Se um indivíduo, movido pelas mais sinceras e honestas intenções, com finalidade de levar luz e progresso, sem qualquer espírito de polêmica, faz notar faltas e defeitos do mundo, propondo melhorias, por que é julgado inimigo e com intenções agressivas se procura fazê-lo calar? Por que fazer observações, com uma finalidade boa, para compreender e esclarecer, é, na prática, entendido como sendo uma crítica agressiva, uma ofensa? Quem cai em semelhante mal-entendido deve ser um ingênuo, deixa-se iludir pelas aparências e não vê que outra verdade está oculta atrás delas.

A realidade é outra coisa. A forma mental humana é o instrumento e fornece a verdadeira unidade de medida do juízo, formou-se através da luta pela sobrevivência, pela qual se é levado a ver tudo em função dela. Na verdade, os ideais, se querem existir na Terra, devem estar sujeitos à lei da luta, isto é, incorporados nas formas que os representam, protegidos dentro de castelos armados. Assim, qualquer apreciação feita por estranhos é julgada como uma ação de guerra, de ataque e defesa, vista com suspeita como uma indevida intromissão em casa alheia, que o dono deve, acima de tudo, defender. Esta é a realidade. Por isto, a exposição de uma ideia e a procura da verdade tende  a transformar-se em polêmica, pois o instinto humano leva a interpretar tudo em sentido agressivo; a paixão é vencer para submeter e dominar, não é subir espiritualmente.

Se o interesse fundamental fosse o aperfeiçoamento e quando se vivesse em função de um ideal superior a alcançar, então, uma crítica razoável, com um fim benéfico, deveria ser considerada como uma amigável oferta da qual se poderia aproveitar para ascender. Mas, o ideal interessa a bem poucos, o melhorar-se, menos ainda; pelo que a crítica é entendida como um estorvo importuno que se deve afastar, é um esforço que não se quer enfrentar, ou, pior ainda, é ataque de um rival a ser julgado somente para mostrar deficiências e aproveitar-se para destruir.

Assim, prevalece não a procura da verdadeira, sempre sufocada, porque tende a inverter-se em ataques demolidores, mas o princípio da autoridade, porque a preocupação principal na Terra não é conhecer e subir, mas manter a disciplina e os súditos em obediência. O instinto fundamental do homem não é a conquista da verdade, mas a revolta. Também nas religiões o que torna válida cada lei é a força, ainda que seja psicológica, ou de opressão, para submeter, armada de sanções e castigos, adequados a infligir dano, ainda que espiritual, aos transgressores. Assim, o instinto de defesa do grupo leva à inibição da discussão esclarecedora do pensamento, a congelá-lo em afirmações dogmáticas, pois o mais urgente para sobreviver é estabelecer as posições do comando e da obediência, isto é, a ordem que põe barreiras e trava a luta de todos contra todos, motivo fundamental da vida; eles a entendem, porque lhes é transportado e reduzido também o espiritual.

Assim se explica como, ao legítimo desejo de evoluir e fazer evoluir, responde um levantamento de barreiras em ato de defesa. Em cada aproximação humana a primeira ideia que surge, por instintivo produto do subconsciente, filho do passado feroz que o construiu, não é a de alguém que se aproxima de nós para nos ajudar, mas para agredir-nos, deve ser tratado, inevitavelmente, como um inimigo.

O mal entendido decorre do variado grau evolutivo, com formas mentais diferentes, funcionando em relação a pontos de referência opostos, isto é, a Terra ou o céu, ou ainda em outros termos, a atual fase animal de evolução ou a mais avançada fase futura, hoje antecipada teoricamente pelo ideal. É natural que cada um não pode ver senão com seus próprios olhos e, portanto, vê somente o que estes devem ver. Assim a casta político-religiosa, então dominante, julgou a Cristo, porque só foi  capaz de ver Nele um perigo para os seus próprios interesses terrenos que lhe pareciam ameaçados por um reformador da lei, nada compreendeu da sua verdadeira função, que era a de dar um grande impulso ao progresso da humanidade. O mesmo fenômeno de incompreensão se repetiu, em casos menores, com todos os Seus seguidores, ao longo do mesmo caminho. Com uma forma mental emborcada, entende-se tudo ao contrário e o impulso para melhorar é tomado como um ato hostil, produzindo uma reação de defesa em vez de reconhecimento. O mal-entendido é natural, porque a presença dos ideais na Terra tem outro significado: aqui existem na forma de castelo armado, dentro do qual se aninham e são sustentados enquanto servem para defender seus interesses. Assim, nas religiões aparecem o fanatismo, o sectarismo e o proselitismo, o espírito gregário prevalece sobre o espírito de verdade. Prefere-se o cúmplice como seu amigo, ao idealista, amigo apenas do ideal e pode ainda tornar-se inimigo porque está situado nos antípodas dos interesses terrenos.

O grupo religioso pode opor a tais intromissões do idealista com um justificado argumento: “Nós estamos em nossa casa, foi construída por nós em terreno de nossa propriedade. Por isto temos o direito de mandar aqui e de impor, a nosso modo, a nossa verdade, expulsando os estranhos que pretendem, a seu modo, impor a sua”. Argumento justo, argumento do mundo, uma potência espiritual recorrendo a ele e apoiando-se na Terra em vez do céu, pelo menos nesse momento não é espiritual porque abdica da sua verdadeira posição superterrena para reduzir-se à de um grupo humano que, como todos os outros, defende com argumentos humanos os seus interesses. Então, se não se é de Deus, mas pertence ao mundo, que se fique no mundo, não se misturando e não se utilizando, para os fins deste, o ideal, o espírito, o divino. Não se pode ao mesmo tempo servir a dois senhores, seguir dois objetivos opostos, o espiritual e o temporal, com perigo de acabar utilizando o primeiro a serviço do segundo. A religião é uma organização humana, que usa os métodos humanos, e como tal deve ser considerada.

Os dois pontos de vista são demasiado diversos para poderem coexistir sem que um dos dois deva ser afastado. Para o involuído o centro da vida está na Terra, no presente, constituído por interesses materiais. A vida mais ampla, na eternidade, é para depois da morte, um seu prolongamento nebuloso em que pensará em último lugar, esgotada a atual, mais valorosa. Para o evoluído o centro da vida não está na Terra, no presente, e a vida atual vale só em função de uma outra, maior, situada na eternidade; não é um fim em si mesma, é apenas um meio para alcançar finalidades mais longínquas e preparar a sua realização. O problema da vida é conduzido de um modo diverso, perante uma diferente amplitude de horizontes. Enquanto o homem prático realiza-se imediatamente na Terra, o idealista realiza-se a longo prazo, depois da morte, mas seguindo um plano muito mais vasto. Os seus interesses estão fora do mundo. As duas formas mentais são o emborcamento, a negação uma da outra, e estão empenhadas em condenar-se entre si.

Na Terra se é grato não ao amigo da verdade, mas ao amigo do grupo. Para o evoluído ser aceito pelo involuído, é necessário abaixar-se ao nível deste, com o seu bem-estar lhe paga este abaixamento. Se o idealista não se deixa domesticar pelo mundo, é por este expulso. Dessa forma, é aceito quem coopera com o interesse material do grupo e é importuno quem queira transferi-lo ao plano espiritual. Não pensar e não discutir para compreender e avançar, mas crer e obedecer para servir e não incomodar. Isto moralmente prejudica o grupo, mas não o indivíduo a quem ninguém pode bitolar a vida espiritual, porque não se necessita do próximo para falar com Deus.

O Cristianismo foi implantado por Cristo em posição de antagonismo contra o mundo. Não foi culpa sua se teve de adaptar-se a este mundo, era uma necessidade e a condição para poder sobreviver. Tal sobrevivência teve de ser paga com a corrupção do ideal que afirma representar, por que, em grande parte, tornou-se mundano, contentando-se em realizar-se na Terra só no espaço em que o mundo, senhor em sua casa, quis-lhe conceder. É certo, no fim a evolução fará de Cristo um vencedor. Mas, na fase atual, após dois mil anos, verificamos que o mundo venceu o ideal e não foi o ideal que venceu o mundo. É verdade, a vida do germe está cheia de imensas possibilidades futuras, mas no momento é só vida latente, à espera. Hoje, nos fatos, o Cristianismo está mais do lado do mundo do que do lado de Cristo, o verdadeiro Cristianismo encontra-se ainda no estado de boa-nova. Todavia, é lógico e justo, a mente humana não pode expandir-se em direção a mais vastos horizontes como o ideal cristão preconiza, se ela não está ainda madura para isto. Lógico é, também. que nos primitivos deva ser, primeiramente, usada como instrumento de defesa da vida, isto é, dos interesses terrenos. Tudo isto está proporcionado às finalidades que a vida quer alcançar, conforme o nível atingido, e responde às leis da evolução. Numa fase inferior, é natural que o inimigo a vencer, contra quem se desabafa o instinto de luta, seja o seu próprio semelhante, porque mais do que isso a mente não entende; mas, é natural, com o desenvolvimento da inteligência, prefere-se lutar contra inimigos mais importantes, tais como: a animalidade de cada um a superar, o ignoto a conquistar, o mistério a revelar; com aquele desenvolvimento, o amor não deve ser só para a mulher a fim de gerar, mas para o super-ser que encarna, com o ideal, um tipo superior de vida. A função das religiões é precisamente a de cultivar, armazenar e oferecer tais modelos para que possam ser imitados.

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É certo que existe contradição entre o programa evangélico traçado por Cristo e a sua realização prática na vida dos seus seguidores, sejam pastores ou rebanho. O mundo com os seus cidadãos não se deixou de nenhum modo vencer por Cristo e continuou com os seus métodos. Isto se explica. Quando um ideal desce à Terra, o contraste entre ele e o mundo é inevitável e sua evidência está à vista. No entanto, a contradição é sanável e se resolve com a concepção evolucionista. A solução está em entender o Evangelho em sentido dinâmico e não estático, evolucionista e não definitivo, como um processo em formação que se projeta e se cumpre no futuro, não como uma posição fixada no presente. Se isto explica e justifica o estado atual, nem por isso o altera, permanece a contradição. A solução está na transformação de tudo por evolução e só pode acontecer com o tempo, encontrando-se hoje, em posição de espera perante o futuro. Entretanto, continua a contradição e para compreender é bom observá-la, sem pessimismo, porque se preveem os seus futuros desenvolvimentos. Observemo-la:

O Evangelho fala claro e repetidamente sobre a posse de bens, e não deixa dúvidas. “Se quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres (...)”. “Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no reino dos céus. Sim, repito-vos: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. “Não acumuleis tesouros na Terra (...)”. “Ninguém pode servir a dois senhores: ou amará um e odiará o outro; ou se afeiçoará a este e desprezará aquele. Não podereis servir a Deus e a Mamom”. “Quem entre vós não renuncia a tudo o que possui não pode ser meu discípulo”.

Os banqueiros melhor informados calculam as riquezas do Vaticano entre dez a quinze bilhões de dólares. Ele possui grandes investimentos em bancos, seguros, produtos químicos, aço, construções, imóveis etc. Os dividendos servem para manter de pé toda a organização, incluídas as obras de beneficência. Sobre estas receitas, o Vaticano, pelo menos até hoje, no início de 1965, na Itália, não paga impostos. Que se deveria dizer dos séculos passados, quando a Igreja, com o poder temporal, se tinha submergido no mundo até ao pescoço, exigindo impostos, armando exércitos, ligando-se à política? A contradição se justifica e é evidente.

A justificativa vem das inderrogáveis exigências do ambiente social do “mundo”. Neste, imaginamo-nos fazendo parte duma organização qualquer que não possua seus próprios meios. Eles são indispensáveis à Igreja para cumprir a sua função. Então, o erro de previsão foi de Cristo, pois o cristianismo, para poder funcionar na Terra, devia renunciar a ser perfeito, como Cristo aconselhou. Os primeiros a estar em falta são os pastores, se os maus exemplos vem deles, que deverão fazer os seus discípulos? Será culpa da Igreja estar obrigada a isto para poder cumprir o seu mandato? Se não é da Igreja, como não lançar a culpa sobre Cristo? Se um representante do Vaticano perguntasse a Cristo: “Que devo fazer para obter a vida eterna?”, certamente que Cristo não poderia responder de um modo diferente deste: “Se quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens (...)”. E a Igreja Lhe deveria objetar: “Se queres que eu cumpra a Tua ordem de representar-Te na Terra, devo possuir os meios do mundo”. A ordem é clara: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (...). “Apascenta as minhas ovelhas”. Não havia, portanto, outra escolha: para poder obedecer por um lado, vai desobedecer do outro; para poder cumprir o mandato, vai renunciar a ser perfeito. Era necessário adaptar-se à Terra e pactuar com o mundo inimigo. Assim, a Igreja não seguiu o conselho de Cristo e possui bens, ainda que isto necessariamente a leve a ser um instrumento imperfeito. Devendo o ideal viver em casa alheia, é o mundo, teve de aceitar-lhe as suas leis. A este preço o Cristianismo conseguiu sobreviver por dois mil anos, habitando em casa do inimigo.

O problema é saber se isto, que é uma necessidade imposta pela realidade da vida, é traição de princípios, é prostituição do ideal. É lícito arrogar-se a posição de representantes de Cristo sem seguir os seus ditames? Se estes ditames presumem a presença de heróis e mártires, na prática não existem, quem sobraria para constituir a Igreja no cumprimento do seu trabalho? Se a aplicação integral do Evangelho no mundo conduz à morte, de que serviria na Terra uma Igreja de santos transferida para o céu? Ela deve ser constituída de homens que saibam viver no mundo e não de santos votados à morte. A Igreja teve de tornar-se uma organização terrena, construída com o material humano corrente, porque não teve outra maneira de representar Cristo, sem estar sujeita às leis do mundo, do qual fatalmente faz parte. Este fato, ainda que seja inevitável, rebaixa imediatamente o nível desta organização até o plano terreno, coloca-a lado a lado com todas as demais, como tal é tratada. Temos aí uma Igreja que se fez mundo, mesmo com o propósito de santificá-lo, assemelha-se ao seu maior inimigo. Assim ela se torna administração de bens, burocracia, negócio, política, descendo ao nível comum de luta pela vida. Os homens podem mudar de forma mental e assumir a evangélica, tão afastada do seu mundo, só pelo fato de ser incluído na organização eclesiástica? O resultado desta simbiose Cristo-mundo é péssimo, de cristão não resta ao Cristianismo atual senão pregação, retórica, hipocrisia. Impõe-se e prevalece na Terra o mais importante: a necessidade de administrar, indispensável logo que surge uma comunidade.

Um pastor, situado com o seu rebanho perto de Roma, me escreveu, por ser honesto, expressando sinceramente o seu pensamento, que se pode resumir: “O Evangelho mata, que morte! Existe então a autoridade da Igreja à qual confiar-se”. Eis, portanto, a solução: põe-se de lado em relação a Cristo e exercita-se o comando em Seu nome. Esta é a tendência normal dos administradores terrenos. Quem trabalha em nome de outros acaba por tornar-se senhor do produto do seu trabalho. Isto significa que o Cristianismo atual não é feito só por Cristo, mas é um produto manipulado e adaptado pelos homens para seu uso. Resultou daí uma Igreja, mistura de humano e de divino; nasceu um produto híbrido; por querer ser as duas coisas, não é exclusivamente nem uma nem outra. É como um jovem que não é nem menino nem homem, mas que está destinado a ser homem.

Não se trata apenas de um produto híbrido, mas de uma forma de transição. Temos um composto, como alma e corpo, através do qual o humano imperfeito para melhorar se lança ao divino e o divino, para elevar o humano, desce até ele. Não é que Cristo tenha demonstrado não conhecer o homem ao ditar-lhe um programa irrealizável, exigindo desta pobre criatura além de sua capacidade. Cristo não lhe propôs o impossível. Pelo contrário, foi precisamente porque o conhecia, através do Evangelho, estabeleceu-lhe u’a meta distante em direção à qual devia avançar e, por fim, alcançá-la. O estado atual do Cristianismo não é, portanto, uma farsa perante Cristo, mas é apenas uma fase inicial de um processo evolutivo, demonstrado, no Evangelho com ponto de chegada, a posição final. Trata-se de um estado de imperfeição transitória que parece negação de Cristo, porque ainda não o alcança na sua plenitude, mas somente como primeira aproximação; imperfeição que, no entanto, está em marcha para chegar à perfeição evangélica e à plena afirmação de Cristo.

É natural que no meio do caminho o ideal deva adaptar-se às condições de ambiente, deva assumir posições humanas e, quando não encontra outro modo para sobreviver na Terra, deva, inclusive, transformar-se em hipocrisia. Não importa tanto, pois a semente está no terreno, mesmo que tenha de lutar para nascer num ambiente adverso. Também o ideal possui força. Alguma coisa do seu poder acaba por penetrar na alma humana. Torcido, vilipendiado, transviado, explorado, esse ideal, apesar de tudo, existe na Terra e permanece ali, funcionando também à sua maneira entre tantas forças da vida. Entretanto, espera e trabalha, serpenteia, penetra, enxerta-se, depois de longa insistência se fixa, finalmente, nos espíritos. Trabalho lento, mas no fim de cada milênio, consegue que o homem dê, mesmo que pequeno, um passo à frente. Do ideal se podem fazer os usos mais diversos, mas quando se maneja uma coisa, sempre um pouco dela fica apegado nas mãos.

A função da evolução é a de tudo melhorar, purificar, aperfeiçoar, o Cristianismo não pode constituir exceção a esta regra. Se instalou num mundo onde tudo está em evolução e, justamente, por ser um ideal, corresponde-lhe a função de realizá-lo. Se o Evangelho está no meio do mundo, adaptando-se a ele, chegou-se até ao ponto de conviver com o inimigo numa estranha simbiose que pode parecer degradação, isto acontece para transformar o mundo até torná-lo aquilo que o Evangelho quer. No seio do mundo representa a semente do futuro, futuro que cada semente espera porque lhe pertence. A superação do passado é a tendência constante da vida, esta é a luta a cada instante.

Ao longo do caminho da evolução, quanto mais retrocedemos no tempo mais vemos que o mundo é forte e o Cristianismo teve de adaptar-se a ele. Devido ao princípio evolucionista, é natural; quanto mais se é atrasado, tanto mais prevalece a matéria sobre o espírito. Esgotado o primeiro impulso, devido ao período das catacumbas, das perseguições e dos mártires, à vizinhança daquele impulso dado por Cristo, o adversário tomou a dianteira e a Igreja, com a conversão de Constantino, fixou-se materialmente com os pés na Terra, tornando-se coisa do mundo. Foi degradação do ideal? Não. Foi necessidade histórica. O poder temporal foi o veículo feito de matéria, indispensável para que uma instituição, formada em grande parte de almas ainda toscas, pudesse sobreviver em tempos ferozes; indispensável para que aquele primeiro núcleo de espiritualidade, perdido num mundo selvagem, pudesse percorrer todo o bimilenário caminho medieval e chegar até hoje, trazendo até nós o pensamento de Cristo. Foi necessário possuir bens até ao ponto de tornar o sucessor de Cristo um dos reis da Terra, como senhor no mundo plenamente integrado, colocando-se no seu nível espiritual, forçado a mergulhar na luta, usando os seus métodos de força, de astúcia e mentira política. Sem dúvidas, uma sociedade de santos num mundo semelhante teria sido destruída. Naquelas condições não havia outra escolha: se se queria sobreviver para cumprir o mandato de Cristo, era indispensável aceitar o ambiente e renunciar à aplicação integral do Evangelho.

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No mesmo processo, junto à necessidade de descer e adaptar-se, está implícita a de evoluir e elevar-se mais. O espiritual não pode viver separado do mundo que representa o seu terreno de operações porque lhe oferece o material para elaborar. Assim o Cristianismo, ainda que contribuindo para ela, não pode progredir senão em função da evolução geral da humanidade.  Assistimos, com referência à Igreja, a um contínuo trabalho que poderíamos chamar de polimento, para o qual possuir bens, adaptando-se aos tempos, pode assumir formas cada vez menos materiais. Antigamente não podia haver nada mais anti-evangélico do que um governo de estado com exércitos ou um poder político que se apoiava no espiritual. Depois, caído o poder temporal, ficou só o econômico. Amanhã, quando numa sociedade mais avançada for reconhecida a função vital das religiões, sustentá-las, oferecendo os meios necessários para realizar essa função, constituirá uma obrigação do Estado, que provê à satisfação de todas as necessidades da coletividade, incluindo as espirituais. Então a Igreja poderá libertar-se da posse material sendo-lhe assegurados, por parte do mundo os meios para viver, quando lhe permitirá deixar de ser mundo. Se, numa futura sociedade orgânica se proverá a todas as funções sociais, incluindo a religiosa, hoje isso não sucede; como se pode eliminar a necessidade de possuir bens, se esta é uma condição indispensável para a realização daquela função? Esta foi e é civilizadora, de grande importância, à evolução. A Igreja, no passado, teve de afirmar, num mundo feroz de invasões bárbaras, um princípio superior então desconhecido. Que luta teve de sustentar o espírito para introduzir-se na casa de semelhante inimigo, como era o mundo de então! A Igreja não pode progredir senão em relação às condições de vida que o mundo oferece e lhe permitam desprender-se da posse de bens sem, por isso, deixar de existir, como lhe é necessário para cumprir a sua obra de civilização.

Este é o processo evolutivo ao qual está sujeito o Cristianismo, a cujo seio arrasta tudo o que existe. É a vida toda que progride no planeta, tudo envolvendo consigo. Nenhuma instituição, mesmo que se proclame sobrenatural, pode existir e funcionar fora das leis da vida. Não é culpa da Igreja se o atual baixo nível de evolução, também seu por ser da humanidade da qual faz parte, impede-a de ser evangélica, cem por cento. Cada século altera um pouco nesta percentagem a relação entre as duas partes, isto é, aumenta a parte Evangelho e diminui a parte mundo. Assim se explica e justifica o estado presente, se corresponde a um não cumprimento do Evangelho, ao mesmo tempo, um não cumprimento em evolução, significa que está em via de correção, um cumprimento progressivo, cada vez maior, isto é, uma negação que se vai invertendo em direção à afirmação. Graficamente isto se poderia expressar com a deslocação em subida segundo uma linha oblíqua, movendo-se em relação a dois eixos ortogonais: horizontal, expressando o desenvolvimento da linha do tempo e outro vertical, partindo do ponto zero, matéria, expressando o grau de espiritualização alcançada.

Se a Igreja no passado começou a reinar na Terra, no plano da evolução, não foi para realizar-se como potência material, mas porque este era um meio indispensável para poder sobreviver e funcionar, até onde fosse possível, como potência espiritual. Se hoje justifica o passado involuído, por outro lado, exige que ele seja superado, o mais rapidamente possível, continuando o caminho em direção ao alto, à sua verdadeira meta: a espiritual. Em qualquer fase de desenvolvimento a tendência constante deve ser a de aproximar-se do Evangelho, lutando para superar todos os obstáculos que separam a Igreja da sua realização. O verdadeiro objetivo é a superação do mundo, não o instalar-se na Terra, muito menos nela reinar. As adaptações, através das quais o ideal desce ao nível humano, podem ser um mal necessário, porém transitório, aceitável somente tendo em vista a sua eliminação. Só neste sentido é tolerável. De outra maneira constitui uma permanente corrupção do ideal, a sua negação o leva ao fim. Se desaparece esta esperança de salvação futura, com um endireitamento de posições em sentido evangélico, o Cristianismo não tem mais razão de existir e as leis da vida acabarão por eliminá-lo, como fazem com todas as coisas que não cumprem a função para a qual existem. Então terá lugar a substituição por outras formas religiosas, por outros homens e instituições que farão o que o Cristianismo dos primeiros dois milênios ainda não fez. Cristo faz parte das leis da vida que nada pode deter. Quando os homens tratam de detê-lo, são afastados e Cristo avança sem eles.

É verdade, a Igreja, uma vez tornada Estado para poder sobreviver no mundo, devia governar, porém, com santidade e perfeição vai-se para o céu, mas na Terra não se governa com essas qualidades. Também, por muitas razões, o que poderia ser lícito no feroz mundo medieval já não o é mais necessário, porque a humanidade passou a formas de vida mais justas e evoluídas. Quem governa pode, em certos momentos, ser forçado a colocar-se em proporção com o grau de evolução dos governados, mas deve estar sempre à cabeça e um passo mais à frente que os outros.

Este caso do Cristianismo faz parte do fenômeno da transformação matéria-espírito, que representa uma deslocação biológica profunda e, por isso, não pode verificar-se num dia. É, como tantos outros, um processo de crescimento da vida e não pode realizar-se senão lentamente por graus, dessa maneira se realiza a evolução em todos os seus níveis. Estas transformações são o resultado de maturações, equilíbrios, impulsos proporcionados às reservas de energia, às possibilidades de esforço e ao fim a alcançar. Transformar-se de repente, com impulsos de improviso, pode pôr em perigo a sobrevivência, fato de enorme importância. Não podemos escandalizar-nos do estado atual, apesar de involuído, quando sabemos ser atrasado por estar no início e incluído dentro de um irrefreável transformismo que o leva em direção ao Alto. Sabemos que tais posições avançadas em forma diferente não são senão momentos de um processo evolutivo destinado a levar tudo à perfeição.

Para compreender, há que referir-se a um Cristianismo progressivo, isto é, concebido como uma gradual realização do programa de Cristo. Por isto, o tão condenado princípio evolucionista pode impulsionar a Igreja, lançando-a da sua velha posição estática no dinamismo da vida e dela fazendo um fenômeno em evolução. A perspectiva, então, muda completamente e abre-se em direção a mais vastos horizontes. O dogmatismo conservador se transforma numa marcha em ascensão. Tudo se vivifica porque está animado da potência do espírito, que toma posse do fenômeno para levá-lo cada vez mais adiante.

Observemos a grandiosidade deste fenômeno sobre o fundo do transformismo universal físico-dinâmico-psíquico, que em A Grande Síntese tínhamos analisado exaustivamente. A descida dos ideais e a evolução das religiões não são senão um momento desse fenômeno. Então, a vida assume um significado profundo porque se revela como um processo de espiritualização no seio do evolucionismo universal. As religiões, por sua vez, assumem uma real função biológica enquanto elas representam o ideal que desce à Terra, vindo de mais avançados planos de existência, para levar o homem até eles. Assim, religiões tomam um significado biológico positivo, mesmo perante a ciência materialista, na medida em que elas cumprem uma função evolucionista fundamental, a da espiritualização. A grande marcha da vida é nesta direção. Espiritualização em sentido lato, que abraça, assalta e arrasta todas as formas de existência, desde o seu nível mais baixo, o da matéria, ao evolutivamente mais alto, o do espírito.

Como diria Teilhard de Chardin: sobre a geosfera planetária se formou a bioesfera, que realiza a função de transformar a geosfera em noosfera. Massas de milhões de plantas cada dia, assimilando-a no seu organismo, transformam a matéria prima inorgânica em material orgânico. Bilhões de animais comendo-o e assimilando-o, transformando-o assim em carne, o levam a um nível mais alto. Bilhões de seres humanos, sem poder deter-se, para viver, devem ingerir cada dia montanhas de toneladas deste material que plantas e animais lhe fornecem, transformando-o em substância ainda mais evoluída, nervos e cérebro, produtores de dinamismo volitivo e mental. Gradualmente diminui a massa da quantidade em favor da qualidade na qual se transforma, destilando e concentrando os valores espalhados naquela quantidade. Para que serve esta contínua ingestão de matéria de grau menos evoluído, colocada assim em circulação para cumprir funções cada vez mais elevadas, em organismos mais evoluídos? Começando pelas plantas assimiladoras do terreno, elevando até ao homem, vemos que a matéria passa do seu estado inorgânico, através de uma elaboração contínua com os átomos que a compõe, ao estado orgânico de vida, nervoso e cerebral, onde aqueles átomos devem saber funcionar como elemento, instrumento do pensamento; eles se dispõem a colaborar de mil maneiras e devem aprender muitas coisas. Assistimos, assim, a uma espécie de curso de educação da matéria.

Neste processo não só o ser mais evoluído aproveita o trabalho feito pelos menos evoluídos, assim como uma pirâmide, a vida se eleva em direção a planos mais altos, apoiando-se nos mais baixos; também o material de tipo inferior, que serve e ajuda, com o seu trabalho mais rudimentar, à execução do mais avançado, é levado por sua vez a avançar, ao estar formando parte de organismos e, portanto, adstrito a trabalhos mais complexos. Quem domina e dirige todo este processo é o elemento que está evolutivamente mais elevado, isto é, o espírito. Na escala evolutiva existe uma hierarquia de valores, pela qual quem é mais avançado utiliza como instrumento quem é mais atrasado, mas ao mesmo tempo o educa, levando-o viver coordenado com outros elementos no seio de unidades mais complexas e a funcionar em formas sempre mais evoluídas. Maravilhosa e complexa organização da vida, onde quem é mais avançado se volta em direção aos que lhe são inferiores para admiti-los no seu próprio trabalho, mas, ao mesmo tempo, com isto os envolve e os arrasta consigo na sua própria evolução.

Com este método a vida caminha em direção à sua espiritualização, da qual hoje já se percebem os primeiros sintomas através do processo de cerebralização à qual a humanidade, fenômeno hoje mais evidente, porque está vivendo-o mais intensamente na atual curva do seu transformismo evolutivo. Esta repentina passagem do antigo tipo de vida, no plano físico, a um de tipo nervoso e cerebral, característica de nosso tempo, não é senão um sintoma que precede um imenso futuro desenvolvimento. Esta é a direção que deverá tomar a evolução da vida, chegada agora no planeta ao seu superior grau de humanidade.

Deste imenso movimento fazem parte as religiões. Enquanto a matéria sobe, até tornar-se instrumento da psique, os ideais descem para ajudar a realização deste transformismo espiritualizante. Eles cumprem uma função biológica. Por isso as religiões não podem morrer, formam parte de um perene processo evolutivo. Precisamente por isto, devem renovar-se, como a cada momento o faz a vida, da qual fazem parte. Renovar-se significa melhorar-se. Não nos deve surpreender o seu atual estado involuído, em comparação com o que nos espera no futuro. Precisamente, com frequência, o ideal hoje é uma farsa, está destinado a converter-se em verdade. As reações dolorosas da Lei de Deus ocupam-se em corrigir todos os nossos defeitos. Assim se realiza a evolução, sendo fatal e aquele melhoramento que hoje é eliminado da realidade da vida como sendo utopia, amanhã se transforme nesta realidade. Isto custará esforço e dores, mas é este trabalho criador que dá um significado e um valor à vida. Apesar de tudo, Cristo brilha como um farol no futuro. O Evangelho é um fenômeno em evolução, é um caminho para alcançar aquele centro de luz.

Se, com isto, tudo se explica e justifica, também, por evolução, deverá passar da imperfeição à perfeição, daí concluir-se-ia que não haverá outra coisa a fazer senão esperar a evolução cumprir-se? Se a posição dominante da maioria é a de adormecidos perante o ideal, que poderão fazer os poucos mais avançados para os quais chegou a hora da sua realização? Será que esses poucos, em vez de estarem com a maioria das pessoas, religiosas ou não, querem estar do lado de Cristo? Como poderão eles encontrar-se à sua vontade no rebanho, compartilhando com a sua psicologia e métodos? Como é possível aceitá-los adaptando-se ao mundo?

O Evangelho está feito para nos santificarmos individualmente e para transformar as massas, fazendo delas uma soma de indivíduos santificados. O Evangelho é invertido quando dele se faz um meio para governar. Também os seguidores de Cristo quereriam fazer dele um chefe de governo, mas recusou todo o poder terreno. Trata-se de duas psicologias e finalidades diversas: uma dirigida à Terra e outra ao céu. O seguidor de Cristo é um tipo de indivíduo diverso do seguidor do mundo. Entre os dois há um abismo, cada um vê e entende o outro em posição emborcada, porque eles falam duas línguas e atuam com duas mentes diversas. Há um muro entre os dois, há uma distância que separa um plano evolutivo do outro. O grau social, a posição hierárquica no grupo, à qual se pertence não tem importância. O que importa é o tipo de homem, não a sua veste. Quem inverte o mundo para viver com Cristo, não pode estar de acordo com quem inverte Cristo para viver no mundo. As metas são opostas.

A tendência da vida é que os semelhantes se atraiam e os não semelhantes, quando não tenham de se compensar por complementaridade, repilam-se. Nos dois casos, o modo de entender as coisas, devido ao nível evolutivo, é demasiado diferente. Para quem está espiritualmente mais avançado, a vida na Terra não representa a satisfação dos seus próprios desejos, mas é exílio, missão. Ele pode sentir também amor pelos irmãos atrasados, mas não pode compartilhar os seus instintos, a sua psicologia, a sua conduta. As formas comuns de religião estão feitas para a maioria, não para a exceção. O indivíduo, verdadeiramente espiritual, afasta-se em silêncio, esconde-se fora das filas das massas de cristãos que pertencem ao mundo; da exterioridade das formas, retrai-se para uma religião de substância, do lado de Cristo. Quem O compreendeu e O vive não pode adaptar-se a retroceder a um nível evolutivo inferior, como a maioria exige, porque gostaria de rebaixar todas as coisas ao seu plano.

Tudo isto leva ao isolamento do mundo, para sua vantagem; o não isolamento de Cristo, pelo contrário, avizinha-se ainda mais Dele. Trata-se de uma íntima atitude de espírito, de um colóquio entre a alma e Deus, em que nenhuma autoridade espiritual terrena pode intervir. Quem quiser fazer-se santo, faz-se tal por sua conta perante Deus e não perante o mundo, do qual não tem nenhuma necessidade. Os julgamentos deste não lhe interessam, sim, apenas o de Deus. Os homens podem utilizar a santidade dos outros como estandarte que dá brilho ao próprio grupo, mas só Deus pode julgá-la. É inútil, para salvar-se, cobrir-se com o manto dos santos. Mantém-se a distância entre o ideal vivido na prática e a prédica com a ostentação feita pelo mundo para as suas finalidades, enquanto aquele atua a sério, este apenas desejaria fazer crer. Mas, há momentos na história nos quais não têm mais valor as sagacidades e poderes humanos. Então, quem não se manteve seriamente em contato com Deus está perdido. Enganando a Cristo, ao reduzir às palavras a atuação de Seu programa, a humanidade se redime ao contrário, no sentido em que, procurando eximir-se com as suas adaptações terrenas, constrói a sua própria cruz. Hoje, esta cruz já está pronta. Se o Evangelho não for aplicado por convicção e por amor, deverá ser aplicado à força. Sobre essa cruz a humanidade deverá ser pregada, porque a evolução em direção ao espírito deve cumprir-se e não é possível fugir à Lei de Deus.