeitos educativos, enquanto o investe de uma dignidade que ele, através da sua conduta, se sente levado a respeitar. Se quisermos, porém, compreender o homem nos seus impulsos, instintos e ações, devemos vê-lo em função das formas de vida já vividas por ele, na sua posição no cimo da escala zoológica da qual emerge, mas da qual todavia faz parte, ou seja, em posição biológica em vez de metafísica, porque se esta representa o futuro viver, o homem, da primeira já vivida, conserva em si os traços mais profundos, de um tipo bem diferente do metafísico.

Todavia é necessário também admitir que apenas a biologia do animal não basta para compreender o homem inteiramente, porque ele não é feito somente de recordações do passado, mas também de pressentimentos do futuro, ainda que sejam vagos. Aquela biologia se completa, portanto, com a biologia do espírito e do ideal, que no entanto existe na crista da onda da evolução e onde vivem isolados alguns precursores do futuro.

 Também é verdade que seria um erro crer que a esta biologia do espírito se possa chegar só por abstrações metafísica sem ligá-la com a biologia do animal, porque é dela que esta superestrutura deriva e se eleva; é sobre aquela que esta se baseia, é nela que aquela superestrutura tem a s sua raízes e precedentes, que a explicam e justificam. De um polo a outro, há diversos níveis evolutivos, e trata-se do mesmo fenômeno em continuação de desenvolvimento. Só de tal modo, havendo compreendido o passado, podemos não só compreender a existência de uma biologia do espírito, mas ainda racionalmente prever o futuro desenvolvimento, qual poderá ser o conteúdo dos estados superiores, aos quais a evolução poderá levar-nos, elevando logicamente dobre aquele passado.

Isto sem esquecer qual é a estrutura da matéria prima biológica a elaborar, aquela que o progresso humano deve levar adiante, porque constitui as bases da nova criação evolutiva. Mesmo nas supremas criações espirituais é necessário nunca esquecer a realidade biológica, nunca se separar dela, para não naufragar, isolando-se, em sonhos fora da vida. Esta é a verdadeira posição equilibrada, isto é, aceitar como ponto de partida a natureza zoológica do homem, mesmo que esta se destine depois aos mais altos planos espirituais; e daquele ponto de partida subir depois até onde, ao longo do processo evolutivo, o amadurecimento permita. Não nos iludamos, porém, com voos de fantasia e pensar que isto seja fácil, como sucede com muitos que pretendem refazer o mundo. A velha natureza humana de base é muito resistente e não se muda num só dia. Até Cristo teve de ter em conta as leis biológicas do planeta e limitar-se a trazer apenas retoques e leves melhoramentos àquele fundo zoológico que constitui a base da natureza humana.

Compreendido tudo isto, ou seja, que não podemos entender a conduta humana de outro modo a não ser reportando-nos à sua substância biológica em função das leis de nosso plano evolutivo, poderemos então perguntar-nos qual o significado daquelas construções metafísicas de que falávamos agora, não no caso excepcional dos raros pioneiros da evolução, mas no caso comum de tantos grupos humanos de massa, incluindo os religiosos, que sobre aquelas construções baseiam a própria organização e existência. Para quem está habituado ao controle positivo das teorias, levando-as ao contato com os fatos, tantas concepções filosóficas e teológicas podem parecer o resultado de uma imaginação, de afirmações situadas fora da realidade que elas ignoram; podem não obstante tudo isto justificar-se biologicamente como um produto instintivo inconsciente, mas sabiamente desejado pelas leis da vida com uma precisa finalidade: através da luta, alcançar a sobrevivência. Tratar-se-ia então de um produto  do  subconsciente  com  o  fim  de  assegurar  tal  sobrevivência entrincheirando-se por detrás de uma ideologia, utilizada como meio para sugestionar os crentes e assim obter o respeito, arma psicológica que se substitui à força para paralisar na luta a agressividade dos outros, garantindo-se assim a segurança própria. Desta maneira o grupo zoológico pode justificar a sua posição. As construções metafísicas seriam então um produto instintivo nascido da vida para a sua defesa, ou bem seriam a emanação de planos evolutivos superiores cujas construções descem ao nosso mundo para civiliza-lo, um material ideal super-humano, que no entanto é adaptado ao ambiente terrestre, para ser assim utilizado para objetivos totalmente diversos, transformado em meio de luta pela vida. Eis como pode ser entendida e aplicada a biologia do espírito quando é usada pelos imaturos, ainda situados no nível da biologia do animal.

Com tal concepção biológica podemos explicar-nos fatos, cuja razão de outro modo não chegaríamos a compreender. As ideologias de qualquer tipo constituem o castelo dentro do qual, quando não se pode usar a força, o grupo se entrincheira e se defende.  É por isso que as ideologias, sejam religiosas ou políticas, exigem fé, o que significa consentimento, adesão e, por fim, obediência, que é o ponto fundamental em que cada grupo insiste porque constitui a base do seu poder. Os elementos do fenômeno são sempre os mesmos: proselitismo para estender o domínio e autoridade para mantê-lo. No plano biológico do ideal tais coisas são contraproducentes, antivitais, absurdas; mas no plano biológico animal do homem são questão de vida ou de morte. Neste nível o ser tem que resolver a qualquer custo o problema tremendo da sobrevivência e não há margem para sonhos; o ideal é loucura que mata. Eis porque à volta do castelo em que se refugia o ideal é necessário construir muros de defesa contra a instintiva agressividade destruidora do homem não evoluído, e o grupo deve constituir no centro uma autoridade que comande os seus súditos, mesmo que seja só pela fé, e sujeitá-los à obediência.  É  uma posição de guerra. Parece uma contradição porque inverte os princípios do ideal. Mas esta forma invertida é a única que ele pode assumir quando aquilo que pertence a um plano biológico superior desce a um inferior. E esta é de fato a forma na qual constatamos a existência dos ideais na Terra.

Condenar não resolve. É necessário antes de tudo compreender e explicar. Os fatos mostram-nos que mesmo Deus, quando se manifesta na Terra, não a viola, mas lhe respeita as leis. A revolução, a grande transformação pode realizar-se só passando a um plano de vida superior. Mas enquanto se pertence a um determinado nível biológico, até que por evolução não se consiga sair dele, fica-se encerrado dentro das suas leis às quais se deve obedecer. A reação que dá razão ao ideal verifica-se só no momento no qual o indivíduo, por ter progredido bastante, está maduro para evadir-se do plano biológico inferior e entrar no superior. Assim sucedeu também com Cristo. Enquanto esteve vivo na Terra, o ideal foi com Ele crucificado. Ele pôde triunfar como vencedor só quando, estando morto, se encontrou fora do plano biológico humano e não antes.

Pudemos assim explicar a contradição existente no fato de que, se queremos que o ideal resista e sobreviva na Terra, ele deve aceitar aquilo que ele mesmo condena, e é necessário que os valores espirituais sejam defendidos com os métodos do mundo, ainda que com a força, mesmo que isso esteja em aberta contradição com o Evangelho. Não é essa a história do cristianismo, impulsionador de inquisições, de guerras santas e teoricamente baseado no princípio do amor e da não resistência? Só afrontando assim biologicamente tais problemas se pode compreender o significado do que vemos acontecer no mundo. Se ele funciona de tal modo, deve no entanto ter as suas razões. Observando o fenômeno do ponto de vista biológico nos colocamos não diante do homem para que explique e justifique o seu procedimento, mas colocamo-nos perante a inteligência da vida, que sabe bem o que faz, e que é a única que pode e sabe dar-nos uma resposta exaustiva. Para compreender é necessário sair da forma mental corrente, isto é, do terreno dominado pelas leis do plano biológico animal-humano vigentes na Terra, observando antes as coisas em função de planos biológicos diferentes, superiores, abraçando uma visa mais vasta ao longo do caminho da evolução. Observando o fenômeno não com critério de um só tipo social econômico, político ou religioso etc., mas com critério biológico, podemos, elevando-nos sobre o particular, alcançar o universal. Encontramo-nos assim diante de princípios que funcionam da mesma forma nos campos mais diversos, como sucede com o princípio já observado da autoridade e da obediência, presente nas ordens religiosas como nos ambientes militares, no catolicismo como no comunismo, todas as vezes que se estabelece uma estrutura hierárquica, típica das organizações humanas, descobrimos assim que cada coisa tem a sua razão de ser, mesmo que ela seja bem diversa da oficialmente apresentada, com a qual, às vezes, se procura esconder a verdadeira. É natural, de resto, que, movendo-se tudo num ambiente de luta, apoiado em posições de combate, a verdadeira razão de tantos expedientes, que revelariam ao inimigo a sua própria estratégia, seja escondida, camuflada sob outras razões aparentes. Mas chegaremos a compreender tudo isto, ou seja, a verdadeira razão destas posições que parecem culpáveis e contraditórias, somente se afrontarmos o problema, tocando na sua substância, que é de natureza biológica.

Chegados a este ponto nos perguntamos: realmente não seriam as construções ideais, debaixo das aparências, apenas uma ficção com o objetivo de exploração prática, para mascarar os próprios movimento frente ao inimigo? Como tais construções existem, é possível que isso esconda uma tão baixa finalidade, que ela não tenham nenhum significado melhor? Não. A sua existência representa verdadeiramente também um pressentimento do futuro, uma antecipação tendente a realizá-lo na forma oferecida pelo ideal. Aquelas construções podem ter ainda outro significado e representar uma posição e função diversas, não mais de guerra no plano da biologia do espírito. Então, a luta dos grupos baseados num ideal, para a sua defesa e sobrevivência, pode existir também para realizar uma outra função, que é a luta pela defesa e sobrevivência do ideal na Terra, de modo que aqui ele possa cumprir a sua missão evolutiva.

Podemos  compreender  como  tudo  isto  sucede, recordando que estas duas biologias, com as suas respectivas leis, representam a vida em dois níveis seus, os graus de evolução, e que esta vai do Anti-Sistema (AS) ao Sistema (S). Ora, é lógico: o que é inferior seja prevalentemente do tipo AS, e o que é evolutivamente superior seja do tipo S, tipos dos quais conhecemos as qualidades que os caracterizam. E é lógico também que, estando a vida na Terra, como em toda a parte, tal vida possa conter, misturados, indivíduos mais atrasados, do tipo AS, e outros mais progressivos, do tipo S. Então cada um deles, segundo a sua natureza e respectiva forma mental verá tudo de acordo com ela e tudo tenderá a reduzir dentro dos limites da sua capacidade conceptual e do seu plano de evolução. Eis então que a compreensão e a realização do mesmo princípio será diversa conforme o diverso tipo biológico; eis que o ideal na Terra poderá ser compreendido e realizado diversamente conforme se trata de um involuído, tipo AS, funcionando no âmbito da biologia do animal, ou de um evoluído, tipo S, funcionando no âmbito da biologia do espírito.

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Enquanto o evoluído é um instrumento de descida do ideal à Terra para o progresso da humanidade, o involuído é naturalmente levado a ver a este ideal só do seu ponto de vista inferior, situado no plano da biologia do animal. Por isso o involuído tende a abaixar e reduzir o ideal ao seu nível, para fazer dele o uso que acabamos de ver, isto é, não em função de princípios superiores, mas para desfrutar de tudo para sua vantagem na luta pela sobrevivência própria. É natural que o involuído tenda a arrastar tudo para o seu plano de evolução; ele portanto, não saberá fazer outro uso do ideal, senão o de utilizá-lo para lhe extrair uma vantagem material. Enquanto o evoluído tende a levantar tudo em direção ao S, o involuído tenderá em afundar tudo em direção ao AS. O primeiro purificará tudo em que toca, o segundo sujará tudo, será um destruidor de valores espirituais onde o primeiro é um construtor. Enquanto a tendência constante de um é endireitar o AS no S, a do outro é de emborcar o S no AS. Dessa forma podemos explicar o que sucede no mundo.

Assim que os ideais, observados do ponto de vista do involuído, podem parecer loucura antivital, perigo de morte, porque estão contra o seu mundo e pretendem desviá-lo para outras finalidades que não são as do seu plano biológico, o qual representa todo o seu reino. Os ideais são portanto negados e repelidos, ou bem torcidos para se adaptarem à Terra. Mas vemos também toda a sabedoria do mundo, toda a sua luta para vencer no seu nível, observadas do lado oposto, do ponto de vista do evoluído, podem parecer igualmente loucura antivital, porque seguir quimeras, resultados transitórios, fictícios, isto não conduz à ascese, que é o objetivo da vida, nem à afirmação no plano espiritual, que é o mais importante. A sabedoria do mundo é portanto desprezada e repelida para dirigir-se em direção ao alto, sendo reconhecida conforme o ponto de referencia escolhido para o seu julgamento. É fato concreto: cada um quer e deve, antes de tudo, realizar-se no seu plano de evolução, conforme a sua própria natureza.

Aquilo que queremos provar positivamente, não só pela via da fé, e seguir o ideal não é aquela estupidez que o mundo crê e sustém nos seus juízos. Por isso enfrentamos o problema dessa forma. Com algumas afirmações avançadas escandalizamos possivelmente os espíritos sensatos; mas se se quer compreender a realidade é necessário ter coragem de encará-la de frente em todos os seus aspectos, mostrando inclusive aqueles que se costumam calar, e disto dizer o porquê. Quisemos permanecer positivos, porque só assim se podia dar ao ideal e à biologia do espírito, as bases sólidas que a ciência requer e que possam resistir à crítica dos seus inimigos.

No ambiente terrestre baseado na luta, é natural que o ideal desça para ser aproveitado pelo involuído que nele viverá, para ser entendido e utilizado, embora reduzido a uma mentira. Outra coisa não se lhe pode pedir. Como se pode pretender que um tipo biológico AS se torne de repente um tipo S? Como é possível que um tipo AS, que foi construído com a evolução terrestre e que ainda está situado ao nível da biologia animal, se ponha a viver o Evangelho se, por atávica experiência bem impressa no seu ser, ele sabe que quem se desarma como o Evangelho quer, fica vencido na luta e por isso deve morrer? Como se pode pretender que a vida aceite num nível biológico inferior aquilo que, pelo fato de pertencer um nível biológico superior resulta antivital no inferior, o Evangelho, como todo ideal superior, lei do futuro, redunda num absurdo biológico? Se a maioria costuma pregar o Evangelho, como não se limitar apenas a seguir, a corrente que o uso impõe? Isso sem jamais admitir que o Evangelho possa ser tomado a sério e que existe para ser vivido. O involuído, ao contrário, com plena convicção, pensa evadir-se dele com honra e fabrica para si mesmo um manto de hipocrisia. O homem são e normal sabe bem que o Evangelho integralmente aplicado, é para ele um perigo de vida. Ele tem portanto, direito à legítima defesa e, se a revolta declarada é condenada, segundo a moral biológica do seu plano, não há razão por que ele não deva recorrer ao engano. Eis como o Evangelho pode transformar-se na Terra numa escola de hipocrisia.

A verdadeira conclusão é esta: se queremos evoluir, devemos passar das zonas que gravitam em direção ao AS para as que gravitam em direção ao S, devemos superar a biologia do animal para tornamo-nos cidadãos da biologia do espírito. Trata-se de começar a viver em função de outras finalidades. Hoje vive-se mais ou menos animalescamente.  É necessário transformar a tremenda vontade de viver que existe em todos nós numa vontade de evoluir, porque é o evoluir que dá significado e valor à vida. O supremo imperativo ético é convergir todos os esforços para evoluir em direção ao ponto Ô mega, que é o S, o que dá também cientificamente um significado profundo e um valor superior à vida.

É contraproducente na economia do indivíduo, viver só em função de limitadas realizações terrenas, imersos na biologia animal, na estupidez de uma luta de todos contra todos, para matar e ser morto. A ciência deve entrar na vida para dirigi-la com inteligência; nos nossos pensamentos e ações devemos mover-nos orientados pelo conhecimento. Religião e ciência devem cooperar para atingir, por caminhos diferentes, este conhecimento, de maneira que ilumine a nossa existência, porque nas trevas da ignorância não sabemos e não queremos mais viver. O mundo tem necessidade de uma visão global orientadora, que satisfaça sua sede de saber e a sua necessidade de sábias diretivas que lhe inspirem confiança. Se religião e ciência não se aliarem para alcançar tal visão, tudo se afundará em nós, porque com uma ansiedade de adultos mais exigentes no saber do que as crianças, para nós as trevas são muito mais insuportáveis do que foram nos séculos passados, nos quais a falta de maturidade permitia que fosse possível viver num estado de ignorância, inconscientemente tranquilos.

Os conceitos acima expostos permitem-nos trazer o ideal e a espiritualidade ao seio da ciência com os seus critérios positivos, porque a estes valores superiores se deu um significado biológico, isto é, de um plano de existência mais avançado, que o ser terá de alcançar por lei de evolução, o que é cientificamente lógico e aceitável. Assim se explica racionalmente a função biológica das religiões, da ética, do direito, das diversas instituições sociais etc., o porquê de tudo existir em relação aos fins que a evolução da vida com tais meios quer atingir. Tudo portanto é biologia; cada manifestação da vida individual e social representa uma posição ao longo do caminho do progresso evolutivo; tudo se entende e está enquadrado em função das leis da vida e portanto se resolve antes de mais nada com critérios biológicos. Esta realista concepção biológica explica- nos a conduta humana em muitos de seus aspectos, além das preconcebidas abstrações filosóficas e teológicas.

Esta será uma psicanálise da humanidade para eliminar seus complexos atávicos, assimilados no duro passado mas que agora em diante constituem defeitos antivitais, como o instinto bélico, a ganância, o espírito de domínio, a estupidez do orgulho, a insaciabilidade do gozo etc. Compreender finalmente como a vida verdadeiramente funciona, sem hipocrisias e ilusões, é tentar inteligentemente não incorrer mais, por inconsciência, em muitos erros loucos que depois é necessário pagar duramente, e será ao mesmo tempo uma purificação de pecados herdados do passado e uma retificação psicológica para não cometê-los mais no futuro. Para isto, por exemplo, concorrerão, sem estarem separados e inimigos, o confessor de um lado e o psicanalista do outro mas um confessor perito inclusive em psicanálise e um psicanalista que possua uma consciência ética, da espiritualidade, da filosofia e das religiões, de modo que possa ser, além de médico da psique, também dirigente de consciências. Quando tivermos sinceramente analisado e compreendido o que nas religiões se tornou emborcamento do ideal ao serviço da animalidade, muito mal poderá ser superado eliminado.

Quando se compreender o significado do método da fé, usado pelas religiões, os racionalistas da ciência não poderão mais condená-lo. A fé tem potência criadora, portanto no mundo espiritual existem as coisas que acreditamos. A fé abre, em direção a mundos superiores, as portas da alma, e tem assim o poder de fazer-nos sentir aquilo que de outro modo ficaria escondido no ultra-sensível. Quando o homem para evoluir deve resolver o problema da conquista de um futuro para ele desconhecido, porque super-normal, e que lhe é apresentado só no estado nebuloso de ideal que ainda é necessário concretizar em formas que fixem na Terra à vida humana, não há outro sistema, se se quer avançar, senão o de antecipar a existência real daquele ideal fazendo-o aparecer na mente com imagens que o representem. E com a sua repetição o fixem, e que paralelamente o conduzam a manifestações exteriores que o expressem. Ora, este é o método praticado pelas religiões para a descida do ideal na Terra: por lenta assimilação consuetudinária, não apenas por via interior e exterior, mas por via mental, e material. Uma convergência de fé e práticas que se alimentam alternativamente, de maneira a levar o indivíduo a realizar o ideal em si mesmo como qualidade própria, construindo assim a sua individualidade sempre completa e perfeita.

Podemos descobrir nas religiões uma sapiente técnica construtiva de formas mentais superiores, de tal modo que acabam por fixar-se definitivamente na vida, levando-a um passo adiante no caminho da evolução, que tínhamos visto ser, de agora para diante, um processo de espiritualização. Por longa experiência, as religiões tentaram aperfeiçoar esta sua técnica de modo que esta possa continuar a funcionar, mesmo quando os instrumentos humanos dos quais ela dispõe para a administração do culto sejam elementos imaturos, incapazes de compreender qualquer ideal. Isto prova que na prática, mesmo o ideal, se quer descer à Terra deve ter em conta a realidade biológica, isto é, o material humano no estágio em que se encontra.

Voltando com um exemplo ao tema da fé e à sua potência criadora, eis que quando acreditamos firmemente que as palavras do sacerdote, ao consagrar a hóstia, nela fazem descer o espírito de Cristo que assim a transforma, mesmo se quimicamente se provar que não houve nenhuma transubstanciação, vemos que a nossa fé criou um fato positivo que realmente existe e que a nossa representação mental do Cristo está bem localizada naquela hóstia, como uma presença real Dele. Ora, no plano mental, para quem creia, basta isto, para que exista de fato o Cristo naquele lugar. É uma existência subjetiva, mas quando ela é multiplicada por um grande número de pessoas, torna-se uma existência objetiva, baseada sobre um íntimo testemunho coletivo. Aqui nos avizinhamos deste problema com a psicologia positiva da ciência. A presença objetiva de Cristo espacialmente localizado num suporte material seu é outra questão, e aqui não a entramos. Mas é certo que a realidade objetiva absoluta não existe nem na ciência, mesmo que na observação interfira a presença do observador.

Quisemos observar os métodos das religiões. Eles procuram ser até hoje um meio de educação, um instrumento de evolução. Amanhã, se elas souberem atualizar-se com o progresso do pensamento humano expresso pela ciência, inclusive no terreno delas, poderão constituir no seio da ciência um elemento indispensável da biologia do espírito.

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Encontramos em Teilhard um outro conceito importante. Ele sustenta a existência de um ponto  Ômega, em direção ao qual todo o universo tende a evoluir. Mas este conceito implica num outro, que Teilhard não poderia deixar entrever, isto é, que este ponto  Ômega é também o ponto Alfa, o que quer dizer que o ponto de chegada do transformismo deve coincidir com o seu ponto de partida. Teilhard não focou a sua intuição sobre este conceito, mas o viu, apesar de longe. Uma vez descoberto pela ciência o fenômeno da evolução, ela não pode deixar de ter de admitir também o fenômeno oposto, que é o da involução. O processo não pode ser apenas unilateral, somente evolutivo, sem conter, para ser completo e equilibrado, também a sua parte inversa e complementar, isto é, junto ao período evolutivo o correspondente período involutivo. Eis-nos aqui perante a teoria da queda que voltamos a encontrar nas religiões e nas suas revelações. Esta é a teoria do S e AS, por nós sustentada e detalhadamente explicada, que forma o esqueleto do processo transformístico do universo. Teilhard não chegou a declarar explicitamente que esta é a linha máxima do transformismo do ser, mas é com esta concepção que cada palavra sua concorda.  É em direção a ela que, como guiado por um pressentimento, se orienta, ainda que ele não a expresse a presume. Ele não podia deixar de pressentir esta verdade porque ela está escrita na lógica dos fatos, para que quem saiba ler no seu íntimo significado, a veja.

Há, porém, outro fato, Teilhard vê o ponto  Ômega alcançável somente através do Catolicismo. Entretanto àquele ponto convergem não apenas todas as religiões; ele é também o ponto de convergência da evolução de todas as formas da existência, mesmo aquelas para nós inimagináveis, não redutíveis aos limites das nossas concepções terrestres e muito menos às de uma religião particular. Nisto Teilhard deve ter obedecido à necessidade, que lhe foi imposta pela sua posição social, de não se afastar nas suas investigações filosóficas, de certas conclusões pré-fabricadas. Trata-se de antropomorfismo de tipo bíblico, aos quais não se pode reduzir a vastidão das concepções cósmicas hoje atingidas. Tal posição então não é científica. Não se pode limitar a Deus monopolizá-lo em exclusividade fechando-o dentro de uma religião particular. Era possível chegar a tal redução com o Deus antropomórfico do passado, mas já não o é mais hoje com o Deus de dimensões cósmicas que a ciência nos faz entrever.

Biologicamente, é possivel explicar-nos a razão deste caso, referindo-se ao conceito acima afirmado, isto é, que possamos entender a conduta humana reportando-nos às leis biológicas, que dirigem o homem, mesmo sem que ele saiba. Ele obedece porque elas constituem a sua natureza, definem o seu biótipo, são as leis do seu plano de vida. E como nos referimos, o homem não pode fugir a elas senão evoluindo para um nível evolutivo superior. Ora, a lei do nível humano atual é o egocentrismo. O homem daquele tipo concebe a existência em forma egocêntrica, isto é, em função do próprio eu ou do grupo do qual este forma parte.  É  que o homem tende a reduzir tudo a si próprio, tudo concebendo antropoformicamente em função de si próprio e do seu grupo.  É assim que podemos explicar como uma religião tende a reduzir e fechar nos seus limites o ponto  Ômega, para aprisioná-lo no seu próprio egocentrismo, fazendo-se centro do universo. Podemos explicar-nos esta forma mental e como esta necessidade foi imposta a Teilhard pelo grupo sob pena dele ser expulso. O  fato de  impor semelhantes premissas às suas investigações filosóficas é uma prova disto.

E Teilhard foi obediente. Quem sabe mais é também mais razoável e está por cima do mundo e dos seus juízos. Ele chamava ao seu caso: “o cisma entre a metade do mundo que se move e a outra metade que não quer avançar”. Teilhard era uma antecipação do futuro e queria andar a frente. O grupo é feito para permanecer na Terra nas posições conquistadas, gozando dos seus frutos sem trabalho e sem perigos e, mesmo quando maneja o ideal, o faz sobretudo em função da Terra que é o seu mundo. Sucede que muitos foram condenados nas mesmas condições de Teilhard, mas cada um segundo sua conduta revelou sua natureza: o involuído, que vive no nível do egocentrismo, revolta-se e separa-se do grupo para declarar-lhe guerra, instalado no seio de um grupo inimigo; o evoluído, que vive no nível espiritual, obedece, permanece no seu posto de dever, fiel aos seus próprios compromissos, mas não abandona a sua ideia, antes pelo contrário, continua a vivê-la mais intensamente porque o espírito não pode ser coagido, esconde-a dentro de si, compensando-se desse modo de não poder comunicá-la aos outros que não compreendem. Quando é necessário, deve-se respeitar a vontade do próximo de permanecer ignorância. Quem tem uma vida interior sabe viver ainda que seja apenas interiormente (e que vida!), mesmo quando se lhe negue manifestar-se exteriormente. Quando não é possível realizar o trabalho de fazer evoluir os outros, realiza-se o trabalho de evoluir a si próprio. Dizia Teilhard numa carta ao Geral dos Jesuítas: “Não posso renunciar a mim mesmo. Mas já não me ocupo de propagar as minhas ideias, senão de aprofundá- las pessoalmente”.

Deste modo, permanece nele intacta a sua concepção e convicção. De semelhantes visões profundamente sentidas, fruto de raciocínio e intuição, nasce uma segurança que ninguém pode perturbar. Além disso, a compreensão no silêncio aumenta a convicção, porque o silêncio nos induz a expandir-nos em profundidade em vez de em superfície e então a visão se torna mais clara e se potencializa. Também aqui funcionam as leis que, embora situadas no campo psicológico e espiritual, são sempre leis biológicas das quais não se pode prescindir nestes casos. Mas quem atua segundo os sistemas humanos comuns, não pensa em tais leis e não leva em conta as reações derivadas delas. A compreensão aumenta a reação, e quando esta não pode desabafar-se para o exterior, porque lhe está impedido ou porque o indivíduo é um evoluído que recusa as revoltas terrenas, então a reação se desabafa em direção ao interior, exaltando o tom da vida espiritual, potencializando-a a tal ponto que, por si só, constituirá toda a vida do indivíduo. Aproveita-se então a derrota exterior, terrena, para realizar por si próprio um progresso interior profundo, vivendo a sua própria existência num plano evolutivo mais elevado, substituindo a compreensão material e a derrota terrena por uma expansão espiritual e uma vitória sobre o mundo. Isto é o que significa a obediência de Teilhard de Chardin.

A vida é evolução, que é conquista e que como tal implica luta e esforço contínuo. Onde o homem de tipo corrente se compraz em desperdiçar as suas energias em atritos recíprocos, até chegar às destruições bélicas entre os povos, o homem evoluído transporta este espírito de luta e esforço conquistador a um terreno biologicamente mais avançado e mais intensamente criador. Ele é o maior guerreiro, mas como evoluído em forma pacífica, é o maior revolucionário. Revolucionário do pensamento. E a paz mundial é o ponto aonde a evolução deveria levar o homem, porque ela se encontra no caminho dele, em favor da sua conservação e sobrevivência, objetivo da sua vida. Semelhante paz não será, entretanto, inércia, suspensão da luta e esforço, mas sim a sua continuação, para fins superiores, a fim de que a vida, como é lei, não se detenha nunca no seu trabalho de conquista e ascensão. A isto nos querem levar as leis da vida. Neste sentido, que revelou a sua natureza, Teilhard trabalhou para a sua elevação e para a elevação do mundo.

Esta imensa ideia, a evolução, foi combatida a princípio pelo cristianismo. No entanto ela deveria encher-nos de esperança e entusiasmo porque contém a promessa de um grande futuro. Só ela bastaria para dar-nos a coragem de enfrentar a vida com todas as suas lutas, perigos e dores, porque tudo isso leva a uma superação que, pelo seu valor e posição, representa uma melhoria que nos recompensará. No seu progresso parece que a vida vai tateando no escuro; tenta e muitas vezes falha, e tenta novamente, mas no fim a vitória é sua. Provam-no as posições superiores que conseguiu conquistar. Estas tentativas seriam verdadeiramente cegas, ou antes estariam intimamente iluminadas por uma luz que as dirige? Esta luz não aparece porque está escondida, sepultada nas profundidades do inconsciente que parece treva, mas que é luz, apesar de envolvida na obscuridade, luz que luta, para libertar-se desta obscuridade, para tornar a encontrar-se resplandecente em sua pureza, como para redimir-se da sua culpável destruição nas trevas da ignorância. Não é este o grande drama do ser? As religiões captaram este ponto central. Ninguém é mais evolucionista do que elas, mesmo quando negavam a evolução. Ninguém pode cancelar esta lei de ascensão, porque ela se encontra inscrita na vida e funciona sem que ninguém a possa deter, independente de todos, por cima de todos os juízos humanos.

Não há forma de existência que não esteja enquadrada ao longo do caminho desta grande marcha evolutiva do universo. O homem chegou finalmente ao ponto de dar-se conta deste fenômeno e pergunta: onde nos levará amanhã este imenso movimento? Geologia e Paleontologia mostram-nos o caminho percorrido. Cada minuto que passa fatalmente o continua. Não existe ser algum que não forme parte dele, todos dentro dele vivemos canalizados, e cada um a seu modo não pode deixar de segui-lo. Os mais atrasados buscam riquezas,  honras, poderes e os mais evoluídos lançam-se a conquistas de outro tipo. Os cientistas estudam a natureza para compreender o seus segredos. Os grandes navegantes descobriram novos continentes. Agora pretende-se alcançar o mundo planetário. De mil maneiras, situados em alturas diversa, intimamente, todos querem subir, de modo que a vontade de viver é na realidade vontade de evoluir. Elevar-se é a razão e verdadeiro conteúdo da vida. Para isso existimos.

A nossa humanidade está entrando, agora, na fase psíquica. Antigamente, pouquíssimos pensavam e esses dirigiam os povos como se fossem rebanhos de ovelhas. Hoje, todos começam a pensar um pouco. Descobrem-se valores e dimensões novas, pensa-se de maneira diferente da dos nossos antepassados. Ainda que sejamos egoístas e inimigos, vemo-nos obrigados a viver e pensar cada vez mais coletivamente, organicamente unidos. Forma-se assim uma enorme massa de vida e pensamento que envolve e domina todo o planeta. O homem se apropriará dos segredos e forças da natureza.  É em direção ama imensa vitória e potência de pensamento que se quer orientar o caminho da vida. A maior descoberta do século é o de haver entendido o imenso trabalho de descobrimento que é necessário fazer ainda.

No princípio tudo isto não foi mais que um confuso conjunto de esforços obscuros, mas trágicos, da vida para subir e do pensamento para reencontrar-se e manifestar-se cada vez mais conscientemente. Tudo feito às cegas, sem se saber porque e para onde, por um irresistível instinto, como o de um cego que ainda não vê, mas sente que a luz existe e a procura. Quem deu à vida este anseio de progresso, esta ânsia de evoluir, de expandir-se, de firmar-se contra tudo e contra todos os elementos desencadeados, contra os animais ferozes, o terror do mistério, as trevas da ignorância? No entanto, apesar de tantas dificuldades, esse impulso soube levar a vida até aqui, até ao homem, no qual começa a brilhar a luz do pensamento. Como podia surgir este “mais” por evolução do “menos” que o precede, se este “menos” não houvesse contido alguma vez este “mais”, assim como em uma semente escondida, não estivesse contida a planta a ser restituída à luz? E eis a maravilha. A evolução, pelo aperfeiçoamento das formas físicas, faz emergir uma qualidade nova do ser, entrando numa sua fase superior, a fase do pensamento, para onde está dirigida e onde nos levará? Assim como os primeiros selvagens do planeta não podiam imaginar a que chegaria o homem com a evolução até hoje, também não podemos imaginar hoje, até onde nos levará um dia a evolução. Perante tais perspectivas vale a pena verdadeiramente viver.

O estudo do homem pré-histórico ensinou muito a Teilhard e ele nos conta a visão que o impressionou. A partir daí encontramos os principais pontos de contato entre a Obra e o pensamento de Teilhard de Chardin.

A crise do mundo moderno é no fundo uma crise de pensamento, devida a uma sensação de vazio resultante da derrocada das velhas metafísicas, operada pela ciência. Elas, dada as formas mental do seu tempo, bastavam então para dar uma resposta às grandes incógnitas, e para deduzir uma ética suficiente para dirigir a vida. Essas construções, ainda que não estivessem comprovadas cientificamente e não respondessem à realidade, mesmo quando deixaram o mistério em pé, confortavam e civilizavam induzindo ao bem, prometendo aos bons o apoio de Deus; com a perspectiva de um prêmio ou de uma pena, apoiando-se no instinto utilitário da vida, educavam num princípio de justiça, impondo, segundo ele, determinadas normas de conduta, ao mesmo tempo que satisfaziam as necessidades psicológicas das massas, tirando-lhes o medo ao desconhecido, o medo do fim, do nada, assegurando a tão desejada continuação, e dando uma meta à vida. As religiões cumpriam uma função de proteção e de progresso, biologicamente suficiente para justificar a sua presença em nosso plano evolutivo.

A ciência hoje destruiu estas velhas construções metafísicas sem saber substituí-las por outras que possam representá-las nesta sua função, deixando deste modo o mundo com muitos problemas sem solução. Teilhard quis satisfazer esta necessidade humana de ter uma resposta a essas interrogações, uma satisfação às próprias exigências psicológicas, não se baseando já em sistemas, conceitos e terminologias tradicionais, mas sim na ciência. Fez então o que os homens de ciência não ousam, quer dizer, levou-a até as suas consequências metafísicas e espirituais, até ao campo das religiões, conseguindo satisfazer assim essas necessidades psicológicas, mas com a vantagem de oferecer uma resposta menos empírica e mais positiva, produto da lógica e dos fatos e portanto mais aceitável no mundo moderno porque é mais convincente. Este é o único trabalho que se podia fazer atualmente, no estado atual de desenvolvimento do pensamento humano; o que paralelamente temos tratado de fazer. Hoje a obra de Teilhard conforta-nos mostrando-nos quanto é necessário chegar a uma ciência mais completa e a uma religião mais demonstrada.

Assim, a ciência se torna metafísica e a metafísica se torna científica. As conexões entre os elementos do plano físico encontram correspondência com as que existem entre os elementos do plano espiritual. Entre os diferentes níveis de existência há uma ressonância dos mesmos princípios. Damo-nos conta de que nos encontramos num universo em que os fenômenos estão orientados em direção a um fim, fundidos num funcionamento orgânico unitário, iluminados por um pensamento interior, que nos mostra o significado e a razão de ser. Teilhard intuiu, como nós, a presença de planos biológicos diferentes, com suas leis cada uma relativa a cada um deles; em cada um essas leis dirigem o funcionamento do ser. Nos diferentes níveis estas leis correspondem umas às outras; são encontradas harmonicamente coordenadas, conectadas, analógicas, e no fim nos revelam fundidas no seio de uma lei universal única que representa o pensamento de Deus. A visão é unitária, orientando e compreendendo tudo dentro de si.

Esta visão que tudo abarca, desde o caminho divergente e o fracionamento na análise, nos conduz por um caminho convergente em direção à síntese. É assim que, como também para Teilhard, nos foi possível sair do isolamento dos especializados num só problema, para enfrentar em conjunto, o social, religioso, econômico, psicológico, científico etc., porque desde a orientação nas linhas gerais, éramos guiados a descer em cada campo, o que não seria possível se não se obtivesse primeiro uma visão global do todo. Assim é possível estudar o homem, não fracionado em compartimentos separados, mas no conjunto do seu ser físico-psíquico, na sua realidade integral, isto é, como ele é verdadeiramente, mas abstratamente dividido em compartimentos, abstração útil a fim de se efetuarem estudos, mas que não corresponde à realidade. Assim medicina e moral protegem-se e completam-se nos aspectos fisiológicos, religiosos, econômicos, sociais, metafísicos etc., integram-se alternativamente, terminam unindo-se num só funcionamento coletivo, fundamentalmente unitário. Como unitária é a visão do homem integral, a que se chega, visto na sua totalidade, concebido como uma síntese.

Uma ciência que se faz metafísica e uma metafísica que se faz ciência, podem satisfazer de um modo mais completo o instinto religioso do homem. Este instinto tem a sua função biológica porque representa um impulso para o super-normal que nos espera no futuro, porque enquanto expressa uma tendência a realizá-lo, constitui uma antecipação da evolução, de um estado que ainda não se realizou mas já existente na sua fase preparatória de aspiração e do ideal, e em vias de concretizar-se para fixar-se na mente, nos costumes e instituições humanas. começa-se por um desejo, por uma necessidade indefinida, e termina-se com a codificação para logo continuar com o mesmo processo, cada vez mais avançado. Assim a humanidade acaba por modelar-se sobre o ideal, seguindo e realizando visões cada vez mais elevadas.

Este instinto, querido pelas leis da vida para evoluir, existiu sempre, mas é natural que, com o progresso, exija uma satisfação cada vez mais aperfeiçoada. Em suas fases primitivas o homem não podia adorar senão um Deus feito à sua imagem e semelhança, porque não sabia conceber algo melhor. Atualmente o Deus cósmico, que a ciência nos deixa entrever, já não cabe dentro das velhas concepções religiosas. As nossas idéias evoluem intimamente relacionadas ao progresso da nossa capacidade de concepção. A religião de amanhã se unirá à ciência e deverá se basear em postulados racionalmente demonstrados se quiser ser aceita.

Antigamente essa necessidade não existia, porque não existia a ciência nem a respectiva forma mental moderna. Bastava a tradição, bastava um vasto acordo de aceitação, sobre determinadas soluções, para que o instinto religioso ficasse satisfeito. A crença se baseava na confiança. Bastava que tal filósofo ou teólogo o dissesse para que fosse aceito como verdade. A humanidade ainda infantil contentava-se com verdades já feitas, confeccionadas, prontas para uso, sem direito de análise, já que, não se sabendo fazê-las, tão pouco se sabia e queria pensar, preferindo-se delegar as faculdades do pensamento aos dirigentes. A vida funcionava então fora das dimensões do pensamento, que representava a barreira, ante a qual se detinha a maioria. Gozar, roubar, matar-se uns aos outros, eram as ocupações preferidas, para quais o homem se sentia melhor equipado. A forma mental era simples, as necessidades psicológicas limitadas. Para iluminar o mundo eram suficientes as intuições de poucos homens geniais. O rebanho, só para não ter de pensar muito, seguia, satisfeito, também porque as religiões lhe ofereciam concepções antropomórficas fáceis de entender e que correspondiam aos seus gostos. As massas e os dirigentes, como eram do mesmo nível evolutivo, estavam de acordo, e este consentimento, universal porque era produto do mesmo biótipo, era suficiente para fazer a verdade. Com relação ao desenvolvimento da vida naquele momento, tudo ia bem. Mas uma vez que esta avançou, aqueles problemas e necessidades avançaram também a exigirem soluções e satisfações que o passado já não saberia mais dar. Uma vez suprimido o consenso coletivo, base do valor da tradição, cai também aquela base sobre a qual se apoiavam as religiões. Deste modo elas se arriscam a permanecer na Terra só para uso dos primitivos ainda sobreviventes, mas sem seguidores cultos e convencidos, ou seja, fora da vida, como ruínas mortas do passado.

Eis o valor das metafísicas de tipo científico que Teilhard e a nossa Obra anunciam e preparam. Sobre elas terão que basear-se as religiões porque agora essas metafísicas são as únicas que podem satisfazer as novas necessidades psicológicas da humanidade. O instrumento religioso permanece, mas agora aperfeiçoado, já não pode aceitar as verdades empíricas que antes o saciavam. Para os novos estômagos é necessário alimentos diferente. O instinto religioso é um impulso em direção ao alto, tendente ao S, ponto  Ômega, e por isso subsiste em todos os planos de evolução, ainda que, em conformidade com eles, de forma, exigências e perfeição. E tal instinto subsistirá até que se sacie completamente, ao alcançar a meta do caminho evolutivo, que é Deus. O instinto religioso responde a um princípio biológico, e existe em função da evolução. Assim se explica Teilhard no momento atual, e podemos compreender a importância biológica de sua obra e das do seu tipo, importância esta devida à sua função evolutiva no seio das leis da vida.

Os seguros e tranquilos repetidores das coisas velhas, se bem que mais perfeitos na técnica e exatos na forma, não conhecem o trabalho dos criadores do novo, a dificuldade de expressá-lo com propriedade nos velhos termos feitos para outros conceitos e de fazer-se entender por quem sustenta que tudo foi já pensado, dito e resolvido, e que nada se pode acrescentar. Entre o velho e o novo é sempre difícil entender-se. Trata-se de duas funções necessárias, mas situadas em posições contrárias. Muitos chamam de fidelidade à verdade, a incapacidade do velho de sair da estrutura e categorias segundo as quais foi construída a sua forma mental na juventude. Chamam fé o seu medo de mover-se, de aventurar-se no abismo do mistério, e assim quereriam deter o tempo e a evolução.

Junto a estes existem também os dinâmicos, ardentes conquistadores de novos conhecimentos, ansiosos sempre de saber, descobrir, progredir. Trata-se de dois modos diferentes de conceber. Colocados perante o problema do conhecimento, comportam-se de forma oposta. Assim, quanto mais ignorante é o indivíduo, mas crê saber tudo, possuir toda a verdade, e tanto menos tem curiosidade por conhecer mais do que sabe. Perante o conhecimento fecha as portas, como contra um inimigo. Pelo contrário, quanto mais sabe um indivíduo, mais tem consciência se saber pouco, de não possuir toda a verdade, e mais curiosidade sente por conhecer mais do que sabe. Deste modo o primeiro, porque gravita em direção ao AS, resiste o impulso da evolução ao S; enquanto o segundo, porque gravita em direção ao S, acompanha este impulso e assim sobe em direção à luz. Colocá-los em contato significa opor o positivo ao negativo, pôr frente a frente dois pensamentos opostos, cada um deles não pode fazer outra coisa senão continuar sendo aquilo que é, repetindo o que, dado o seu modo de conceber as coisas, para ele é a verdade. Um dos dois tipos a entende como um grande impulso para a frente, enquanto o outro, como uma zelosa conservação do passado. A forma dinâmica quereria anular a estática; e a estática a dinâmica.

É necessário admitir que existem cérebros diferentes que pensam de maneira diferente, cada um capaz de funcionar só no âmbito da sua forma mental e incapaz de entender a linguagem de outras psicologias que se movem em função de outros pontos de referência. Pode então suceder: o que para um constitui uma grande verdade, para outro é um falar sem sentido. Destes dois raciocínios diferentes, cada um aprendeu, possui, e por isso gosta de repetir o seu, com ele medindo e julgando tudo. Quando dois interlocutores discutem, é porque falam duas linguagens diferentes e não se compreendem. Isto é o que sucede entre ciência e fé. Cada uma delas fala a sua língua, que a outra não compreende porque fala outra, isto é, pensa com outra forma mental. Para entender as duas, seria necessário conhecer as duas línguas, possuir as duas estruturas psicológicas, então se compreende que os dois pensamentos não são inimigos, senão complementares. Mas eles permanecem inimigos, porque cada um conhece só o seu idioma e não o do outro. Teilhard conhecia os dois e das duas verdades tratou de fazer uma só. Mas os seus leitores e juízes continuaram entendendo apenas uma e portanto condenando-o ou exaltando-o segundo o seu próprio idioma, que podiam dele assimilar. Assim cada um, segundo as suas categorias mentais e os seus quadros psicológicos, se escandalizou ou se entusiasmou, conforme as verdades que formavam o patrimônio mental de cada juiz. Podemos deste modo explicar-nos a adversidade dos juízos com respeito a Teilhard e, não obstante a grande importância da sua Obra e a das do seu tipo, como tarda tanto no mundo o seu reconhecimento e aceitação.

Tratemos de compreender, em profundidade, o significado do momento histórico atual. O que salta primeiro à vista é o seu aspecto negativo, o mais próximo e se encontra já em ação. Trata-se de um processo de destruição de valores do passado, conquistados com tanto esforço nos últimos milênios. Assistimos à dispersão dos mais preciosos tesouros da espiritualidade, premissa indispensável para uma sábia direção da conduta humana. Paralelamente, vemos que nada se reconstrói no lugar do que se vem destruindo espiritualmente, não surgem e não se afirmam novos valores daquele tipo, em substituição aos antigos, permanecendo sempre um vazio. A espiritualidade está em liquidação porque as suas velhas formas não convencem mais e se adaptam cada vez menos à mente moderna, não se sabe, ainda, substituí-las por outras novas, racionais e científicas. As religiões apresentam suas verdades num modo fideístico, à base de mistérios, e absolutista-autoritário; quando se trata de suprir a falta de provas, ele afasta o homem atual, que vai em busca de outras verdades: as científicas, mais positivas, demonstradas, praticamente utilizáveis. Hoje, pretende-se impor o problema da vida em forma diferente do passado, sobre bases claras e concretas e não sobre abstrações teóricas, colocadas fora da realidade da vida. Entretanto, entre o velho que não serve mais e o novo por construir, sucede a conduta humana desorientada; faltando-lhe diretivas superiores, vai à deriva, retrocedendo involutivamente em direção à animalidade. Assim, os progressos da técnica são usados ao inverso, não se faz deles um meio para alcançar fins superiores, mas para engordar-se no bem-estar ou para se matarem todos com a guerra atômica. No meio de tanto progresso, o mundo fica à mercê dos impulsos elementares, adequados mais a perdê-lo do que a salvá-lo.

Procuremos compreender o que está acontecendo. Quando um fenômeno chega à sua maturação, tende irresistivelmente a precipitar-se na sua conclusão. É como um parto e deve necessariamente realizar-se. A vida, no entanto, oferece-lhe os meios, estimula com impulsos, prepara tudo para que o fenômeno se cumpra com facilidade. Se o indivíduo, em vez de seguir a Lei até o fundo, nega-se, todo o processo no qual se encontra envolvido desmorona-se sobre ele e o que estava preparado para um progresso em direção ao melhor se transforma num retrocesso em direção ao pior. Este é o tremendo perigo que pesa sobre a humanidade de hoje, isto é, arruinar-se por não querer fazer bom uso dos novos poderes conquistados. Ora, precisamente para não se tornarem mortíferos nas mãos de um inconsciente, teriam a necessidade de ser dirigidos por uma nova sabedoria, ainda mais consciente e decisiva do que a dos séculos passados; neste momento, não temos nada além dos rudimentos da antiga, sem saber como substituí-la. O perigo é grave, enquanto a humanidade está absorvida no detalhe e sem dar-se conta do que acontece nas linhas gerais, arrisca o seu futuro e joga fora destino do porvir. Neste ponto do caminho evolutivo, ela se encontra numa bifurcação: se responder ao apelo ascensional da vida, subirá a um plano biológico ou nível evolutivo mais avançado, de maior civilização e menos luta, dificuldade e dor; se não responder, retrocederá a um plano biológico ou nível evolutivo mais atrasado, isto é, ao estado selvagem do primitivo e à correspondente dura forma de existência. O momento é crítico porque está em jogo a salvação imediata, positiva e controlável neste mundo, aquela que todos compreendem e tomam a sério, porque não é uma fé discutível, mas sim uma realidade biológica. Se não se aceita, se não se atende ao convite, amanhã a humanidade poderá chorar sobre as suas ruínas; em vez de dar um passo adiante para evoluir em direção ao melhor, terá feito um retrocesso, involuindo em direção ao pior. Quem conhece a estrutura das leis da vida sabe que tudo isto pode suceder.

O tema da descida dos ideais interessa sobretudo neste momento; porque eles nos apresentam o programa a realizar, enquanto evolutivamente representam uma antecipação de estados mais avançados que esperam ser realizados por nós no futuro. Chegou a hora da escolha, o momento da curva decisiva, do salto numa direção ou noutra. Procuremos fazer compreender o que está acontecendo, orientados pelo tratado nos precedentes volumes da nossa Obra, porque sem a premissa de um sistema filosófico-científico complexo, não é possível chegar a conclusões positivas. As espetaculares realizações da ciência mostram-nos que se está preparando algo de excepcional na história da humanidade. Algo se está movendo nas vísceras do fenômeno evolutivo e por isso inconscientemente o mundo se encontra numa ansiosa agitação, desconhecida no passado. Se falha o salto, não se sabe como e onde se irá cair. É perigoso tentar às cegas. É necessário mover-se orientados no seio do organismo fenomênico universal, dentro do qual existimos e de cujas reações não podemos prescindir, para saber o que se deve fazer, sabendo as consequências do que se faz. É necessário sermos sábios e previdentes, com conhecimento e consciência poderemos sê-lo. Tentando em nossos volumes realizar uma síntese universal, tratamos de dar uma contribuição neste sentido. Tudo isto é urgente, porque o fenômeno evolutivo está exercendo pressão para realizar-se e corre em direção à conclusão do atual período, início de outro, para resolver, de qualquer maneira, a nossa escolha, ou a favor da humanidade com o seu progresso, ou contra, com dano e retrocesso. O deslocamento em direção a novos equilíbrios já está iniciado. Enquanto a vida avança, o homem não compreende o que está sucedendo e resiste amarrado ao passado com a sua velha forma mental. Adiante há uma estrada cheia de luz, ao longo da qual a vida o impulsiona, mas ele continua olhando para trás, para um mundo cheio de trevas. Este é o tempestuoso contraste entre os impulsos opostos do momento atual. Ninguém pode mudar a fundamental razão do ser, evoluir, nem pode paralisar o irrefreável anseio de progresso, do qual a vida é constituída. Quem tem inteligência, consciência e meios, deveria ajudar os outros a avançar, o mais rapidamente possível, neste caminho que leva à salvação com a superação.

A humanidade deve escolher entre as duas direções a tomar. O caminho é um só: o da evolução. Pode-se percorrê-lo para frente ou para trás. Adiante se encontram os mais requintados valores de ordem psíquica e espiritual. O homem tem hoje nas mãos poderes jamais possuídos. Que uso fará deles? Servir-se-á para tornar-se sempre mais rico, egoísta e corrompido, permanecendo no plano animal, ou, pelo contrário, servir-se-á para ascender a um plano mais alto, transformando-se cada vez mais num ser de pensamento e consciência? Estes poderes podem ser utilizados nestas duas direções. Eles permitem um salto para a frente, de grandes proporções, mas se mal usados podem levar a um grande retrocesso involutivo. Ou se constrói um novo edifício, ou se fica a descoberto entre as ruínas do velho. Este é um desses momentos da evolução em que o ideal e sua realização assumem um valor especial, diferente do costumeiro. Melhor dizendo, o ideal não é mais, como se julga normalmente, algo de utópico, não positivo, estranho à realidade prática, mas ao contrário, introduz-se nesta realidade como uma necessidade vital, com um programa a ser realizado com urgência. Um programa necessário à salvação, para não perder-se no retrocesso, é preciso continuar a avançar ao longo do caminho da evolução.

O que está em jogo é imenso. Existe a perspectiva de um novo tipo de civilização, de uma era de bem-estar, de libertação da escravidão do trabalho e, com isto, de novas atividades muito mais altas e inteligentemente orientadas, realizadas por um biótipo humano mais evoluído, com outra forma mental, que está amadurecendo na profundidade do fenômeno da evolução. É verdade, a vida não apresenta ao ser tais problemas, nem solicita desenvolvimentos semelhantes quando não chegou a hora. Antes de chegar, a vida prepara longamente o fenômeno a fim de poder realizar-se, rodeia-o de condições adequadas, depois o protege e o ajuda para seu cumprimento. Mas quando tudo está pronto e amadureceu o momento da sua realização, a vida exige do ser um esforço proporcional às suas capacidades e o responsabiliza, se da sua parte falta a resposta adequada, deixando recair sobre ele as consequências. Então, a Lei de Deus se apropria do fenômeno e dela não é possível fugir. É permitido somente alterar as posições de cada um em relação a ela, isto é, violar-se, a si mesmo. Verifica-se aí o fenômeno do retrocesso involutivo. A Lei, automaticamente, castiga quem, chegado o momento em que tudo amadureceu e está pronto para avançar, não aceita a oferta, dela quer fazer mau uso e segue o impulso evolutivo em direção inversa, em vez de utilizar os novos meios dirigindo-se em direção ao S, aproveitando-os, dirige-se em direção ao AS. Querendo assim repetir o motivo da revolta inicial, é inevitável que as consequências sejam as mesmas; o precipitar-se de cabeça no abismo, para ficar ali sepultado, emborcado, como sucedeu a primeira vez, até ser realizado o trabalho de regresso ascensional.

Não há dúvida, hoje em dia a técnica científica e a organização industrial permitem sempre com menor trabalho alcançar maior produção, com menor esforço, maior bem-estar. Já se fala em dar, além do Sábado, também a Sexta-feira livre e reduzir as horas de trabalho dos outros quatro dias. Ora, o perigo reside em ter mais abundância de tempo e enriquecimento de meios não usados em sentido evolutivo, isto é, um capital não utilizado para realizar um trabalho mais alto, mas em sentido involutivo, ou seja, capital dissipado em satisfações de tipo inferior; não para facilitar um impulso mental e espiritual, mas para abandonar-se, em descida, embrutecendo-se em materialidade. Saberá o homem fazer bom uso do aumento de poder que ele hoje tem nas mãos? Depois de longos estacionamentos de milênios durante os quais a humanidade jazia em posição estática que julgava definitiva, chegou a hora na qual tudo tende a dinamizar-se para pôr-se em movimento, segundo um princípio oposto e deslocar-se para alcançar novas posições. O caminho está traçado pela Lei e, como já deixamos entrever, não pode verificar-se a não ser ao longo do percurso involutivo-evolutivo. Ou se avança em direção ao S. ou se retrocede em direção ao AS. Eis o perigo em vez de melhorar, dirigindo-se em direção ao S, este movimento deslize em direção ao pior, deslocando-se para o AS. No 1º caso caminha-se para a salvação; no 2º caso, para a perdição.

O fato não é novo na história, embora em menores proporções, já se verificou. Poderia suceder para toda a humanidade aquilo que sucedeu, no passado, com as classes sociais chegadas à fase de aristocracia, a da vitória segura e posição privilegiada, estabilizada na riqueza e no ócio. Aquelas classes sociais, chegadas àquele ponto de sua ascensão, em vez de continuar o esforço evolutivo, deixaram-se descansar, gozando o fruto do passado trabalho de conquista. Terminado o esforço e o exercício, perderam a capacidade e com isto o poder. Iniciou-se a corrupção, o enfraquecimento e a descida, para dar lugar a outras classes sociais que sobem do fundo; onde se sofre e se luta, se aprende e se avança. Esta é a história da ascensão, florescimento e queda das civilizações. Antigamente, este fenômeno abarcava só um limitado grupo humano, deixando a outro a possibilidade de substituí-lo quando aquele decaía. No caso atual, o fenômeno se estenderia a toda a humanidade, porque, brevemente, com a técnica e o trabalho, ela acabará por encontrar-se nas condições de abundância, nas quais se encontrava o império romano no seu apogeu, ou a aristocracia francesa antes da revolução. O perigo está, agora, se toda a humanidade chegar a elevar o seu nível econômico e difundir-se as perigosas características dos ricos, anteriormente limitadas a uma só classe social, as que corrompem e destroem, por inconsciência dilapidadora, no ócio e bem-estar gratuito. Isso poderá suceder com a humanidade, se não souber transformar a abundância, fruto dos seus novos poderes produtivos, num instrumento para um renovado esforço a fim de continuar avançando, em vez de preguiça e gozo.

Superado o trabalho material, o novo labor deveria ser de tipo intelectual, cultural, espiritual. Havendo-se libertado o homem da antiga forma de esforço penoso, que o embrutecia, atando-o à necessidade de satisfazer as suas necessidades mais elementares, seria indispensável, para não retroceder, que ele continuasse ainda a sua atividade, mas dirigindo-a a conquistas mais altas. O homem, no entanto, é o mesmo de antes, com idêntica forma mental. Subsiste, portanto, o perigo de que ele continue comportando-se como no passado, isto é, que em vez de encaminhar-se em direção a mais altas conquistas, comece a exceder-se em satisfações de tipo inferior, seguindo os seus impulsos de involuído, entregando-se assim ao abuso com a excessiva satisfação dos instintos mais atrasados, em vez de entregar-se à conquista de um progresso ulterior. Pode-se chegar, então, ao despertar e fortalecimento da besta em vez da construção do anjo ou do super-homem.

O bem-estar, posto assim nas mãos de um dado tipo biológico, não bastante consciente para saber fazer bom uso dele, poderá produzir mais mal do que bem. Constituirá sendo, para ele, não uma vantagem, mas um dano, porque a sua atividade, encaminhada em direção extrovertida em vez de introvertida, dirigir-se-á não ao desenvolvimento da parte espiritual, mas apenas à multiplicação das comodidades do corpo, com o fim em si mesmo, evolutivamente de escassa importância. Tomar o bem-estar material não como meio de progresso, mas como o maior objetivo da vida é prostituição do espírito, emborcamento de posições, continuação do caminho em descida, em vez de em ascensão. Assim, ao ideal se substituirá o utilitarismo; à fé criadora, o céptico cinismo; à fraternidade, o egoísmo; ao progresso, o estacionamento. O perigo está em terminar transformando-se num regresso, num requinte e potencialização de animalidade. Tanto progresso será inútil se a humanidade quiser entregar-se ao ideal até viver somente para gozar a vida, se ela se detiver numa exteriorização com o fim em si mesma, em vez de fazer do progresso um meio para alcançar uma interiorização, que utilize os valores materiais para desenvolver os espirituais.

Se o momento é perigoso, no entanto, também é maravilhoso, porque oferece possibilidades desconhecidas noutros tempos. O que impele a vida sempre para diante é um irrefreável anseio em direção à felicidade e o S sempre chama e a atrai desde longe. A felicidade não só se pode encontrar evoluindo em direção ao S. O erro consiste em buscá-la no inverso, isto é, involuindo em direção ao AS. Caminhando para trás, para satisfazer-se com o pior em vez de com o melhor, acaba-se por encontrar a dor, em lugar de alegria. Ora, a fim de não matar ninguém, necessita-se muito mais de sabedoria, para dirigir um automóvel numa corrida, ou um avião, do que uma simples carroça! Eis o que se pode conseguir com tais meios! Existirá, no entanto, hoje, tal sabedoria ou teremos de conquistá-la duramente, errando e pagando? Teremos, com a libertação do trabalho material, a possibilidade de dispor de muito tempo; mas, que uso saberemos fazer de semelhantes vantagens? Rara é a oportunidade presente e cumpre-nos aproveitar as circunstâncias atuais, não será fácil venham a sua repetição. O homem encontra-se perante perspectivas ilimitadas, com liberdade e poder, também com uma responsabilidade desconhecida nos séculos passados, lançado velozmente em direção a radicais mudanças de vida, com imensa possibilidade de novas realizações e proporcionadas consequências de alegria ou dor. Damo-nos conta, porventura, do desastre que representaria à humanidade o não saber fazer bom uso de tais possibilidades e usá-las, pelo contrário, no sentido de degradação? Que imensa dor pois, a de haver caído e ter de ficar em baixo, que tremendo trabalho foi necessário para sair e voltar a subir, a fim de reconquistar a posição atual! Tudo isto não é fantasia, pelo contrário, está estabelecida pelas leis que regulam a técnica da evolução.

O esforço para evoluir jamais deve deter-se. O suprimir as dificuldades a superar e o esforço necessário para vencer e fazer avançar a vida, acaba por corrompê-la e corroê-la. Estabelecida a satisfação de todas as necessidades e desejos, resta o vazio, a inaptidão, a decadência por falta desse dinamismo vital no qual se apoia a técnica construtiva das qualidades. Quem renuncia à sua contínua autoconstrução se destrói. Pode-se controlar, na vida individual como na história, os resultados produzidos e o fácil bem-estar. Tal posição de favor que no passado liquidou apenas uma classe social, hoje pode estender-se a toda a humanidade e ser uma destruição em massa. A salvação está em continuar o trabalho com atividades mais elevadas, de caráter intelectual e espiritual; em utilizar a libertação das necessidades materiais para levar a vida a um plano mais alto. Saberá o homem fazê-lo? Ou preferirá corromper-se na inércia, em vez de acelerar o passo em direção a mais elevados níveis biológicos? Neste sentido, a prosperidade pode constituir um perigo, um alimento grato, mas venenoso. Saber ser rico é muito mais difícil e arriscado do que ser pobre. Seria uma coisa nova na história ver uma sociedade rica que não se arruíne.

Cada conquista perde valor, se não serve para avançar. O caminho da subida está feito para ser percorrido. A lei é progredir. A evolução é uma pista onde não é possível deitar-se para dormir. A vida reside no movimento. Se este para, chega a morte. Todo o universo é movimento e apoia-se no movimento. Hoje, o homem possui os meios para realizar um grande progresso. Se isso não suceder, a responsabilidade será sua, como suas são as consequências. O momento está maduro para mutações profundas, mostra-nos o estado de agitação em que a humanidade se encontra. Sente-se, difundida, uma insatisfação em relação ao passado e uma preocupação em renovar-se a todo custo; todos os valores tradicionais são sujeitos a revisão e, mesmo que não se saiba qual deva ser o novo, o velho está em liquidação. Faz-se o vazio com a indistinta avidez de encher a vida com novos modos de pensar e agir. Estamos ainda na fase da tentativa, as novas formas, nas quais queremos modelar a nossa existência não apareceram; caminha-se ainda às cegas, à procura de alguma coisa completamente diversa; um vago instinto nos leva, não sabemos, exatamente para onde. A ânsia de renovação é indubitável, apesar de não se saber o seu desembocar. Por esta estrada se deverá chegar a um novo tipo de vida, no qual, os fermentos, agora em ebulição, tendo-se desenvolvido, afirmar-se-ão e se fixarão. Nota-se em tudo isto a agitação febril do momento crítico, o esforço da conquista, a incerteza perante o desconhecido. Isto acontece em todos os campos, em cada manifestação do pensamento e das atividades humanas. Desde as descobertas científicas até às ideologias políticas, da técnica à moral, das religiões à arte, está amadurecendo todo um novo modo de ver as coisas e de conceber a vida. Tudo isto ainda se induz em forma de ansiedade indistinta nos espíritos, assalta o homem como uma febre em que ferve a ânsia da hora crítica, na qual deve decidir se avança ou retrocede. A evolução faz pressão de dentro, instando o homem a ir para frente, obsessionando-o com a avidez de avançar confusamente, que explode no inconsciente. É ânsia de chegar ao novo estado com expectativa, para o qual tudo está pronto, mas ainda espera, para o seu aparecimento necessita ser fecundada pela adesão do homem e do seu indispensável esforço. Está incitando todo o passado que trouxe a vida até aqui e agora está fazendo pressão para que esta possa ascender mais.

Este trabalho deve ser nosso e livremente desejado. A Lei guia o fenômeno, prepara tudo, e no momento decisivo dá-nos um impulso à frente. Mas, nós devemos assumir o esforço da subida, decidindo-nos espontaneamente. A vida sabe, se quisermos, agora, existem as condições para conseguir o objetivo, realizando o salto à frente. Chegou portanto, o momento de usar as nossas forças. Alcançado este ponto da evolução, existe a possibilidade de superar o fosso e devemos saber superá-lo. Semelhantes condições favoráveis nos colocam na posição de responsáveis. A vida sabe, se quisermos, poderemos vencer as dificuldades e devemos, portanto, saber vencê-las. E se não o quisermos, a culpa será nossa, com as suas consequências.

Tudo está pronto. Falta somente a nossa boa vontade, a nossa adesão e decisão. Logo, a conquista e o resultado serão nossos. É justo então que o esforço também seja nosso. Quando tudo está pronto e existem as condições favoráveis existem para assegurar o êxito com o próprio esforço, negar-se é culpável. Esta é a hora. Amanhã tais condições poderiam não encontrar-se mais e não restaria senão o prejuízo, com o qual se pagará o erro. Agora o fenômeno está maduro, a Lei fez a sua parte e preparou a sua chegada. O restante pertence ao homem que, com o seu esforço, deve realizá-lo.

Eis a gravidade do momento histórico, a posição em que a humanidade se encontra ao longo do caminho de sua evolução. O que está em jogo é a sua felicidade futura, que pode fazer o contrário e chegar à infelicidade. Se o homem não souber decidir-se a subir mais, cairá. A Lei quer a ascensão, o delito de lesa-evolução se paga em forma de dor, tanto maior quanto mais baixo cair. Dada a estrutura da Lei, não resta outra saída senão pagar duramente. Podia-se ter subido e se desceu, podia-se haver melhorado e se piorou. Uma alegria superior estava à mão e não resta outra coisa senão a tristeza do paraíso perdido. Lamentavelmente, parece que tal sistema de agir está mesmo nos hábitos humanos. Mas, isto é lógico para quem compreendeu o nosso mundo e o resultado de uma queda do S no AS. O grave perigo atual é o homem querer repetir, outra vez, a queda, fazendo prevalecer o impulso do emborcamento em direção ao AS, e, por evolução perdida, precipitar-se na involução.

É difícil saber quando e se a experiência poderá ser repetida; quantos milênios de esforço serão necessários para preparar, novamente, as atuais e adequadas condições para verificar-se o fenômeno. O inconsciente coletivo sente confusamente a gravidade da hora, há no ar uma inquietude vaga, como de quem se sente preso nas formas do passado e trata de libertar-se, há como um ensaio de voo que se tenta com asas ainda não formadas ou inexperientes, um nervosismo incompreendido no seu verdadeiro significado de vago pressentimento apocalíptico. Estes sintomas são interpretados como patológicos e procura acalmá-los, atordoando-se em distrações para fugir à compreensão, ao esforço, ao peso da responsabilidade. Procura-se satisfazer o impulso vital andando para baixo, em vez de subir; fugindo aos deveres e à introspecção que no-los indica, procurando eximir-se com escapatórias e acomodações tradicionais, resvalando-se pelo caminho fácil da descida. A humanidade encontra-se perante uma bifurcação da evolução; sem ter plena consciência da gravidade do momento em que se impõe a escolha, poderá ter imensas consequências, quer no sentido da salvação ou da perdição. Uma vez encaminhado por um destes dois canais, será difícil retroceder e mudar de estrada.

Eis o significado do atual momento histórico. Esta é a hora da maior conquista da humanidade e da sua maior batalha, das maiores possibilidades e dos maiores riscos e perigos. Então, deslocando-se as posições de base de nossa vida, desmoronam-se as muralhas dos templos do passado, nos quais não há mais espaço ao nosso pensamento, para edificar-se outros maiores; construtores de nosso eterno destino, aprontamo-nos para subir outro degrau, ao longo da escala da evolução, em direção a um mais alto plano biológico. A revolução já está em ação, a verdadeira, a que é feita pela vida, acima  de todas as outras feitas pelo homem, de interesses ou de política. A voz de Deus, de dentro, grita: avante, avante! A sua mão está estendida para ajudar a humanidade a realizar o grande salto da transição evolutiva, ajudá-la a vencer as forças do mal que lutam para sufocar este desenvolvimento e querem transformar a subida em descida; ajudá-la a vencer as forças do egoísmo, do cálculo e da negação, que lutam, uma vez mais, para o AS prevalecer sobre o S.

O presente volume, como conclusão dos restantes da Obra, é, na hora decisiva, um sério apelo a quem tenha ouvidos para ouvir, para ser realizado o esforço da superação e se escolha o caminho da salvação, em lugar do caminho da perdição.

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Compreendido o significado do atual momento histórico, vejamos como prever o que de fato poderá suceder.

Seguindo a configuração celeste como se apresenta no fim de 1964, enquanto escrevo estas páginas, os astrólogos observam que a conjugação entre Urano e Plutão tem uma influência de tipo revolucionário, destruidor das velhas formas. Isto é útil como meio para libertar o terreno às novas construções e prepararia o advento da nova era. Plutão representa a influência demolidora do passado, das suas estruturas materiais e mentais. Urano representa a influência explosiva, o dinamismo criador do novo. Isto indica um contraste entre um despertar espiritual que quer realizar-se e a resistência de forças negativas que procuram impedi-lo. O momento atual seria, portanto, uma fase de laboriosa preparação de novos estados futuros.

Com influência menor, Saturno indica, pela sua posição, a passagem entre duas eras, com a função de render-se às contas, resolvendo-se o Carma com a liquidação do balanço passado e a preparação do futuro. Tudo, portanto, mover-se-ia em direção a uma nova era. Ao trabalho de íntima elaboração, deve-se aquela agitação febril, da qual falávamos anteriormente, própria do momento crítico e que se manifesta em distúrbios neuropsíquicos.

Há três elementos em jogo: uma parte negativa de resistência, devida à influência do AS; uma parte positiva, expressa por um dinamismo psíquico-espiritual, devida à atração por parte do S; e uma parte representada pelo esforço que o homem tem de fazer para realizar o salto à frente. Estes são os impulsos que constituem o fenômeno. Isto pode levar a desmoronamentos, a revoluções, a deslocações e reconstruções, mas o caminho da evolução segue em direção ao alto.

Observemos, agora, por via da lógica, como tudo isto poderá realizar-se. É fato positivo decisivo para profundas mutações que o moderno tecnicismo já está atuando e atuará sempre mais no ambiente e no tipo de vida humana. Com uma mais fácil abundante produção de bens, deve levar-nos da fase evolutiva de tipo econômico à de tipo intelectual-cultural-espiritual, que representa um nível biológico mais avançado. A evolução da vida se encontra num momento decisivo de seu transformismo, aquele que, segundo a terminologia de Teilhard de Chardin, leva à passagem da biosfera à noosfera.

Vejamos as causas pelas quais o fenômeno amadurece. Até hoje as bases da vida humana foram de caráter econômico. O possuir, sendo a coisa mais necessária para viver, foi sempre o ponto fundamental de referência em função do qual se orientou o modo de pensar e de atuar. Formou-se uma forma mental humana, em contradição com todos os ideais pregados, até venerada, como supremo valor, o deus – possuir. Sem meios materiais e não fazendo nada de exterior, o que a maioria entende; também os ideais e as religiões permanecem sujeitos ao domínio destes meios, não podendo realizar-se senão em posição subordinada a eles. O tecnicismo, com a abundância da produção, tende hoje a levar a humanidade para a libertação da tal escravidão econômica. Isto significa que outro será o ponto de referência segundo o qual se orientará o nosso modo de pensar e agir, assim se construirá e funcionará a nova forma mental humana. O homem, libertado do assalto das necessidades materiais, deverá encontrar um outro tipo de trabalho, dirigido à produção de outro tipo de bens, assim úteis à vida está virá encontrar-se noutra posição ao longo do caminho da evolução. Estes bens são os valores de um mais avançado nível biológico, até então incompreendidos pelos involuídos, mas cuja importância agora se entenderá. Eles são os valores espirituais, fundamentais no novo plano de vida, como, no precedente, eram fundamentais os econômicos. Verdade, moral, escala de valores, tudo é relativo ao grau de evolução alcançado.

Antigamente, a luta pela vida material era duríssima e todas as atividades humanas, físicas ou mentais, não eram dominadas. Até hoje as religiões continuam pregando a renúncia aos bens terrenos. Mas, em primeiro lugar, se apoiam nestes bens, em desacordo com o que pregam e condenam. Em pleno acordo, crentes e ateus lutam pelos mesmos fins, concretos, com os mesmos métodos, porque todos sabem que desinteressar-se dos bens próprios, para sonhar com ideais, pode significar a morte. As próprias religiões são as primeiras a constituir-se em organizações terrenas que possuem, administram os seus interesses como todos, até no caso de ordens religiosas baseadas no voto de pobreza. A fase economista está ainda em pleno vigor e a nova fase culturalista, com tendência ao enriquecimento do espírito, é coisa ainda para chegar. Hoje, o problema fundamental do homem não é o dos bens espirituais, mas sim o dos bens materiais. Estes dominam tudo e, sem eles, pouco se pode realizar na Terra. Assim, o mundo está cheio de igrejas frequentadas por pessoas que, com os fatos, demonstram crer em outra coisa.

O problema humano mais vivo é o do “meu” e o do “teu”. A luta mundial entre imperialismo comunista e imperialismo capitalista, é luta do “meu” e o do “teu”. O comunismo é uma ideologia de assalto ao sistema do “meu”, que é o da propriedade e capital; no entanto, com semelhante ideal tomou posse do que pertence aos outros, tira-o também do próprio povo, para concentra-la todo nas mãos da classe dirigente. O jogo é sempre o mesmo: o mais forte tira dos outros para si. Assim é a natureza humana e não é uma ideologia que pode transformá-la. Os fenômenos políticos e sociais são apenas um momento do fenômeno biológico, cuja expressão é uma consequência do grau de evolução alcançada. Por isso, o culto da posse é universal, mesmo dentro dos ideais políticos e religiosos que se proclamam isentos dele. Não há nada que lhe escape. Diz-se: minha mulher, meu marido, meus filhos, parentes, dependentes e clientes, minha cidade e minha pátria, meu partido, minha religião, até meu Deus. Tudo é meu, em função de mim que sou o dono. O homem vale não por si mesmo, mas pelo que possui. Esta é a estrutura da nossa forma mental, a base de nossa verdadeira moral.

O novo tecnicismo, com uma superabundante produção de bens, poder-nos-á superar isto, conseguindo deslocar o valor do eu, daquilo que possui àquilo que ele é. Para passar da tradicional valorização exterior à interior, será necessário aproveitar-se das novas condições de vida e deslocar a atividade de um trabalho de tipo econômico produtivo a outro de tipo intelectual-cultural-espiritual, dirigido não ao bem-estar material, mas que estará assegurado à formação da mais evoluída personalidade do super-homem consciente. Trata-se de uma mutação evolutiva, aquela pela qual, segundo Teilhard de Chardin, o ser desemboca da biosfera na noosfera, e segundo A Grande Síntese, entra-se na 3ª fase do físio-dínamo-psiquismo. Quando o homem tiver superado e organizado, em definitivo, o dinamismo dirigido à produção econômica de bens, através do tecnicismo, terá fixado o funcionamento em forma automática, de maneira que essa produção continuará a fazer-se por si mesma. Esse homem, realizada esta sua obra, poderá dedicar-se à construção de si próprio num plano superior do edifício biológico, e através de outro tipo de dinamismo, dirigir-se à produção de outros bens de caráter espiritual. Tudo isto é lógico porque faz parte do plano geral do desenvolvimento da evolução que vai do AS ao S, isto é, da matéria ao espírito. Tudo isto aparece mais evidente no período atual, porque nos encontramos no momento da passagem de uma era a outra, da mudança de posições; devido ao impulso para a frente, o transformismo se faz mais rápido, intenso e portanto mais visível.

Trata-se de uma transição biológica. Transformar-se-á o tipo de vida da humanidade, em suas várias manifestações, como economia, política, literatura, arte, filosofia, ética, religiões, direito etc., mudarão a forma mental, o tipo de trabalho, as condições do ambiente. As verdades consideradas absolutas, mas relativas aos séculos passados, transformar-se-ão noutras verdades que se julgarão absolutas e serão relativas aos séculos futuros; tudo mudando sempre, em relação ao grau de evolução alcançado.

A nova grande ocupação do homem não será a de conquistar, para possuir, luta que já não terá razão de existir quando for superado o estado de necessidade; será, pelo contrário, um trabalho dirigido à conquista do conhecimento e à formação da consciência. Tudo isto será aceito pela vida, porque representa um valor bio-lógico, ao mesmo tempo que constitui um modo mais seguro e completo de defesa e garante melhor a sobre-vivência. Estaremos diante de um tipo de luta praticada com meios mais inteligentes e, portanto, mais eficientes. De fato, não temos mais o indivíduo em completa ignorância, manobrado só pelos instintos e arrastado por eles, como um cego ao longo do caminho da evolução, mas um iluminado pelo conhecimento, assumindo as diretivas da sua vida e do fenômeno evolutivo no seu planeta. A luta pela ascensão continuará, mas, dado o progresso realizado, será sempre mais de tipo S e sempre menos de tipo AS. Sabemos o que significa tipo S e tipo AS.

De tudo isto se pode compreender: desta vez, não se trata de uma das habituais revoluções escalonadas em série ao longo do caminho da história, para realizar pequenas e graduais transformações, mas da conclusão de uma destas séries para iniciar uma de outro tipo. Em resumo, trata-se do salto de uma era a outra, trata-se de um processo de transformação que tende à criação de um biótipo mais evoluído. Hoje, estamos quase no fim de uma longa fase de amadurecimento, pelo qual o fenômeno se precipita na fase seguinte. Estamos na hora do parto. O feto está pronto. Teremos um recém-nascido, o homem novo ainda menino, que os futuros milênios levarão à maturidade. Processo lento e longo, mas inexoravelmente construído pelo tempo que marca o ritmo do transformismo sem nunca deter-se. Não mais o involuído de hoje, mas o evoluído de amanhã dominará e, como maioria, imporá as suas leis bem diversas. Explicamos suficientemente em nossos livros quão diversa é a sua forma mental, a sua ética, religião, tipo de trabalho, o seu fim a alcançar. Hoje, é exceção e, perante a atual realidade biológica, é utopia; amanhã, esta será realidade. Hoje, é uma antecipação isolada, um mártir pisado para abrir caminho aos piores; amanhã, estará no vértice como mente diretora da evolução biológica do planeta.

Este é o esplêndido desenvolvimento que nos espera, programado pela leis da evolução; se o homem não quiser ser louco até precipitar-se num retrocesso involutivo, abusando no mal, na direção do AS, contrário às condições favoráveis que o impulsionam para o bem, em direção ao S, dilapidando assim o fruto da laboriosa maturação dos milênios passados.

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Observemos ainda este fenômeno que a evolução está, agora, amadurecendo, nos seus elementos ou na técnica e lógica que a vida usa ao desenvolvê-los. Falamos do culto da posse e da sua correlativa forma mental. É, precisamente, a esta nova forma mental que transformar-se-á o homem do futuro. É natural que, passando a uma mais avançada fase de evolução, mude também o seu modo de conceber a vida, segundo o seu modo de viver e funcionar.

Observemos como o homem se está preparando para entrar nesta sua mais avançada fase de evolução, como o novo modo de existência está se encaminhando. A transformação evolutiva que na estrutura da massa humana, ainda está em grande parte amorfa, está amadurecendo e consiste em levá-la cada vez mais para o estado orgânico; mais exatamente, consiste em passar do atual (ainda vigente) estado ou modo de existir de tipo individualista-separatista a um outro, de tipo orgânico, colaboracionista.

Independentemente do comunismo, fora da sua zona de influência no mundo, afirma-se cada vez mais uma tendência geral à socialização. O comunismo não é mais do que um aspecto da expressão mais ousada, ativa e evidente deste fenômeno, o socialismo, que assalta toda humanidade. Tratando-se de um fato que se encontra por toda a parte, mesmo em terreno politicamente oposto, como também de profundas mutações no modo de conceber e colocar os problemas, de agir, de regular as relações entre os vários elementos da coletividade, enquadrando-os numa nova ordem, pode-se verdadeiramente falar de transformação evolutiva e de fenômeno biológico. O comunismo, mais do que um consciente iniciador, seria só um instintivo seguidor, obediente realizador das leis da vida, as únicas que sabem onde a humanidade deve chegar e são as que verdadeiramente dirigem a história. Trata-se, de fato, de passar a novas formas de vida, coletiva, inteligentemente organizada, isto é, a um modo de viver mais completo, complexo e perfeito, como é o estado orgânico. Quem entende o significado da atual tendência da humanidade à coletivização, compreende que se trata de uma transformação profunda que transcende o problema político e ideológico, assume a importância de conquista de uma nova posição biológica, situada numa mais avançada fase de evolução.

É natural que a transformação, atuando em profundidade, seja também psicológica e se estenda nos vários setores da atividade e da natureza humana. É natural que o instituto de propriedade, baseado ainda sobre o velho modelo social, individualista-separatista, ressinta-se deste novo modo de conceber a vida coletiva. Como reação a tal sistema, em razão da nova maturação evolutiva, explica-se a universal tendência, mesmo nos países capitalistas, a limitar cada vez mais o conceito individualista e separatista de propriedade absoluta; explica-se, também, a vontade de uma progressiva circunscrição dos seus abusos, permitidos pelo princípio atávico do poder ilimitado pelo dono. No caso extremo do comunismo, o ataque é frontal, para destruir definitivamente o próprio instituto da propriedade. Nos países capitalistas ela é atacada em forma mais moderada, por sucessivas aproximações, não para destruí-la, mas para discipliná-la. Também aqui, a antiga forma absoluta, vai-se lentamente corroendo por ser rodeada, limitada condicionada. A propriedade da fase individualista-separatista não pode sobreviver em nova fase de evolução, senão transformando-se num tipo de propriedade orgânico-colaboracionista, porque toda a sociedade humana se está transformando neste sentido, e todas as suas manifestações devem seguir o ritmo da evolução que tudo arrasta consigo. Assim vai desaparecendo o conceito de propriedade exclusivista-absolutista e se atualiza, paralelamente, com tudo o mais, fazendo-se cada vez menos abuso de egoísmos e sempre mais função social.

Se bem em diversos graus, este fenômeno universal de assalto destrutivo ou de limitação da propriedade, tem um significado próprio. Nasceu e se justifica como reação aos abusos que se fizeram no passado com a humanidade, esta, havendo amadurecido, por evolução, agora, consegue ver e não está mais disposta a suportar. É necessário compreender que a evolução, avançando em direção a um estado mais perfeito que o anterior, tem a função de polir o passado, libertando-se de todas as suas superestruturas que a desviaram e das incrustações parasitárias, erguendo-se sobre as suas culpas e defeitos, sem o que não é possível ascender. Esta relação verifica-se numa intensidade proporcional ao abuso em que a instituição degenerou. Para libertar-se da doença, procura-se matar o enfermo, isto é, combate-se uma instituição que, corrompendo-se, acabou por tornar-se prejudicial. Aconteceu o mesmo com o assalto violento do ateísmo contra as religiões. A culpa está no abuso que fizeram em nome de Deus. No caso do comunismo, o ataque contra a propriedade, contra quem a possui, é violento, em razão da total resistência. Isto obriga a evolução e ninguém consegue detê-la, a usar a força para progredir, quando esta se torna necessária para avançar. Neste caso, o motivo da violência está na resistência do passado, este não quer renovar-se, por isso, para dar o salto à frente, periodicamente a história recorre às revoluções. Se acontecem, porque são úteis à vida, de outra maneira não as produziria. Pode-se ver como elas são úteis ao progresso, mesmo que isso se verifique muito tempo depois. Ninguém admite hoje que seria um bem regressar ao regime anterior à revolução francesa ou ao poder temporal dos papas. Mas quem podia condenar naqueles tempos tais regimes? Por isso, o ocidente capitalista vai acompanhando, lentamente e de longe, o extremismo reformador do comunismo. Pode-se entender, também, o fenômeno num sentido completamente diferente do político, como um instrumento nas mãos de Deus (para o cético traduzir: meio com o qual se realiza o pensamento e a vontade da evolução), quando não existe outro meio, a não ser a destruição, para realizar os supremos fins da vida. Só por ignorância se pode acreditar que, aos interesses egoístas de um grupo ou classe social, seja permitido deter o movimento ascensional da humanidade, num universo em que tudo está regulado. Hoje, isto se tem verificado com particular intensidade.

As transformações acima referidas não podem ser consideradas como um fenômeno isolado, mas arrastam consigo, envolvido na mesma corrente, tudo o que se encontra perto dele, paralelo, afim, influenciável de qualquer modo. Tudo está conexo e se repercute comunicando-se pelas vias físicas, dinâmicas e espirituais do universo. Destas deslocações se ressente o vigente método de luta pela sobrevivência. Até agora, baseava-se sobre a posse dos bens, sobre a sua conquista, defesa e conservação. Tudo isto acaba, é o transformar-se, com a evolução, do conceito de propriedade. É certo, permanece a fundamental necessidade de procurar-se os meios de subsistência. Agora, tal problema deve ser resolvido por outras vias. Se no passado as bases da vida se apoiavam na propriedade, o que implicava numa perpétua luta contra os excluídos, ávidos de empossar-se, porque ser dono era tudo, em nova fase, elas se apoiarão sobre a capacidade e dever do indivíduo de produzir para a coletividade, no seu correspondente direito, implícito na fase orgânico-colaboracionista, de receber daquela sociedade a defesa e a ajuda necessária para sobreviver, como justa recompensa do trabalho realizado para sua vantagem. Surge assim, favorecido pelo tecnicismo, um conceito novo: a valorização do trabalho que se substitui ao valor da propriedade. A produtividade toma o lugar e assume a função que primeiramente realizava a posse. Tudo isto sacode a vida humana da sua posição estática e a dinamiza, exaltando a função criadora em vez da conservadora; significa um método diverso de enfrentar e resolver o problema da existência, de se procurar os meios de subsistência, de conduzir a luta pela vida. Esta transformação fixa na raça humana dois importantes conceitos: o da necessidade de trabalho para todos e o conceito paralelo da necessidade da previdência social.

Veremos ainda que a transformação se torna cada vez mais vasta, invadindo outros aspectos da vida. Valorização do trabalho significa valorização do homem, agora dinamizado e elevando a uma nova potência e a mais alta dignidade. Criando com a sua atividade e inteligência, ele passa agora da sua precedente posição de servo das coisas possuídas, máximo valor do passado, ao qual ele tinha de se subordinar, para dominá-las, reduzindo nas suas mãos a um instrumento criador. Esses meios, que chamamos propriedade e riqueza, deverão ser do tipo diferente para o homem futuro, porque o valor não será medido pelas posses, mas pelas qualidades pessoais e capacidade de produção; não se basearão no poder de exploração de bens com o trabalho dos outros, mas no rendimento da habilidade própria e da atividade. O indivíduo não valerá por ser proprietário de terras e capitais, mas porque é proprietário de um cérebro, de um conhecimento e consciência e de muita vontade de trabalhar. Eis o conceito novo que leva o elemento humano ao primeiro plano.

De tudo isto se vê quão profunda, importante e plena de consequências, é a atual transformação evolutiva. Muda completamente, a unidade de medida e o ponto de referência, em função dos quais se julga o indivíduo e se estabelece o seu valor. Não vale por aquilo que possui, mas pelo que sabe fazer; não pela sua riqueza, mas pelas suas qualidades; não em relação à propriedade, mas em relação ao trabalho e à produção. É natural, cada transformação evolutiva, deslocando a posição do ser a um outro nível ao longo da escala da evolução, traga consigo também um deslocamento na posição dos termos da escala de valores. Trata-se de um verdadeiro avanço biológico enquanto nasce um valor novo: o homem, anteriormente em estado de germe aguardando nascimento, valor este que se substitui ao tradicional, os bens possuídos. Assim consegue libertar-se da escravidão das coisas, das quais dependia como de valor máximo, para transformar-se, ele mesmo, em valor máximo. Como se vê, a revolução é profunda, porque chegas às raízes da personalidade humana, mudando a sua forma mental, ao mesmo tempo que desloca as bases econômicas, sobre as quais se apoia a estrutura da sociedade e a atual técnica da luta pela vida.

Esta transformação traz consigo outras consequências. O instituto da propriedade historicamente representa uma posterior legalização, para estabelecer juridicamente a favor do proprietário um aleatório estado de fato ou posse, formado no início, fora de qualquer lei, por um livre ato de apropriação. É natural, portanto, que muitos tenham ficado excluídos de tal conquista e não compartilhando de suas vantagens; com o mesmo método, são levados a repetir o mesmo ato, à custa de quem o realizou primeiramente. Eis como surgem os ladrões e a necessidade de uma propriedade armada, em contínua defesa contra eles. O furto e a propriedade são duas forças opostas que se equilibram no seio do mesmo fenômeno. Uma implica na outra, leva-a consigo, fazendo-a nascer tão logo, outra nasça; porque ambas fazem parte do mesmo regime, e apoiam-se sobre a mesma forma mental da avidez egoísta e seguem inseparáveis. Esse tipo de proprietário e ladrão, no fundo, são como dois cães à volta do mesmo osso. O primeira luta para continuar sendo dono, esta é a substância das defesas jurídicas; o segundo luta por tornar-se dono. Esta é a substância dos assaltos, em pequena escala com o furto e em grande com as revoluções. Para transformar este segundo termo em outro, eliminando-o nesta sua forma, é necessário transformar, também, o primeiro, porque enquanto este continuar sendo o que é hoje, não poderá separar-se do seu fiel companheiro.

Ora, a atual transformação evolutiva procura, precisamente, transformar aquele regime num outro, de outro tipo, o que implicitamente leva à eliminação de todas as consequências do primeiro. Esta dissertação não teria sentido se existisse uma propriedade verdadeiramente justa, exclusivamente fruto de trabalho e economia. Esta, em pequena escala, poderá também existir. Mas, não é certamente com este método que se fazem riquezas. Para os males atuais não existe outro remédio senão uma mudança de método, hoje, isto está se preparando. É certo, se quiser obter paz e libertar-se do furto e das revoluções, será necessário chegar a um acordo entre quem tem e quem não tem. Até esse momento, o que não tem andará à caça do que tem, este, por sua vez, deverá viver armado no seu castelo. Esta é a luta entre comunismo e capitalismo. Não estamos aqui tomando partido por nenhum programa político. É só uma  constatação imparcial do funcionamento das leis da vida e das inevitáveis consequências do tipo de forma mental que dirige o atual animal humano. Dia virá em que o conteúdo do “meu” será diferente, isto é, quando já não será o que possuo como tesouro acumulado, mas sim o que sei fazer e possuo como proprietário da minha própria capacidade de produzir. Neste dia cairão automaticamente as ameaças que, hoje, pesam sobre a propriedade. O novo tipo de propriedade será inerente à pessoa e ninguém poderá roubar, nem por furto, nem por revolução. Os ladrões nunca poderão levar as nossas qualidades pessoais.

Esta transformação pode levar a consequências ainda mais vastas. Superada a fase do regime separatista do “meu” e do “teu”, acaba por cessar o estado de guerra que dela deriva. Tanto para os indivíduos como para as nações, são inevitáveis as consequência de uma propriedade nascida da posse e praticada com fins exclusivistas, gerando a classe dos esfomeados, prontos ao assalto. Todos os momentos de cada fenômeno estão conexos, um contido em germe no outro, com todas as suas consequências. Com os referidos problemas, está conexo também, o da multiplicação não controlada, sobre a qual voltaremos mais adiante. Até hoje a vida foi induzida à conquista com o método de multiplicação das massas humanas, lançando-as ao assalto dos povos mais ricos. Propriedade e reprodução são fenômenos interdependentes, porque a segunda subsiste à custa da primeira e à necessidade de conquista de espaço vital, esta, representando os meios à sua existência, estabelece os limites daquela. Numa sociedade civil e ordenada, estes fenômenos deveriam ser inteligentemente regulados e não deixados ao arbítrio dos inconscientes. As guerras não poderão ser eliminadas com destruições e dores intermináveis, se não se eliminar a sua causa primária. Vivemos num mundo de leis, constituído por uma engrenagem de causas e efeitos, de onde não se pode sair. Cada tentativa neste sentido é um erro pelo qual se paga. A liberdade que conduz para fora da ordem e viola os equilíbrios da vida, em prejuízo dos outros, não pode levar a uma conquista, mas principalmente à reação do ofendido, isto é, não à vitória, mas à guerra.

Por que isto? Parece um destino maléfico per-seguindo o homem desde o seu aparecimento na Terra. O seu baixo grau de evolução, isto é, a sua posição ainda de involuído, prende-o dentro do seu estreito egoísmo, ligando-o a uma forma mental que, como uma condenação, persegue-o, colocando-o em luta com todos. A causa primária está naquela forma mental, na sua natureza humana atrasada, está no fato de ainda não ter sabido evoluir até formar uma consciência coletiva, que o leve a disciplinar-se numa ordem e todos, espontaneamente, possam colaborar em paz para o proveito comum.

Mas, por que o involuído é egoísta e possui semelhante forma mental, causa de tantos dos seus males? Na raiz destes, há uma razão mais profunda: o ser, pela sua revolta, é um decaído, mergulhado na cisão. Do estado orgânico unitário, na origem dos tempos, emborcou-se e se fragmentou no separatismo em que ficará, enquanto não conseguir, evoluindo, reconstruir-se neste originário estado orgânico unitário. A vida, chegada com a humanidade ao mais alto nível evolutivo do planeta, está agora tentando os seus primeiros passos para reaproximar-se da reconstrução daquele estado originário. Eis o mais remoto e profundo significado do coletivismo, hoje em moda, visto em função das grandes transformações desejadas pela evolução. Por isso, a hora presente toma esta direção no desenvolvimento da história. Agora, cabe ao homem realizar, também, este trabalho e passar a um grau mais avançado de civilização. Eis as razões da condenação à luta pela vida e às guerras entre povos, e o seu remédio. Só a evolução nos pode permitir libertar-nos dos trabalhos forçados de tal tipo de existência que está esperando os involuídos. A vida terrestre já conhece este tipo de vida organizada, porque realizou os seus primeiros esboços nas colônias de insetos (abelhas e formigas) e, ainda melhor, nas colônias de células (organismo humano). Nelas nenhum elemento se levanta contra o outro e todos estão espontaneamente ligados por um egoísmo coletivo unitário e não individual separatista.

Hoje, assistimos ao início de um processo unificador da humanidade, isto implica na formação de um biótipo funcionando com outra forma mental, que leva a atuar e a viver de modo diferente. Tal unificação é o resultado de uma coletivização que, naturalmente, implica, por formar parte do novo sistema, a abolição das revoluções e das guerras. Novo biótipo, nova forma mental, nova concepção da vida, novo modo de comportar-se, estas são as sucessivas mudanças ligadas em cadeia que poderão levar a uma nova civilização feita para perdurar, fixando-se na raça humana. A evolução no passado deu prova de saber realizar transformações bem mais profundas. Com ela, gradualmente, tudo pode mudar. O homem se civiliza, faz-se mais inteligente e menos feroz. A atividade humana se torna mais pacificamente produtora e sempre menos de tipo guerreiro, porque os novos cérebros conseguirão compreender quão prejudicial para todos é o método da agressividade. De resto, está na lógica de todo o processo evolutivo que se deve realizar um passo mais em frente na obra de reordenação que vai do AS ao S.

A vida segue vias utilitárias e o ser aceita o que lhe traz vantagem. Na prática, não há quem não veja a conveniência concreta de dirigir as próprias energias, em sentido produtivo de bem, em vez de em sentido destrutivo, no tormentoso esforço das guerras. Com o novo método, a vida se torna muito rica e defendida e isto com muito menor desperdício de energias, mais do que com o velho método ainda vigente. Não se poderá fugir a compreensão e à facilidade que é resolver o tremendo problema da sobrevivência, desenvolvendo-se como inteligência pacífica produtora, não como capacidade de furto e de agressão. É precisamente por estas vias que a evolução tende a levar o ser em direção a contínuos melhoramentos, reabsorvendo a dor e criando a felicidade.

Observemos, agora, um outro aspecto deste fenômeno evolutivo tendente à unificação. É incontestável, hoje, que o aprofundar-se do conhecimento leva à especialização. Pode parecer que este método leva à separação em vez de levar à unificação. Ele se difunde porque permite a cada um aperfeiçoar-se no seu ramo, oferecendo assim a possibilidade de realizar um trabalho melhor dentro da própria função e particular capacidade. No entanto, a especialização oferece o perigo de um afastamento e isolamento de cada cérebro especializado. Surge, então, a paralela necessidade de coordená-los, para não acabar-se no caos de uma torre de Babel, em vez de chegar ao estado a que a vida aspira, isto é, ao de colaboração, próprio da fase orgânica. Se a vida não corrigisse o impulso divisionista da especialização com um equivalente impulso unificador, o resultado seria desagregante em vez de construtivo, e a evolução retrocederia para o separatismo em vez de avançar para a unificação. Mas, a tendência unificadora é mais forte do que o impulso separatista e por isso está destinada a vencer. Vemo-la manifestar-se na formação das grandes unidades políticas no mundo, reduzidas só a duas principais, um dia deverão acabar por formar uma só. Hoje, junto com a tendência separatista do conhecimento na especialização, surge uma tendência compensadora à unificação, pela necessidade de uma síntese universal orientadora. Até as religiões procuram aproximar-se com um colóquio para chegar a uma compreensão unificadora.

Por evolução, nada pode deixar de dirigir-se à unificação. É este o princípio das unidades coletivas, já noutro lugar explicado por nós (A Nova Civilização do Terceiro Milênio – Cap. V “As Grandes Unidades Coletivas”), pelo qual os elementos, em vez de se separarem com a especialização das suas funções, são retomados no círculo de organizações cada vez mais vastas, incluindo as organizações componentes menores, escalonadas por grandeza e complexidade ao longo do caminho da evolução. A crescente diversidade a que conduz o aperfeiçoamento, acaba por tornar-se não um elemento de cisão mas de unificação, porque sujeita a um misturar-se contínuo que funde todos e cada um dos elementos componentes. Vemos a vida utilizar este método, aproximação colaboracionista, no que se poderia chamar de uma simbiose universal. Os elementos constitutivos do átomo, dentro dele fundem-se num sistema; os átomos, depois, se juntam com outros e formam sistemas mais complexos nas combinações químicas dos corpos; as moléculas, por sua vez, coordenam-se nos sistemas celulares e as células se unem a outras para funcionarem em conjunto, formando órgãos e organismos. Estas unidades coletivas já tão complexas são os primeiros elementos constitutivos de unidades ainda mais vastas. No homem, a união de indivíduos faz a família, depois o grupo familiar, a cidade, o partido, a nação, a raça, e por fim, a humanidade. Pensemos que o processo unificador não pode deter-se neste ponto, e que tem de continuar com uma união de todas as humanidades, até chegar a um estado orgânico, unificador de todas as formas de existência do universo.

Temos estado observado por quantos caminhos a evolução humana se está, hoje, amadurecendo. Cada desenvolvimento está conectado com outro, provoca-o ou está por ele condicionado. O fenômeno base é uma transformação do tipo humano que agora evolui em relação às qualidades cerebrais, é uma transformação de forma mental, do modo de conceber, de resolver os problemas e, em consequência, da forma de agir, esta será mais inteligente, pacífica e eficiente. Agora, a evolução não é mais orgânica, de formas, chegada com o homem ao seu mais alto nível, começa a tornar-se de tipo espiritual. O amadurecimento faz-se cada vez mais profundo, penetra no interior, em direção à substância do existir, atua por dentro, nas raízes do ser, assalta os órgãos diretivos para que depois seja o próprio homem a projetar os resultados para o exterior, realizando com a sua ação, o seu pensamento no plano concreto. Nasce daí, uma transformação de ambiente, a qual depois reage, oferecendo condições de vida diferentes, que por sua vez, permitem uma evolução mais avançada. Assim nasceu a ciência e a técnica que facilitam a produção de bens e enriquece o homem, libertando-o das duras necessidades materiais e do estado de luta feroz para sobreviver. A técnica produziu os meios de comunicação utilíssimos para aproximar os elementos distantes e mantê-los em contato, sem isto não é possível chegar à compreensão recíproca, à colaboração e, por fim, ao estado orgânico unitário. Quantos gênios no passado realizaram, sem resultados, esforços desesperados nesta direção evolucionista, porque lhes faltavam os numerosos meios que oferece a técnica! Só hoje se começa a compreender a possibilidade de uma civilização mundial única, porque foram abertas todas as estradas do mundo, circulação e comunicação não só de mercadorias e de pessoas, mas também de pensamento. Hoje, busca-se concretizar ideais, como a unificação econômica de vários Estados, coisa anteriormente inconcebível. É a evolução que exerce pressão para arrombar as portas do separatismo; a mesma que arrombou as portas e abateu os muros que fechavam as cidades medievais; hoje destrói alfândegas, limites, nacionalismos e racismos separatistas, para se aproximar cada vez mais da fusão num só organismo. Assim, também, o progresso da mecânica pode ser útil ao desenvolvimento do pensamento.

Então, as coisas mais díspares, aparentemente distantes, acabam por convergir e cooperar para o mesmo fim. O progresso da medicina e o conhecimento das leis da vida poderão permitir ao homem tomar a direção do fenômeno da evolução biológica do planeta, indispensável a uma humanidade chegada ao estado orgânico. Em tal regime de ordem não será admissível uma multiplicação não controlada, que não tenha em conta as suas imensas consequências demográficas, econômicas, sociais. Uma sociedade orgânica será responsável, para cada um dos seus elementos e das consequências de cada ato, nada será abandonado à liberdade dos inconscientes. Serão isolados, como elementos de desordem, todos os que, dando nascimento desordenado a novos seres, atentam contra a ordem coletiva; serão considerados como um perigo social quantos procurem lançar no seio da coletividade, que terá de suportar o seu peso, loucos, doentes, incapazes de serem arrastados; ou esfaimados, desviados e criminosos, estes últimos prontos a conquistar a vida para si, assaltando o próximo. Uma vida melhor não poderá ser alcançada senão numa posição de ordem, de previdência, de disciplina.

Nestas novas condições de vida, muitos conceitos sofrem variações. Como se passará cada vez mais do conceito de propriedade, exploração egoísta, ao de propriedade em função do interesse coletivo, mais do que individual; assim se passará do conceito de autoridade, entendida como posição de domínio sempre em vantagem de quem a detém, ao conceito de autoridade entendida como serviço a favor da coletividade e função social. Haverá alterações interiores, profundas, de convicções e forma mental, com importantes consequências no funcionamento da organização social. Dessa forma o princípio de autoridade, nascida como opressão escravagista, transforma-se em benéfica potência diretriz e protetora da vida.

A relação de tais transformações poderia continuar, com diversas alterações delas decorrentes. É toda uma frente de amadurecimento que avança. Na base de todas essas maturações está a maturação evolutiva do biótipo humano, da sua mente, da sua capacidade de compreender e dirigir a sua atividade criadora, representando o centro genético das suas obras. Esta maturação e a ciência, que dela derivou, levarão ao completo domínio das forças da natureza. Isto significa não só potencialização e valorização do esforço do homem que o realiza, mas também um caminhar em direção a um tipo de trabalho de técnica especializada, o qual exige uma prévia cultura e implica assim um processo de intelectualização, porque a atividade se transfere do plano do esforço material do servo ao plano da função mental do dirigente. Mas este novo tipo de vida não será possível senão no seio de uma nova civilização, deixando, com a sua organização, o indivíduo liberto do assalto das necessidades materiais, às quais, tudo se encontra subordinado, permitindo-lhe dedicar-se a coisas mais elevadas; atualmente, a procura do dinheiro se impõe como finalidade principal de toda a sua atividade. Isto será facilitado pelo fato de que o estado orgânico implica o nascimento de uma nova função social, através da qual a coletividade se converte em protetora do indivíduo, até agora abandonado às suas próprias forças, em luta contra os seus semelhantes. Esta função de proteger coube, somente ao grupo em favor dos seus componentes, enquanto cada grupo luta com os demais. Deste sistema dos castelos armados sempre em guerra entre eles, sejam partidos políticos, religiões, coligações de interesses, nações etc., deste primitivo sistema separatista medieval se passará ao já mencionado princípio das unidades coletivas, através de sucessivos reagrupamentos cada vez maiores, até ao máximo que os abraçará a todos, fundidos dentro da mesma unidade: a humanidade. Não mais luta entre indivíduos que não se conhecem senão em termos de rivalidade, cada qual indiferente aos problemas dos outros, mas antes colaboração para que estes sejam resolvidos. O progressivo aumento das providências sociais em todos os países do mundo e em todos os setores da vida humana, expressa o desenvolvimento deste fenômeno.

Tudo isto se manifesta a fase de superação em que hoje o mundo se encontra, a qual o mundo se encontra, levando-o em direção a um desenvolvimento mental que, mesmo sendo ciência e tecnicismo, é sempre conhecimento e conduz à espiritualização, no mais vasto sentido. Qualquer tipo de capacidade mental representa um valor superior ao de caráter físico, guerreiro, material, isto é, àquele velho estilo ainda tão apreciado em nosso mundo. Também a ciência é conhecimento, por isso não pode deixar de conduzir à consciência e a um progresso em direção ao espírito. Para este tipo de progresso se move a evolução. Tudo isto é atividade de intelecto, é vida no seu mais alto grau de desenvolvimento. O fato das máquinas substituírem o trabalho muscular e a atividade passar às funções nervosas e cerebrais, representa, pelas suas consequências, uma transformação de longo alcance biológico. Agora, o maior problema da vida é o de assegurar-se a continuação e somente se resolverá, confiando-se na inteligência e não na violência. A conseqüência será a formação de um novo biótipo espiritualizado no mais vasto sentido, filho destas novas condições de existência.  É  assim que do involuído poderá nascer o evoluído, do animal humano do passado poderá nascer o verdadeiro homem.

Não é possível aqui passar em revista todos os momentos desta complexa maturação. Podemos apenas concluir que este quadro confirma que se trata de uma curva no caminho da evolução, da passagem de uma era a outra, por um processo de maturação chegado ao seu momento crítico. Ele tende à formação de um tipo humano mais evoluído, que será o elemento constitutivo de uma nova civilização baseada sobre outros princípios, alcançados com uma forma mental. Quem tem olhos para ver e cérebro para pensar, compreende que estamos num momento crucial e decisivo de tremendo esforço, de grave perigo e excepcional potência criadora. A nossa época parece de destruição, mas esta representa o trabalho necessário de limpeza do terreno, sem o que não se pode reconstruir. Para que a vida possa desenvolver-se em novas formas mais avançadas é necessário libertar-se das coisas velhas que o impedem, ocupando o espaço disponível.

Cada século deve criar alguma coisa, segundo suas capacidades tão diversas, de acordo com as possibilidades do momento histórico. Mesmo nos períodos de decadência, a vida consegue criar algo, ainda que seja um fruto corrompido por demasiada maturação. Mas hoje estamos em decadência só como função necessária de eliminação do passado. Sob este terreno coberto de despojos, ferve e está despontando um mundo novo, compete a nós fazê-lo nascer. Somos nós, seres viventes, que incorporamos as forças da vida em ação; nós, humanos, somos os construtores de nosso destino. A vida, inteligência que pensa e dirige, não é uma abstração fora da realidade, mas é também vontade de realização que se concretiza no homem, que se torna o seu braço executor. Em épocas mais avançadas um homem mais evoluído compreenderá e realizará esta íntima colaboração entre a grande inteligência que dirige o funcionamento do universo e a sua pequena inteligência que serve de operário inteligente.

O atual esforço criador desta geração corresponde a nós e dele devemos ser instrumentos heróicos, numa nova época de conquistas sobre- humanas. Nesta, como em todas as horas apocalípticas, as grandes diretivas estão nas mãos de Deus, enquanto o trabalho pequeno da execução está nas mãos do homem; a ele caberá o esforço, a luta, o perigo, para que seja seu e merecido o resultado.

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Agora que  falamos  de  um  tão  esplêndido desenvolvimento em expectativa, mudemos em relação a ele o ponto de vista, para olhar não o futuro do mundo mas o presente. Damo-nos por ventura conta do atual tipo biológico e quais as condições de ambiente a que tudo isto deve ser aplicado? O certo é que o involuído atual, dada a sua natureza, não está, de modo nenhum, pronto a dar de imediato salto tão grande para a frente. Sem dúvida o tecnicismo transformará o ambiente terrestre e as condições de vida do homem produzindo depois profundas alterações também em sua natureza. Mas quanto tempo será necessário para que tudo isto possa tornar-se realidade? Falar hoje em abundância de meios e de cada tipo de trabalho superior intelectual em países subdesenvolvidos onde se morre de fome e reina o analfabetismo, pode parecer uma trágica mentira e um insulto a miséria. Mas o progresso, com o ritmo hoje alcançado, deverá no entanto chegar até lá e levar todo o mundo a este nível. Por estas razões, agora que observamos o fenômeno com ampla perspectiva futura em relação aos seus desenvolvimentos longínquos, procuremos compreendê-lo também segundo uma perspectiva mais estreita, em relação aos seus desenvolvimentos mais próximos num futuro mais imediato, tendo sobretudo em conta o homem atual e quão longe está ainda de tais conquistas.

Que valor tem na Terra as coisas superiores do espírito? Em nosso mundo o ideal pode existir enquanto pode ser explorado. Mas isto, neste nível, é justo porque, antes de pensar em evoluir, é necessário assegurar-se a continuação da vida. Só quando o necessário esteja garantido e este problema resolvido, será possível enfrentar outros mais altos. Quem é assaltado pela fome não pode ocupar-se de cultura e espiritualidade. De fato, a realidade que existe debaixo de toda a pregação de qualquer ideal é a feroz luta pela vida que em nosso nível representa a mais profunda verdade. Na realidade tributa-se grande admiração e veneração pelos valores espirituais, mas em teoria, enquanto na prática se apreciam e se buscam os valores materiais. Os ideais se utilizam então para outros fins, como o de fazer uma criação boa e mansa e com isto um rebanho sujeito à obediência, para ordenhar como é função dos pastores. Este é o ambiente no qual o involuído se encontra ao seu gosto, por ser proporcional aos seus instintos e necessidades. Quando tropeça nos ideais pregados aos quatro ventos e que para a sua vida terrena não lhe servem, que pode fazer o involuído senão tratar de utilizá-los como instrumentos para sobreviver na luta pela existência? Um selvagem que encontrasse um aparelho de televisão não saberia utilizá-lo senão como uma caixa vulgar para meter dentro o que lhe pudesse servir, porque mais não compreenderia.

Assim a exploração dos ideais por parte do involuído não é mentira, porque ele não pode compreender-lhes a significação. Para ele não há margem para coisas que não lhe servem para viver na Terra, seu problema premente de cada minuto. Exigir que, em tais condições, ele se ponha a evoluir, a lutar pelos ideais, enquanto tem de lutar por coisas bem mais urgentes, representa um atentado à sua vida e é natural então que ele se defenda como pode. Tudo o que lhe vem à mão deve utilizá-lo para sobreviver num mundo hostil que não admite sonhos. O evoluído rebela-se contra o que julga prostituição; o involuído considera- o tonto, porque por olhar para o céu se arruina na terra. O antecipador do futuro por mais nobremente que atue, é julgado um inepto por quem quer primeiro resolver o problema de viver no presente. Quem, para sobreviver, necessita em primeiro lugar das coisas concretas que servem ao corpo, não sabe o que fazer dos maiores valores do espírito. Nas duras condições de luta do ambiente terrestre, quem esquece este fato e, em vez de cuidar dos reais problemas da vida prática, se perde indo atrás do espírito, é um louco que procura a morte.  É  assim que na Terra, reino dos involuídos, está tacitamente convencionado que o ideal deve ser explorado para fins materiais, porque para outra coisa ele não pode servir.

Depois de haver projetado neste quadro as condições espirituais de nosso mundo e haver visto como ele está ainda submerso no seu baixo nível evolutivo e não preparado para um salto de improviso para a frente, nos perguntamos: agora que a técnica poderá permitir uma abundância de bens, menor trabalho e mais tempo livre, bastará isto para que o involuído posa compreender o valor dos ideais? Para que sinta o gosto das coisas superiores do espírito, mude de forma mental, assumindo uma nova que o induza a praticar um tipo de esforço totalmente diverso, dirigido a conquistas que até agora tão pouco interessam? O instintivo fundo do atual subconsciente humano formou-se como consequência das ferozes condições do ambiente nas quais o homem teve de viver no passado, e é o produto destas. Se elas mudam, certamente aquele subconsciente irá adaptando-se a elas, experimentando e aprendendo. Mas para adaptar-se à nova situação, assimilar a mudança e transformar-se definitivamente até fazer de tudo isto qualidades e instinto próprios, será necessário muito tempo. Dever-se-á formar uma nova simbiose com o ambiente, um novo tipo de convivência coletiva.

Se tomarmos um tosco aldeão e o colocarmos num trono, tornar-se-á um senhor requintado? E de quanto tempo necessitará para que isso possa acontecer? Não basta enriquecer um primitivo para que este possa de repente transformar-se num ser civilizado. O primeiro uso que ele vai fazer da riqueza será desperdiça-la em disparates. Antes que possa aprender a atuar de maneira diversa, ele deverá atravessar e assimilar novas experiências: se entregará a abusos, pagará as suas consequências, até aprender à sua custa a saber fazer sábio uso dos novos meios. Como pode conhecer os perigos da riqueza e abundância quem não provou senão as duras consequências da miséria? A experiência é “aquela coisa que nos permite reconhecer o erro logo que se recai nele”. Mas a primeira vez, quando ainda não foram provadas as suas tristes consequências, como pode reconhecê-lo e não cair, sobretudo quando ele se apresenta como salutar correção de erro oposto cujos tristes efeitos já se conhecem? Como fazer compreender a quem suporta as dores da fome, a necessidade de evitar as dores a que leva a uma indigestão?

Vejamos o que sucede quando se oferece abundância de tempo disponível e de bem-estar a indivíduos não preparados, incapazes de saber dirigir pela própria disciplina interior. O regime a que estavam habituados no passado era trabalho forçado e miséria, de maneira que o seu mais alto ideal consistia na supressão destes dois males, para compensá-los em sentido oposto, com ócio, licenciosidade e abundância, isto é, com demasia de tudo quanto antes lhes faltava. Antes de chegar à mudança, o primitivo vive adaptando às suas duras condições de vida, que com o tempo formou uma natureza adaptada a elas. Formou-se entre indivíduo e ambiente uma determinada regra de convivência. Ora, quando o valor de um dos dois termos se desloca, nasce um desequilíbrio entre eles e a necessidade de adaptação para harmonizar-se em novos equilíbrios.  É natural que, quando o indivíduo viva debaixo de uma determinada pressão, suprimida esta, salte a mola da reação. Isto é inevitável e é o que sucede nas revoluções. Para evitá-lo seria necessário manter a pressão ou, melhor ainda, não dar lugar a tal estado de pressão. Uma repentina alteração de condições de vida em indivíduos despreparados para saber bem utilizá-los, não pode deixar de provocar instintivas reações de abuso, tendentes em primeiro lugar a compensar as dolorosas carências precedentes com a imediata realização desse ideal de gozo por tanto tempo comprimido no subconsciente. Sucede no entanto que tais reações, dirigindo-se fora de toda e qualquer medida e em sentido não evolutivo, devem ser depois corrigidas para voltarem a ser levadas à ordem, com uma reação proporcional ao erro, em termos de sofrimento.

O primeiro uso que o involuído poderá fazer do novo bem-estar será o abuso. Terminada a compressão forçada da privação, o impulso instintivo saltará para o abuso, em sentido oposto, isto é, o super saciar-se de tudo aquilo cuja falta antes se sentia, porque dessa forma se concebia a felicidade no passado. Assim o primeiro movimento de um involuído é a procura de uma super- satisfação dos instintos primitivos: gula, orgulho, ócio, sexo etc. É natural que o animal uma vez livre da opressão que o disciplinava, a restitua em sentido oposto àquele que o pressionava.

O momento seguinte é o da escola que ensina a assimilar os frutos da experiência. Tem-se de suportar os prejuízos que se seguem ao abuso, até que se aprenda a eliminá-lo. Assim o indivíduo aprende a autodiciplinar-se fazendo sábio uso das coisas. Pouco a pouco, com a regular satisfação, se forma o hábito, o que acalma a ansiedade e leva à saciedade. Chegados a este ponto o impulso inferior em direção ao excesso pode ser eliminado, porque se formam novos equilíbrios, as novas posições se normalizam, a sociedade se faz constante, exigindo sempre menos abuso, que assim automaticamente vai diminuindo até desaparecer. Então foi aprendida a nova lição e o indivíduo, superada a oscilação entre carência e excesso, pode deixar de lado o problema, já resolvido, das necessidades materiais, e cuidar através de outras experiências, da solução de problemas mais complexos e da conquista de valores mais altos.

Assim a transformação biológica de involuído a evoluído alcança-se gradualmente através destas oscilações e adaptações sucessivas. Só quando o indivíduo tiver superado o passado, eliminado suas carências e saciado os seus velhos desejos com uma regular satisfação, poderá nele surgir outro tipo de desejos e a necessidade de satisfazê-los. É assim que, pouco a pouco, emergem primeiramente as aristocracias e depois as seguem, subindo de baixo, outras classes sociais, seguindo todos o mesmo caminho ascensional e atravessando o mesmo processo de transformação. Em princípio a alteração das condições de vida levará, como primeiro efeito, ao desencadeamento dos velhos impulsos até então comprimidos. Uma vez que se lhes ofereceu a possibilidade de desafogar-se livremente, o primeiro resultado não poderá ser senão uma satisfação excessiva. Portanto num primeiro momento não teremos a passagem a uma vida superior, mas sim um reforçar-se da vida inferior. Isto automaticamente leva a outro resultado, que é primeiro o de ter de suportar as dolorosas consequências do abuso, e depois, através destes sofrimentos, o de aprender uma autodisciplina e construir uma consciência, elementos base para a conquista dos valos espirituais. Estas são as fases do fenômeno.

Num primeiro momento ele não é, portanto, evolução, mas um reforçar-se do precedente estado de involução. Este depois não pode ser superado enquanto não for cumprido o esforço necessário para dele se libertar, a isto induzido pela dor, a qual, decorrente do abuso, faz desaparecer toda a satisfação. No previdente jogo de forças que determinam o fenômeno, esta satisfação automaticamente é levada ao excesso para que a dor a transforme em insatisfação e assim recebendo um contragolpe, o indivíduo será levado por ela à superação. Eis que, na economia da evolução, o nascimento espontâneo do abuso tem uma função na medida em que conduz a uma inversão de valores, com a morte dos velhos e o surgir dos novos. Sabemos que o sofrimento representa o agente corretivo do erro, com a função de endireitar as posições. Somente assim o homem poderá aprender a viver num plano mais elevado. Apenas depois de tal série de experiências, a técnica moderna poderá dar fruto em sentido evolutivo. Esta análise mostra-nos que é muito provável que o primeiro resultado imediato seja de um retrocesso involutivo, já que em princípio se tenderá a usar novos meios com a velha forma mental, o que levará a uma retomada dos defeitos do passado, potencializada pelos novos poderes. Por exemplo: o primeiro uso que se faz das invenções modernas é com finalidades de guerra. Quantos estragos serão necessários antes que o homem aprenda a usar tudo isso de um modo melhor? Depois, como acontece com todos os erros, este também será corrigido pela dor, da qual assim se compreende a função e a necessidade. Reabsorvido o erro, o mal ficara neutralizado e o fenômeno se concluirá num progresso evolutivo.

Não esperemos portanto que o progresso técnico transforme o homem num átimo, e que por si só seja suficiente para determinar o seu avanço mental, cultural, espiritual, de que falamos. O novo bem-estar poderá ser utilizado neste sentido pelo já maduros, encaminhados de há tempo. Mas para muitos, ainda involuídos, tal elevação de nível de vida poderá levar primeiramente ao ócio, aos gozos de tipo inferior, aos vícios, a um desencadeamento de novos baixos desejos, a um requinte no mal. Quando o centro espiritual de um indivíduo está em baixo, naquele nível ficam as sua manifestações. Não se pode pretender que um primitivo saiba responder diversamente daquilo que ele é, e que utilize os seus meios com um cérebro diferente daquele que possui. Cada ser, quando se encontra em condições que lhe favorecem o desenvolvimento, poderá desenvolver apenas o tipo que já apresenta. Depois então o adapta às novas condições de vida.

Mas no princípio só poderá aumentar e fortalecer-se segundo aquilo que já é. Se damos a uma planta venenosa meios para prosperar, isto a levará a fazer-se mais potente no seu veneno. Assim, ajudados, um escorpião, uma serpente, um macaco, se tornarão cada vez mais escorpião, mais serpente, mais macaco. A construção espiritual, o elevar-se a um mais alto plano de existência, é fenômeno lento e complexo, é uma maturação em profundidade. Para alcança-la é necessário lutar, sofrer e vencer. Não basta para fazer o homem, a gratuita ampliação das mais favoráveis condições de vida exterior. A evolução é uma laboriosa conquista; ela leva em direção à felicidade, mas esta deve ser ganha e merecida.

Observaremos neste volume, sob vários dos seus aspectos, um fator fundamental na técnica de realização da evolução: o fenômeno da descida dos ideais. Que significa isto, porém? Descida de onde? Costuma-se dizer do alto. Mas, que é o alto? O alto é o Sistema, que na cisão do dualismo representa o lado positivo, Deus, em oposição ao lado negativo, dado pelo Anti-Sistema, posição antagônica de anti-Deus. Para abreviar, indicaremos com a letra S, o Sistema, e com AS o Anti-Sistema. O fenômeno central de nosso universo é a evolução, representando a reconstrução do Sistema, a partir das sua ruínas, o AS. Segue-se em consequência, que a evolução contém diversos graus de aproximação ao S. O homem ocupa um desses graus; o animal, um mais atrasado; o super-homem, um mais adiantado.

O Alto significa, portanto, um grau mais evoluído, em comparação com um menos evoluído que, em relação ao primeiro, pode-se definir de involuído. Descida dos ideais do Alto significa transferir a lei de um nível biológico mais avançado a um menos avançado; significa, para quem vive neste nível, uma antecipação da evolução, porque a influência do ideal permite realizar a passagem para aquele mais alto nível biológico. Ao conceito de descida dos ideais podemos dar uma base positiva, aderente à realidade da vida, e aos efeitos daquele fenômeno, poder-se-á dar depois um sentido espiritual, não só de evolução biológica positiva, mas também de ascese ideal de almas em direção ao céu. Usam-se neste caso, outras palavras e imagens. Mas podemos saber-lhes o significado num positivo ponto de vista biológico.

Uma tal colocação do problema dá-nos a chave para compreender a estrutura e o desenvolvimento do fenômeno desta descida. Se de um lado, temos o Alto, níveis de evolução mais avançados, de outro, temos o nosso mundo que representa os mais atrasados. O fenômeno da descida dos ideais é dado pela conjunção destes dois termos, os quais se aproximam um do outro tomando corpo, o do lado S, no biótipo evoluído, e o do lado AS, no biótipo involuído. Na realidade, trata-se de duas ideias ou princípios distintos que, incorporando-se nestes dois biótipos opostos, entram em contato, através das ações e reações de cada um deles, com a finalidade de realizar o fenômeno da evolução. Nesta descida está empenhada a Lei de Deus que o dirige, como estão também os destinos do ser que trabalha apoiado naquela Lei, que quer levá-lo à salvação.

Para compreender o fenômeno da descida é necessário, antes de tudo, compreender como funciona a lei biológica terrestre no nível humano e a técnicas de evolução das suas formas. A existência no plano animal-humano baseia-se na lei da luta pela vida. No entanto, não é uma lei universal e definitiva, mas relativa a este plano, destinada a desaparecer com a evolução. Como pode isto suceder?

Na realidade, o ser quer viver e por isso luta. Mas, por que motivo, para viver, é necessário lutar? Porque o ambiente é hostil; a vida, com o fim de assegurar-se a continuidade, cria com superabundância, para depois selecionar os melhores, abandonando os outros à morte. Assim, para cada espécie se encontra oportunidade e a favorece um ambiente adequado, sendo potencialmente capaz de ocupar todo o planeta. Então, além da adversidade dos elementos, surge a competição entre indivíduos e raças, justamente, como consequência daquela superabundância no gerar. Ora, quanto mais faltar a cada um o espaço vital e os meios para sobreviver, tanto mais se torna feroz a luta à sua conquista. Assim que a luta se torna inevitável e assume uma forma tanto mais feroz quanto mais primitivo é o ser, porque quanto mais ele é primitivo, tanto mais lhe é hostil o ambiente que ele ainda não transformou para adaptá-lo às suas necessidades. E quanto mais hostil é o ambiente, tanto mais dura e violenta, feroz e desapiedada, é a luta para sobreviver. Além disso, corresponde aos princípios que regem a estrutura de nosso universo o fato de que a vida seja tanto mais carregada de dificuldades e dores, quanto mais involuída, isto é, longe do S e próxima do AS. Com a transformação do ambiente e melhor satisfação das próprias necessidades, diminui a necessidade de lutar, a violência e a ferocidade necessárias para a sobrevivência. Com o diminuir das resistências hostis à vida do homem, pode diminuir para ele, sem perigo, a soma de energia que ele deve consumir na luta. Assim, o sistema de violência tende pouco a pouco a ser eliminado.

Mas a luta com isso cessa por completo? Não. A luta, para transformar o AS em S, não pode cessar senão no ponto final da evolução, coma anulação do AS, alcançando o S. A luta nasceu da cisão no dualismo e não pode desaparecer, até que esta cisão seja sanada e o dualismo reabsorvido na reunificação de tudo no S, com o retorno de tudo a Deus.

A luta não cessa, transforma-se. Quando a humanidade começa a reunir-se em grupos sempre mais vastos, a organizar-se em sociedade, a ajuda recíproca no comum interesse da defesa torna menos dura a luta contra o ambiente, a tendência, portanto, é fazer desaparecer, como menos urgente, o sistema da força e da violência, que tão profundas feridas deixa em quem lhes sofre os efeitos. Nesse momento começa, com a disciplina das leis, um processo de ordenação da vida e de cerco daquele sistema, que pode, momentaneamente, beneficiar a quem o pratica; mas é constante a ameaça para aqueles, contra quem é praticado. Que pode fazer o indivíduo quando se encontra a lutar sempre menos contra um ambiente já dominado, sobretudo, pelos seus semelhantes que o cercam e o oprimem para torná-lo inócuo, procurando guarnecê-lo e prejudicá-lo?

A luta se torna mais sutil, processa-se de forma legal e moral, tornada astúcia, fraude, engano, dissimulação. Esta é a fase atual, e, que a violência, pelo menos dentro dos limites de um país, é condenada como delinquência; se tiver lugar fora dele durante a guerra, é considerada um ato honorífico e de valor. Se, no entanto, a violência é condenada, a astúcia e o engano estão em plena vigência como método de luta pela vida. Com este método, perante as leis, não se procura obedecer mas evadir-se; perante o próximo, não se procura colaborar, mas explorar. Todavia ser agredido e roubado legalmente representa já um certo progresso em comparação com o ser assassinado na estrada. A própria técnica do delito está submetida à evolução e hoje podemos observar como se evita sempre mais a violência e o derramamento de sangue, que agravam a pena legal, e com artes mais sutis se procura a posse do que é mais útil, isto é, o saque.

Vejamos, agora, aonde nos levará este processo de evolução da luta. A razão fundamental dela é sempre a mesma, a de sobreviver, com menor esforço possível. A vida está pronta a aceitar tudo, conduzindo a esta finalidade, isto é, máximo rendimento em termos de bem-estar, com o mínimo do próprio dano. Ora, o sistema astúcia-engano contém ainda um mal, se bem que menor do que o da violência: o prejuízo para os vencidos, os escravizados e os esmagados. A violência mata a vítima. A astúcia a deixa viva, mas arruinada. As feridas permanecem impressas no subconsciente e não se esquecem. Os vencidos, como antigamente, se queriam sobreviver, eram obrigados a fortalecer-se cada vez mais; agora, pela mesma razão, são obrigados a tornar-se cada vez mais astutos e inteligentes. Eis que também aqui, ainda uma vez, o mal é automaticamente levado à sua autodestruição.

Manifesta-se assim uma tendência a cercar e circunscrever, gradualmente, o sistema da astúcia, por duas razões: 1º) porque o homem se dará conta de quanto é custoso, como dispêndio de energia, o consequente método de desconfiança que impõe um controle contínuo, e de quão contraproducente é esse método, pelos atritos produzidos e os danos provocados no vencido, representando um material negativo que fica circulando na atmosfera que todos respiram e só pode acabar caindo em cima de alguém; 2º) existindo a probabilidade de que todos sofram estas duras consequências compreender-se-á a ameaça contínua e a falta de segurança que tal método representa, é mais vantajoso, para todos, seguir o método da sinceridade e colaboração.

Por este caminho, finalmente, o sistema da luta acabará por ser superado. Esta transformação corresponde a um processo de saneamento do separatismo, fruto da queda, alcançando a unificação, fruto da reconstrução evolutiva. Neste processo os elementos separados tendem sempre mais a reunir-se até se fundirem, reconstruindo o seu estado orgânico. Temos três fases, possíveis posições nas quais, o homem se encontra.

1ª) Homem isolado, em luta contra a natureza. Método da força e da violência.

2ª) Homem que se reagrupa em sociedade, deve, portanto, lutar menos contra a natureza, mas é rival dos outros componentes do grupo. Desuso do método força-violência e a sua substituição pelo da astúcia-fraude.

3ª) Homem que vive no estado orgânico de coletividade. Tendo, como no método precedente, desenvolvido a inteligência, acaba por compreender quanto é contraproducente o sistema astúcia-fraude e como é vantajoso superá-lo. Então, para alcançar com menor esforço maior bem-estar, adota o método da sinceridade-colaboração.

O problema é o de desenvolver a inteligência para chegar a compreender o método de maior vantagem. Mas, é precisamente para alcançar este objetivo que o erro produz sofrimento e a ignorância significa dano, com uma conduta reta, aprende-se a eliminá-lo. Vive-se e sofre-se precisamente para aprender.

A humanidade atual encontra-se na segunda das três posições. Assim se explica como na Terra, hoje, os ideais, incluindo os representados pelas religiões, tendem a manifestar-se em forma de hipocrisia e existe a indústria da exploração do sentimento religioso.

Este desenvolvimento em três graus pode parecer também destruição de egoísmo a favor do altruísmo, mas, em realidade, trata-se de uma dilatação e ampliação, não é destruição. A vida, sempre utilitária, não permite desperdícios inúteis para os seus fins; não admite altruísmos somente negativos, totalmente improdutivos. Ela não passa, portanto, do egoísmo a um altruísmo como fim em si mesmo, mas apenas quando isso representa uma vantagem. Por esta razão, supera o método de luta entre egoísmos rivais e o substitui pelo método mais produtivo, o da solidariedade humana. A vida alcança o altruísmo, não através de sacrifícios contraproducentes, porque são renúncia antivital, mas através de um egoísmo vital, porque utilitário, sempre mais vasto. O altruísmo não é mais um automutilar-se em favor do egoísmo dos outros, mas tornar-se e ver-se refletido nos outros, incluindo-os no seu próprio egoísmo. Assim se forma o primeiro núcleo destinado a dilatar-se sempre mais. Começa com o pequeno egoísmo do casal, do qual nasce depois o do grupo familiar, de onde se chega depois a grupos sempre mais vastos: a aldeia, a casta, o partido, a nação e pôr fim a humanidade. Trata-se de um progressivo processo de unificação segundo o princípio das unidades coletivas. Fora do grupo, isto é, do recinto da confraternização, existe a guerra, mas dentro há liames de interesses comuns, não prover também à sobrevivência dos outros é atraiçoar-se, a si mesmo. Quanto mais o grupo de que se faz parte aumenta, tanto mais o egoísmo se dilata e a guerra é afastada para mais longe, para limites cada vez mais distantes. Quando esta aliança de egoísmos se tornar universal, não haverá mais lugar para a guerra. Terá desaparecido aquilo que chamamos de egoísmo, isto é, aquele egoísmo restrito a um só indivíduo, porque se haverá estendido tanto, até abraçar todos num egoísmo universal, que chamamos altruísmo. Hoje, o multiplicar-se dos contatos, devido aos novos meios de comunicação, começa a encaminhar a humanidade para ampliações altruístas cada vez maiores do velho egoísmo.

Segundo as três mencionadas fases de evolução, verifica-se igualmente um outro fato: os meios fraudulentos substituem os violentos e os colaboracionistas substituem os fraudulentos. Agora, a humanidade se encaminha para entrar nesta terceira fase. Assim se transformará também para o homem a lei da luta pela vida. Trata-se, de resto, de uma fase já alcançada, se bem que em forma mais simples e limitada, por exemplo: as abelhas e as formigas provam que a vida já conhece tais métodos. A cada passo em frente, no caminho da evolução, diminui primeiro a violência em favor da fraude, mal menor que substitui o maior, a fraude, por sua vez, diminui em favor da sinceridade e colaboração. Com isto se explica também por que, em nosso mundo, existe a mentira, portadora de uma função biológica, e como a evolução levará à sua futura eliminação.

Será uma grande conquista e um alívio para todos libertar-se do peso da hipocrisia, da fadiga de praticá-la e de suportá-la. Com o desenvolvimento da inteligência a humanidade chegará também a isto, como acontecerá em relação à guerra. As religiões e a moral representam a descida dos ideais e trabalham neste sentido, para libertar a humanidade dos métodos fraudulentos da luta pela vida, substituindo-os por um sentimento de solidariedade social, de ajuda recíproca num estado de colaboração e convivência pacífica. O que impede de se chegar a viver numa posição para todos mais vantajosa, é somente a ignorância. Não há outro método para eliminá-la, senão sofrer as duras consequências do estado atual. Sofrer até ser obrigado a procurar melhor aquela posição e, com a experiência adquirida, encontrá-la mais facilmente. Depois, para permanecer aí, com o desenvolvimento da inteligência, compreender que isso é o melhor. Trata-se de conquistar novas qualidades, porque não adianta sobrepor novos sistemas econômicos, sociais, políticos, a indivíduo imaturos. Desenvolvendo o espírito de associação, trata-se de eliminar o atávico antagonismo individual, de modo que as forças dos indivíduos isolados não se eliminem, destruindo-se numa luta recíproca, mas ao contrário, possam-se somar num estado de cooperação. Assim se obtém um rendimento imensamente maior e é muito mais fácil resolver o problema da sobrevivência, biologicamente fundamental.

Na terceira das três referidas fases, a orgânica, a atividade que se substitui à luta de tipo 1 e 2, é o trabalho. O ambiente onde se vive foi gradualmente domesticado com a civilização, com as leis e a educação. A violência se eliminou da vida social, tendo-se compreendido por fim, como é contraproducente agitar-se tanto para enganar-se reciprocamente. Pode-se, então, alcançar a terceira fase. Num ambiente não mais hostil, entre companheiros não mais rivais, não há necessidade de usar o método da luta, que inicialmente era necessário para sobreviver, porque agora, trabalhando todos juntos, o problema da sobrevivência está resolvido. Mas adiante, observaremos que outros problemas possam depois surgir, quando superar-se também esta fase. Veremos quais perigos oferece um bem-estar assegurado, para um biótipo a isso ainda não habituado, provido da velha forma mental proporcionada aos métodos de vida precedente. Neste capítulo, basta haver constatado a necessidade biológica pela qual a evolução deve levar à realização do princípio de solidariedade social, baseado sobre o fato positivo, da utilidade de associar-se para melhor vencer na luta pela sobrevivência. Assim, passa-se da fase dos antagonismos entre egoísmos rivais, à da colaboração. Nesta nova posição, o indivíduo se sentirá muito mais protegido e com mais potencialidade, porque se encontrará não mais isolado dentro de uma natureza hostil e entre companheiros inimigos, mas como elemento funcionando dentro de um grande organismo.

A utilidade de associar-se para vencer na luta pela vida, é um fator positivo e utilitário, sendo, inevitável evoluir nesta direção. Por isso, é fatal que se acabe passando ao sistema orgânico de cooperação, em substituição ao atual de guerras econômicas, luta entre classes sociais, guerras armadas para a destruição universal. Mas como poderá, na prática, surgir uma substituição tão radical de método? O da força, como o da astúcia, mesmo se o segundo é mais refinado que o primeiro, são sempre dois sistemas baseados, no egoísmo, fechado em si próprio, na consequente desonestidade para com o próximo. Ora, abrir este egoísmo em direção ao próximo, com a consequente honestidade para com ele, constitui uma profunda transformação de tipo biológico, um salto evolutivo para um nível superior, um amadurecimento que leva a um modo de conceber a vida totalmente diverso, isto não é fácil de realizar. De que meios dispõe a natureza e os métodos usados para alcançar este objetivo?

O processo já está em ação, podemos observa-lo. Para eliminar o atual regime de rivalidade não há outro meio senão a reação das vítimas, que deverão impor, com a persuasão dos meios coercivos, o sistema da honestidade, de modo que quem pratica o regime da rivalidade fique ferido, único processo para compreender e não repetir o erro. Quando os débeis e os ingênuos não se deixarem mais enganar, tendo a indústria da mentira deixado de dar fruto, não haverá mais razão para que continue sendo praticada e será abandonada, como se faz com todas as coisas sem mais proveito. Mas, para isto ser assimilado como qualidade do indivíduo, é necessário que, por longa repetição, os desonestos constatem, pela sua experiência, os resultados danosos do seu método para eles próprios, adaptando-se a outro método mais profícuo, que ofereça vantagens anteriormente desconhecidas, tornando-se por fim, vantajoso para todos. Trata-se de vencer todas as resistências da ignorância que faz acreditar no contrário, trata-se de mudar de forma mental, passando para uma nova representante de uma verdadeira criação biológica. Para fixar-se na raça, tudo isso deve entrar nos hábitos sociais através de um esforço tenaz de imposição, um impulso constante nesta direção.

O Evangelho, entendido apenas no seu aspecto negativo, de sacrifício, santifica o indivíduo, quem o pratica, mas encoraja os desonestos com o seu método de exploração. Enquanto os prejudicados não reagirem, a sua paciência funcionará como fábrica de vítimas. Se os crucificadores de Cristo tivessem recebido uma lição imediata, não teriam ficado encorajados pelo seu fácil sucesso; este lhes ensinou uma verdade totalmente diferente, isto é, foram premiados a força e o engano e não o amor e a justiça. Estamos na terra e não nos céus; aqui a realidade biológica ensina-nos que o ideal, para enxertar-se na vida, deve seguir as suas leis neste seu nível. Em relação à Terra, a crucificação de Cristo pode ter sido um escândalo, mostrando ao mundo, durante milênios, a vergonha da humanidade, para que compreenda a má ação e deixe de repetir semelhantes crimes. O que representa aquela crucificação perante o céu? Ao mundo não lhe interessa saber. Hoje, se culpa os judeus por deicídio, como se pudesse matar Deus. Se isto fosse certo, eles seriam os seres mais poderosos do universo. No entanto, aquele delito não foi apenas de um povo, mas de toda a humanidade e vem se repetindo até hoje, perseguindo inocentes, inclusive em nome de Deus. Esse escândalo tão grande ainda não deu maiores resultados positivos.

As resistências ao velho são imensas. Enquanto o egoísmo das vitimas, seguindo as leis do plano humano, não consegue organizar-se para impor ao egoísmo dos que provocam os danos e obrigá-los a respeitar os direitos de todos, haverá sempre lugar para os desonestos, para sua vantagem, com prejuízo a outros; e jamais se passará à fase de acordo e equilíbrio em que se supere esse sistema. Este fato justifica e torna necessária a presença das leis e as respectivas sanções punitivas, para estabelecer uma ordem na sociedade. Justifica-se também a rebelião quando essas leis não correspondem à justiça e são feitas por um grupo dominante a seu favor; revoltar-se para restabelecer uma ordem que dê vantagem cada vez menos a uma parte e seja mais universal, que defenda os interesses de um número sempre maior de pessoas, até chegar a abrange-las todas. Então se terá realizado o salto biológico e se viverá num regime de altruísmo, justiça, honestidade. Permanece de pé o princípio fundamental de que a vida não oferece nada gratuitamente e dá apenas aquilo que ganhamos com nosso esforço. O ser quis realizar a descida do S para o AS e, agora, são suas as consequências. Para executar a subida do AS para o S, cabe-nos o trabalho de conquistar e construir. Cristo apenas nos mostrou o caminho, colocando-se à frente com o exemplo. Compete-nos percorrê-lo com os nossos pés. Isto significa que o ideal nos é oferecido do céu como uma proposta de trabalho. Cabe pois ao homem traduzi-lo em realidade, vencendo todas as resistências do AS que se oponham à reconstrução do S.

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Já examinamos as bases positivas e biológicas do fenômeno da descida dos ideais, poderemos melhor compreendê-lo e ver por que eles descem ao ambiente humano, cuja lei fundamental é a luta pela vida; poderemos compreender por que, não obstante tanta diversidade, eles procuram enxertar-se num ambiente que é a sua absoluta negação. Isto só se explica com a lei da evolução.

No caminho da ascensão, quem está mais adiantado desce, para ajudar os mais atrasados; em relação a ele e a um avanço evolutivo no mundo, a descida é um retrocesso involutivo. Dizemos “ele” porque os ideais tomam corpo, tudo na Terra adquire uma forma, numa pessoa viva que os afirma e os lança; em seguida, nas instituições que os representam e os transmitem. Precisamente assim se organizam as religiões, elas são o canal mais importante da descida dos ideais à Terra. Como se realiza este fenômeno? Que sucede quando a realidade, verdadeira no céu, pretende enxertar-se na diferente realidade biológica, verdadeira em nosso mundo?

Na terra, de fato, está o homem sujeito a leis bem diferentes que nada tem de ideal e o obrigam a ocupar-se, em primeiro lugar, do problema da sobrevivência. É natural portanto que, para este objetivo, procure utilizar-se do que encontra, inclusive dos ideais, os quais, pelo contrário, querem utilizá-lo para os seus fins, totalmente diversos. Aos ideais interessa a salvação da alma, a grandeza do espírito, mesmo que seja com o sacrifício da vida terrena; ao homem interessa sobretudo aquela vida, concreta e presente, e só quando se trata de deixá-la, interessa-se pela outra. As duas posições estão invertidas, uma em relação à outra. É natural a cada um dos dois princípios não perder-se nesse antagonismo e deve buscar o interesse mútuo. Assim, quando uma religião dita normas de vida para transformar o homem, este procura transformá-las num meio para satisfazer as suas necessidades de vencer na luta pela vida. Desse modo, adapta a religião às suas próprias comodidades, de maneira a lhe servir e se não lhe serve, não a aceita. Se a memória de Cristo chegou até nós, isto se deve, em grande parte, à concessão do imperador Constantino que permitiu o poder temporal dos papas, com isso o sacerdócio se tornou hierarquia, administração de bens, atividade de carreira política. Para continuar a falar de Cristo, não havia outro meio senão transformá-lo em algo deste mundo. Mal necessário, tanto mais grave quanto mais primitiva a humanidade, mas com o tempo vai desaparecendo, porque é tarefa da evolução eliminá-lo. Para ser possível a aceitação de um ideal na Terra, é inevitável baixar ao nível daquele que vai aceitá-lo, este é o dono do ambiente terrestre onde o fenômeno deve realizar-se. Isto acontece para o ideal não ficar excluído da vida.

Os seres nos quais tomam forma os dois princípios opostos, são: de um lado, o biótipo do gênio, do santo, do profeta, do super-homem, isto é, o evoluído; do outro, o biótipo normal, animal-humano. O primeiro é o motor da evolução, o elemento ativo; segundo é o elemento passivo, que se deixa arrastar pelo primeiro. Um ideal demora milênios para ser assimilado. Quando já cumpriu a sua função e foi todo utilizado em sentido evolutivo, então aparece outro mais adiantado, de maneira que a humanidade possa continuar progredindo. No fundo, trata-se de uma troca, em que cada um dos dois termos dá e em compensação pede alguma coisa; o ideal se oferece, pedindo ao homem o esforço necessário para progredir e o homem trata de ganhar o máximo com a menor fadiga possível, mesmo materialmente, utilizando apenas o ideal para esta finalidade. Assim surgem os seus representantes, os ministros de Deus, a casta sacerdotal; pelo fato de cumprir um serviço, estabelece a indústria da religião, base terrena indispensável para o ideal tomar forma no plano humano.

Para os cidadãos da Terra tudo está no seu lugar, conforme a lei do seu plano. Deste modo se explica como os ideais não se apresentam íntegros na Terra, mas torcidos e adaptados por terem sido levados ao nível humano. Naturalmente, isto é adequado ao homem normal que fez para si o trabalho de adaptação, mas não para quem assume os ideais a sério e por esta razão se encontra isolado, inclusive, excluído e condenado. Nestes escritos tomamos o partido deste último, perante a destruição dos valores morais, tratando de salvar o que se possa. Quem se encontra deslocado na Terra não é o involuído que está em sua casa, no seu ambiente, mas o evoluído, que procura levar para ali o ideal. Para poder realizar a sua missão, encontra-se na posição não merecida, de condenado a um retrocesso involutivo, castigo tremendo. É o mesmo que condenar um homem culto e civilizado a viver entre antropófagos, transformados em seus semelhantes, e a cujos hábitos deve adaptar-se. Tem por instinto a prática da sinceridade e da colaboração, deve viver submerso num mundo de hipocrisia e fraude. Anteriormente, vimos quais são os diversos graus de evolução.

Podemos, assim, entender o que significa transportar um indivíduo do terceiro grau ao segundo e o martírio necessário para poder realizar, no seio de um ambiente biológico involuído, o trabalho de arrastá-lo a um nível mais alto.

Transportado ao mundo dos involuídos, o evoluído encontra-se em condições de inferioridade na luta para a sobrevivência. Se existem compensações celestiais, isto para o mundo não interessa. O mundo entendeu de Cristo apenas as duas coisas que lhe serviam: matá-Lo quando estava vivo, explorá-Lo depois de morto. O homem do terceiro grau evolutivo, de tipo evangélico, seguidor de Cristo, pelo fato de repelir o método força-violência, bem como o de astúcia-fraude, não está apto para sobreviver no ambiente terrestre. Então, o ideal será levado a termo somente por poucos pioneiros, rapidamente liquidados, jamais se poderá realizar no seio de nossa humanidade. Isto, no entanto, significaria o fracasso dos planos de evolução. Mas se não pode acontecer, como a vida soluciona o problema?

Os primeiros seguidores do ideal são poucos e têm de arrastar consigo, com a palavra e o exemplo, muitos outros. A descida dos ideais terá alcançado o seu objetivo quando, por terem sido aceitos em massa, tenham chegado a ser um fenômeno coletivo. Antes desta última fase do seu desenvolvimento, os ideais se encontrarão no mundo apenas em estado de germe. Cristo até agora é apenas uma semente que busca crescer. Quantos milênios faltarão para que possa chegar a ser uma árvore.

Daí se conclui que a moral evangélica, relativa à evolução e não à salvação dos poucos casos isolados, pertence à humanidade e é de tipo coletivo, realizável numa sociedade, na qual pelo menos a maioria a aplica; numa sociedade de tipo inferior, formada de involuídos, aquela moral, como sucedeu com Cristo, rapidamente liquida o indivíduo que a vive. Ora, a vida pode sacrificar na sua economia alguns indivíduos, quando isto lhe serve para os seus superiores fins evolutivos, mas não pode perder toda a massa a favor de quem, precisamente, realiza este sacrifício. O problema fundamental da vida é o da sobrevivência e só secundariamente, quando haja uma oportunidade, é o da evolução. Eis que o Evangelho para poder verdadeiramente realizar-se, não como pregação, mas como prática, presume um estado de reciprocidade, que é possível aparecer somente quando a humanidade, por evolução, haja alcançado a terceira fase, a da organização coletiva, na qual a moral do dever não se resolve numa espoliação por parte de quem não a aplica em prejuízo de quem a aplica, mas resulte de um equilíbrio dado pela correspondência dos direitos e deveres de cada um com os direitos e deveres do próximo. Somente então o Evangelho será aplicável em grande escala, porque representará não uma ameaça, mas uma ajuda para a sobrevivência.

Se praticar o Evangelho pode ser anti-vital para o evoluído, isolado no atual mundo involuído que tem o cuidado de não aplica-lo, esse Evangelho pode, pelo contrário, outorgar vantagem e bem-estar num mundo de evoluídos, onde só se pode usar o método da terceira fase, o da sinceridade e colaboração, o único que pode permitir a eliminação da luta com o método da não-resistência. Transformar-se, por si só, em cordeiro entre os lobos, serve apenas para ser devorado por eles e assim engordá-los. Por isto o evoluído não pode tornar-se involuído, o seu destino está marcado. Seria absurdo que a vida, a longo prazo, desperdiçasse as suas energias com o fracasso daquilo que ela possui de melhor. Todo este jogo sobre o qual se baseia a descida dos ideais não pode terminar senão alcançando seu objetivo, isto é, um deslocamento da humanidade em sentido evolutivo.

Por todos estes motivos, apesar de o evoluído realizar uma grande função biológica, o ideal evangélico, transportado para o terreno da realidade da vida, torna-se uma utopia, coisa fora do lugar. A sociedade humana funciona com princípios opostos. Não é o estado orgânico, colaboracionista, que prevalece, mas o sistema de grupos dentro do qual se entrincheiram os interesses, espécie de castelo medieval, fechado e armado contra todos os outros castelos. Uma pessoa não é apreciada pelo seu valor, mas conforme esteja dentro ou fora do próprio grupo. Eis a primeira pergunta que se formula: é um dos nossos? Se o é, perdoa-se-lhe muita coisa. Se não o é, ainda que seja santo, é sempre um inimigo; estando em erro, deve ser condenado. Se se apreciam as qualidades de um indivíduo, isto não se faz imparcialmente, só em função da possibilidade de ser explorado ao serviço de um grupo, porque o objetivo maior é a sobrevivência, tudo se concebe e se faz em função dela. O grupo formou-se e existe precisamente para este fim, no qual todos os membros estão sumamente interessados. Esta é a força que os mantém unidos, porque a união os fortifica para se defenderem e vencer. Assim, a apreciação de uma pessoa é muito diferente, conforme se encontre dentro ou fora do grupo. As valorizações humanas são deste modo torcidas em função dessa necessidade de luta. Se quiséssemos julgar objetivamente um indivíduo pelo que realmente é, deveríamos, primeiro, despojá-lo das suas atribuições exteriores, prescindir da sua posição social, despi-lo de todos os indumentos com os quais se cobre e se esconde, só então poderá aparecer a sua verdadeira pessoa em vez dos seus sucessos sociais.

Na Terra, tudo existe em função da luta. O indivíduo deve ocupar-se, em primeiro lugar, deste trabalho. Ele vale na medida em que é utilizado para este fim. A parte mais dolorosa da vida do evoluído, se não morre antes, é a da glorificação, porque, se com isto ele conseguiu enxertar um pouco de ideal na vida, começa a sua exploração, sendo submetido a finalidades humanas, buscando-se a sua adaptação quando nasce o seu emborcamento, a serviço do mundo. A maior paixão de Cristo não foi, certamente, a do Gólgota, mas a sua crucificação longuíssima, que já dura dois mil anos, a serviço dos interesses dos homens. Para o evoluído, a vida só pode ser missão e sacrifício e o seu triunfo está na morte, que o liberta do grande sofrimento do retrocesso involutivo e o restitui ao seu plano de vida. Assim a sua posição negativa no mundo torna-se positiva no céu. Trabalhou para realizar a evolução, explicou-a com palavras e contribuiu com o exemplo, para ser compreendido a utilidade do método da honestidade e colaboração, substituindo o da força e do engano. O mundo se riu dele, tratando-o como um ingênuo, e quando abria os braços para colaborar, os outros farejando nele o honesto inócuo, escravizaram-no e o espoliaram. A morte liberta o evoluído de tudo isto e o restitui ao seu mundo, feito, pelo contrário, de justiça. Lá deixa de ser um inepto, onde a sabedoria do indivíduo consiste em conhecer o mistério do ser e consequentemente, em atuar com retidão; lá não se procura a descoberta dos enredos do próximo para tirar proveito.

Que podia fazer na Terra? A sua posição aqui é clara. Na Terra, é um estrangeiro. Tivemos de falar assim, porque ele é um instrumento da descida dos ideais, nosso tema atual. Continua sendo cidadão do Seu mundo, tão diferente, e desce para viver uma verdade que não pode ser desmentida. Se esta sua posição lhe impõe tremendos deveres, desconhecidos do involuído, para ele representa, também, um direito e uma força. Cada ser funciona segundo a lei do seu plano ao qual fica ligado, seja como utilidade ou como fardo, sempre leva consigo para onde for. O evoluído pela sua natureza não entra na luta do mundo, no entanto, tem de resolver o problema da sua sobrevivência; para ser possível o cumprimento da missão, deve possuir os seus meios de defesa e proteção. Trata-se de um cordeiro que tem de sobreviver entre os lobos, de um evangélico que usa o método da não resistência num campo de batalha. A defesa deste indivíduo interessa à vida, porque dele necessita, tendo-lhe entregue uma tarefa fundamental, a de promover a evolução. Será possível ao involuído, inconsciente e destruidor, ficar o poder de liquidar o evoluído e impedir o progresso da evolução? Será possível ao mal vencer, realmente, o bem e ao inferior vencer o superior? Se é certo que o evoluído é um exilado em terra estrangeira, também é verdade que a lei de sua pátria o segue e o protege, a fim de se cumprir a missão. Se aquela lei permite ao involuído eliminá-lo, permite-o somente até a hora em que ao evoluído convém ir-se embora, porque a sua missão se cumpriu. A Lei de Deus é a verdadeira dona de tudo, inclusive do involuído e do seu mundo. Ninguém pode deter o processo da descida dos ideais à Terra, que realizam os objetivos da evolução. Os obstáculos ficam limitados no espaço e no tempo, sendo-lhes dado o poder de resistir, mas não de vencer.

Eis o significado, a técnica, os instrumentos e as consequências da realização na Terra do fenômeno da descida dos ideais.

É inevitável que as concepções humanas sejam antropomórficas porque foram conquistadas com um cérebro humano, como resultado das experiências vividas e em função dos conhecimentos adquiridos no ambiente terrestre. Como pode a mente humana, um produto de nossa vida, conter elementos de juízo e unidade de medida que ultrapassem os seus limites? A nossa capacidade de conceber baseia-se e eleva-se sobre elementos oferecidos pelos nossos sentidos, que representam uma abertura para o exterior circunscrito somente a uma amplitude determinada do real e a uma ordem de fenômenos. Tudo o que estas vias de comunicação não deixam passar não é percebido; para nós, portanto, é como se não existisse. Por conseguinte, com um material bem limitado, para nós atingível, porque foi construído no passado com a nossa forma mental e hoje é instrumento com o qual julgamos. Não podemos, pois, elevar as nossas construções ideais senão com este instrumento e sobre estas bases, simples, porque não possuímos outros elementos. Daí tudo o que está além destes limites encontra-se fora de nossa mente, não é concebido, nem concebível. Se pretendemos elevar-nos a concepções superiores, não podemos fazê-lo senão com estes meios, ou seja, com a nossa mente limitada, com tendência a reduzir tudo às formas do seu concebível, porque, por força das circunstâncias, não pode e não sabe pensar senão antropomorficamente.

Se percebemos só uma pequena parte da realidade, o que haverá além desta? Apenas recentemente, com meios indiretos, pelas vias da ciência, o homem começou a dar-se conta de tudo isto. Viu, também, que nem sequer esta parte que percebemos é realidade, mas apenas uma interpretação dela, porque obtida através dos nossos sentidos limitados e pensada com o instrumento de nossa mente, relativa ao ambiente terrestre. Pode acontecer, então, que o produto de nossa interpretação seja somente uma distorção da realidade, o que julgamos ser não passa de uma projeção antropomórfica, construída por nós com as ideias fornecidas pela nossa vida.

Há, ainda, um outro fato que influi sobre o nosso modo de conceber. Se o existir é englobado no transformismo universal, nem sequer as nossas concepções lhe podem escapar, fazendo com que elas sejam relativas e progressivas. É indiscutível, se o universo se transforma por evolução, também se transforma o órgão mental, com o qual o percebemos e julgamos. Portanto, tudo é visto sucessivamente de diversos modos, cada qual representando uma realidade, relativa a quem observa e ao momento observado. Não possuímos das coisas senão sucessivas e relativas representações, feitas por nós mesmos, julgamos ter alcançado uma realidade, mas a realidade que o observador alcança por si mesmo, naquele momento, varia com o observador e o momento, isto é, de um observador para outro e no decorrer do tempo, para o mesmo observador. Assim, as nossas verdades não expressam outra coisa senão a maneira pela qual são vistas e concebidas, para cada um e num dado momento. São, portanto, relativas ao observador e progressivas no tempo.

Isto depende da estrutura do ser humano e permanece verdadeiro também no campo das verdades filosóficas, religiosas, morais, sociais etc. Todas as formas da existência parecem não ser possíveis se não forem consideradas como um vir-a-ser. O homem se deu conta de que tudo é movimento, tanto no universo físico como no dinâmico e no espiritual. No campo das verdades acima mencionadas, o transformismo evolutivo é ainda mais evidente, porque a psique é móvel e varia mais rapidamente com a evolução em função das fases sucessivas que atravessa. Também aquelas verdades estão em contínuo movimento, são relativas e progressivas. Este é o patrimônio mental que nos é dado possuir: limitadas representações antropomórficas e verdades em marcha.

No entanto, este progressivo relativismo leva consigo, implícita, a sua compensação. A ideia de transformismo em marcha exige a ideia de um ponto de chegada, também ponto de referência, sem o qual qualquer movimento não se pode apreciar. Então, a ideia de verdade relativa e progressiva nos leva necessariamente à ideia oposta e complementar, de uma verdade absoluta e imutável. O movimento exige uma meta, um ponto situado fora dele, em função do qual se realiza. Transformismo e relatividade progressiva por si sós não se mantêm, necessitando de um absoluto que cumpra a função oposta, servindo de suporte. A isso leva o próprio princípio do dualismo universal, pelo qual cada posição existe em função do seu oposto, somente é possível reconstruir a unidade com esta união, reunindo assim as duas metades divididas. É o reencontrar-se do positivo e negativo e vice-versa, para formar um só e mesmo circuito.

A fugidia mobilidade contínua se apoia na solidez do imóvel, do qual necessita para não se perder num futuro imenso, sem equilíbrio, orientação e significado. Esta fluidez deve ser um movimento na ordem, pois, de outra forma, levaria ou mesmo já teria levado tudo, há muito tempo, a naufragar no caos. A instabilidade não é admissível senão em função de uma estabilidade, assim como a relatividade somente existe em relação a um absoluto. Na lógica da estrutura e funcionamento do universo, há necessidade de um ponto Ômega, que não seja somente o ponto final da evolução como um seu ponto cósmico, último produto do processo ascensional, mas que seja ponto de partida e de chegada, o Alfa e o Ômega de todo o transformismo da existência; seja ainda o centro de todo este imenso fenômeno que o abrace, dirija-o, resuma-o e o justifique; ponto no qual se inicie e se resolva a instabilidade do vir-a-ser, a corrida do movimento, a relatividade de tal transformístico modo de existir em formas e dimensões sempre mutáveis, enfim, um ponto no qual tudo deve finalmente deter-se, porque alcançou a sua plenitude no aperfeiçoamento total do imperfeito, completando o incompleto, na superação final de todas as dimensões.

É a própria ideia do relativo, no qual vivemos, leva-nos por reflexão à idéia do absoluto, mesmo que não seja possível conhecê-la diretamente. Se o nosso relativismo nos nega a concepção do absoluto e se o nosso antropomorfismo não pode alcançá-lo, nem por isso ele deixa de existir. Pelo contrário, é justamente a nossa posição unilateral, por isso mesmo incompleta, exigindo ser completada, que nos indica a oposta, somente na qual isto pode realizar-se. É precisamente o fato de estarmos colocados num lado do ser, que se faz sentir a necessidade da presença do seu outro lado, só em função do qual se pode completar o nosso tipo de existência. A esta concepção de uma estabilidade definitiva, o homem pode haver chegado, porque alguns aspectos da realidade acessível a ele lhe indicaram, mesmo em sentido relativo. O transformismo em que ele está submerso pode apresentar-lhe algumas zonas ou fases de imobilidade, a qual pode, no entanto, verificar-se, apenas como temporário descanso, uma aparente pausa no caminho, uma suspensão momentânea do movimento. Este movimento, apesar disso, continua, mas em vez de verificar-se numa manifestação exterior, verifica-se como amadurecimento profundo no qual a existência prepara as suas mutações, perceptíveis só quando chegam a manifestar-se na forma exterior. Assim, o vir-a-ser da existência pode parecer suspenso, dando a ilusão da imobilidade definitiva; no meio da relatividade, podem surgir pontos que pareçam fixos e definitivos, momentos de estabilidade, fazendo crer terem alcançado a imutabilidade, apesar de não serem mais do que repousos e paragens passageiros no transformismo. Verdadeiramente não passavam de transitórias posições de equilíbrio, prontas a romperem-se para retomar o caminho; isto é apenas um momentâneo estabilizar-se de forças contrárias que no equilíbrio dos impulsos se neutralizam. É nesta posição estática de movimento relativo que, sem a desintegração atômica, a matéria parecerá eternamente estável, conforme se julgou no passado. Isto não impede que ela esteja pronta a transformar-se em energia, ao serem rompidos os seus equilíbrios atômicos internos.

O vir-a-ser da existência não se detém jamais. Não é possível, porém, um transformismo que não seja um meio para alcançar um fim, um processo sem solução, um movimento eternamente numa determinada direção. Possível somente será um transformismo compensado com um movimento contrário e complementar, em função de um ponto de partida e de chegada, dentro dos limites de um dado percurso ou processo transformístico. Se queremos aprofundar para compreender a natureza daquele movimento, temos de chegar ao conceito de involução e evolução, entendidos como os dois períodos opostos e complementares do mesmo ciclo. Só assim tal movimento não se anula no vazio, mas completa-se com a sua fase contrária, em função do seu ponto de referência fixo, de partida e de chegada, que lhe imprime uma direção sem a qual ele não pode existir. A simples ideia de movimento vir-a-ser aperfeiçoa-se, mudando-se naquela mais exata: transformismo em direção involutiva e transformismo em direção evolutiva. Tal é o duplo movimento, no qual consiste em o vir-a-ser e a sua existência. Isto significa que em nosso universo não se pode existir senão movendo-se em direção involutiva ou em direção evolutiva, progredindo ou retrocedendo, afastando-se ou avizinhando-se de Deus, princípio e fim, porque é em função de Deus que tudo existe. A estase, neste processo de ida e volta, não pode ser constituída senão por períodos transitórios, que tarde ou cedo são retomados no movimento da existência.

O transformismo não é, pois, uma qualquer mutação desordenada, ao acaso, mas sim um movimento bem regulado, fechado dentro de normas de um processo fenomênico bem definido e disciplinado. Sem o tal princípio de ordem que o dirige, é difícil imaginar como se possa realizar. Ora, tudo isto implica a existência de um esquema diretivo, de um plano pré-estabelecido que determina o caminho e, ao longo dele, as fases de descida e de ascensão. Deve haver diferentes níveis de evolução, diversas alturas ou graus progressivos no modo de existir, posições biológicas mais ou menos avançadas, conforme o caminho executado para cada ser em relação ao ponto final de todo o processo, em direção ao qual tudo converge. Eis como pôde nascer e o que significa a ideia de progresso. Eis como transcorre o fenômeno do gradual desenvolvimento do ser por evolução. Vimos estes conceitos desenvolverem-se, ligados uns aos outros num progressivo concatenamento lógico.

Chegamos a este ponto, podemos explicar melhor o significado do conceito de verdades relativas e progressivas de que falamos anteriormente. O que estabelece o grau de nosso conhecimento é o nível de evolução alcançado pelo instrumento que possuímos para este fim, ou seja, a nossa mente. O conhecimento existe, portanto em função da evolução, progride com o aperfeiçoar-se deste instrumento e a sua amplitude é dada por seu desenvolvimento. Na natureza tudo já está compreendido e resolvido já o encontramos em seu estado de funcionamento. Nós temos ainda necessidade de chegar a compreender e a resolver. No indivíduo mais evoluído a dificuldade não reside tanto no compreender quanto no fazer compreender aos menos evoluídos, os quais, às vezes, levam séculos antes de chegarem à compreensão. Esta é a história dos gênios incompreendidos.

O que impede o conhecimento são os próprios limites do instrumento mental utilizado pelo indivíduo para alcançá-lo. Superá-los representa um esforço ao qual o ser se rebela. A agilidade para executar esse trabalho é tanto menor quanto mais involuído é o ser. Quanto mais atrasado, mais se aproxima da inércia da pedra, da qual se encontra mais perto evolutivamente. Tem horror às mudanças, opõe resistência a toda renovação de ideias, uma vontade anti-esforço, para paralisar a ascensão que o incomoda. Esta tendência à estagnação chama-se misoneísmo, é devida ao impulso do subconsciente de ficar agarrado ao que armazenou no passado, representando a linha de conduta mais segura, porque já foi provada pela experiência e forma o seu patrimônio que tanto esforço lhe custou para conquistar. Prefere assim, por preguiça, não construir outro patrimônio, para viver basta o que já possui.

Os vários graus de conhecimento, que a evolução nos oferece, alcançam-se com tipos variados de inteligência, proporcionados ao nível biológico conquistado pelo indivíduo. Para as formas superiores de conhecimento os primitivos estão completamente imaturos. Podem recebê-lo, aprendê-lo, repeti-lo, possuí-lo em aparência, mas uma coisa é a erudição e outra é o saber pensar. O involuído não é um estúpido, mas é necessário compreender qual é o seu tipo de inteligência. Esta é sempre a do seu nível evolutivo animal-humano, possuindo relativa sabedoria, para ser utilizada no seguinte: sabedoria dirigida à defesa da vida, resultado do caminho percorrido no passado, limitada a fins imediatos, feita para resolver os problemas práticos, próximos, e não os altos, teóricos, longínquos. A tal biótipo basta-lhe a sagacidade comum, a habilidade do engano e saber tirar proveito de tudo. Com isto ele se crê inteligente e de fato esta é a sua inteligência.

Mas o tipo de inteligência se transforma com a evolução e se eleva, para enfrentar e resolver outros problemas bem diferentes, os quais, para o tipo precedente, ficam fora do concebível. Assim entre evoluído e involuído poderá encontrar-se o mesmo desnível de compreensão que existe entre um homem e um animal. Com a evolução, a inteligência coloca problemas sempre mais vastos, gerais, mais próximos dos princípios diretores, no centro do conhecimento. Em direção a este centro, avança o ser, afastando-se da periferia ou superfície, onde funciona a realidade prática exterior. Temos assim outro tipo de inteligência, feita para outros trabalhos e dirigida a outros fins. Ela abraça horizontes e concentra visões imensas, reúne em si, em síntese, espaços conceptuais amplíssimos, libertando-se por abstração da infinita multiplicidade do particular. Poder-se-ia chamar a isto olho telescópico, feito para ver longe, em comparação com outro que se poderia chamar olho microscópico, feito para ver perto. Trata-se de fato de uma inteligência pequena, limitada ao contigente, descentrada na multiplicidade do particular, desorientada e dispersa em mil fatos pequenos dos quais escapa o significado no seu plano diretor. Evoluindo, com a capacidade de vê-los, ampliam-se sempre mais também os horizontes percebidos.

Os dois tipos de inteligência não se compreendem. O primitivo, justamente porque é ignorante, crê possuir toda a verdade, completa e definitiva. O evoluído, pelo fato de saber compreender quanto mais amplo é o conhecimento, além das limitadas possibilidades humanas, tanto mais ele ainda desconhece. O primitivo liquida rapidamente todos os maiores problemas do conhecimento, suprimindo-os, limitando-se aos da vida animal; para ele só estes são importantes. Para o primitivo, o pensador é um inepto para à vida, perdido entre as nuvens, fora da realidade, uma coisa inútil, que se deve eliminar. Forma mental, desejos, emoções e dores são diversos.

Os problemas do primitivo que se colocam e têm de ser resolvidos são os mais simples dos que os do evoluído, mas como acontece com este, são sempre proporcionais à sua inteligência. Quem se encontra ainda envolvido nas necessidades materiais deve, para sobreviver, ocupar-se destas. O interesse por outros problemas mais adiantados pode surgir somente quando os primeiros já tenham sido resolvidos, isto é, numa fase de civilização mais alta, na qual a vida seja menos violenta e feroz, direitos e deveres estejam estabelecidos e garantida para o indivíduo a satisfação das necessidades materiais, de maneira que estas não o ataquem e o distraiam e ele possa dirigir-se a outros trabalhos, construindo uma forma mental adequada a estes.

Continuemos seguindo o fio de nossa lógica, para ver até onde nos leva. Vimos no universo uma previsão e coordenação de trabalho, com a presença de um pensamento diretor. Este plano no qual se move o processo involutivo-evolutivo não pode ser outra coisa senão o produto de uma inteligência, suprema neste caso, que somente pode ser a de Deus. Tudo isso pode derivar e depender somente de Quem esteja por sobre toda a criação, de Quem, para poder discipliná-la, esteja em condição de compreendê-la com a Sua mente e possuí-la com a Sua potência; só Deus pode fazê-lo. Então, aquele plano não é outra coisa senão a Lei de Deus, pensada e desejada por Deus, imposta como regra da existência, base da ordem do universo.

Esta Lei não é letra morta, escrita com palavras, mas, pelo contrário, está viva e em ação, porque é pensamento e vontade, é ideia e realização. Quando um ser se desvia, a Lei volta a chamá-lo para o caminho reto, do qual se afastou. Impele-o a voltar a ela para seu bem, mesmo porque não é tolerável uma infração à Lei, que representa um atentado à integridade do plano de Deus, uma tentativa de destruí-lo, a fim se substituir a vontade suprema pela vontade da criatura rebelde. A reação da Lei tem a sua função, a da defesa daquele plano que deve permanecer absolutamente íntegro para ser realizado. Nele está a salvação do universo, porque determina o caminho do regresso de tudo a Deus, enquanto o ser procura sair da órbita traçada pela Lei, para impor o seu desvio. Esta saída do plano estabelecido para tentar uma órbita diversa, anti-Lei, deve ser liquidada. Este é o princípio fundamental e na Terra cada lei o repete, reagindo seja com a prisão ou com o inferno, porque a reação punitiva é a única coisa que o involuído é capaz de compreender e pode induzi-lo a obedecer. Se não tivesse em questão o seu prejuízo, o transgressor não se preocuparia com a Lei, que permaneceria uma afirmação teórica, sem nenhum resultado prático. Assim, a reação da Lei assume forma de dor para o violador, que se justifica com a própria Lei, é sua legítima defesa, porque representa o plano de Deus, anteposto à salvação do ser. Em última análise, a dor é santa e sábia, porque é uma medida providencial de proteção, que obriga assim a criatura a tomar o caminho da sua salvação, que consiste no regresso a Deus.

O plano da Lei guia o caminho da evolução e determina se deve avançar em direção a Deus, seu ponto final. Evoluir significa progredir num processo de divinização, quer dizer aquisição das qualidades mais altas do ser, colocadas no topo da escadaria ascensional, isto é, potência de pensamento, inteligência, sabedoria, bondade, espiritualidade, que são as qualidades de Deus. Se esse caminho avança nesta direção, vai consistir num desenvolvimento mental e espiritual. Este é a senda que vemos a evolução ter percorrido até hoje, subindo desde a matéria, através da vida vegetal e animal, até o homem, este, justamente, se distingue pelo seu desenvolvimento cerebral. A história de nossa passada evolução vem nos mostrar, por aquele trecho, o sentido impresso no caminho do plano diretor; autoriza a crer que, uma vez estabelecido, esta é a lei que guia o fenômeno, ela tem de continuar a desenvolver-se no mesmo sentido, segundo o mesmo princípio.

A consequência desta lógica é a humanidade, não por comando de castas religiosas ou de teorias filosófico-morais, mas por lei positiva de evolução, pelos princípios de uma biologia mais ampla, do passado, presente e futuro, ela tem de continuar a seguir o seu caminho, já traçado, que consiste em divinizar-se cada vez mais, significando avançar em direção à espiritualidade. Se a Lei quer isto: cada desobediência levará, fatalmente, como vimos, à reação, à sanção contra quem tente desvios fora da linha traçada. O crescimento evolutivo deve realizar-se no sentido da espiritualização. A história do passado nos mostra qual deve ser o nosso futuro. Se o crescimento evolutivo, no trecho percorrido até agora, foi neste sentido, torna-se evidente esta qualidade e vai acentuar-se cada vez mais no trecho a percorrer no futuro, porque a evolução é um processo único e agora estamos realizando a continuação dele.

Descoberta importante esta, porque nos mostra qual deve ser a direção a seguir agora em nosso caminho evolutivo; a Lei quer mover-nos neste sentido, sob pena das suas reações dolorosas em caso de desobediência. O passo atual é perigoso, porque o homem alcançou uma madureza mental que o coloca ante o dever de tomar sobre si as responsabilidades oriundas de tal madureza. O homem, neste momento, chegou a um desenvolvimento mental e de consciência que o capacita a assumir-se, a si mesmo, não funcionando mais como um animal guiado pelo instinto, mas com conhecimento do plano diretivo da vida, a direção do processo evolutivo no seu planeta, fazendo-se operário inteligente de Deus, colaborador na execução da Sua Lei. O homem agora não pode mais aceitar cegamente só por fé, a descida dos ideais do Alto, concedida por revelação, mas deve, inteligentemente, compreender o seu significado e a função, trabalhando ativamente, para traduzi-los em realidade na Terra.

Os fatos confirmam estas afirmações. Hoje, realmente, a humanidade se encontra numa curva biológica, em fase de transição evolutiva, passando de um tipo de trabalho, inferior, que lhe é imposto pela necessidade da luta pela sobrevivência física num ambi-ente hostil, a um tipo de trabalho superior, dirigido ao desenvolvimento da mente e do espírito, ambiente civilizado. A ferocidade e a força bruta servem agora, cada vez menos, para os fins da vida, à qual interessam cada vez mais a cultura, o pensamento, a inteligência, porque lhe são  mais úteis. A vida, sem hesitar, escolhe sempre o mais útil para a sua afirmação e para a sua continuação.

O tipo de vida que nos espera no futuro está evidentemente traçado: é este e não outro. a Lei o quer no momento atual de nosso desenvolvimento evolutivo; estas são hoje para nós as diretivas do plano de Deus; este é o comando ao qual Ele exige que se obedeça. Se o homem não seguir esta linha de conduta, situar-se-á numa posição Anti-Lei, com as consequências dolorosas que vimos. Se o homem, aproveitando o progresso alcançado e as descobertas que o libertam do trabalho físico e de tantas duras necessidades materiais, utilizar tudo isto somente para divertir-se e dirigir a inteligência em sentido destrutivo em lugar de criador, para o mal em vez de para o bem, certamente a Lei reagirá enchendo o mundo de dor, porque, como vimos, cada violação leva ao correspondente e doloroso pagamento. Então, a huma-nidade ficará fora da Lei, abandonada a si mesma, para destruir-se com as suas próprias mãos.

Chegamos a conclusão de que a humanidade, hoje, encontra-se numa encruzilhada: ou ela segue a linha da evolução segundo o plano de Deus, o da espiritualização, avançando em direção ao Sistema para adquirir as suas qualidades, ou, pelo contrário, continuando a seguir a psicologia do passado, feita de egoísmo e agressividade destrutiva, prestar-se-á a fazer um uso louco dos novos potentíssimos meios dos quais dispõe. No primeiro caso, poderá alcançar uma verdadeira civilização; no segundo, autodestruir-se-á e a supremacia da vida sobre o planeta passará a outras raças de animais inferiores que substituirão a humana. Espiritualização significa consciência, sentido de responsabilidade e de justiça no uso dos novos poderes; significa assumir, inteligentemente, as diretrizes da vida sobre a Terra, a do homem e a dos seus coinquilinos, não com a forma mental tradicional do involuído e sim com a do evoluído. Insistir na psicologia do passado agora pode significar a morte.

Impulsionar a humanidade em direção à sua inteligente espiritualização pode significar salvá-la da destruição. Daí conclui-se como é grande a importância do trabalho que realizam todos na Terra, voltados para a descida dos ideais que contêm o programa do desenvolvimento futuro da humanidade, indicando como deve continuar a atuação do plano de Deus, nesta nova fase do processo evolutivo. No entanto, o mundo considera, muitas vezes, estes indivíduos como iludidos, fora da realidade e os condena, chama-os de sonhadores carentes de sentido prático; neste momento, verdadeiramente, eles representam a única salvação para a humanidade, em sua atual fase de transição evolutiva.