Princípios de Uma Nova Ética

O problema da ética é fundamental no fenômeno evolutivo, que é o maior do universo. Daí a sua extraordinária importância. É fundamental porque a ética representa a norma que dirige a nossa evolução, ensinando-nos o caminho que nos leva à salvação. Contém a regra de vida que, praticada, leva o ser cada vez mais a aproximar-se do seu estado perfeito de origem, no qual ele se encontrava no S, antes da queda. A importância da ética é fundamental, porque ela está conexa com a Lei, da qual representa a expressão direta, pelo fato de que enuncia o pensamento e manifesta a sua vontade a respeito da conduta do homem, mas dentro dos limites que ele pode entender e praticar em relação à sua posição ao longo da escala evolutiva.

É por isso que encontramos éticas relativas e progressivas, como é relativa e progressiva toda verdade conquistada pelo ser na sua subida, em proporção ao conhecimento da Lei por ele atingido, só em função do qual a ética relativa pode ser entendida e praticada. Seria por isso interessante fazer um estudo da contínua transformação evolutiva das verdades declaradas absolutas pelas religiões. Temos de lembrar que, em qualquer tempo ou lugar, cada fenômeno e o próprio existir não pode ser entendido senão como um vir-a-ser, e o ser não pode ser colocado senão dentro desse universal transformismo evolutivo, não podendo viver senão em função dele. É por isso que a cada nível biológico corresponde a sua ética relativa, moral de conduta, que, porém, se transforma, logo que o ser sobe a um nível de evolução mais adiantado.

Eis como nasce e se justifica o conceito, que agora desenvolveremos, duma ética atual, inferior, que chamamos do involuído, e duma ética futura, mais adiantada, que chamamos do evoluído. Vemo-las existir ambas em nossa humanidade, em luta entre si: a ética da teoria e a da prática, a do Evangelho, que quer instaurar na Terra o reino de Deus, e a que fica no mundo, feita de cobiça e destruição. Mas só com esses conceitos se pode explicar a convivência de duas éticas em contradição, uma contra outra; isto porque a humanidade atual se encontra numa fase de transição evolutiva que vai de um plano biológico para outro, de modo que em nosso mundo podemos, hoje, ver coexistir a velha ética do animal ainda não extinta, ao lado da nova super-humana que cada vez mais vai se afirmando. Podemos assim entender esse fenômeno, como a luta que se verifica entre a luz e as trevas na alvorada, ambas existindo no mesmo tempo e lugar. É por isso que enfrentamos aqui o problema da ética nesta forma dupla, porque é nesta que a encontramos em nosso planeta.

Qual é então a diferença entre as duas éticas? Tomamos como pontos de referência os máximos do universo: o S, e o AS. Os que nos permite julgar uma ética, o que nos oferece a unidade de medida do seu valor, é a sua posição ao longo da escala da evolução. A ética do involuído é mais próxima do AS, e das suas qualidades, afastado, pois, do S e das qualidades deste. Também a ética do evoluído é mais afastada do AS e das suas qualidades, próxima, portanto, do S e das qualidades deste. As primeiras, como já vimos, são do tipo negativo, com todas as conseqüências que dele derivam; as segundas são do tipo positivo, com os mesmos resultados. Tais éticas representam a sabedoria que o ser com o seu esforço conquistou no caminho da sua evolução, que o leva para a salvação, com o regresso ao S. Sabedoria diferente conforme o plano de vida atingido, sabedoria que é  o resultado de experimentações realizadas e lições aprendidas através do sofrimento, por meio de progressivas tentativas de cada vez maiores aproximações, como conhecimento e atuação em obediência à Lei, até chegar à perfeita coincidência com ela no S. É assim que quanto mais o ser sobe, tanto mais a sua ética é perfeita, porque tanto mais concorda e coincide com a Lei. A ética completa e perfeita é a que se encontra cm toda a sua pureza no S.

Eis então que o fenômeno da ética, como todos os fenômenos, está sujeito ao processo evolutivo. Mas por que e como acontece isto? Como já explicamos em nosso livro O Sistema, no estado orgânico originário, o do S, cada ser estava fechado entre limites estabelecidos de conhecimento, em relação à função que, no organismo do todo, lhe pertencia realizar. A revolta consistiu na tentativa de sair e subir acima desses limites, como aconteceria se uma célula de tecido muscular quisesse tornar-se célula de tecido mais nobre, qual a nervosa ou a cerebral. O ser deslocar-se de sua posição, estabelecida por Deus, significa rebelião com objetivo de destruir a ordem universal. Mas tal ordem havia sido escrita e fixada por Deus na Sua Lei, sem possibilidade de destruição, acima de qualquer tentativa de desordem.

Aconteceu assim que a desordem ficou fechada dentro da ordem, foi limitada e disciplinada pela Lei, acabou por fim canalizada num caminho bem estabelecido, isto é, o da involução e evolução. O resultado da revolta foi, então, que o ser emborcou não a Lei e a ordem, para serem substituídas, mas emborcou-se a si próprio, semeando para si somente a desordem dentro da ordem, que no seu conjunto permaneceu inviolável e inviolada. Ao invés de quebrada, pelo contrário a Lei ficou firme e reagiu. O resultado foi, então, o contrário do previsto, isto é, que a revolta caiu toda em cima do rebelde. Vemos assim vigorar o princípio pelo qual, se a causa gera o efeito, este tem de voltar a ela, que é o seu ponto de partida. É por esse princípio que podemos afirmar que quem faz o bem, como o mal, a si próprio o faz. É por isso que o caso mencionado nos últimos capítulos de nosso livro Queda e Salvação, desenvolveu-se depois nos fatos, exatamente conforme a teoria ali enunciada, e o agressor ficou preso dentro da sua própria rede, porque todo o mal que tinha lançado, por força da Lei voltou contra ele.

Assim, na grande revolta dos espíritos, à procura de expansão contra os equilíbrios da Lei, seguiu-se uma correspondente contração; à saída fora dos limites correspondeu uma compressão dentro dos limites. Foi assim que à pretensão de uma sabedoria fora da medida estabelecida, seguiu-se a ignorância. Mas eis que esta tem de voltar ao seu ponto de partida, que foi a sabedoria, assim como o período de afastamento do S, ou descida involutiva, tem de ser contrabalançado por um correspondente inverso período de aproximação do S, ou subida evolutiva redentora. Foi assim que, pelo fato de buscar uma demasiada sabedoria, o ser automaticamente se condenou à ignorância, por esta qualidade do AS (da qual derivam todos os males, porque não saber quer dizer errar), o ser se condenou à dor, que é conseqüência do erro; dor que depois, por sua vez, no período evolutivo, representa, na técnica da redenção, o meio que leva à salvação. Todo esse processo estava já potencialmente contido na Lei e, logo que pela sua livre vontade o ser quis movimentá-lo, ele automática e irresistivelmente desenvolveu-se como uma desintegração atômica em cadeia.

Chegado ao ponto final da involução, isto e, ao AS, que representa a plenitude da realização do plano da revolta, o ser, em vez de se encontrar no estado desejado de máxima sabedoria e felicidade, se encontrou na condição de máxima ignorância e sofrimento. O plano, como é lógico, porque de outro modo pão podia acontecer, tinha fracassado, emborcando-se na insatisfação: mal saudável, porém, porque representa o remédio da doença, a automática correção do erro da revolta, porque é o tormento da insatisfação o que mais impulsiona, por um irresistível e instintivo almejo de libertação da dor, para o progresso no caminho da evolução. Ocorre que, se o período da descida involutiva foi o da criação da dor, o da subida evolutiva representa o período da destruição da dor; se o primeiro foi o da destruição da sabedoria e criação da ignorância, o segundo é o da reconstrução da sabedoria e da destruição da ignorância. Isto quer dizer endireitar na obediência a desobediência, em que ela se havia emborcado com a revolta. É assim que se realiza todo o ciclo de ida e volta, por esses momentos sucessivos, conseqüência um do outro: 1) ponto de partida: sabedoria e felicidade no S; 2) revolta do ser; 3) sua ignorância; 4) seus erros; sofrimentos máximo na plenitude do AS. Acaba aqui o caminho da descida e inicia-se o oposto, da subida: 1) ponto de partida dele: ignorância e sofrimento no AS; 2) eliminação do erro pela escola da dor; 3) eliminação da ignorância e reconstrução da sabedoria; 4) pela sabedoria regresso à obediência na ordem; 5) ponto de chegada final de todo o processo ao seu ponto de partida: sabedoria e felicidade no S.

Tivemos de voltar aqui a este assunto, já tratado em outros dos nossos livros, para explicar o significado profundo da ética, entendida qual norma relativa e progressiva que, por diferentes e cada vez maiores aproximações da Lei, dirige o ser ao estado perfeito que ela representa, final de todo o caminho. Vemos assim que, por esse processo, o ser está constrangido a conquistar de novo a sabedoria perdida, porque atormentado pela dor que o impulsiona a procurar libertar-se dela e isto por tentativas como só pode fazer um ignorante das leis da vida. Isto quer dizer: ter de descobrir com o seu esforço éticas cada vez mais adiantadas e próximas da verdade que contém a felicidade, e cada vez mais afastadas do erro, que representa a dor. O ser deve realizar essa conquista, essa nova descoberta da verdade, à sua custa. Foi o ser que com a sua liberdade escolheu o caminho da descida e quis gerar a sua dor. E a ele que agora pertence o trabalho de percorrer o caminho oposto e se remir da sua dor. A Lei não pode ser protecionista, o ser se colocou contra ela, e ele próprio se expulsou do seu ambiente originário de forças positivas favoráveis. De fato, o ser lançou-se num mundo de forças negativas inimigas, que agora desapiedadamente o perseguem e o perseguirão até que ele, pelo muito sofrer, aprenda e evolua, pagando a sua dívida perante a Lei e libertando-se dessa condenação. O ser tem de se reconstruir na sua sabedoria, sem, porém, possuir o conhecimento do caminho certo, mas tenho de descobri-lo por tentativas, o que quer dizer sofrendo as conseqüências dolorosas de cada erro. O ser tem de descobrir onde está a porta para sair do cárcere dos seus sofrimentos, e isto por tentativas infindas, tateando as paredes como um cego e batendo contra elas a sua cabeça até aprender de novo todo o conteúdo da Lei. O ser pela sua ignorância tem de experimentar todas as dores que se seguem a seus erros até ter aprendido toda a lição da Lei, regra por regra, letra por letra.

Falamos tudo isto para mostrar que o valor da ética está exatamente no conteúdo das normas de conduta que, em relação ao nível evolutivo que o ser atingiu, cumprem a função de iluminá-lo e dirigi-lo nas suas tentativas, para que ele, cometendo cada vez menos erros, possa cada vez mais libertar-se dos sofrimentos que deles decorrem Por outras palavras, a ética representa o guia que nos orienta e dirige no caminho da evolução, o que nos leva para a salvação e a felicidade. Eis o significado da ética.

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Deixemos agora as teorias gerais que nos explicam as razões de tais fenômenos, e observemos mais de perto as suas conseqüências, tal como as encontramos em nossa vida prática. Agora podemos saber o que é moral ou imoral, quando e por que uma coisa é lícita ou ilícita. O ponto de referência da ética, a unidade de medida do valor positivo ou negativo das nossas ações é a Lei de Deus. Tudo o que está dentro das suas regras é bom e lícito, tudo o que está fora das suas regras é mau e ilícito. É moral tudo o que leva para o S; imoral tudo o que pertence ao AS. É moral tudo o que, pela obediência à Lei, pertencendo à positividade, constrói; é imoral tudo o que, pela desobediência à Lei, pertencendo à negatividade, destrói. No S não existe o imoral, mas tudo é moral, positivo, conforme a Lei; no AS não existe o moral, mas tudo é imoral, negativo, contra a Lei. Foi pela cisão devida à queda que nasceu o dualismo dos opostos, moral e imoral, o conceito de anti-Lei, que no S não existe. Nele tudo é moral. Quanto mais uma ética é evoluída, tanto mais ela é moral, no sentido de que se aproxima da moral perfeita do S; e quanto mais uma ética é involuída, tanto mais ela é imoral, no sentido de que se afasta da moral e se aproxima da sua negação completa no AS. Isto quer dizer que quanto mais uma ética é evoluída, tanto mais as suas normas se afastam da animalidade para a espiritualidade, das qualidades do AS para as do S; e quanto mais uma ética é involuída, tanto mais ela obedece aos imperativos dos instintos inferiores gravados no subconsciente, como muitas vezes acontece em nossa humanidade, instintos que representam o passado, isto é, o período em que no ser mais prevaleciam as qualidades do AS.

Eis então que, como cada ser pertence a um plano ou outro de evolução, assim ele possui uma ética diferente. No plano humano também as éticas não são todas iguais, mas dependem da forma mental no indivíduo, da sua maneira de conceber a vida conforme o seu nível biológico. Falamos da moral da qual o ser está convencido, a que corresponde aos seus instintos e impulsos espontâneos, a que de fato ele vive, a moral que na realidade se pratica, e não a moral oficialmente proclamada, muitas vezes professada só para melhor esconder a verdadeira conduta, bem diferente. Não nos interessam as aparências feitas para enganar, mas só a realidade existente.

Como em nosso mundo o nível biológico oscila do plano do involuído ao do evoluído, assim a ética relativa vai de um extremo de tipo involuído a outro de tipo evoluído. Ela vai da fera ao santo, do nível do subdesenvolvido, selvagem, feroz, ao nível do super-homem, civilizado, evangélico.  A maioria se equilibra no meio destes dois extremos, com uma moral ambígua, que pretende ser do segundo tipo, conquanto muitas vezes na substância é do primeiro. Moral anfíbia, de adaptações entre o superior e o inferior, ética de transformação em que coexistem as normas de conduta de dois níveis de vida, as do inferior convertendo-se nas do superior, o qual se vai conquistando por lentas aproximações evolutivas. Com essa ética, que representa a sua posição biológica, a sociedade humana, pelo direito do mais forte, que a maioria possui, condena e expulsa do seu seio os que por defeito pertencem aos planos de vida inferiores e os que por excesso pertencem aos superiores ao seu. Os primeiros são afastados como delinqüentes; os segundos são perseguidos como idealistas, utopistas, ou fracos e ineptos. Tais julgamentos dependem da forma mental do juiz, da sua posição ao longo da escala evolutiva. Assim, se o nosso mundo julga como imoral e condena tudo o que se encontra abaixo do seu nível biológico, assim os evoluídos que pertencem a um plano de vida mais adiantado, julgam imoral a nossa sociedade e condenam a sua maneira de pensar e agir, como esta condena a dos primitivos ainda não civilizados.

Assim podemos entender o que está acontecendo em nosso mundo, chegando agora às últimas conseqüências das teorias já desenvolvidas, sobretudo a da queda, sem a qual não poderíamos ter conhecido a primeira origem desta realidade que vemos vigorar na prática, nem ter entendido o seu significado e finalidade. O conteúdo desta realidade, que salta à vista logo que o indivíduo saia acima do nível evolutivo da maioria, é o choque entre a ética do involuído e a do evoluído. A primeira é a do passado, que não quer morrer, mas que tem de morrer; a segunda é a do futuro, à qual a outra resiste, mas que tem de vencer. Por isso mesmo o tema interessa, porque se trata da nossa regra de vida de amanhã.

Para o involuído, que caiu no separatismo do AS, o ponto de referência não é o organismo do todo, em função do único centro para todos, Deus, mas é só o centro particular constituído pelo seu eu. Então a sua moral, a medida do bem e do mal, é representada pelo seu próprio interesse. O bem para ele é o que é útil para si, o mal é o que constitui o seu dano. Por isso a lei, para ser entendida e obedecida, tem de usar o método do prêmio ou da pena. Não é mais Deus que faz a Lei universal, mas é o indivíduo que fa . para si, a sua lei particular. Assim a unidade da ordem universal estabelecida pela Lei de Deus, pulverizou-se no caos de tantas leis particulares para cada indivíduo, ligadas entre si apenas no negativo, isto é, por rivalidades na luta infernal que vemos em nosso mundo. Mas tal estado de atrito e destruição recíproca quer dizer fraqueza, enquanto a união, isto é, o estado orgânico do S, faz a força, porque a evolução, conduzindo a ele, devolve ao ser o seu poder originário, que foi sua qualidade no S. Ora, isto é vantagem e então, para gozar dela, o ser sente-se impulsionado a abandonar o separatismo do AS, para se fundir com os outros seres na unidade do S, e assim automaticamente é constrangido a evoluir.

Baseando-se nestas premissas, ocorre que o problema da vida é concebido e resolvido de maneira completamente diferente, conforme o indivíduo pertence ao tipo involuído ou evoluído. Iremos agora observando o que vai acontecendo em nosso mundo a este respeito.

A nossa organização social se baseia no princípio da autoridade, que representa o cume da pirâmide. A autoridade foi exercida até há pouco tempo em nome de Deus, por quem se autonomeava seu ministro. Isto deveria ter significado que a função da autoridade era a de aplicar na Terra os princípios de uma ética superior à do plano humano, corrigindo a força com a justiça, a mentira com a verdade, a traição com a honestidade etc., e dessa maneira ensinando, educando, para levantar o ser do nível biológico de involuído ao de evoluído. Só neste sentido a autoridade podia descer de Deus e ser praticada em nome Dele. E nisto os povos de boa fé acreditaram por muito tempo. Eis, porém, que um belo dia a sua inteligência, aguçada pelo sofrimento, chegou a aperceber-se que a ética praticada pelos dominadores era a mesma que a dos súditos, a do seu próprio interesse; que todos lutavam no mesmo plano, pelas mesmas razões e com os mesmos métodos, e que os chefes mandavam, não por direito divino ou por superioridade moral, mas pelo direito do mais forte, do vencedor.

O    problema da autoridade é importante, porque se trata de escolher quem manda e quem deve obedecer. Então ele foi resolvido de outra maneira. Ninguém pensa hoje que um presidente da república tenha de ser tal só porque foi consagrado por Deus por intermédio dos chefes das religiões. Caída então a lenda do poder dos reis por direito divino, esse poder que ficou sem a base teórica que o justificava, foi substituído, numa concepção realista, por outro, o da maioria, o das massas humanas e, com mais sinceridade, o direito dos seus interesses. Que uso fizeram do poder o rei, a aristocracia e o clero antes da revolução francesa? Eles traíram a missão que por direito divino pertence às classes dominantes, que é a de dirigir a marcha evolutiva do povo que, só por esse motivo, lhes está sujeito. Foi assim que pelo mesmo direito divino, que elas sustentavam como base do seu poder, esse poder lhes foi retirado pela vida, porque é um princípio da Lei de Deus que quem faz mau uso de uma posição de vantagem, não o uso que deveria fazer, não a utilizando para a finalidade pela qual ela é concedida (isto é, para ajudar os outros a subir), mas só para os explorar em seu interesse egoísta, então é princípio da Lei que quem assim procede perca aquela posição de vantagem e retroceda do plano de vida mais adiantado, no qual não se mostrou digno de permanecer, ao plano de vida inferior, do qual, com a sua forma mental atrasada, deu prova de ser cidadão. A Lei exige que o indivíduo possua e pratique a ética do nível evolutivo ao qual pretende pertencer cumprindo os respectivos deveres. Não é possível ficar em posições sociais não merecidas, sem cumprir a função evolutiva que a vida confia a quem nelas se encontra. Esta é verdade universal, para todos os tempos e lugares, verdade que muitos também hoje não entendem, mas que, por inexorável lei biológica, todos têm de aprender à sua custa, pela sua dura experiência.

A vida é sempre honesta e utilitária. O resultado útil que ela assim atingiu foi a conquista de uma maior defesa sua, pelo fato de que, com o sistema representativo, se tornou maior a extensão dos interesses protegidos, isto é, não só os de uma classe dominante, mas os de toda a nação. De um nível de ética, para o qual o mundo não se havia demonstrado maduro, o poder desceu ao nível. mais baixo, prático, sem ideais, o do interesse. É assim que os homens de governo acabaram não sendo mais os representantes de um poder por direito divino, mas somente empregados da massa dos cidadãos, que na organização do Estado pode exigir que eles prestem conta do seu trabalho e cumpram o seu dever. Mas isto só era possível agora, quando a massa não é mais um rebanho inconsciente, mas um povo que atingiu a consciência coletiva de nação, que amanhã o mundo conquistará como consciência coletiva de humanidade.

Nivelou-se tudo no plano da realidade biológica, num terreno evolutivo baixo, mas positivo. A lei desse plano é a luta pela vida para a seleção do mais forte, que, só pelo fato de ser o vencedor do mais fraco, tem o direito de mandar. Os chefes não são seres superiores, biologicamente mais evoluídos, que por isso possuem o direito de dirigir os outros atrasados, e isto para o bem deles. A posição de comando não depende do Alto, mas é só uma delegação de poderes a alguns escolhidos, da parte de quem é julgado o verdadeiro dono, que é a massa dos cidadãos da nação. Ficam então todos no mesmo nível, funcionando com a mesma forma mental e a ética a ela relativa, obedecendo todos à mesma lei da luta, que faz cada um rival do outro, assim divididos em governantes e governados, os primeiros com o direito do comando e os segundos com o dever de obediência, na posição de patrão e criado, em luta entre si, porque esta é a lei do seu plano, já que o nível superior, em que vigora o princípio da colaboração, ainda não foi atingido. Nessa luta, cada um dos dois termos usa os poderes que possui. O povo manda durante as eleições, e, então, os candidatos o cortejam para que ele lhes entregue o poder. Mas depois de ter atingido o seu objetivo, é o povo que tem de obedecer aos que elegeu. Então, se os governantes procuram evadir-se do cumprimento das suas promessas, os cidadãos procuram evadir-se da obediência. De fato, todos são cidadãos do mesmo plano evolutivo, sujeito às mesmas leis e praticando a mesma ética de luta, a do vencedor e a do vencido.

Nesse regime, quem atingiu o poder tem, antes de mais nada que lutar para o defender. O bem é antes de mais nada o dele, virtude é o respeito à sua autoridade, culpa é a desobediência a ela. O bem do povo é coisa longínqua, menos tangível e urgente, adiável enquanto ele se mantiver quieto e não entrar em luta, exigindo que aquele seu bem se realize. Também os povos não têm direito a nada e a vida não lhes confere nenhuma vantagem, enquanto eles não a tiverem merecido pela sua inteligência e com o seu esforço. A natureza deixa que sejam explorados os povos atrasados, porque são eles os que mais precisam, pelo sofrimento, de aprender a sua lição, necessária para evoluir. Que esforço tremendo o povo francês teve de fazer com as guerras napoleônicas para se libertar da escravidão de uma monarquia e aristocracia podres, pronta a continuar explorando-o para sempre! A vida exigiu tal esforço, porque sem ter lutado e merecido não se pode ter direito a melhoramento algum. Não há progresso para os preguiçosos, não há elevador, mas só as nossas pernas para subir o monte da evolução. Se o povo francês não tivesse enfrentado a sua luta e vencido a sua batalha teria ficado até hoje na sua posição anterior.

Outra conseqüência de encontrar-se a grande maioria no mesmo plano evolutivo, praticando com a mesma forma mental a mesma ética, é que a autoridade, para obter obediência, tem de se apoiar no princípio que a maioria melhor entende, o da força ou da ameaça do dano individual representado pela cadeia ou pelo inferno. Porque deva ser assim, somente se explica com estas observações que aqui vamos desenvolvendo. De outra maneira não poderia ser, quando a forma mental dominante que impulsiona as ações da maioria é a do próprio interesse egoísta individual, e da luta para o satisfazer. Os próprios dirigentes estão constrangidos a usar tais métodos, porque a massa não entenderia outros, e aproveitaria para fazer o mal. No passado o problema do governo para os chefes civis, como para os religiosos, foi não somente o de educar, mas também o de amansar e domesticar a fera humana. Nos níveis mais baixos o educador precisa ser antes de tudo um domador, se não quer ser devorado pelos seus alunos. O nível do ensino depende do nível destes, ao qual o mestre tem de se proporcionar.

Verifica-se, assim, o que acontece numa classe de estudantes pelo que concerne à disciplina. O mestre está sozinho, mas nas mãos tem o poder de punir. Os alunos não têm poder algum, só o dever da obediência, mas possuem a força do número  Estes dois poderes, o da autoridade, conquistada e sustentada pela lei na organização social, e o da multidão, que representa o poder dos pobres, que procuram impor-se pelo peso da sua massa, estão diante um do outro, sempre em luta, e dos dois é o mais forte quem vence e domina. Se o mestre é bom e fraco, e os alunos rebeldes, a classe se transforma num inferno e o mestre num pobre vencido. Quando o chefe é fraco, como Luís XVI na França, ou como o czar Nicolau na Rússia, então estouram as revoluções. Se neste nível biológico a força é o único argumento que todos entendem, a culpa é de todos. porque eles pertencem a um plano de vida onde, pela forma mental e ética dominante nos fatos, o método inteligente de agir espontaneamente, por compreensão e convicção, representa ainda um inconcebível. As duas partes, porque possuem a mesma forma mental, se conhecem e se compreendem. Tudo na luta é previsto e calculado. Os dois impulsos opostos, cada um para defender o seu interesse e atingir a sua vantagem, param no ponto em que se estabelece o equilíbrio entre os seus poderes contrários, que representam o seu valor. E quando a força não basta ou faz falta, segue-se então o caminho da astúcia, que representa a força mais sutil, a da inteligência, com todo o seu cortejo de enganos e escapatórias, como já vimos.

Assim é a forma mental e o método de vida do involuído. O seu sistema social, conseqüência do seu tipo de ética, é pesado porque se baseia no egoísmo, na desconfiança, na luta. Por isso ele requer infinitos controles, pelo fato de que cada célula do organismo tem de ser constrangida à força a cumprir o seu dever. Por isso a grande máquina da ordem social, seja civil ou religiosa, não pode funcionar senão por disciplina imposta à força ao indivíduo naturalmente rebelde a qualquer obediência. E os povos têm de carregar esse peso, à força, mas merecido, porque outro meio não há em nosso mundo, para manter um início de ordem, necessário, para se encaminhar para um nível mais adiantado de vida. Eis porque a sociedade tem de suportar o peso de leis coercitivas, armadas de sanções penais, e tropeçar a cada passo com regulamentos, administradores, fiscais, verificações, burocracia, tribunais, polícia, cadeias etc., e outras tantas delícias da moderna organização social. Tudo isto representa um trabalho contínuo, despesas, desperdício de energia, perda de tempo, atritos e complicações, até a necessidade de manter um exército para defender a ordem interior e a segurança contra os inimigos exteriores. Tanto tormento desaparece naturalmente no nível do evoluído que, conhecendo a sua posição no organismo coletivo e o correlativo dever, o cumpre livremente, colocando-se sem atritos no lugar que lhe pertence, porque ele sabe que nisso está o seu interesse, mas um interesse inteligente e consciente, diferente do egoísta e destruidor, praticado pelo involuído.

Trata-se de dois tipos de ética opostos, com todas as suas conseqüências. O tipo de ética do involuído é exterior, formal, de superfície, apegado às aparências que deixam possibilidade de enganos; sistema que, para se realizar, necessita de um constrangimento que chega de fora e do apoio da força material ou psicológica, precisa do medo do dano ou da cobiça da vantagem, porque só por estes impulsos o egoísmo do indivíduo, mergulhado na sua ignorância, sabe funcionar. O tipo de ética do evoluído é interior, substancial, profundo, ligado a verdades que não deixam possibilidade de enganos; sistema que se realiza espontaneamente só pelo apoio do convencimento, porque a consciência despertou, tirou o indivíduo da sua ignorância, de modo que agora, livremente, ele pode dirigir-se com o seu conhecimento. O trabalho atual da evolução em nosso mundo é de passar do 1.º tipo de ética para o 2.º. O eu vai assim despertando cada vez mais, aproximando-se das raízes espirituais do ser, funcionando sempre mais com as qualidades do S, e sempre menos com as do AS. Trata-se de um lógico desenvolvimento da evolução, de uma necessária conquista biológica, que leva consigo um novo tipo de ética e estilo de vida, conforme o telefinalismo de todo o fenômeno que vai do AS para S.

Trata-se de um passo para a frente no caminho que vai do primeiro para o segundo desses dois extremos. A ética do evoluído é mais livre, todavia mais rigorosa que a do involuído. Às exigências da substância é mais difícil de se subtrair do que às exigências da forma. O evoluído, pela sua própria lógica, tem de exigir virtude antes de tudo de si, porque a sua finalidade é subir. O involuído, pela sua forma mental diferente, é levado a exigir virtude, antes de tudo, dos outros, porque a sua ética é de luta, para os sobrepujar. O primeiro procura a honestidade antes de tudo em si mesmo, para benefício dos outros. O segundo procura a honestidade antes de tudo nos outros, para melhor explorá-los em seu proveito. O evoluído pede que os outros pratiquem a honestidade que ele primeiro pratica para seu próprio bem. Ao passo que o involuído pede que os outros pratiquem a honestidade, que ele não pratica, em seu proveito.

Quem vive num plano biológico mais adiantado não pode deixar de ficar aterrorizado pelas culpas que possui, na sua ignorância, quem pertence a um plano biológico mais atrasado, conservando perfeita convicção de inocência. A delinqüência das feras assassinas é honesta em relação à moral delas. Com a evolução, subindo de um nível e respectiva ética a um nível e respectiva ética superiores, muita coisa julgada moral se torna imoral. Para a forma mental do evoluído a nossa sociedade atual, no terreno civil como no religioso, admite como lícitas ações e métodos que aquele biótipo não pode praticar e aos quais ele se rebela porque, para ele, são profundamente imorais, e representam um instintivo produto do subconsciente, tolerável apenas na ética de um nível de existência ainda animal. É destes fatos que aqui procuramos continuar dando exemplos explicativos.

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Quando não é o evoluído a julgar o involuído, mas o contrário, como muitas vezes acontece em nosso mundo, é lógico que então seja a ética do evoluído a condenada como utopia. É natural que assim seja julgado pelos atrasados um nível de existência mais adiantado e a sua ética diferente. E de fato se trata de um mundo novo, que está fora da realidade que os involuídos conhecem e que acreditam representar toda a realidade. Fechados no seu egocentrismo, eles acreditam que a sua verdade particular seja toda a verdade.

Contudo, a  utopia do presente muitas vezes representou a realidade do amanhã. De outro lado não há outro meio para fugir dos defeitos da posição atual, bastante pesados, senão o esforço para que se torne real um mundo diferente, hoje julgado utópico porque fora da nossa presente realidade. Os homens práticos podem rir-se de tudo isto, já que lhes parece um sonho. Mas não há dúvida de que a posição atual é de muitos sofrimentos, e quem não quererá libertar-se deles. Quem fica satisfeito com uma posição desagradável quando poderia conquistar uma melhor? Quem gosta de ficar estacionário, renunciando ao progresso? E que é este senão uma contínua corrida à procura de superiores formas de vida, no passado julgadas utópicas? Se tudo isto é sonho, que os positivos têm d desprezar, então fiquemos satisfeitos com os métodos, sofrimentos e perigos atuais, até que eles nos levem talvez à destruição da humanidade.

Com as modernas armas atômicas e a dominante psicologia de involuído, tal ameaça é real. Com a sua forma mental de primitivo instintivo, o homem atual ainda não consegue entender que e método das guerras nunca resolve, mas pelo princípio de ação e reação, representa apenas a semente de uma nova guerra. Na História vemos que tal método representa somente um estado permanente de luta, porque, não há senão uma cadeia de desequilíbrios que nunca conseguem resolver-se na posição de equilíbrios de uma paz definitiva. Assim cada vitória, em substância não é uma vitória, mas uma derrota. Isto porque se trata de um mundo ainda situado perto do AS, onde vigora o princípio do emborcamento. Assim o homem tem de ficar mergulhado neste seu ambiente de ilusões, até que o sofrimento tenha desenvolvido a sua inteligência suficientemente para ele entender que, para sair deste impasse, é necessário que supere a sua atual forma mental e a ética da força a ela relativa, para assumir a forma mental do evoluído, hoje julgada utópica, e respectiva ética de justiça. Enquanto vigorar a atual psicologia do egoísmo separatista, serão inevitáveis os choques entre os impulsos opostos e os sofrimentos que disto derivam. Eles poderão acabar somente quando o homem alcançar uma forma mental de compreensão e colaboração, pela qual os impulsos, ao invés de se chocarem como inimigos, se harmonizem como amigos, substituindo assim a ordem ao caos. Mas, responde-se, na prática tal biótipo não existe e temos de trabalhar com o que o homem é, e não com o que ele deveria ser. Paciência...

Não  queremos renovar o mundo. Seria loucura pensar que alguns livros possam fazer isso. Mas queremos tão somente convidar o mundo, se ele assim quiser, a renovar-se por si próprio, mostrando-lhe como tudo se encontra funcionando, e que os sofrimentos que o atormentam são devidos ao fato dele não se movimentar com inteligência no seio do grande organismo do universo, de acordo com a Lei de Deus que o dirige. Não estamos aqui para ensinar métodos rápidos e fáceis para atingir a felicidade. Só procuramos explicar a causa das nossas dores, ficando no terreno positivo da realidade dos fatos. Se se libertar delas é utopia, e não coisa prática, positiva, realizável, então fiquemos com todas estas dores Se aquilo é engano, então deixemo-nos enganar por todas as outras ilusões de que está repleto o nosso mundo, isto é,  que a injustiça da  força  possa  gerar a paz, que a agressividade possa criar o bem estar, o roubo à riqueza, que do mal dos outros possa nascer o nosso bem. Continuemos, pois, a deixarmo-nos dirigir pela nossa ignorância das leis da vida, só para atingir sempre novas ilusões e termos de aprender apenas pela dura escola dos sofrimentos a que elas nos levam. Continuemos a praticar loucuras e a exigir que se realize o absurdo. E se a solução de tais problemas é utopia, só porque na dura cabeça do homem atual não há lugar senão para uma psicologia de subconsciente, então a dor resolverá tudo automaticamente à força, porque dessa solução depende o futuro da humanidade.

A humanidade está hoje completamente fora da rota. Ideais e religiões caíram em completo descrédito. A maioria é religiosa por fora, mas atéia por dentro.  A ciência não resolve. Um homem capaz de fazer o mal, mas que sabe ir à Lua e a planetas diversos, permanece sempre um homem capaz de fazer o mal, e dessa vez em qualquer parte do sistema solar. Um involuído desprovido de sentido moral, necessário para a convivência com os seus semelhantes, fica sempre um involuído em qualquer parte do universo onde se encontre. Perante as leis biológicas sempre terá mais valor um justo evoluído. O problema não é de criar novas armas para dominar o mundo, mas de criar homens justos que não queiram usar mais armas. O problema não é o de se tornar astronauta, mas de não haver ladrões e delinqüentes. O que interessa para a nossa civilização é mais a conquista da honestidade do que a do espaço.

Na Terra as religiões prometem a felicidade, mas numa outra vida além-túmulo, incontrolável. As ideologias prometem-na neste mundo, mas para um problemático dia longínquo, em função de incertos acontecimentos futuros. Elas se baseiam na modificação dos sistemas exteriores da vida, sem transformar os elementos humanos que a constituem. Muda o estilo da arquitetura do edifício, que, porém, é construído sempre com o mesmo material. Muda a estrutura e a música da orquestra, mas os músicos são sempre os mesmos. Este não é o caminho das soluções. Baseamo-nos no fato positivo da evolução biológica, cujos planos já explicamos alhures, os objetivos e a sua férrea vontade de atingi-los. Podemos fazer isso pelo fato de que as suas transformações, lentas e imperceptíveis no passado, adquiriram velocidade numa aceleração incrível no atual momento histórico, de renovação rápida, decisiva, porque se está realizando a passagem de um nível evolutivo para outro superior. Existe hoje o fato positivo de que a estrutura do sistema nervoso-cerebral e a inteligência para entender estão a desenvolver-se. Trata-se de um profundo amadurecimento biológico, que deverá levar o homem a compreender que, enquanto ele continue concebendo a vida com a sua forma mental atual e realizando-a com a respectiva conduta, os problemas que o atormentam não poderão ser resolvidos, como é justo que não sejam até que o homem, com o seu esforço, tenha desenvolvido a inteligência necessária para os resolver.

Então, quem é mais utopista: quem, baseando-se no conhecimento das leis da vida e dos objetivos da evolução no seio do sistema do universo, pode contar com o resultado porque tem a certeza que ele está garantido? Ou quem, ignorando tais leis, movido pelo instinto e não pela inteligência e conhecimento, apegado aos resultados imediatos e concretos, se vai movimentando loucamente dentro da rede de forças da Lei, assim semeando, inconsciente, as causas das suas futuras dores, de modo que não pode acabar senão na ilusão e no sofrimento? Esta é a verdadeira diferença que existe entre os homens, diferença substancial, que depende da maneira de conceber a vida. Perante tal divisão fundamental, perde todo o valor a separação que existe entre um e outro dos agrupamentos humanos. Que importa se um indivíduo pertence a este ou àquele partido ou religião, quando ele não saberá pensar e continuará agindo, com a sua forma mental de involuído, com todas as conseqüências decorrentes? Um homem desonesto permanecerá sempre um perigo social, qualquer que seja o partido ou a religião a que pertence. O contrário acontecerá em qualquer partido ou religião, se o indivíduo for honesto.

Então a verdadeira divisão entre os homens não é a do seu grupo e interesses a ele relativos, não é a divisão formal, de superfície, que vemos, mas é outra, a de justos e injustos, conforme a natureza do indivíduo. Que adianta, então, continuar repetindo sempre o velho jogo de inventar novas divisões e agrupamentos, atrás dos quais estão os mesmos interesses, deixando o homem sempre no mesmo nível evolutivo, para continuar, em forma diferente, fazendo as mesmas coisas? Isto nada resolve. O problema é diferente Trata-se de uma transformação biológica de um número sempre maior de involuídos em evoluídos, o que significa outra psicologia, outro conhecimento, outra ética e conduta, um mundo regido por outros princípios e funcionando com outros métodos. Na o há dúvida que se trata de uma revolução. Mas não da costumeira revolução, de tipo horizontal, só para dividir o mundo em grupos diferentes dos precedentes, mas de uma revolução em direção vertical, que corta o mundo em dois tipos de vida, próprios de dois biótipos diferentes. Trata-se de substituir ao princípio da luta egoísta do ignorante, o da compreensão e colaboração do homem inteligente. Se isto parece utopia hoje, deverá ser a realidade do futuro, se a humanidade quiser civilizar-se. A futura divisão não será a dos atuais grupos políticos ou religiosos, mas a dos justos e injustos. A nova revolução não é para vencer os semelhantes com os seus mesmos métodos, ficando todos no mesmo nível evolutivo, mas é para mudar de método, subindo a um nível de vida superior. Esta é a verdadeira revolução. Eis o que quer dizer: Princípios de uma nova ética.

*   *   *

A nova revolução não é de superfície, onde se espalham os grupos atuais, não é para dividi-la de outra maneira em outros grupos, mas é revolução que se realiza em outra dimensão, volumétrica, pela qual o ser, aprofundando-se mais com as suas raízes, no âmago da vida, se levanta a um nível de vida superior. Então a divisão não está mais na forma, mas na substância, não no vaso que contém, mas no conteúdo, não nas aparências, mas na realidade, na natureza do indivíduo. A diferença será, entre o biótipo do evoluído e o do involuído. A revolução será interior, que produz um homem diferente; não será exterior, como as outras, que deixam o homem na mesma. Não se trata só de praticar as mesmas coisas com teorias, palavras e estilos diferentes, mas de viver a vida superior do ser verdadeiramente civilizado.

Trata-se de substituir ao princípio fundamental do nosso nível biológico, que é o da luta pela vida, pela seleção do mais forte, princípio individualista separatista, o outro colaboracionista, num estado orgânico unitário. Não se trata de pequenos reajustes dos velhos sistemas, mas de cortar o mal pela raiz iniciando outra forma de vida. Não se trata de construir novos grupos para lutar, sempre lutar, contra outros grupos para só um dominar todos os outros, mas de acabar com os desperdício de forças, representado pela luta continua. Esse método já atingiu os seus resultados e por isso foi útil quando era necessário. Mas agora o homem é dono do planeta, e destruir-se em lutas recíprocas não tem mais finalidade biológica; seria método contraproducente e por isso a vida está pronta a abandoná-lo.

Quando for conquistado o sentido da verdadeira honestidade, com uma forma mental evoluída e uma ética inteligente, os justos se reconhecerão entre si pelas suas qualidades, que representarão o seu bilhete de reconhecimento, impresso de forma indelével como um marco de fogo na sua própria natureza. E eles permanecerão juntos, não pelo constrangimento duma autoridade e respectivo medo de sanções, mas porque entre honestos se encontra sempre o ponto onde concordar, baseando-se na sinceridade e boa vontade de colaborar, ao passo que entre desonestos, movidos pelo instinto de domínio egoísta, se encontra sempre o ponto onde discordar, porque se baseiam no engano e na vontade de explorar.

Hoje, justos e injustos estão misturados em todos os grupos. Pode haver ótimos elementos nos piores grupos, assim como péssimos no seio dos melhores. Faz-se muita questão do que aparece por fora, que se percebe materialmente, enquanto que nos escapa a realidade interior, que se procura esconder. O justo não luta para reduzir à dependência os outros, mas se oferece para com eles se coordenar. Há uma imensa diferença entre os dois métodos de vida e respectiva ética, porque se trata de duas posições biológicas colocadas em dois diferentes pontos da escala evolutiva. A evolução é grande porque se trata de passar da categoria dos injustos, que pertencem a um nível de vida, à categoria dos justos, que pertencem a outro e representam outro biótipo. A renovação é grande, porque não se trata de mudar de roupa, passando de uma religião a outra, de um partido ou grupo humano a outro, ficando mais ou menos como antes e usando os mesmos métodos, mas trata-se de se renovar completamente, pensando com outra forma mental e agindo conforme uma ética diferente. Porque se trata de uma transformação não de superfície, mudando só de forma, mas em profundidade mudando de substância, ela não pode ser realizada pelo capricho e interesse de grupos humanos, mas só pelo amadurecimento evolutivo realizado pelas forças biológicas. Não se trata de pintar por fora, com novas aparências de civilização, a mesma ferocidade da desapiedada luta egoísta, que se esconde atrás das leis religiosas e civis, mas trata-se de acabar com essa contínua mentira, adquirindo outra natureza, personalidade e ética, a do homem justo e sincero.

   

Então, se alguns homens tomarem parte nessa revolução, não poderá ser como dirigentes do movimento que está para além das possibilidades humanas, mas só como instrumentos das leis da vida, no momento e na forma que estas escolherem. Tais mudanças tão profundas não  podem ser confiadas ao homem que não possui a força necessária, nem o conhecimento dos planos da vida, nem a inteligência para os realizar. Nunca até hoje o homem dirigiu o fenômeno da sua evolução, mas foi dirigido, no seu estado de subconsciência instintiva, pela sabedoria das leis da vida, que conhecem qual é o seu objetivo final e o caminho para o atingir. E os grandes reformadores da Humanidade foram intérpretes dessas leis, executores obedientes da sua vontade, operários que com elas colaboraram. Mas no futuro o homem terá de amadurecer até ao conhecimento daqueles planos de vida, porque o desenvolvimento da sua inteligência o levará a entender a estrutura do organismo do todo e o conteúdo da Lei de Deus, que o rege. Então o homem não será mais um menino dirigido por leis e forças que não compreende, mas poderá ser ele próprio a dirigir o fenômeno da sua evolução, superando o método atual da tentativa de cegos, dos erros que disto derivam e de todos os sofrimentos a eles relativos. Tudo isto até agora ocorreu pela falta de inteligência no homem, que por isso, como um menino inexperiente, não podia deixar de chocar-se a cada passo com as normas da Lei, excitando as suas dolorosas reações. Mas a salvação é automática, porque a própria Lei contém o amargo remédio. Ele é a dor, que constitui o impulso maior para a realização da evolução. E o sofrimento que tem o poder de abrir os olhos também aos cegos. Assim, também os mais rebeldes involuídos, depois de terem experimentado todas as dores, deverão acabar entendendo o significado delas, isto é, um efeito dos seus erros, um instrumento da evolução, dentro da lei de justiça de Deus. Nessa altura a grande transformação biológica se haverá realizado, o homem terá subido a um novo nível de vida, onde com outra mente vigora outra ética, o involuído se terá tornado evoluído, o homem injusto se terá tornado um justo.

Eis o significado da revolução da qual estamos falando, dirigida pela Lei, comparada com as do nosso mundo, dirigidas pelo homem. Neste segundo caso, o impulso é só o dos lutadores, atrás deles não há senão os seus interesses particulares, muitas vezes não concordando, mas em contraste com as leis da vida e as finalidades que ela quer atingir. Por isso a Lei não os ajuda e eles ficam abandonados a si mesmos. No primeiro caso, pelo contrário, os homens são instrumentos da Lei e atrás deles está a pressão das forças biológicas que exigem a realização dos seus objetivos. As revoluções do mundo não se fazem dentro da Lei, seguindo os seus princípios e acompanhando os seus impulsos, mas substituindo a vontade humana à da Lei, a esta se sobrepondo, procurando torcê-la para o que acreditamos ser a nossa vantagem. Há grande diferença entre quem trabalha colaborando, em harmonia com o organismo de forças da Lei e quem, pelo seu egocentrismo, colocando-se em posição de antagonismo com a Lei, fica sozinho, abandonado aos seus pobres recursos. Sobre ele não desce a luz do Alto, orientadora e amiga, mas até ele sobe a caótica tempestade das forças do AS, desorientadora e inimiga.

As duas revoluções se reconhecem também cada uma pelo seu método completamente diferente. A revolução do evoluído não se faz polemizando para destruir as velhas verdades, mas só explicando e vivendo as novas. O espírito de agressividade é a primeira coisa que deve desaparecer em quem procura superar o nível animal-humano. Quem se coloca do lado do S, não pode trabalhar senão em sentido positivo, como construtor, ao passo que quem se coloca do lado do AS não pode trabalhar senão em sentido nega ivo, como destruidor. Que faz o galho novo que desponta acima da velha árvore caída, que está apodrecendo? Ele constrói o novo e deixa morrer o velho. Os impulsos da vida descem do S, e por isso a natureza representa uma irrefreável vontade positiva construtora que sempre acaba vencendo a oposta vontade negativa de destruição, representada pelos impulsos de morte que sobem do AS. Por isso a revolução do evoluído é sempre positiva e construtiva e não obedece a nenhum impulso negativo de destruição, representado pelo método da luta, agressividade e polêmica. O novo galho não agride o velho para o destruir. Quer apenas desenvolver-se, deixando o velho apodrecer por si mesmo.

Para superar o velho e continuar o caminho evolutivo da vida, não é necessário destruir, porque automaticamente o velho é destruído por dentro pelos impulsos negativos de morte que chegam do AS, ao passo que o novo automaticamente é construído por dentro pelos impulsos positivos de vida que chegam do S. O velho procura lutar para resistir a esse impulso de destruição, que cada vez mais o domina, procura lutar com o que ainda ficou nele dos impulsos vitais, que descem do S. O problema da velhice é um problema de luta entre as forças do AS e as do S, na hora em que as primeiras levam vantagem sobre as segundas, ecoando como um retorno da primeira revolta, quando os impulsos do S esgotam a sua função de continuação e renovação periódica e evolutiva da vida. Mas não adianta o velho lutar para sobreviver, porque o impulso mais poderoso, destinado a vencer, é o do S, isto é, o da vida e não o da morte, o de Deus não o da revolta; porque quem manda não é o AS, mas o S, o que confere à evolução o direito e o poder absoluto de atingir os seus objetivos, sem que ninguém a possa parar. Eis porque é garantido que a revolução do evoluído, a qual opera dentro e em função da Lei de que ele se torna instrumento, alcance sucesso. Contra o poder das vontades humanas é sempre possível encontrar o poder de outra vontade que a vença. Mas isto não é possível quando se trata de uma vontade cujo poder está acima do poder de todas as vontades humanas.

Eis as razões profundas que justificam o método de realização praticado pelo evoluído. Ele não precisa do esforço da agressão destruidora, porque a sua revolução não se realiza pela iniciativa e vontade dele ou do seu grupo sozinho no universo, mas pela iniciativa e vontade de Deus e Sua Lei, que dirige todo o universo. Para que então entrar no mundo do involuído usando o seu método de luta, colocando-se na posição desvantajosa de isolado contra os maiores poderes da vida, quando o evoluído que se tornou instrumento da Lei, sabe que atrás dele, para sustentá-lo, estão aqueles poderes? Eis a base que sustenta a ética que o involuído, com a sua forma mental, não pode entender: a ética da não-resistência pregada pelo Evangelho.

Quem polemiza, mesmo que seja para sustentar a mais sagrada das verdades, revela a sua natureza de involuído, que nunca consegue afastar-se do método do seu baixo nível evolutivo.  Método errado, porque não alcança o seu objetivo. Quem acredita que seja verdadeira a sua verdade particular e queira impô-la à força, aplica sem saber o princípio do separatismo, próprio do AS, levanta uma parede que o divide e afasta do seu interlocutor, ao invés de abrir uma porta e de lançar uma ponte que o aproxime e una a ele. Tal método não cria amigos que possam entender e aceitar a nossa verdade, mas inimigos que não a podem entender ou aceitar. Como é lógico, os métodos do AS não podem gerar senão resultados opostos. Na afirmação de uma verdade toma-se assim de antemão a posição do lutador que espera o seu antagonista para o vencer. Isto automaticamente gera, com o ataque, uma reação de defesa, porque querer impor a alguém uma verdade nossa destruindo a sua, significa atacar o patrimônio das suas verdades e, pois, a sua personalidade. Acontece assim que o espírito de oposição acorda o instinto da luta, do que nasce desconfiança e revolta, ao invés de confiança e convicção. É assim que o método da discussão é, pela sua própria natureza, feito para excitar revolta ou legítima defesa não para convencer. E de fato o método da polêmica não representa uma procura da verdade, juntando os esforços para a encontrar. mas é uma peleja para destruir a verdade do antagonista.

O método do evoluído está nos antípodas. Não lhe interessa, pelo seu próprio egoísmo de vencedor, afirmar que só ele está certo e que todos os outros estão errados. Ele assim não excita a natural reação de autodefesa, convida à confiança, acaba desse modo sendo aceito sem constrangimentos psicológicos, vencendo apenas com as armas da sua convicção e sinceridade. Tais são os métodos e os resultados de uma ética mais adiantada.

 

Deus existe. Uma prova poderia ser a que nos é oferecida pelo materialismo ateu que O nega. Assim como a sombra implica a presença da luz, também a negação pressupõe a existência do que se nega. Só se pode afirmar a não-existência daquilo que sabemos que existe. De outra maneira, de que se afirmaria a não-existência? Do nada? Mas o nada já não existe por si próprio e para que ele não exista, não é necessário afirmar a sua não-existência. Nada se pode dizer do que não conhecemos, porque não existe. Como se pode afirmar que não existe o que não sabemos o que é? E se não sabemos o que é o nada, é porque ele não existe. Como se pode afirmar a sua não-existência, quando ninguém sabe da sua existência? Portanto, se negamos uma coisa, é porque ela existe. A negação de Deus prova a Sua existência.

No caso do materialismo ateu essa negação não representa, porém, a negação de Deus no que Ele é — porque para o homem isto está além do seu conhecimento e porque, no absoluto  Deus está acima de toda a nossa negação ou afirmação —; mas é uma negação somente do que o homem, num dado momento histórico, pensa que Deus seja, isto é, da representação que ele naquele tempo faz de Deus, conforme o grau de evolução atingido. Assim, por exemplo, um materialista entre os selvagens seria quem nega a existência do Deus do feiticeiro, representado por um boneco com a cara e as qualidades do selvagem.

Há, então, dois pontos bem diferentes e distintos: o que é Deus em Si mesmo, no absoluto, acima da compreensão humana; e o que é Deus como idéia concebida pelo homem no seu relativo, a imagem que ele faz de Deus conforme os seus poderes de representação. O primeiro caso foge-nos completamente, porque está além do nosso conhecimento. O segundo caso representa tudo o que conseguimos saber de Deus, isto é, uma representação a nós relativa, mas progressiva em função do grau de evolução por nós atingido.

Que negou, então, o materialismo da ciência? Negou somente a única coisa que ele podia negar, isto é, o que o homem conhecia: o conceito relativo vigorante nas religiões, no período histórico em que o materialismo apareceu. Mas pelo próprio fato de que aquele conceito é relativo e em evolução, e de que hoje a humanidade entrou numa fase mais adiantada de amadurecimento mental, pelo qual se concebe tudo, e também Deus, com outra forma psicológica e pontos de referência diferentes, eis que o velho materialismo ateu acabou por se encontrar perante uma outra idéia de Deus, não mais aquela que ele estava negando. Com a evolução, que tudo arrasta no seu caminho, esta idéia se havia transformado, devido a um amadurecimento evolutivo geral, do qual a própria ciência materialista, como também a sua negação do velho conceito de Deus, faz parte. Disto se segue que o clássico materialismo ateu não representa, hoje, senão uma negação da velha concepção de Deus sustentada pelas religiões, enquanto a própria ciência acabou desembocando numa mais adiantada concepção de um Deus que ela não pode mais negar, mas, pelo contrário, tem que aceitar, porque explica e funde em unidade os parciais resultados daquela ciência, a eles dando um sentido orgânico e telefinalista, sem o qual tudo fica abandonado na desordem do acaso e no mistério de tantos problemas ainda não resolvidos.

Assim, na economia da vida, o materialismo ateu não foi um meio para chegar à negação de Deus, mas só para destruir a velha idéia que Dele o homem fazia nas religiões, e com isso atingir outra nova, mais evoluída, completa, convincente. Tal processo se está ainda realizando. De fato, a nova ciência destruiu a concepção materialista da matéria, que desintegrou, desmaterializando-a em energia. Hoje está acontecendo isto: a ciência está constrangida pelos fatos, que não pode negar, a abstrair-se cada vez mais da materialidade sensória para chegar a entender a matéria como uma realidade imaterial, e a explicar a substância das coisas com um conceito que cada vez mais se aproxima e tende a coincidir com aquele imponderável inteligente, que no passado foi chamado espírito.

O que nos interessa agora é observar quais são essas duas concepções de Deus, com tudo o que delas decorre, sobretudo a respeito da conduta humana, o que nos conduz ao terreno da ética, que representa o nosso assunto atual, desenvolvido neste volume. As duas concepções, como sempre acontece entre o que está morrendo e o que nasce no seu lugar, estão em luta. A primeira está fixada nas religiões e na respectiva forma mental, filha do passado menos evoluído. A segunda e representada pelos espíritos mais amadurecidos, que se rebelam contra o passado, antecipam a nova maneira de conceber Deus e as relações do homem com Ele.

O conceito que de Deus e respectiva ética nos oferecem as religiões atuais, corresponde ao grau de amadurecimento evolutivo atingido pela humanidade atual. Esse é o único conceito que as religiões nos podem oferecer, porque é o único que a maioria pode entender, o único com que ela concorda porque, não importa se atrasado, ele corresponde aos seus instintos naturais. Um conceito mais adiantado a massa não poderia aceitar, porque está fora da sua forma mental que estabelece quais são as idéias vigorantes em nosso mundo. Já explicamos em outros livros nossos que o biótipo dominante na Terra é o involuído, que, sendo maioria, tem todos os direitos, afirma e pratica a verdade que quer, não importa qual seja a sua teórica profissão de fé e as verdades eternas, que ele sabe, por longa experiência, torcer, adaptando-as às suas comodidades.

Qual é então esse conceito que agora mencionávamos? Porque é da ética que aqui vamos falar, examiná-lo-emos sobretudo pelo que se refere à nossa conduta humana, a respeito do ponto de referência Deus e do nosso conceito, do qual ela depende. A idéia de Deus que o homem possui, herdada do passado, é sobretudo a do todo-poderoso, que por isso pode fazer o que quer, arbitrariamente violando à vontade as leis que Ele próprio estabeleceu para o funcionamento da fenomenologia universal. Assim o homem tinha construído com a sua forma mental um Deus com as suas qualidades bem humanas, de dominador rebelde, cujo poder se realiza e se manifesta impondo, qualquer que ela seja, a sua vontade a todos, cioso dos rivais e egoisticamente preocupado só em dominar e ser obedecido pelos seus súditos  O poder Dele não está na ordem, mas na violação da ordem. Mas esse é o poder da revolta que gera desordem e destruição, representa o poder negativo do anti-Deus, e não o positivo de Deus. Estamos nos antípodas. Instintivamente o homem criou para si uma idéia de Deus feita à sua imagem e semelhança, idéia derivada da posição do homem, invertida pela queda no anti-sistema. Que o universo está cindido nos dois termos opostos do dualismo: Sistema e Anti-Sistema, foi explicado em nosso volume: O Sistema. Também no presente livro quando falarmos de Sistema, abreviaremos com S; e quanto falarmos de Anti-Sistema, abreviaremos com AS.

Esse Deus faz milagres, contrapondo-se arbitrariamente à Sua própria ordem, o que leva ao absurdo de uma contradição, possível na criatura que se revolta contra Deus, mas inadmissível em Deus, que neste caso se revoltaria contra Si próprio. Mas o homem não podia sair da sua forma mental e, nada mais possuindo, teve de construir para si a sua idéia de Deus somente com os conceitos que lhe forneciam as suas experiências terrenas, ficando fechado dentro do seu inexorável antropomorfismo Esse Deus favorece quem quer, com a Sua graça, infringindo o Seu princípio de justiça. Ele cria do nada as almas e, pelos Seus imperscrutáveis desígnios, as envia a viver na Terra em condições bem diferentes uma da outra, muitas vezes em condições de sofrimentos diversos, sem que elas saibam o porquê dessa diferença e de tal condenação.  Esse Deus pode fazer qualquer coisa, pelo direito do mais forte, na mais desordenada e injustificável arbitrariedade, e a criatura tem de obedecer cegamente sem ter o direito de saber, obedecer, não porque entendeu e aceita convencida, mas porque constrangida pelo cálculo egoísta do terror do inferno a fugir e da cobiça do paraíso a ganhar. Entender não é possível, é até proibido, porque é ousadia querer desvendar os mistérios. Não resta, então, senão fé cega, terror, ignorância.

De tudo isto não se pode culpar ninguém, porque não foi feito com propósito de maldade. Tal é o nível evolutivo, seja dos chefes, seja do seu rebanho, e neste nível o homem não sabe conceber e funcionar com outra forma mental. Mas é lógico que, se desta sai aquela concepção de Deus, saia também uma proporcionada concepção da ética, isto é, u‘a moral egoísta, de arbítrio, baseada no mesmo princípio da força, que autoriza Deus a mandar, ou da astúcia, que ajuda o homem a se evadir daquele comando. Essa é uma posição falsa e emborcada da ética. Estamos num terreno escorregadio, que em lugar de levar em subida para o S, leva o ser em descida para o AS. Isso representa o triunfo do involuído, que tudo criou no seu mundo para si, à sua imagem e semelhança. No seu plano evolutivo, tudo é regido pela lei da luta, pela seleção do mais forte e pelos instintos que ela constrangeu o homem a desenvolver, nos quais se baseia a sua ética atual. Nesta fase primitiva não é possível apoiar-se na inteligência e exigir que ela funcione, quando ainda não está suficientemente desenvolvida.

Se o conceito de Deus é esse bem terreno de um padrão que manda e pune quem lhe não obedece, só pelo direito que lhe vem da sua força de todo-poderoso, a lógica posição do fiel é, por equilíbrio e defesa da vida, a do criado que procura evadir-se, seja amansando a ira do patrão, que ele provocou com a sua desobediência (para isso fazendo preces, arrependimentos, promessas, mesmo que mentirosas para arrancar o perdão, ofertas, honras etc.), seja procurando subtrair-se à dura lei do patrão com enganos e todas as escapatórias possíveis. Essa atitude é fatal conseqüência dessa posição, em que o homem se coloca perante Deus, de antagonismo e não de fusão de interesses, posição devida ao estado de revolta, na qual, pela queda, a criatura se encontra perante o Criador. Essa posição invertida vai-se endireitando cada vez mais com a evolução. E assim se explica como a condição do atual ser primitivo seja de inimizade com Deus, a do mais fraco que foge do mais forte, e não de amizade com Deus, isto é, a situação de um amigo que colabora para uma finalidade comum.

Explica-se desse modo a estrutura das atuais religiões, feitas sobretudo de práticas exteriores, fáceis de realizar com pouco sacrifício, sem incomodar no que mais interessa, que é a liberdade na sua própria conduta, deixando a cada um a possibilidade de satisfazer os seus instintos e fazer os seus negócios. É reconhecido, desta maneira, e respeitado o direito de pecar, isto é, de violar a Lei, coisa que constitui sempre a grande atração dos primitivos que formam a maioria: violação prevista de antemão por uma organização encarregada de remendar sem fim tais pecados, para os quais fica, então, amplo lugar no seio das religiões, sem que eles produzam graves conseqüências em cima de quem os praticou. Em vez de ter, inexoravelmente, de pagar aquelas conseqüências até ao último ceitil em outras encarnações, sem escapatória possível, é lógico que convém mais rezar uma leve penitência e, com um provisório e relativo arrependimento, de fortuita duração, considerarem-se quites, prontos a repetir, continuando assim a satisfazer-se. Método adaptado à comum psicologia atual, aceito porque o pagamento é barato, convindo como bom negócio. Permanece, porém, com tal método, o defeito de que ele é um engano que o homem quereria praticar à custa da justiça de Deus, mas que acaba recaindo sobre o culpado, que nem por isso poderá escapar àquela justiça, e que terá de pagar da mesma forma a sua dívida, e isto sem entender nada, nas reencarnações futuras. Nem Deus aparece na Terra para esclarecer e impor à força a Sua Lei, mas deixa que o ser a descubra experimentando à sua custa. Assim, apesar de o homem acreditar que lhe escapa com a sua astúcia, a Lei continua funcionando do mesmo modo, porque para isso ela não precisa do nosso conhecimento. Até que o homem a descubra, ele terá de pagar com o seu sofrimento o preço da sua ignorância.

Eis, então, o que se encontra na realidade dos fatos. Temos, de um lado, a casta sacerdotal que justifica a sua existência e posição de domínio enquanto representante de Deus, com poderes espirituais dos quais depende a nossa vida futura. Do outro lado, temos o termo oposto, representado pela massa dos fiéis, que procuram os meios para se assegurarem nas melhores condições de vida na sua continuação depois da morte. Uns e outros são impulsionados pelo mesmo instinto vital, que quer viver e sobreviver, e lutam por isso. Mas todos, uns e outros, vivem num mundo e dentro de um nível de evolução onde não há ser que não seja rival de outro. Para satisfazer a necessidade de todos, que é a de viver, é necessário concordar numa convivência, à qual não se pode chegar sem se estabelecer um equilíbrio entre as exigências opostas, o que pode ser atingido com o método da troca, pelo qual, para que seja possível coexistir, cada uni dos dois dá alguma coisa, para receber outra. Cada um dá o que tem. Assim, a casta sacerdotal oferece ao mundo a solução do problema da vida de além-túmulo com a salvação eterna, e recebe em troca os recursos materiais e o domínio do qual precisa para viver. Do outro lado, a massa dos fiéis recebe da autoridade espiritual para isso encarregada por Deus, a garantia de uma vida futura feliz, executando apenas algumas praticas exteriores e afirmando que acredita em coisas que não entende, nem lhe interessa entender. Por sua vez, a classe sacerdotal, pelo princípio da troca, tem direito que a sociedade lhe retribua essa dádiva, reconhecendo o seu poder terreno com todas as suas decorrências.

Realiza-se, assim, a troca que permite a convivência, qual meio necessário para chegar, nesse nível evolutivo e conforme as suas leis, à simbiose. Assim cada um está pago com a moeda que o outro lhe oferece. Simbiose entre o espiritual e o material, cada um dando o que tem ao outro, a quem falta. O espiritual concede o paraíso e obtém a sua posição material; o material dá vantagens concretas, mas exige por isso ser pago, e toma as vantagens espirituais. Mas cada um faz as suas contas, e o mundo sabe bem o que vale o que ele concede e calcula para receber, dando o menos possível, sobretudo o seu incômodo esforço individual. Como em tudo na terra, há luta também entre os dois termos da simbiose, cada um procurando a sua maior vantagem possível à custa do outro. Então, para receber a sua posição na sociedade e nela a manter, era necessário que o poder religioso não lhe pedisse sacrifícios demasiados, permitindo-lhe ser possível atingir o seu objetivo, a salvação final, praticando uma moral que consinta muitas escapatórias, pelas quais, com o mais profundo respeito pelas práticas exteriores, é possível dar bastante satisfação aos instintos involuídos, exigidos pela maioria.

Deste modo todos estão satisfeitos, porque cada um acredita ter sido o mais astuto, recebendo mais do que dá: o espiritual, dando promessas de salvação, mas recebendo a vantagem bem positiva da sua posição social; o material, ganhando a salvação com o mínimo incômodo e esforço possível. O único que não ficou satisfeito foi Deus, cuja justiça reclama e exigirá pagamento de ambas as partes Pela grande sabedoria das astúcias humanas parece que o único, neste jogo, a ficar enganado é Deus com a Sua Lei  Isto é o que pode pensar o homem com a sua forma mental de involuído e de rebelde à ordem, julgando, com tal psicologia de primitivo, que possa haver vantagem em intrujar a Deus. Mas o homem não sabe que o único a não ser enganado é exatamente Deus e que o engano cairá em cima dos dois enganadores, os quais não poderão deixar de pagar os terríveis efeitos da sua astúcia. Só na ignorância do primitivo se pode acreditar que seja possível intrujar a Deus. Mas o involuído é espontaneamente levado a tal absurdo pelo seu instintivo impulso de revolta, ao qual ele inconscientemente obedece sem ter conhecimento da Lei ou suspeitar das suas reações, pel s quais acontece que querer enganar a Deus significa apenas enganar-se a si próprio. Entretanto, as religiões desconhecem ainda o conteúdo da Lei e os princípios que regem a vida, de modo que não os podem ensinar. Enquanto não entender tudo isto o mundo continuará vivendo satisfeito com esse acordo, o qual, embora lhe ofereça a vantagem de satisfazer o seu instinto de aproveitar de tudo com a sua astúcia, o condena depois a pagar inexoravelmente o seu erro e dívida à justiça divina. O jogo é bem combinado. As castas sacerdotais podem ficar nas suas posições; e a massa dos fiéis, pagando apenas com práticas exteriores e seguindo nas suas comodidades, pode satisfazer-se durante a vida, assegurando-se, ao mesmo tempo, a salvação para depois da morte. Desse modo todos estão contentes porque puderam continuar vivendo, atingindo o maior resultado com o menor esforço, o que para todos representa um grande ideal. A maioria fica satisfeita só com o presente, só com a vantagem imediata. Para ela, desconhecedora da Lei e do seu conteúdo, o futuro, que é o nosso presente de amanhã, é algo inconcebível que desaparece nas neblinas do mistério.

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Esse jogo corre bem enquanto o homem permanece nas suas atuais condições de involução e de ignorância, as quais não lhe permitem aperceber-se como para ele é prejudicial tal método de enganos, que no fim não deixará de o levar a pagar esse erro, à sua custa e com o seu sofrimento. Se ele hoje apenas sabe entender o que se verifica no presente imediato, e é assim tão míope que não se apercebe das conseqüências do seu método atual, é fatal que tais conseqüências acabem chegando e que ele acabe pagando. A dor cumpre, assim, a tarefa de lhe ensinar a conhecer a Lei, e a não mais errar por ir contra ela. Deste modo, pela dor, a mente humana irá aprendendo cada vez mais, e com isso começará a entender quão louco e perigoso é o seu atual método.

Mas estamos ainda bem longe de aí ter chegado. O homem funciona ainda impulsionado irresistivelmente pelos seus instintos, fruto do seu passado; ainda não soube libertar-se deles, evoluindo, e continua satisfeito ao obedecer-lhes cegamente. O fato é que a lei desse plano de vida é a da luta pela conquista de uma posição superior à dos outros; e quem se encontra situado nesse nível de evolução, aceita e vive essa lei. É assim que tal método tende a prevalecer em todas as raças, religiões, partidos, ou seja, onde quer que exista o homem. É assim que quem tem o poder e manda, muitas vezes é levado a aproveitar-se dessa posição não para cumprir uma tarefa diretiva, mas para dominar e levar vantagem sobre os seus dependentes, que, por sua vez, procuram pagar aos chefes na mesma moeda, defendendo-se o mais que podem e tentando todas as escapatórias para se evadir das leis. É assim que o povo busca enganar os ministros das religiões, mostrando-se fiel nas práticas, mas fazendo os seus negócios ao mesmo tempo e aproveitando as oportunidades; enquanto os chefes ficam com o poder, prometendo em troca a salvação eterna  Assim é a lei deste nível, que a forma mental humana deseja; é a posição na qual tantos ficam satisfeitos, porque a ela corresponde a natureza do homem, que, desse modo, fica ao sabor dos seus instintos. Julgam-se, assim, inteligentes e sábios. Neste esforço de superação recíproca está o nosso maior trabalho, a satisfação do nosso orgulho, a prova da nossa inteligência e do nosso valor.

Há, porém, outro fato. A lei do progresso trabalha continuamente para tirar o homem dessa sua triste posição, impulsionando-o a evoluir Através de incessantes e duras experiências neste baixo nível de vida, o homem acabará forçosamente por atingir o amadurecimento necessário para compreender a estupidez de tal método, um método de quem só sabe agir em obediência cega aos seus instintos de inconsciente. O homem terá assim de aprender a pensar e, depois, a comportar-se com inteligência e consciência. A lei da evolução, que incansavelmente o está impulsionando de baixo para cima nesse sentido, não pode tolerar que tal jogo de involuído dure sempre, que o homem continue sendo um menino apenas dirigido pelo seu subconsciente animal, um menor que não sabe o que faz, incapaz de receber de Deus as suas liberdades, já que não sabe assumir as suas responsabilidades.  A vida apenas pode permitir tudo isto a seres primitivos, no atual baixo nível biológico. Pela fatal lei do progresso a mente humana terá de se abrir, a fim de poder chegar a dirigir a vida com métodos mais inteligentes, honestos e vantajosos.

É exatamente essa mudança que hoje se começa a realizar. A mente humana está saindo das nuvens da menoridade, faz perguntas e pede respostas, não mais aceita só por fé cega verdades baseadas no mistério, começa a raciocinar e  olhar as coisas com espírito crítico, antes de obedecer, exige ver claro com a lógica e a razão, pede a quem manda que justifique a sua posição, quer ver o que está atrás dos bastidores das verdades proclamadas e da autoridade que nelas pretende basear-se, não mais ficando satisfeita com palavras tradicionais e afirmações teóricas.

Chegou a hora de explicar tudo, com sinceridade e justiça, se quisermos que os indivíduos obedeçam às leis. Até ontem foi necessário o método da fé cega, porque não se pode dar explicações a meninos incapazes de as entender, já que isso geraria naqueles cérebros de primitivos complicações e mal-entendidos perigosos. Mas hoje que o homem começa a amadurecer, é cada vez mais necessária uma verdade demonstrada que tudo explique, que responda aos porquês, que resolva os problemas — e isto se não quisermos que ele vire as costas a qualquer princípio superior, acabando no ceticismo. Mas infelizmente é o que está acontecendo. De fato, o homem novo encontra-se hoje perante sistemas velhos, adaptados a outras formas mentais, e que ele não aceita mais. O que ele hoje pede é um pão verdadeiro, um nutrimento vivo, aderente à realidade biológica, proporcionado ao seu estômago mais exigente, apto a digerir novos pratos, isto é, as mesmas verdades eternas, mas completadas e explicadas nos seus mistérios, demonstradas para convencer, postas em dia, a par com o grande progresso da ciência, atrás do qual hoje as religiões, outrora na vanguarda do pensamento mundial, ficaram atrasadas e quase abandonadas como coisa velha, destinadas ao sótão ou a um museu. Ao invés de satisfazer essa legítima nova fome espiritual, as religiões continuam repetindo as velhas coisas com as velhas palavras, nas quais os séculos passados adormeceram, sem levar em conta e sem acompanhar essa renovação que se está verificando na forma mental humana.

Os jovens pedem esse nutrimento novo e fresco, apresentado numa forma mais vigorosa, como os tempos apocalípticos o exigem, e o vão procurar alhures, sobretudo na ciência, porque nas religiões apenas encontram um nutrimento rançoso, que hoje ninguém mais digere, apresentado naquela forma estereotipada pela longa repetição e consumida pelo uso dos séculos, forma essa para adormecidos, de palavras aprendidas de cor, cansadas pelo peso do tempo, com o sentido já perdido para o ouvido moderno. Não é que na alma, sobretudo na dos jovens, fala a sede de verdades eternas. Mas às velhas teologias não se propõem os problemas dos tempos modernos. Quantos não gostariam de ser esclarecidos para poderem resolver os problemas máximos do conhecimento e assim se dirigirem inteligentemente com sua conduta! Todavia, existem idéias velhas, feitas de propósito para nos embalar no  sono da indiferença, com os conceitos que no decorrer do tempo esgotaram o seu impulso vital, e que o progresso abandonou ao lado do caminho da evolução. Os jovens de hoje cansam-se e não prestam mais ouvidos. Eis de onde nasce a hodierna indiferença, o absenteísmo espiritual, o desinteresse de quem não toma a sério, por falta de convicção. Indiferença cheia de respeito — respeito como as religiões exigem  como é dever para com os monumentos do passado e os túmulos dos mortos.  Indiferença que desemboca no materialismo ateu, no epicurismo, na filosofia animal do primitivo, triste substituto do que em vão se procura e se não encontra, fruto do desespero da alma insatisfeita que, precisando de uma filosofia qualquer para se dirigir, não achou coisa melhor.

Os jovens estão famintos de sinceridade, honestidade, justiça, estão desiludidos do passado, que muitas vezes lhes soa a engano, pelo mau uso que foi feito de tantas verdades. E se eles estão revoltados, não é por maldade sua, mas porque encontram falta de bondade. Eles, que agora aparecem no palco da vida, vão observando o que há de verdade por detrás das aparências, e ficam tristes e desnorteados pela falta de uma orientação sadia, coerente, convincente, que os ajude a navegar no oceano desconhecido da vida, dando a esta um significado e uma finalidade a atingir, que justifique e valorize tantos esforços, luta e sofrimentos. Esse é o pão substancial que é urgente dar ao mundo, um pão de honestidade e de verdade. Disto o mundo precisa muito mais do que de atingir a Lua ou ir a outros planetas (para levar até lá as suas guerras) ou do que de fazer novos inventos para destruir a humanidade e a sua civilização. O indispensável, hoje, é u‘a moral que corte até às raízes toda possibilidade de violência e de mentira — como lamentávamos acima —, mostrando que há leis na vida que ninguém pode engana-lás.

No nível animal-humano, a vida se desenvolve num regime de luta, porque tal é a lei desse plano evolutivo. Disto decorre que, em tal ambiente, a regra é os bons serem explorados e eliminados por não serem fortes nem astutos. Para o nosso mundo, a bondade é uma forma de fraqueza que cada um pode ter o direito de explorar, utilizando-a para sua própria vantagem. Na prática, até se assiste ao absurdo de se tentar aproveitar da bondade de Deus, visto tal mundo saber ser Ele infinitamente bom. É necessário então desvendar tão perigosa ilusão, filha da ignorância e dos instintos dos primitivos.  Se o mundo, porque lhe convém, gosta de imaginar Deus dessa maneira, é necessário entender que Ele não é bom só para que seja possível explorar Sua bondade com o engano, mas que Ele é sobretudo inteligente, de modo que ninguém O pode lograr e com a sua astúcia evadir-se da Sua Lei, como o homem almejaria, de acordo com a sua forma mental. É  preciso compreender que, sendo Deus bom, não é por isso um simplório que possa ser enganado. Semelhante psicologia é terrena, para atingir as finalidades da lei da seleção. Na sua concepção de Deus, o homem não sabe sair da sua forma mental, produto do seu grau de evolução e adaptada ao seu ambiente, para nele promover o seu progresso e trabalho biológico.

Perante Deus e a Sua Lei é loucura querer ser astuto, porque não há escapatórias. Quem faz o mal tem de pagá-lo à sua custa, não importando se é crente ou não. A nossa opinião, a nossa fé religiosa ou filosófica, não pode fazer mudar as leis da vida. Ninguém pode embrulhar Deus e a Sua Lei. Mas o homem não gosta de semelhante conceito, antes prefere, e por isso imaginou, um Deus bom que se pode enganar. Mas isso é um produto do subconsciente instintivo, é uma redução do conceito de Deus dentro dos limites da psicologia terrena de luta, é uma criação da mente humana para satisfazer um desejo seu, não correspondendo à verdade. Esta é o que é, em forma positiva, para todos, incluindo os ateus, e não é o resultado do que cada um, conforme a sua natureza, gosta mais de crer. O homem aceita o conceito de um deus enganável porque isso lhe agrada, ao mesmo tempo que satisfaz o seu instinto de prevalecer acima de todos, e assim pensa ser possível aproveitai--se desse Deus. Ora, é necessário não cair nesse engano, pelo qual quem quer acaba sendo enganado. O que de fato ocorre é o contrário do que o homem pensa: Deus abandona ao poder de reação da Lei quem quer fugir à obediência, enquanto defende os sinceros e os honestos, os quais, seguindo o método da justiça, não querem se aproveitar de ninguém, e isso apesar do mundo, seguidor do método da luta, os explorar e esmagar, já que naquele nível eles são considerados simplórios e  tolos, isto é, o biótipo do fraco a ser eliminado pela lei da seleção do mais forte.

Na sua ignorância, o homem acredita que a sua pequena biologia terrestre representa, em todos os seus níveis, uma completa biologia do universo; e não entende que, em níveis superiores de existência, situados ao longo do caminho da evolução, possam vigorar leis tão diferentes na proteção da vida que ao pé delas os nossos atuais métodos se tornem absurdos e prejudiciais, ao mesmo tempo que prevalecem outros, nos antípodas dos nossos, tão distintos que parecem emborcados. De fato, trata-se de um progressivo processo de endireitamento das qualidades do AS nas do S. Acontece assim que, num mais adiantado plano de existência, os primeiros de hoje serão os últimos de amanhã e os últimos de hoje serão os primeiros de amanhã. Verifica-se o fato de que, quem ao progredir do AS para o S, por virtude da evolução, gradualmente se vai harmonizando no seio da Lei; por isso, cada vez menos se encontra no estado de separatismo, qualidade dos involuídos que os deixa sozinhos e abandonados, entregues apenas aos seus recursos individuais; e sempre cada vez mais se vai encontrando no estado de unificação, qualidade dos evoluídos, que os funde no organismo universal, permitindo-lhes desse modo utilizar os seus recursos e os meios de defesa. O homem não entende que a Lei é viva, que representa um pensamento a querer manifestar-se, e que ela está pronta a funcionar assim que o ser lhe excite o funcionamento com os seus movimentos. A Lei faz isso em relação àqueles movimentos que dependem da natureza do indivíduo, a qual é conseqüência da posição por ele ocupada na escada da evolução. E então lógico que a lei feroz da seleção do mais forte no plano físico funcione só no plano animal-humano, no seio da biologia desse nível, ao passo que outra lei, esta de harmonia e de justiça, funcione num plano superior, no seio da biologia desse nível. Verifica-se, assim, que no plano inferior quem é julgado o melhor (o mais forte, vencedor) se torna o pior no plano superior (o rebelde à ordem, delinqüente); e que quem no plano inferior é julgado o pior (o homem bom e honesto, julgado fraco) no superior se torna o melhor (o mais forte, vencedor porque defendido pela Lei). A Lei apenas aceita o método da luta pela seleção do mais forte nos níveis inferiores, onde tal método representa uma defesa da vida. Mas tudo se transforma, na evolução do AS para o S, incluindo o método dessa defesa, o qual deixa de ser representado pela supremacia bestial de um indivíduo sobre outro, como convém num mundo em estado de caos, passando a ser constituído por uma posição de obediência na ordem, como convém num mundo que atingiu o estado orgânico, onde os impulsos inimigos (AS) chegaram, através de tanta luta, a coordenar-se em harmonia (S).

Eis a técnica do fenômeno. Em palavras simples se diz que Deus defende com a sua justiça os honestos, que o mundo condena e persegue. Deus protege quem Lhe obedece. Quem observa a Sua Lei, por Ele está defendido. A defesa de Deus representa a arma que salva os honestos, o grande poder dos que abandonaram as armas da força e da astúcia. Isto é importante, sobretudo a respeito da ética, que aqui estamos tratando, porque aqueles que o mundo julga os mais fracos podem, de fato, com tal jogo de elementos, tornar-se os mais fortes. E isso acontece em virtude de uma lei positiva que rege a vida e que está pronta a funcionar, mal qualquer indivíduo se coloque nas devidas condições.

Tudo isto está escrito na Lei, que representa o pensamento de Deus e a Sua vontade de que tal pensamento se realize. Essa Lei está feita não apenas de princípios que dirigem o caminho da vida, mas também de impulsos para que eles se tornem realidade. Essa Lei foi escrita pelo próprio Deus no funcionamento do Universo, através da Sua criação, e toda a fenomenologia a realiza; tudo e todos têm de lhe obedecer se não lhe querem sofrer as reações. Mas a maravilha é que o primeiro a querer obedecer-lhe é o próprio Deus, e com isso mais não faz que livremente obedecer à Sua própria vontade, por Ele codificada na S a Lei. Ora, obedecer a si mesmo não é obedecer, mas mandar. É por essa obediência de Deus, que o ser tem o mesmo dever de obediência, na mesma ordem universal que não admite ser violada pela vontade descontrolada do arbítrio de Deus. Perante a ordem Dele, isso representaria, não liberdade, mas violação e erro. Ora, essa violação pode ser permitida ao ser, que por essa culpa terá de pagar (assim se redimindo), Não é possível atribuir a Deus tal violação, porque Ele é perfeito.

A Lei representa, então, não somente um princípio de ordem universal inviolável, mas também um compromisso entre o Criador e a criatura, garantia absolta para esta de que a Lei sempre responderá, com exatidão, aos movimentos do ser, consoante os princípios estabelecidos, e sempre em proporção ao merecimento do ser. Esta conclusão é importante (também diz respeito ao nosso atual tema da ética) e dela depende a nossa conduta; é importante, porque desse modo o indivíduo sabe que ao cumprir o seu dever de obediência à Lei ele tem o direito de receber em troca uma ajuda que o defenda. Esse é o princípio pelo qual funciona a Providência de Deus. O que sustenta o homem honesto condenado pelo mundo é a certeza de que Deus, mais do que todos, também respeita a Sua Lei, merecendo por isso toda a confiança.

Também há outra razão em que nos podemos apoiar para ter essa confiança: é ela a segurança que nos vem dos resultados, necessária para nos resolvermos a praticar todos os sacrifícios da obediência e o esforço de uma conduta certa. A idéia que as religiões nos dão de Deus é a de que Ele criou o universo, tirando-o do nada ou do caos. Mas depois de haver estabelecido a Sua ordem, Ele ter-se-ia ausentado para os céus, de lá ficando a olhar de longe a Sua obra, sem tomar parte ativa no seu funcionamento. Ora, queremos salientar aqui que nada é mais absurdo que essa idéia da ausência de Deus, que nos permite imaginá-Lo afastado, longínquo, e assim mais facilmente enganável, quando, na verdade, a lógica exige e tudo nos fala da Sua presença viva e contínua entre nós no funcionamento orgânico do todo, tudo dirigindo, de perto vigiando, controlando, velando e realizando. Este fato acarreta importantes conseqüências no terreno da ética, porque um Deus tão próximo penetra toda a nossa vida por dentro e por fora, é uma atmosfera em que todos estamos mergulhados, que todos respiramos e da qual não há possibilidade de nos separar. Trata-se de um Deus que está conosco em todo lugar e a toda hora, inclusive fora dos templos, no meio da nossa vida de luta, um Deus independente de seus ministros, o que elimina a possibilidade de enganá-Lo.

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Há, pois, duas maneiras de conceber Deus, das quais derivam dois métodos de pensar e de viver, duas éticas diferentes, filhas de dois tipos de religião: a do homem atual, ainda involuído — conforme à sua forma mental de primitivo; e a do evoluído super-homem do futuro — conforme a uma outra forma mental completamente diversa. No primeiro caso, o homem concebe Deus antropomorficamente à sua imagem e semelhança, baixando-O até ao seu nível humano, sujeitando-O à sua lei de luta, tratando-O com o seu método de astúcia e psicologia de engano com que costuma enfrentar os seus semelhantes. No segundo caso, o homem concebe Deus com outra forma mental, como um ser que está acima das leis do plano humano e das suas maneiras de pensar e agir. Trata-O, por conseguinte, com absoluta sinceridade e confiança, com um método completamente diferente, o da honestidade, merecimento e justiça. Não falamos aqui das aparências costumeiras, que o mundo quereria fossem tomadas por verdades, nem tão pouco do que de exterior se apresenta nas doutrinas das religiões; falamos, sim, da substância vivida nos fatos, e não das éticas pregadas. Falamos do que na realidade o homem é, pensa e faz, e isso é a única coisa que interessa e vale.

Então, existe no mundo são dois tipos de religião: a vigente, filha do passado, e outra, que antecipa o futuro. Ambas correspondem a dois níveis de evolução e são conseqüência da forma mental e das leis que regem a vida do involuído e do evoluído. Isso é possível devido ao fato do homem ser uma criatura em evolução, quer dizer, em estado de transformismo, de modo que ao lado do velho, que está morrendo, aparece e existe o novo., que está nascendo. E assim que temos duas verdades diferentes, aparentemente contraditórias, mas que não passam de posições mais ou menos adiantadas ao longo do mesmo caminho da evolução. São momentos sucessivos da mesma lei que está sendo cumprida por seres pertencentes a dois níveis biológicos sucessivos, um acima do outro. De cada uma dessas duas verdades deriva uma ética especifica, porque ambas coexistem lado a lado: a inferior, praticada pela maioria involuída; e a outra, seguida por uma minoria de evoluídos, e que é exceção à regra comum

Os fatos nos conduzem a essa verdade, feita sem a intenção de condenar ou reformar. Com efeito, um homem ou um grupo nada podem fazer, e sim só as poderosas e sábias forças da vida e os grandes acontecimentos históricos, porque se trata de profundos amadurecimentos biológicos. E os honestos deste mundo são poucos demais para formar um grupo poderoso, além de não possuírem as qualidades de agressividade necessárias para vencer, no terreno animal-humano. Quem segue o método evangélico da não-resistência foge da luta e, consequentemente, não pratica qualquer forma imposta de ideais, o que implica ter de respeitar a ignorância em que o próximo se fecha, pronto a lutar para a defender. Quem não aceita o método da luta tem de o repudiar, mesmo quando não haja outro meio para tirar a cegueira aos cegos — há que deixá-los ser o que quiserem ser.

Aqui, queremos apenas explicar àqueles poucos, os inteligentes, as tristes conseqüências do método hoje vigorante; explicar que as dores do mundo são poucas em comparação com as que o homem merece, que quem manda não é o homem, mas a Lei, e que, quem ensina é a dor e fá-lo não com palavras, mas com fatos, deixando cada um acreditar e pregar o que quiser, mas fazendo pagar sempre o que merece. Não há. pois, necessidade de impor à forca idéias. nem mesmo a salvação, já que isso excita o instinto de agressividade provocando reação e luta, o que é um convite para a animalidade funcionar. Para que incomodar a fera com sábias pregações, quando ela se ofende em ouvi-las e se revolta contra elas? Para que, quando nas mãos da Lei está pronta a lição do sofrimento, ensinando tão bem o que ninguém pode deixar de aprender? A verdadeira ética não depende do homem, mas de Deus Ela está acima de tudo e de todos, escrita na Lei e dentro da própria natureza das coisas, daí não se poder fugir. Então, por que lutar contra os inferiores, se isso só serve para lhes excitar as reações e enganos? Por que lutar para que eles entendam, se pelo seu nível evolutivo não podem entender? Por que forçar a sua evolução, se o progresso é fatal e se só Deus tem o poder de os impulsionar para a frente? Por que, se a nossa pregação da verdade gera na sua forma mental apenas uma procura de escapatórias? Por que, se de fato o que se atinge no mundo não é uma verdade única e total, mas apenas briga entre verdades e religiões, considerando-se cada uma como absoluta e em luta para destruir as outras? Por que substituirmo-nos à sabedoria de Deus, quando a correção de todo erro é automática e a dor é o grande mestre sempre pronto a nos colocar no caminho correto?

Tudo o que podemos fazer é explicar, para os que têm ouvidos para ouvir e inteligência para entender, os imensos prejuízos que derivam da ética hoje vigorante. O atual sistema de insinceridade vale tanto quanto aquele do capitalista que explora os operários pagando-lhes o menos possível, e do operário que se compensa procurando explorar o patrão trabalhando pouco e da pior maneira possível. Que rendimento pode dar um sistema de enganos e atritos recíprocos, quando a energia tem de ser desperdiçada nessa luta para se explorarem um ao outro? Mas é por recolher os tristes resultados desse método, que se acaba entendendo quão pouco ele seja rendoso, o que impulsiona a escolher outro sem tais rivalidades e atritos, até se atingir um estado de colaboração, que representa a maior vantagem para todos. O mesmo acontece no caso semelhante que já vimos, o da casta sacerdotal, que do seu lado, com a ameaça do inferno e a promessa do paraíso, consegue ficar na sua posição de domínio; e o caso do povo que se compensa executando só práticas exteriores, e acreditando apenas no seu interesse, pensando ganhar com elas a salvação, enganando a Deus e seus ministros. Chega-se assim a uma religião às avessas, em que se satisfazem os instintos inferiores e se aprende a arte da mentira; mas isto até que, pelos muitos sofrimentos que o método gera para todos, eles aprendam outro menos prejudicial (porque não praticando enganos não terminam no engano), o método da sinceridade com Deus e consigo mesmo.

Esta é a religião à qual o impulso do progresso e a escola de tantas duras experiências terá de levar o homem. Religião do futuro, mais livre, porém sem possibilidade de enganos; imaterial, mas inflexível, e não flexível, mas como as atuais. Ela não quer destruir as velhas, e sim insuflar no seu cárcere de forma material, com o qual elas se estão fundindo e confundindo, um novo sopro espiritual, para rejuvenescê-las e vivificá-las, libertando-as o mais possível daquela forma que, quando se troca o vaso pelo conteúdo, representa um perigo. Trata-se de um progresso que mais nos aproxima do verdadeiro conceito de Deus. Isto quer dizer conquistar uma posição mais adiantada no caminho da evolução, e por isso poderosa e perfeita, porque mais próxima do S.

É estranho, porém, que tal progresso seja considerado uma ameaça pelas religiões atuais, que preferem ficar cristalizadas nas suas velhas formas, o que é morte, ao invés de correr ao encontro da vida, renovando-se. Quem procura a renovação, avaliado com as velhas unidades de medida,  julgado irreligioso, rebelde, herético e como tal é condenado. E os conservadores não entendem que esses, que parecem revolucionários, não trabalham para destruir o velho, mas para salvá-lo, porque a vida está no movimento e na renovação. Quem estaciona, para conservar, envelhece e morre. Sobretudo nas horas das mais rápidas mudanças biológicas como a atual, quem não as segue acaba ficando abandonado para trás, morto no túmulo do passado. E, pela lei da evolução, o novo está destinado a arrombar mais cedo ou mais tarde as portas fechadas de todas as resistências.

Os verdadeiros revolucionários, não são destruidores, mas construtores, para que amanhã, da ruína das velhas religiões que estão desmoronando juntamente com os sistemas éticos respectivos que nelas se baseiam, alguma coisa de firme e seguro fique no mundo para orientar positivamente o homem do futuro e dirigir com clareza e honestidade a sua conduta. A atual falta de fé, o fato de não se tomar mais a sério as coisas de Deus (não importa se disfarçado atrás de aparências formais), representa um perigo grave que ameaça as religiões atuais, anquilosadas na sua imobilidade, num momento em que todo o pensamento da humanidade está em crise e se está renovando. A ciência não soube substitui-las por nada, não se podendo dirigir o homem. Ir à Lua ou a outros planetas não orienta o homem na sua conduta e assim não resolve o problema individual, nem o social. O homem permanece uma fera, armada de recursos terríveis. Sobre a cabeça dos povos que conseguem engordar no bem-estar está suspensa por um fio a espada de Dâmocles duma guerra destruidora da humanidade e da sua civilização.

Se nestes livros procuramos explicar tudo, encarando e resolvendo os maiores problemas para dar uma resposta que hoje falta, não é para criar uma nova teologia que se substitua às velhas, mas é para lhes dar um conteúdo positivo, demonstrado, de cuja lógica a razão não possa fugir; conteúdo cuja função não é a de atingir abstrações filosóficas, mas de chegar a conclusões práticas de uma conduta certa baseada nos princípios claramente definidos, convincentes. O que procuramos é uma religião que não permita escapatórias, mas leve o homem a uma ética que, pela sua justiça evidente, tenha o direito de impor o cumprimento dos deveres que ela exige, porque se baseia na realidade da vida, e não em abstrações teóricas, que poucos entendem porque estão fora dessa realidade. Perante uma religião, demonstrada inteiramente e uma ética da natureza que dela decorre, perante esse conjunto que explica positivamente as conseqüências fatais de cada ato nosso, pelas quais cada erro tem de ser pago, não é possível ficar neutro e não há lugar para a hodierna indiferença. Acreditamos que só assim é possível vencer esse inimigo mortal de toda espiritualidade, que inicia a decomposição final das religiões e preludia a sua morte.

 Desejamos esclarecer é que não se trata de agressividade destruidora, mas de uma desesperada tentativa de injeção vital para salvar os valores eternos da velhice da forma. Quando esta vai caindo porque lhe falta a substância e não resta senão o ceticismo, então as religiões adoecem e, esvaziadas de todo o conteúdo vital, as ameaça a morte. O que de fato hoje prevalece é o materialismo religioso, isto é, só uma aparência formal de religião praticamente atéia na substância, o que representa a última fase da decadência. Na Idade Média os problemas religiosos eram percebidos e vivos, os homens lutavam naquele terreno. Hoje tais problemas não interessam mais, o mundo voltou-lhes as costas, para tomar a sério os problemas da ciência, que é a única fonte que parece oferecer um resultado a satisfazer as exigências da mente moderna. Como ninguém agride um morto, assim as religiões saíram do terreno da luta, que é o terreno da vida.

Quanto mais a mente se desenvolve, tanto mais o homem se torna exigente em querer conhecer as razões pelas quais ele tem de se conduzir de uma dada maneira, suportando os deveres e sacrifícios respectivos. Desponta então um espírito crítico e uma autonomia de juízo que não deixa mais aceitar cegamente as idéias simplistas do passado, por sugestão ou princípio de autoridade; aparece o hábito do controle analítico das coisas e idéias, pelo qual, se o indivíduo se apercebe que os ideais proclamados não correspondem à realidade dos fatos e às exigências da vida, então os repele. Quando, com a psicanálise, se começa a controlar a natureza subconsciente de tantos dos nossos secretos impulsos, onde está a raiz das nossas ações, aos quais no passado o homem inconscientemente obedecia como uma verdade absoluta, então não é mais fácil convencer e obter obediência. Os pilares da velha lógica não se sustentam mais, porque está mudando por evolução a forma mental humana. Mas, se neles se baseia o edifício dos princípios que dirigem a nossa conduta, eis que esta fica sem alicerces e o edifício todo ameaça cair. Então os que são intelectual e espiritualmente mais fortes começam a pensar com a sua cabeça, a dirigir-se por si mesmos, assumindo sinceramente perante Deus as suas responsabilidades. Eles são condenados como rebeldes por saírem das fileiras, o que é escândalo. Mas quem tem uma cabeça não pode deixar de usá-la para pensar, nem a pode cortar no suicídio espiritual, que é a renúncia ao conhecimento. Quanto mais a evolução produz tal tipo de homem, tanto mais se torna contraproducente para as religiões o velho método absolutista. Concordar somente numa base de recíproca utilidade, que é o princípio da troca que vimos, não pode ser vantajoso, porque não é seguro para durar, nem sólido para construir.

A evolução nunca pára neste seu trabalho, lento mas constante, de amadurecimento da forma mental humana. Chega-se assim a uma nova maneira de conceber, a orientar-se como uma nova psicologia, o que quer dizer dirigir-se com uma ética e método de conduta diferente. O ser aprende então que, para além de todas as formas exteriores, há uma realidade interior independente delas, representada pela existência da mente diretriz de tudo, Deus, que fixou o Seu pensamento e a Sua vontade de realização na Sua Lei. Deus está assim sempre presente, imanente em nosso universo, e, por essa Sua presenç , o ser existe mergulhado e fundido Nele, que representa o princípio da própria existência, que tudo sustenta e anima. Trata-se de um Deus do qual ninguém pode sair, ao qual nada se pode esconder, um Deus vivo, ao nosso lado a toda hora, com a Sua inteligência e atividade. Quanto mais o ser é evoluído, tanto mais ele se torna consciente dessa presença e vive em contato direto com Deus, fundindo-se na Sua vontade e, ao invés da criatura egocêntrica e rebelde, torna-se fiel instrumento Dele. Um fato assim tão fundamental orienta de maneira completamente diferente a vida, que se torna outra coisa. Então o ser se faz consciente do funcionamento orgânico do todo, dos princípios que o regem, da sua tarefa que lhe cabe realizar; ele compreende a lógica do plano divino que tudo dirige e que a sua maior vantagem está em segui-lo. Profundamente convencido disto, ele julga loucura o espírito de revolta do homem atual, e espontaneamente se coloca na ordem para obedecer à sabedoria da Lei.

*   *   *

Dessa nova maneira de conceber decorrem conseqüências importantes. Antes de tudo o ser atinge um conceito completamente diferente de Deus, da religião, da ética. Ao princípio antropomórfico do sistema hierárquico se substitui o princípio superior do sistema de tipo unitário. Neste, a criatura não é mais um súdito sujeito à vontade de um rei, que se colocou em cima de uma hierarquia de dependentes, perante o qual o indivíduo não tem outro direito senão o de obedecer à Lei que o rei quer e faz, transmitida por intermédio dos seus ministros, que o representam, mandando em nome Dele. A tal conceito completamente humano, que é a reprodução do que se encontra em nosso atual nível biológico, se substitui outro de um estado orgânico, conforme o qual a criatura é uma célula do todo, nele harmonicamente fundida, numa ordem superior que é a Lei, que com justiça imparcial tudo dirige e domina. A posição natural do ser não é, então, a do rebelde que é levado a se revoltar pelo fato de que os seus interesses, como acontece na sociedade humana, não são os do chefe que manda só porque venceu por ser o mais forte. Neste caso a posição natural do ser é pelo contrário a da espontânea obediência, porque esta é a condição da sua maior vantagem.

É lógico que assim seja, porque o conteúdo de um plano evolutivo superior não pode ser senão de tipo unitário, como é o S, do qual aquele plano está mais próximo; e pelo fato de que o conteúdo de um plano evolutivo inferior, humano, não pode ser senão de tipo egocêntrico separatista, como é o AS, do qual este plano está mais próximo. União, fusão, eis a psicologia de quem atingiu a forma mental superior, nos antípodas da psicologia egocêntrica, de oposição a tudo e a todos, que divide em vez de unificar. Trata-se de duas formas opostas, de pensamentos e de existência.

De tudo isto decorre uma diferente forma de conceber e realizar as relações sociais. O indivíduo, então, não é mais um rival do seu semelhante, em luta contra ele, num regime de inimizade, guerra e atritos, mas é seu amigo, num regime de compreensão, paz e colaboração. Tudo isto representa uma grande mudança nas atuais condições da sociedade humana,  será a revolução que transformará um mundo de feras num mundo de seres conscientes e civilizados.

Tudo isto é diferente da ética e religiões vigorantes; não é diferente do que elas pregam e sustentam em teoria, mas do que a maioria faz na prática, pela natureza involuída do homem atual e sua forma mental que não sabe sair do seu plano e concebe tudo antropomorficamente, reproduzindo o que ele vê acontecer na terra. A culpa, então, não é das religiões, mas do homem ainda não evoluído, que não sabe pensar de outro modo. Para ele são necessárias as formas exteriores, os absolutismos dogmáticos, o espírito de grupo para condenar todos os que se encontram fora dele, a exclusividade da verdade, a coligação de interesses, um Deus atingível só através dos seus representantes materiais, bem visíveis e concretos, o terror do dano (inferno) e a cobiça da vantagem (paraíso), sem o que tudo cairia no abuso. Trata-se, então, de um método indispensável, dada a natureza humana, de um mal necessário, porque não se pode permitir liberdade às massas ignorantes que, não possuindo qualquer instinto de autodisciplina consciente, mas só a desordenada inconsciência dos impulsos egocêntricos individualistas, acabariam na anarquia.

Se, porém, num nível superior a este, o ser atinge a consciência da Lei e da presença de Deus, e nesta consciência ele encontra a autodisciplina que dirige a sua conduta, tudo o que é produto daquela necessidade prática de dominar os rebeldes com o medo da pena e o desejo do prêmio, como agora mencionávamos, tudo isto não é mais necessário e, porque não tem mais razão para existir, terá de desaparecer. Não há mais o que justifique tais métodos quando o ser conhece a sua posição no todo, e obedece a Deus com toda a liberdade, por convicção, sem precisar de ser constrangido, porque sabe que obedecer à Lei representa a sua maior vantagem. Esse novo tipo de ética representa a maioridade das religiões, as da nova civilização do III milênio.  Poderão assim desaparecer por evolução os pontos fracos que vimos a respeito das religiões atuais.

   

Numa religião clara e visível, positiva e racionalmente demonstrada, sem nuvens de mistério, não há mais lugar para enganos. Perante um Deus que a mente concebe verdadeiramente presente e não só em teoria, não terá mais sentido desenvolver a arte das escapatórias. Quando não houver mais comando praticado com a psicologia de dono, não haverá mais razão para a revolta que nasce no coração da criatura. Para que então desobedecer a Deus, quando a mente entendeu que isto é absurdo e prejudicial, porque rebelar-se quer dizer ferir-se com as suas próprias mãos? Quem não procura a sua vantagem e não quer fugir do seu dano? Ninguém pode ir contra a sua própria vida. O problema é só um; o de chegar a compreender quanto contraproducente seja o atual método da conduta humana. Quando o homem entender a conveniência de ser honesto, ele seria louco se não fizesse o que mais lhe convém.

Apesar de tudo muitos quereriam ficar parados, descansando nas velhas posições do passado, poupando-se ao trabalho de progredir. Mas a evolução não os deixa em paz e irresistivelmente os impulsiona para a frente. O homem aos poucos irá assim entendendo cada vez mais, até se aperceber quanto mais satisfatória seja uma conduta livre, a obediência espontânea, dirigida pelo conhecimento e a convicção, do que uma disciplina imposta à força, pelo terror da punição. A isto levará a evolução, o que significa afastamento do AS e de suas características, e aproximação do S, isto é, de Deus.

É assim que Ele se aproxima de nós e nós Dele. E urna sensação deslumbrante a percepção dessa presença. Que maravilha ir absorvendo a Sua potência vital, observando o pensamento Dele escrito na Sua Lei e ir lendo esse livro, onde estão os princípios que dirigem a vida de tudo o que existe  Ele representa a atmosfera dinâmica e conceptual que respiramos toda a hora e lugar, que nos penetra e enche por dentro e circula por fora de nós. Que esplendor não ter que imaginar Deus afastado, longínquo nos céus, mas vivo entre nós, trabalhando ao nosso lado, ajudando-nos em nossa luta para evoluir, com o Seu imenso poder, bondade e sabedoria!

Não pode deixar assim de acabar por si mesmo o jogo interesseiro para nos assegurar a vida futura, quando sabemos que ela automaticamente está garantida para quem mereceu, conforme a justiça quer, e que, qualquer que seja a nossa astúcia, nada podemos obter se não for merecido. A massa dos fiéis, porém, de hoje não gosta e não aceita tal verdade, porque não sabe renunciar à bonita miragem que satisfaz os seus instintos, isto é, que seja possível realizar o sonho de receber sem pagar, de obter sem merecer. Neste nível prevalece o princípio de forca e da astúcia. No outro nível superior domina o princípio da justiça. Nestes dois níveis biológicos a vida se defende com armas diferentes. As primeiras são de tipo inferior, mais próximo do AS, representam por isso um método involuído, de superfície, com uma vitória mais imediata, mas temporária, destinada a acabar na falência, porque baseada no engano e não no merecimento. Neste caso se trata de um edifício que tem de cair porque desequilibrado e por não ter os seus alicerces nos princípios da Lei. As armas que defendem a vida no outro nível biológico são de tipo superior, mais próximo do S, e representam por isso um método evoluído, que  trabalha na profundeza, com uma vitória a longo prazo, mas estável, que não acaba na falência, porque baseada na verdade e no merecimento. Neste caso se trata de um edifício que não cai, porque equilibrado, e por ter os seus alicerces nos princípios da lei.

Chegando a esse superior plano de evolução, mudam as relações entre o ser e Deus. Nada mais de arbítrio irresponsável, pelo direito do mais forte. Tal conceito não pode existir senão na forma mental humana, relativo ao nível desta e para as finalidades do seu mundo. Chegou a hora de aplicar a psicanálise a este e outros conceitos que dominam nas religiões, para ver de que impulsos do subconsciente eles nasceram. É absurdo que mais no alto domine a mesma desordem e espírito de prepotência que reina no nível humano. Direitos e deveres existem para todos, escritos na Lei. Deus é o primeiro que dá o bom exemplo de obediência a ela. Se imaginarmos Deus igual a um chefe humano que pode fazer tudo com o seu arbítrio, então o ser será por isso autorizado a agir de igual forma, terá o direito de fazer perante Deus, como de fato acontece, o que fazem os súditos humanos, isto é, procurar evadir-se da lei do mais forte, com o engano.

É lógico que em dois níveis biológicos diferentes, diverso seja o conceito de Deus. No nível superior tem de desaparecer a concepção antropomórfica do arbítrio descontrolado, absurda porque nela reina uma ordem preconcebida e perfeita. Isto não ofende a liberdade de Deus, porque não é escravo quem obedece à sua própria vontade. A primeira concepção se baseia no princípio da força do patrão, de um lado, o que em nosso mundo constitui o seu direito; este fato, por outro lado, gera a correspondente reação representada pela astúcia da criatura, que exprime o seu equivalente direito, pelo mesmo direito que todos têm à vida. A segunda concepção não se baseia naquele princípio de antagonismos e rivalidades, pelo qual é o mais fraco quem tem de obedecer ao mais forte, não mais num princípio de luta, mas de equilíbrio estável e de justiça, representado pela reciprocidade dos direitos e deveres. Então temos ordem perfeita para ambos os termos do binômio: Deus e ser. O conceito de arbítrio está ligado ao de ignorância, tentativa, escolha entre opostos, dualismos, egocentrismo individualista, desordem, imperfeição, o que não é concebível na perfeição de Deus. Então o ser sabe com clareza o que ele tem de fazer, e que pode contar com certeza com a Lei, que lhe permite calcular os efeitos das suas ações.

A palavra obediência toma outro significado neste nível superior. Nos planos inferiores o egocentrismo individualista divide, e obediência quer dizer escravidão perante uma vontade inimiga. Nos planos superiores obediência quer dizer que o ser deve concordar e harmonizar-se com os princípios que regem a sua própria vida para sua maior vantagem. Mas ser constrangido a obedecer para realizar o seu bem, não é obedecer, mas é realizar em cheio a sua própria vontade. A diferença entre os dois níveis é esta: que nos planos inferiores prevalece o antagonismo que divide os seres entre si e contra Deus, de modo que a obediência é uma opressão antivital, enquanto nos planos superiores tudo isto desaparece numa unidade que funde os seres entre si e com Deus, numa só vontade dirigida para a mesma finalidade de bem, o que transforma a obediência em elemento vital. Então neste caso obediência não significa, como acontece com os patrões terrenos, que Deus esmaga a criatura sua escrava, mas que Ele a ajuda, dignifica e respeita nela a Si próprio, todos juntos colaborando para o bem e a felicidade do ser.

Antes de ter o dever de obedecer o ser tem o direito de saber, em proporção ao seu merecimento, desenvolvendo com o seu esforço a sua capacidade de entendimento. E Deus quer que o desenvolvamos cada vez mais, para sempre melhor entender. Ai de quem adormece por preguiça na fé cega, sustentando que tudo já foi resolvido e é conhecido! A obediência será tanto mais perfeita, quanto mais perfeito for o conhecimento. Quanto mais este se desenvolve, tanto mais o ser entende que é sua vantagem obedecer, fundindo a sua vontade com a   Deus, que quer só o bem da criatura. Isto pode-se realizar pelo fato de que, subindo, desaparecem os egocentrismos separatistas dos rebeldes, para se coordenarem e organizarem dentro do único egocentrismo de Deus. Então, o maior desejo e satisfação é fazer a vontade do Pai, com a qual a nossa se tornou uma só vontade, porque aquela vontade quer o que nós mais desejamos, isto é, a nossa felicidade. Neste nível não tem mais sentido, nem há mais lugar para os métodos praticados no nível atual, baseados na idéia da vingança, no terror da pena, nas astúcias para escapar à Lei.

O  ser pode, finalmente movimentar-se com conhecimento num regime de lógica e clareza, que lhe garante os resultados; ele se encontra finalmente perante um Deus sobretudo inteligente, que não condena como culpa o desejo de conhecimento, admite perguntas inteligentes que responde para quem tem ouvidos. O ser sabe que tem os seus direitos e quais são, porque Deus tudo escreveu na Sua Lei; sabe que Deus não é um patrão despótico e caprichoso, mas que pode contar com Ele, porque Ele honestamente mantém a Sua palavra. Quando o ser se torna um justo, não tem mais nada a esconder de Deus, não tem medo Dele, mas Nele confia. Deus, então, não é mais um inimigo a temer, como os rebeldes acham que seja, mas é um amigo que vem ao nosso encontro para nos ajudar. O ser sabe, então, que quem obedece a Deus, em nome da Sua própria justiça, pode reclamar perante Deus que justiça seja feita, porque ninguém mais do que Deus pode exigir que seja respeitada a ordem que Ele próprio estabeleceu. Então cada um, que tenha verdadeiramente cumprido todo o seu dever e tenha a consciência limpa. pode dizer: "Senhor, em nome da Tua própria justiça, que com todas as minhas forças procurei realizar, defende-me para eu obter justiça neste mundo de injustiças . O que mais ofenderia Deus seria que, para quem o mereceu, essa justiça não fosse realizada e no lugar da Lei, que é a voz do S, prevalecesse a vontade do rebelde, que representa a voz do AS. O ser pode pecar rebelando-se à vontade de Deus; mas como pode Deus pecar, rebelando-se à Sua própria vontade? Como admitir uma Lei perfeita que representa a vontade de Deus, se Ele não for a própria perfeição? Buscar a vontade de Deus é submeter-se à Sua Lei.

 

Só depois de ter explicado no capítulo precedente qual é a estrutura da personalidade humana e, sumariamente, a técnica da sua construção, é possível enfrentar agora o problema do destino, destino que contém e nos revela a lei do desenvolvimento da personalidade, que só neste sentido, isto é, de processo evolutivo do eu, pode ser entendido.

O estudo que até aqui fizemos do fenômeno daquela personalidade humana, seja no seu conteúdo, qualidades ou funcionamento, seja como transformismo e-volutivo, observando-o nos seus três momentos: subconsciente, consciente e superconsciente, mostra-nos que a cada um destes três níveis de desenvolvimento do eu corresponde um correlativo biótipo humano. Observe-mo-los para nos encaminhar à compreensão do fenômeno do destino.

A sensibilidade, o conhecimento, a capacidade de entender do indivíduo, o seu tipo de vida e destino, dependem da sua natureza que corresponde ao nível evolutivo em que vive e funciona o seu eu. Cada um possui a linguagem do seu plano biológico e só ela o entende. O primitivo. que vive no nível do subconsciente. fala e entende somente a linguagem das emoções. Ele pode ser sugestionado por impressões, não convencido pelo raciocínio. Ele não age por entendimento seu. mas por imitação do que fazem os outros. Ele não se interessa elos efeitos a longo prazo mas só elos resultados imediatos. O que mais o convence é a linguagem dos sentidos, o seu prazer ou sofrimento. Além desses fatos para ele concretos porque bem perceptíveis, tudo lhe é um mistério imenso, e ele sabe que não pode penetrar. E assim que para ser entendido por tal indivíduo é necessário usar a sua linguagem, que é a do seu lucro ou dano, prêmio ou pena, paraíso ou inferno. Esta é a linguagem que o nosso mundo usa para dominar e impor obediência e ordem. Não há lei religiosa ou civil que tenha valor, se não é sustentada pela força que pune o transgressor. O nosso mundo zombaria de um governo sem tribunais, polícia e cadeias. como de uma religião sem inferno ou seus equivalentes. O biótipo desse nível obedece apenas ao mais forte, que tem o poder nas mãos e que por isso lhe pode fazer bem ou mal. O fraco não merece respeito nenhum, merece pelo contrario, ser escravizado.

O    biótipo mais adiantado, que deveria ser o homem, se chama civilizado, vive no nível do consciente e fala e entende a linguagem da razão. Mais do que sugestionado por impressões. ele pode ser convencido pelo raciocínio. Não segue os outros por imitação. mas procura saber porque ele tem que agir de uma maneira ou de outra. Olha mais longe do que os simples resultados  imediatos. prevê, observa, analisa, calcula. Acima da linguagem dos sentidos. entende a da sua mente, com a qual controla a sua conduta para atingir com maior segurança o seu benefício e fugir do seu dano. Para dirigir esse homem não basta o medo do fracasso ou a esperança de vantagem, mas é necessário convencê-lo de que tudo representa, na verdade, o seu interesse e corresponde a um princípio de equidade. A vida para ele não é mais mistério, que a ciência começa a desvendar. Tal homem controlado pelo pensamento não pode mais ser dominado somente pela força, como o biótipo precedente, mas a respeita pela vantagem material  que  pode usufruir,  por que ela representa um poder econômico, bélico, político, social. Assim, os impulsos fundamentais da vida permanecem os do nível precedente.

O    biótipo ainda mais adiantado: o homem superior, excepcional em nosso mundo, vive no nível do superconsciente e fala e entende a linguagem da verdade. Ele não age, porque sugestionado por impressões, ou somente pelo raciocínio, mas pelo conhecimento que possui pelo sentido da verdade. Não funciona por imitação, ou calculando com o raciocínio, mas porque já sabe como agir, de uma maneira e não de outra. A sua vista vê tão longe que abrange a sua existência na eternidade, em função do todo. Acima da linguagem dos sentidos e da mente, ele entende a linguagem das coisas das quais intui por visão interior o sentido profundo. Esse homem não é dirigido só pela simples reação sensória, como no nível do subconsciente, nem pela sua reação cerebral racional, como no nível do consciente, mas por uma autonomia de julgamento e orientação, conseqüência do conhecimento, que é a qualidade de quem vive no nível do superconsciente. Quando não há mais trevas de mistério, pelo menos nas linhas gerais, só um pode ser o caminho do homem e este será o caminho certo. Assim vive tal biótipo, que não quer dominar, nem precisa de provas racionais para entender e ser convencido, porque já atingiu o conhecimento e possui a verdade

Para melhor esclarecer o nosso pensamento, observemos mais de perto esses três casos. No nível do subconsciente ou plano animal, o que dirige a vida são os instintos fundamentais: a fome  que garante a continuação do indivíduo; o sexo que garante a continuação da raça. Estes são os impulsos fundamentais, os quais dirigem o ser primitivo que vive neste nível, esta é a base das paixões elementares que o movimentam. Quando ele satisfaz a fome e o sexo, fica satisfeito, não entende nem procura outra coisa, porque atingiu o seu objetivo principal: viver.

No nível do consciente, acima destes dois instintos básicos, inicia-se no primeiro caso a construção e se levanta o edifício da propriedade, da riqueza e correlativas proteções legais, das posições sociais, das honras, do poder religioso e político, como aumento e acréscimo ao redor do eu; e no segundo caso levanta-se a construção do edifício da família, para a defesa da mulher e dos filhos, estabelecendo direitos e deveres na conduta, na propriedade, na herança etc. A base e o centro de tudo isto é, como no caso precedente, o egocentrismo do eu para garantir agora em forma mais completa a continuação da vida, seja como indivíduo, seja como coletividade. A sua maior finalidade é possuir na maior medida possível recursos e poder para dominar, mulheres para se multiplicar nos filhos, e assim afirmando-se, espalhar-se no mundo, conquistando o mais que puder.

Estamos no nível do egoísmo e da luta, de todos contra todos, cada um querendo dominar. A guerra é o estado normal, a família é um castelo armado contra as outras famílias, naturalmente rivais e inimigas, que é preciso vencer para não se ser vencido. O grupo familiar fica, desta forma, unido pelo seu egoísmo, que neste plano representa a base da vida. Constroem-se, assim, e ficam unidos os grupos nacionais, em que os povos se unem para se armar contra outros povos. Esse é o estado atual da nossa humanidade, que só chegou a organizar, racionalmente, no nível do consciente os instintos fundamentais, que movimentam o ser no nível do subconsciente.

A, verdadeira revolução biológica só aparece no nível do superconsciente. Para maior clareza  damos um exemplo prático, escolhendo como modelo um ser verdadeiramente superior que foi Francisco de Assis, em cuja terra nasci e vivi muito tempo. Com os três votos básicos da sua regra, ele quis despedaçar os correspondentes instintos fundamentais do homem, a eles contrapondo como virtudes três impulsos opostos Ao 1.º instinto, o de possuir, ele contrapôs a regra da pobreza; ao 2.º instinto, o do sexo, contrapôs a regra da castidade; ao 3.º instinto, o do egocentrismo dominador, contrapôs a regra da obediência. Assim, o indivíduo fica como aniquilado no nível do subconsciente (instintos) e do consciente (razão a serviço dos instintos); o seu passado biológico é esmagado de uma vez, mas à procura de uma superação; a vida, cortada nas suas velhas raízes, parece condenada a morrer, mas, pelo contrário, é levada para ressurgir mais poderosa num plano mais alto. Este é o significado biológico e a lógica do espírito franciscano.

Na prática, os indivíduos estão bem longe de estar prontos para realizar uma revolução biológica. Tudo isto chegou a um mundo dirigido por impulsos bem diferentes. Pelo entusiasmo que a pregação arrastadora de S. Francisco acordou no povo sofredor, porque lhe oferecia a esperança de uma vida melhor, se reuniu atrás dele uma multidão de seguidores, tanto mais porque o entusiasmo popular se concretizou numa imensa colheita de recursos, com os quais foi rapidamente construído, para honrar a pobreza, o mosteiro e a basílica de S. Francisco em Assis, um castelo imenso que hoje vale bilhões. Na igreja superior da basílica de S. Francisco de Assis, há, à direita, um afresco de Giotto que representa o Papa Inocêncio III que, numa visão, em sonho, vê a grande basílica do Laterano, em Roma, caindo e S. Francisco sustentando-a para não cair. É lógico que esse papa aprovasse, até santificá-lo um homem que tinha levantado o entusiasmo popular para Cristo e o Evangelho, que constituíam as bases teóricas do poder terreno da Igreja, que o Laterano representava. O grande exemplo cristão de S. Francisco confirmava a doutrina na qual se baseia o papado e com isso a legitimidade da hierarquia eclesiástica e do seu poder terreno. Aquilo de que mais precisa o pastor que deve dirigir é o rebanho das ovelhas que obedecem. Não se pode esquecer em que mundo vivemos. Então é lógico que nele, cheio de gente que quer possuir e mandar, a coisa mais agradável e aceita seja a de encontrar quem renuncia a possuir e a mandar, substituindo estes dois impulsos pelas virtudes da pobreza e da obediência.

Foi por isso que S. Francisco foi glorificado por um mundo que está nos seus antípodas. Talvez na providência de Deus não houvesse outro meio para que seres situados no nível evolutivo do subconsciente instintivo pudessem no seu ambiente aceitar um biótipo tão diferente deles, situado no nível evolutivo do super-homem. E de fato os seus seguidores ficaram no seu nível, rebaixando-lhes tudo, porque, mais do que a sua natureza continha, eles não podiam entender. É inevitável que qualquer ideal, descido do alto, não possa sobreviver na terra senão em forma torcida, adaptando-se às condições biológicas dos indivíduos que têm de realizá-lo. O nosso mundo não é dirigido pelas antecipações ideais do futuro, mas pelos instintos, fruto da longa experiência do passado, que mais garante a  sobrevivência, desta forma mais segura para seguir os velhos caminhos já conhecidos, do que arriscando-se na aventura da exploração do novo. É por isso que, perante os audaciosos pioneiros, a vida se defende como de um perigo, aceitando-os com prudência, glorificando-os, mas não os imitando, tudo adaptando às suas comodidades, o que pode parecer hipocrisia e traição do ideal, mas que representa uma autodefesa, porque diferente demais é a realidade biológica, em que o ideal quer tomar forma concreta. O amadurecimento das massas, até levá-las ao entendimento das coisas superiores, é lento e trabalhoso e exige tais adaptações, que permitem a assimilação gradual em percentagens progressivas, fato que, porém, não pode impedir que à vista dos mais evoluídos essas adaptações pareçam mentiras.

Como pode o ser primitivo praticar tais virtudes superiores se para ele, que não sabe ressuscitar num nível mais alto, elas representam um suicídio? A vida quer o progresso, mas retrai-se e recua quando esse caminho se torna perigoso demais. O progresso é necessário; sem a descida à terra dos ideais que antecipam e preparam o futuro não seria possível evolução, faltaria orientação no caminho desta, porque se trata de menores, que antes de tudo precisam ser educados por alguém que possua mais conhecimento e saiba dirigi-los. Quem se encontra deslocado em nosso mundo é o homem superior, que tem de se adaptar a viver num nível biológico inferior, que não é o seu. Por isso ele deveria aprender os instintos, defeitos e paixões que movimentam os primitivos. Estes, pelo contrário, se encontram comodamente no ambiente terrestre, mas ninguém mais do que eles precisam de uma educação superior que os tire desse pântano e os levante para o alto.

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No ambiente terrestre se encontram misturados os três biótipos que vimos, vivendo cada um no seu nível, o do subconsciente, o do consciente ou o do superconsciente. Cada um desses biótipos reage contra o outro conforme sua natureza. Cada um entende, julga e age conforme sua forma mental. Trata-se de três tipos e níveis de sensibilidade e compreensão: a sensória, a racional, a espiritual.

O homem do subconsciente está completamente escravo dos seus impulsos instintivos, sem controle. O homem do consciente é dono dos seus instintos, que ele controla com a razão, da qual é escravo, porque não possui outro meio com que se dirigir, com ele pesquisando no desconhecido. O homem do superconsciente é dono dos instintos e da razão, que domina e controla, orientado pelo seu conhecimento. É como se tratasse de três dimensões sucessivas no desenvolvimento da sensibilização, correspondentes à linha, superfície, volume, uma dimensão acima da outra. E como se se tratasse de três camadas sobrepostas, que revelam as sucessivas posições ocupadas pelo ser no seu crescimento, como acontece no tronco das árvores ou nas estratificações geológicas.

É lógico que o ser do plano superior seja mais completo do que o do plano inferior, e que, quem está em cima, olhando para baixo. julgue os outros mancos e falhos. Claro que um homem do 1.º nível (subconsciente), observado por quem está situado no 2.º nível (consciente), lhe aparecerá como um ser que ainda não sabe pensar, ao qual não adianta explicar, pois que não pode entender. Claro também que um homem do 2.º nível (consciente), observado por quem está situado no 3.º nível (superconsciente), lhe aparecerá como um cego que procura conhecer a natureza das coisas, tateando com os sentidos a superfície delas. Então, para ser entendido por um cego será necessário explicar-lhe tudo com as palavras da razão, que um cego possa entender. Tal princípio é universal. Assim é possível falar com os animais, se falarmos a sua linguagem, que é a dos instintos fundamentais da vida. Assim, o que representa o mais poderoso argumento para um ser superior, pode passar completamente desapercebido para um inferior. Pertence ao primeiro a tarefa de descer até ao segundo, porque quem sabe mais pode entender quem sabe menos, e não ao contrário.

Para que os mais adiantados possam comunicar-se com os mais, atrasados, fazendo-se compreender por estes, impõe-se a necessidade de os primeiros traduzirem e adaptarem a sua linguagem à forma mental dos segundos. Assim, o homem racional, se quiser ser entendido pelo homem do subconsciente, terá que descer ao nível dos sentidos e das emoções. Da mesma forma o homem intuitivo terá de transpor a sua linguagem para o racional da lógica e da demonstração com provas, se quiser ser entendido pelo homem do nível do consciente. O ser não pode compreender o que está acima do seu nível de evolução. Por isso, em nossos livros foi necessário traduzir as nossas visões na linguagem racional, que é a que corresponde à atual forma mental humana. Para ser entendidos pelos biótipos do nível do subconsciente, teria sido necessário traduzir as visões em termos emocionais de medo, esperança, entusiasmo, estimulando com representações bem perceptíveis pelos sentidos. Tal descida é uma necessidade imposta pela natureza das coisas. É por isso que a cada passo encontramos esse fenômeno nas religiões, cuja tarefa é exatamente a de levar até ao nível dos mais involuídos os princípios superiores, que de outro modo eles nunca saberiam atingir. Quem fala, se quer ser compreendido, tem que falar a linguagem dos ouvintes. Isto de fato é o que acontece em nosso mundo, quando se trata de convencer as massas populares. Daí a, necessidade do uso das imagens e das representações do rito nas religiões. Na propaganda política, nas campanhas eleitorais, na venda dos produtos comerciais, para convencer o povo se usam slogans simples, que não querem raciocínio nem esforço de pensamento, repetidos em forma de sugestão hipnótica, dirigidos ao subconsciente, apoiando-se nos impulsos elementares deste.

O    instinto do involuído é o de reduzir tudo dentro dos limites da sua forma mental. O que não cabe dentro da sua cabeça. para ele passa despercebido, e é como inexistente. Mas com a evolução a vida se torna uma revelação contínua de uma realidade sempre mais vasta. Uma progressiva sensibilização permite penetrar numa parte cada vez maior das vibrações do universo. O campo dominado pela consciência vai-se cada vez mais ampliando com a evolução, como se foi comprimindo com a involução até chegar à pedra. É assim que onde o evoluído percebe um mundo imenso, o involuído fica cego e surdo, nada percebendo. Onde um cientista, um pensador, um artista é arrebatado por pensamentos e emoções profundas, e impelido às mais enérgicas reações, um homem comum fica inerte adormece pelo tédio. Há coisas preciosas à porta da sua casa, maravilhas estão batendo para entrar, e ele não responde e retorna as misérias do seu mundo pequeno, porque só sabe entender estas.

Eis a necessidade, para os seres dos planos superiores, de reduzir o seu patrimônio mental aos limites dos planos inferiores, sem o que não é possível comunicação e os ensinamentos não são recebidos. É assim que, se os superiores conhecem a forma mental e o mundo dos inferiores, estes não conhecem a forma mental e o mundo dos superiores. O subconsciente, o consciente e o superconsciente são como três andares do mesmo edifício e o ser pode morar no inferior, no médio ou no superior, andares que correspondem aos diferentes níveis de evolução. Quem mora no inferior não pode conhecer o que há no superior, até que entre no novo apartamento, subindo a escada que o leva até lá. Mas quem mora no apartamento superior se lembra do que há nos inferiores, onde ele morou no passado. Pode assim acontecer que o homem racional, do nível do consciente, no seu comportamento siga os instintos animais que a ele voltam do subconsciente, isto é, do andar inferior onde ele residiu no passado. Isto significa momentâneo retrocesso a posições evolutivas atrasadas.

O    homem atual subiu há pouco do andar inferior da animalidade ao médio da consciência racional, e neste vai aprendendo a morar. A lembrança, a forma mental, os hábitos de inquilino do andar inferior estão ainda vivos nele, sempre prontos a voltar. Mas agora ele vive próximo ao terceiro andar, o do superconsciente, e essa vizinhança já lhe permite perceber alguma coisa do que acontece nesse andar superior. Daí descem as revelações das religiões, que o iluminam e estabelecem qual deve ser a sua conduta; descem indivíduos com a missão de mostrar, com a palavra e o exemplo. qual é o caminho para subir até esse andar.

Eis, então, que o nosso mundo está como que suspenso entre dois outros mundos, um debaixo e um acima dele, do primeiro recebendo impulsos inferiores, do segundo, impulsos superiores, impulsos opostos em luta, que, porém, representam o trabalho criador do amadurecimento evolutivo. Assim, quando em nós surge um impulso, pela sua natureza podemos entender de que nível evolutivo ele chega. As chamadas tentações de pecado, para fazer o mal, pertencem ao nível inferior, enquanto as boas inspirações de fazer o bem pertencem ao superior. Mas em cada um surgirão com mais poder os impulsos do seu plano biológico e estes vencerão. Assim, com a sua conduta cada um revelará a que plano pertence, quem é e qual é o seu grau de evolução. É claro que, tratando-se de indivíduos em transformação, destinados mais cedo ou mais tarde a mudar de um andar para outro, encontramos em nosso mundo impulsos e condutas de todo o gênero. Pertence às vozes que descem do plano superior a tarefa de dirigir a escolha entre eles.

Ao observador superficial poderia parecer que o homem possuísse como que três almas diferentes, cada uma procurando dirigir a sua conduta. Mas de fato se trata só de três posições diferentes ao longo da escala da evolução. Quando aparecem apenas os impulsos elementares instintivos, como os da simpatia ou ódio, do medo pelo perigo, da atração sexual, se trata de produtos do nível inferior, o do subconsciente. Quem vive neste plano não conhece mais do que isto, com que resolve os problemas de sua vida. Quando o homem começa a pensar, observar, fazer perguntas e procurar respostas, deduzindo e controlando, eis então que ele atingiu o nível médio, o do consciente. Procura-se, então, resolver os problemas da vida racionalmente. Quando o homem chega a responder às suas perguntas, e por isso a viver esclarecido, resolvendo os problemas da vida com conhecimento, e por conseguinte se conduzindo retamente, então o ser chegou ao nível superior, o do superconsciente.

Subir de um nível para outro é o que constitui o duro trabalho  da evolução, que não é inútil, também  do ponto de vista da vantagem para o indivíduo. Aumentando o seu conhecimento, aumenta também o poder de defesa de sua existência, porque conhecimento quer dizer sábia orientação, portanto, menor número de erros e menos sofrimentos, os quais têm que ser pagos. Assim o esforço evolutivo é compensado, porque a vida é tanto mais protegida quanto mais o ser evolui. Ela com a evolução ganha em segurança, amplitude, poder, satisfação, como é lógico que aconteça, porque com a evolução o ser se afasta do AS e se aproxima do S. A vida não pode deixar de ser diferente para quem vive no 1.º nível, como um impulsivo, instintivo, inconsciente; para quem vive no 2.º nível, como indivíduo que sabe raciocinar com inteligência; para quem vive no 3.º nível, como iluminado que atingiu o conhecimento.

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Podemos agora enfrentar o problema de nosso destino, que é o assunto deste capítulo, como anunciamos no seu início. Mas antes era necessário observar a natureza destes três diferentes biótipos porque, do que somos e dos nossos impulsos é que depende o tipo de destino que a cada um dos três biótipos pertence. Assim, neste capítulo observaremos o fenômeno do destino em geral, em função do nível biológico em que o indivíduo vive. Veremos, então, que aos três tipos de homem correspondem três tipos de destino. Veremos depois, dentro do grande desenho deste quadro geral, as linhas do destino separadamente no caso particular do indivíduo.

Cada um de nós traz ao nascer o seu tipo de destino conforme as nossas qualidades, que construímos em nossas vidas passadas, qualidades das quais dependem os impulsos que nos movimentarão em nossa vida atual, dos quais deriva o tipo de conduta e, por isso, de nossa existência. O fato se verifica com qualquer semente. A sua própria natureza já nos diz desde o início qual será o desenvolvimento de toda a sua existência, que a semente já contém em si potencialmente. Isto porque a vida atual não é senão um trecho a mais que se junta a um imenso caminho percorrido no passado. O desenvolvimento de um destino não representa senão a realização atual do que já estava potencialmente contido na personalidade ao nascer. Eis que é possível conhecer qual será o tipo de destino, quando conhecemos o tipo de personalidade. Temos antes de tudo um destino biológico geral, porque pertencemos à raça humana o qual estabelece os vários períodos e duração de nossa vida; um destino econômico e social, dependente da posição e ambiente em que nascemos; um destino, poder-se-ia dizer clínico, que marca com antecedência a nossa pré-disposição a esta ou àquela doença. conforme o organismo físico que recebemos dos nossos pais: por fim, acima deles, temos o que se poderia chamar um destino psicológico e espiritual, em que se revela a verdadeira personalidade e o poder do eu, mais ou menos dono de si mesmo, reagindo contra as condições impostas pelos outros destinos inferiores, para dominá-los e tornar-se sempre mais livre, a eles impondo sua vontade, e se for maduro, com a sua conduta moral deslocando-se para um plano de vida mais alto, para aí se realizar como ele quer, conforme sua natureza.

É preciso entender que amadurecimento evolutivo significa elevação de nível biológico, o que significa elevação de tipo de destino, com as correlativas vantagens e desvantagens.  Isto depende do comportamento dependente das qualidades do indivíduo, e que é diferente conforme o seu nível. Assim um homem do 2.º tipo poderá ser sincero e virtuoso, mas sobretudo por calcular uma vantagem para si (paraíso ou inferno etc.), enquanto um homem do 3.º tipo o será sobretudo por um princípio ideal. Assim, o tipo médio na sua conduta procurará a aprovação do mundo, coisa para ele muito importante. O tipo superior pedirá apenas o julgamento de Deus, porque sabe o que vale o do mundo. O tipo médio aterroriza-se com as condenações do mundo. O tipo superior depõe sua consciência perante Deus. O tipo médio é vaidoso, porque está vazio. O tipo superior é humilde, porque é virtuoso e, por isso, o seu valor não precisa dos louvores dos outros. As finalidades do tipo médio estão todas neste mundo; as do tipo superior estão além deste, num mundo superior. Eles, na luta para defender sua vida, seguem dois métodos completamente diferentes. O primeiro conduz-se como um ser que vive isolado do universo e de Deus, só podendo contar com o que possui, com a sua força e astúcia. O segundo não vive isolado no universo e separado de Deus, sabendo que basta praticar a Lei, porque então ele pode contar com forças superiores que impõem a justiça de Deus. O 1.º acredita que, fazendo o mal, seja possível vencer .O 2.º sabe que isto significa perder. o 1.º representa a forma mental do mundo. O 2.º representa ao contrário, o superior espírito do Evangelho.

Assim, conforme sua natureza, o indivíduo traz consigo já estruturado o seu destino, não como uma fatalidade cega e injusta, mas como urna lógica e justa conseqüência das causas semeadas e qualidades impressas no eu nas vidas precedentes. A maioria vive cega a respeito de tais problemas. Mas eles são fundamentais para quem queira viver dirigindo-se com inteligência. Então, para conhecer qual é o tipo de destino que lhe pertence, é necessário antes de tudo conhecer o nível evolutivo em que o indivíduo vive, isto é: 1) o inferior, instintivo, do subconsciente; 2) o médio, racional, do consciente; 3) o superior, iluminado, do superconsciente. Trata-se de três níveis biológicos, em cada um dos quais a vida é regida por leis diferentes. Ora, pertencer a um ou outro desses níveis, estabelece a Lei a que o indivíduo tem de ficar sujeito, a lei em cujas normas tem de ficar enquadrado todo movimento seu e ligado o desenvolvimento do seu destino. É lógico que o conteúdo de cada vida dependa da posição que o ser ocupa ao longo do caminho da evolução, em função daquele que foi percorrido no passado. Esta é a base para conhecer, nas suas linhas gerais, qual deve ser o conteúdo de nossa vida, conforme o tipo de destino próprio de cada um.

Teremos, então, três tipos fundamentais de destino: o de quem vive no 1.º nível; o de quem vive no 2.º nível; o de quem vive no 3.º nível.

No 1.º caso o desenvolvimento da vida é simples, dirigido por poucos impulsos fundamentais, dos quais é fácil prever os efeitos. O indivíduo possui poucas idéias e com elas resolve os seus poucos problemas. Eles são os da fome e os do amor. Quando o ser tem saciados os desejos do estômago e do sexo, fica satisfeito porque cumpriu todas as funções que a vida lhe pede: assegurar a conservação individual e a da espécie. Com isso a sua tarefa biológica se esgota. Para além disto, que é todo o mundo seu, nada sabe, nem procura. A lei desse nível biológico não vai além desses estreitos limites, dentro dos quais, então, está marcado o caminho ao longo do qual se desenvolverá o destino de quem vive nesse nível Para ele, o impulso de crescimento poderá manifestar-se no desejo de satisfazer sempre mais os seus impulsos fundamentais, do estômago e do sexo, isto é, não trabalhar, engordar, gozar, ter mulheres e filhos, mas sem sair de tal tipo de experiências. Esse é o conteúdo do tipo de destino do indivíduo do 1.º caso.

No 2.º caso, por maiores experiências que enriqueceram o eu de novas qualidades, o desenvolvimento da vida se torna mais complexo, dirigido por novos impulsos, com maior amplitude de escolha e de correlativos efeitos. O indivíduo conquistou novas idéias, concebe e consegue resolver maiores problemas. Estes são não somente os elementares do estômago e do sexo, mas também os do poder, da organização social, do domínio sobre as forças da natureza, os da riqueza, da glória, do conhecimento etc. Nesse nível a vida não pede somente que se resguarde a conservação do indivíduo e da espécie, mas que isto seja feito com maior abundância e segurança, desenvolvendo ao serviço da defesa uma arma mais poderosa do que a dos primitivos: a inteligência. Mas esta fica fechada dentro de limites, além dos quais a mente da maioria não sabe e pouco procura saber, neste seu nível ficando satisfeita com a solução daqueles problemas, sem olhar para outros mais longínquos. Eis, então, que dentro de tais limites está marcado o caminho ao longo do qual se desenvolverá o destino de quem vive nesse nível. Além do que constitui o conteúdo da forma mental do indivíduo. conforme o seu plano de evolução, o ser não pode conceber nem realizar, e, por isso, o seu destino não pode conter mais. Enquanto não subir para formas de vida superiores, ele ficará amarrado a tal tipo de experiências, que representam a tarefa que lhe cabe, o trabalho que deve cumprir. A vista desse biótipo não enxerga mais vastos horizontes. Se não tiver adquirido um novo amadurecimento evolutivo, a entrada para um nível superior lhe ficará fechada e ele não poderá entrar. Sabemos, assim, qual é o conteúdo do tipo de destino do indivíduo do 2.º caso.

No 3.º caso, por ter feito novas experiências e conquistado novas qualidades, o desenvolvimento da vida se torna ainda mais complexo, dirigido para horizontes imensamente mais vastos. Pelo novo entendimento adquirido, nascem novos impulsos, que movimentam o ser para novos caminhos, que o levam além dos precedentes. Ele não existe mais só para si, cercado de mistério, no seu pequeno mundo terrestre, mas vive conscientemente em função do universo, do qual se torna cidadão, coordenando-se organicamente no seio do seu funcionamento. Ele concebe e resolve novos problemas. Progredindo no conhecimento da natureza das coisas, não cai mais vítima das tantas ilusões da vida. Ele finalmente entendeu que os velhos objetivos pelos quais tanto lutava, têm valor relativo. A sua vida transbordou para além dos velhos limites, em que ficava presa. Assim, ela adquire novo significado e conteúdo. Ao invés das restritas conquistas terrenas para escravizar os vencidos, surgem as conquistas da inteligência e do espírito para erguer todos a um nível evolutivo mais adiantado e feliz. Chegando a esse plano, o ser transformou a sua vida de cego, dirigido pelos instintos mais ou menos controlados, na de um iluminado dirigido pelo conhecimento. Eis, então, que o caminho, ao longo do qual se desenvolverá o destino de quem vive nesse nível, está marcado, mas para além dos velhos limites, em direção diferente. O ser não está mais fechado neles, descobriu uma nova forma de existência, adquiriu nova forma mental, com a correlativa conduta. Mudou com isso o caminho do seu destino. Por ter atingido esse nível superior, se torna possível para o indivíduo a realização dos valores imperecíveis, que estão atrás das aparências que constituíam o mundo do precedente nível inferior. É lógico que esse outro biótipo, isto é, o do 3.º caso, tenha um tipo de destino, cujo conteúdo é completamente diferente dos dois casos precedentes.

Nestes três casos vemos funcionar o indivíduo em três níveis diferentes. No 1.º caso, ele funciona como ventre, no 2.º como cérebro, no 3.º como espírito. O centro da vida se desloca dos sentidos à mente, à alma, subindo para formas de existência cada vez mais evoluídas. Na luta pela vida, cada um resolve o problema fundamental da sua defesa de uma maneira diferente: o 1.º biótipo apenas com a força bruta dos seus recursos físicos, ignaro de qualquer idéia de justiça; o 2.º conhece o que é justiça, mas a usa só para defender os seus interesses, em seu proveito; o 3.º biótipo não julga e se entrega completamente à única verdadeira justiça, a de Deus, usando como arma para a sua defesa somente a sua obediência a Lei.

Deste modo vão progredindo juntas a sensibilização do ser, a sua inteligência, a sua capacidade de entender, e assim evitando-se erros e as correlativas dores. Claro que assim muda o tipo de vida que pertence ao ser, o que quer dizer que a evolução transforma também o tipo de destino que espera o indivíduo em seu nascimento. Ele tem que lutar, para subir de um plano biológico para outro, mas uma vez atingido um mais adiantado, isto automaticamente implica o desenvolver-se da sua existência, conforme um tipo de destino diferente dos precedentes, proporcionado ao novo nível em que o indivíduo, de acordo com o seu amadurecimento, mereceu nascer.

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A conclusão a que até aqui chegamos é que há três tipos fundamentais de destino, conforme a natureza do indivíduo, representada pelo nível evolutivo em que ele se encontra. Ora, quando conhecemos esse fato básico, eis que já possuímos os elementos para estabelecer qual é o tipo de destino que a cada indivíduo caberá na sua vida. Quando, através do estudo das nossas qualidades, podemos individuar qual é o nosso tipo biológico, eis que já podemos determinar nas suas linhas gerais qual será o nosso destino. Estabelecido esse primeiro ponto de nossa pesquisa, continuemos aprofundando cada vez com maior exatidão a observação do fenômeno.

O que dissemos até aqui a este respeito, não nos oferece senão uma visão esquemática básica para nos orientarmos na pesquisa e enfrentarmos a solução do problema. O nosso objetivo é o de chegar a estabelecer um método que nos ensine como conhecer o destino particular de cada um e prever o seu desenvolvimento. Isto se torna para nós possível pelo fato de que agora estamos orientados dentro do plano do universo, pela solução, oferecida em nossos livros, de tantos problemas, que religiões, filosofias e ciência ainda não te solveram. Os menores problemas particulares não podem ser resolvidos. senão depois de ser atingida a solução dos problemas universais, que nos orienta na pesquisa. O nosso mundo procura soluções isoladas, mas problema nenhum é solúvel isoladamente, num universo onde tudo é ligado e comunicante, regido por uma só lei, fundamentalmente unitária.

Ora, um fato que é preciso levar em conta é que na prática os mencionados três níveis não se apresentam como três compartimentos estanques, absolutamente separados um do outro, mas como três fases sucessivas e contíguas do mesmo processo evolutivo, que todos estão percorrendo. É fácil assim compreender que o passado transposto esteja superado, mas não completamente destruído, podendo voltar a sobreviver como um retorno ou lembrança daquele passado. Aparece, então, na superfície da consciência o que foi escrito nas camadas inferiores da personalidade, ao longo do caminho do seu desenvolvimento.

Pode ocorrer que um indivíduo não viva somente num dado nível biológico, sujeito ao correlativo tipo de destino, mas viva numa fase de transição de um nível para outro, na qual lutam para se concretizar impulsos que provêm dos planos inferiores, juntamente com outros dos superiores. O que prevalece depende da medida em que o passado foi superado. Lembremo-nos de que se trata de um fenômeno de evolução, o que representa um continuo transformismo. Eis como pode nascer a luta entre o velho, que não quer morrer, e o novo que, por lei de evolução, quer e deve nascer. Velho e novo significam diversas qualidades da personalidade e correlativos impulsos que dirigem a sua conduta. É preciso, então, para estabelecer qual será o destino do indivíduo, conhecer que o tipo biológico nele prevalece por ser mais poderoso, e que por isso vencerá na luta. Para prever, então, qual será o destino de um homem, é necessário antes de tudo saber em que medida a sua personalidade contem as características de cada um dos três níveis. No 1.º caso, o ser vive todo no plano instintivo animal e não há luta entre impulsos diferentes. É no 2.º caso, que é o da maioria humana, que surge o problema de saber até que ponto o animal do 1.º caso está ainda vivo no homem, e até que ponto apareceu o novo biótipo deste 2.º caso. No 3.º caso, que é excepcional na terra, o problema é saber até que ponto no homem sobrevive o biótipo do 1.º e do 2.º caso.

Pode assim acontecer que o indivíduo não ocupe somente um nível de evolução. Como já frisamos no capítulo precedente, a estrutura do eu, mais que por um ponto, pode ser apresentada por uma linha, que vai avançando ao longo do caminho da evolução. O seu ponto mais adiantado é representado pela cabeça que vai explorando o futuro para subir. O seu ponto mais atrasado é como uma cauda que vai morrendo abandonada no passado. Com a evolução, a vida se desenvolve do lado da cabeça, ficando superada do lado da cauda. Então a luta pode nascer entre a cabeça, que exige todas as energias vitais para subir, e a cauda que quer ficar dona do terreno que foi o seu. Tudo isto acontece dentro da amplitude evolutiva que o eu abrange. A conduta do ser depende das qualidades que possui e dos impulsos que nele prevalecem. Quando o indivíduo deixa prevalecer os do lado da cauda, que representa o mal, então está voltando para trás, involuindo para o AS. Quando o indivíduo deixa prevalecer os impulsos do lado da cabeça, que representa o bem, então está progredindo para a frente, evoluindo para o S.

Eis que este estudo de psicanálise nos leva ao terreno da ética, da qual ela não se pode separar. Podemos agora entender o que significa a luta que as religiões ensinam contra os instintos inferiores para superar a animalidade, substituindo-a por outros hábitos e qualidades. Explica-se como possam ter valor e função biológica a renúncia pelo ideal, os impulsos de sublimação, conceitos que de outro modo aparecem biologicamente destrutivo, e por isso condenáveis.

É coisa comum em nosso mundo, que religiões e leis, se querem sei entendidas, têm de se moldar. De fato, a ética atual se baseia na premissa de que, face ao tipo dominante, elas se lhe proporcionam e se lhe adaptam quando querem educá-lo para a superação dos seus instintos animais, para que prevaleçam impulsos mais elevados Realmente as religiões partem dos pressupostos do pecador, que elas têm de converter do mal para o bem. Existem, porém, apesar de excepcionalmente, biótipos mais adiantados, para os quais é lógico que essa ética resulta absurda, porque com a sua forma mental de outro nível biológico, eles concebem tudo de forma diferente, já tendo realizado aquelas superações que se exigem deles. Mas pode existir também o caso do biótipo do 3.º nível, que tem de lutar para que nele não prevaleçam os impulsos do 1.º e 2.º nível, no lugar dos do 3.º. Isto pode acontecer no caso em que o indivíduo entrou há pouco em novo plano de existência e até esta altura ainda não consegue levantar todo o seu eu das suas precedentes moradas inferiores.

Uma ética completa deveria ser construída por níveis diferentes para ser proporcionada à natureza e exigências da personalidade de cada um desses biótipos. É lógico que a ética que dirige o trabalho de construção biológica, que pertence a um involuído, não pode ser igual à ética que pertence a um evoluído. O que o nosso mundo mais procura é menor trabalho possível, de modo que tudo está feito em série, para as maiorias e a minoria abandonada a si mesma está fora da série. Pode assim se verificar luta entre éticas de nível diferente, cada uma feita para dirigir um biótipo diferente, sendo os mais evoluídos expulsos da regra geral, que vale para a maioria. É lógico, então, que tais indivíduos se isolem e afastem das massas, que seguem outro caminho, que não é o seu. Podem assim acontecer que os melhores sejam condenados como inimigos das religiões, enquanto talvez eles sejam os poucos que possuem a verdadeira espiritualidade.

De tudo isto podemos concluir quão complexo seja o problema da ética e como ele não possa ser resolvido isoladamente, mas apenas em função da solução de muitos outros problemas, como até aqui os temos estudados.

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Observemos agora mais de perto como se desenvolve, dentro da amplitude que o eu abrange, essa luta entre planos evolutivos diferentes. Assunto importante, porque nesta luta se manifesta a técnica com a qual se realiza o processo da evolução através do amadurecimento do eu. A este respeito já vimos que ele se pode encontrar em três posições: 1) nível inferior, 2) nível médio, 3) nível superior. Mas elas não são senão três degraus sucessivos do seu contínuo caminho evolutivo. Para o homem, o ponto de partida é a posição 1), isto é, a da animalidade; o ponto de chegada é a posição 3), isto é, a da espiritualidade. A evolução consiste nesse deslocamento de um nível para o outro. O processo da evolução humana se realiza na amplitude representada por estes três níveis. É por. isso que os estamos estudando, porque eles nos mostram o caminho do desenvolvimento da personalidade humana.

O homem do nível inferior é um primitivo sem conhecimento, sem saber o que faz, porque é dirigido por alguns elementares instintos animalescos, aos quais ele obedece cegamente. Em nosso mundo ele constitui as raças inferiores, as camadas mais baixas da sociedade, mais do que economicamente, baixas intelectual e moralmente, de modo que tal tipo de involuído se pode encontrar também no meio dos ricos e seletos da nossa sociedade. Mas qualquer que seja sua posição exterior, tal biótipo fica sempre na lama que é o seu ambiente natural, do qual gosta, sem desejo de sair dele. Fica satisfeito na terra, seu paraíso, no qual encontra egoísmo, ferocidade, guerras, roubos, crimes, tudo do que ele precisa para desabafar os seus instintos.

 Um trabalho superior, dirigido para a espiritualidade, inicia-se no nível médio, que é aquele onde está situada a nossa civilização. Aqui o homem começa a sair do pântano da animalidade, adquire e desenvolve a inteligência, funda religiões e filosofias, descobre a arte, a organização social, a ciência. Mas o nível precedente não está ainda esquecido e definitivamente superado. Ele sobrevive no subconsciente, dele volta para dominar, e a inteligência, que deveria ser usada para se libertar, é colocada a seu serviço. As religiões, em nome do ideal de espiritualidade do 3.º nível, pregam a libertação e a superação da animalidade do 1.º nível, mas para quem pertence a um plano biológico inferior é muito difícil entender a verdade de um plano superior. Então tal biótipo a aceita só na aparência, e na realidade a pratica como uma forma de hipocrisia. A verdade em que de fato o indivíduo acredita é a do seu nível de vida, aquela que ele traz impressa na sua personalidade e que representa a sua forma mental, com a qual ele tudo concebe, entende e julga. Um verdadeiro trabalho de superação por sublimação, que afasta o ser da animalidade, se faz no 3.º nível. Em nosso mundo aparecem as funções do consciente racional, mas estas são usadas em favor do subconsciente animal. Existem grandes descobertas científicas, testemunhos do valor da inteligência humana, mas o uso delas é para fazer guerras. matar destruir obedecendo aos instintos animalidade. Isto nos mostra que no fundo o homem moderno possui a forma mental da fera na floresta, da qual difere pelo fato de que, para satisfazer os seus impulsos primitivos, usa métodos inteligentes, que não são mais os dos dentes e garras, mas as armas atômicas. O homem chegou ao conhecimento que a ciência lhe oferece, não para superar os instintos e se orientar diferentemente, mas para os satisfazer com meios mais poderosos. Assim o eu não dominou o inferior, mas se colocou às suas ordens. O poder da inteligência não foi conquistado para subjugar o subconsciente, mas para servi-lo. Ela não foi utilizada para subir, mas se tornou astúcia dirigida para as satisfações materiais, vantagens imediatas egoístas; o que devia ser um meio de ascensão, se prostituiu a serviço do que é inferior.

O verdadeiro trabalho construtivo da espiritualidade inicia-se no nível superior. O eu superior começa a afirmar-se com a sua luta contra os impulsos do subconsciente, para atingir a definitiva superação da animalidade. Neste plano o homem não coloca a sua inteligência à serviço da sua parte inferior, mas da superior. O eu não se alia à sua parte mais baixa, mas à mais alta. A balança, que no nível médio se inclinava incerta ora para um lado, ora para outro, em tentativas nem sempre bem sucedidas na luta contra o subconsciente, agora pende para o lado do superconsciente. Se dividirmos a amplitude da personalidade humana em três terços ou níveis, vemos que no 1.º caso o que domina é o 1.º nível; no 2.º caso começa a dominar o 2.º, mas em favor do 1.º e ao mesmo tempo realizando tentativas para subir para o 3.º nível; no 3.º caso é o 3.º nível que se alia ao 2.º para dominar e superar definitivamente o 1.º nível. Assim, é neste 3.º caso que se realiza a grande batalha da sublimação, que leva o ser para o plano biológico superior. Certo que, ao homem que já atingiu o 3.º nível e que pela sua natureza é levado a tomar a sério o ideal vivendo-o de fato, deve parecer uma coisa muito estranha o utilizar-se o ideal para cobrir e ajudar o esforço de satisfazer os impulsos inferiores. Mas de outro lado como pode o homem do 2.º nível entender o que está acima da sua natureza, para além dos limites da sua forma mental? E como se pode exigir que ele tome a sério para vivê-lo o que não pode entender? Há distância entre um plano de vida e o outro, e o ser tem que percorrê-la toda, se quer atingir o superior. Mas, apesar de tudo, é a este 3.º nível que terá de chegar a humanidade de amanhã, é o homem desse tipo superior que dominará no futuro.

Chegado a este ponto da sua evolução, o ser não gasta mais o seu tempo e energias na luta contra o seu semelhante. A inteligência mostrou ao homem qual é o verdadeiro sentido da vida, o seu objetivo, o caminho a percorrer. Então, tempo e energia serão inteligentemente usados, não mais, nas vás tentativas de um cego, mas no trabalho que dá mais fruto como conquista de felicidade o trabalho da superação da animalidade e do aperfeiçoamento moral. A ética e as religiões se tornarão problema de atualidade, vital, biologicamente fundamental, porque terão de cumprir inteligentemente a tarefa de dirigir a evolução da humanidade.

Há uma diferença básica entre a religiosidade do homem do 2.º nível e a do homem do 3.º nível. O primeiro, obedecendo à lei do seu nível, concebendo tudo em forma de luta, segue o método gregário, pelo qual uma doutrina ou religião é antes de tudo um grupo ao qual ele pertence e que representa o castelo dentro do qual ele mora, castelo armado contra todos os outros. Na religião desse biótipo, qualquer que ela seja, está implícita a condenação de todas as outras, constituídas por grupos humanos rivais e inimigos. Claro que os ideais das religiões, produto do 3.º nível, descendo ao nosso mundo não podem modificar as leis biológicas aqui vigorantes, que são as do 2.º nível.

A religião do biótipo do 3.º nível é imparcial e universal, não um partido de grupo. Pela sua forma mental completamente diferente, ele não se pode sujeitar à maneira de conceber e agir das massas. Expulso do terreno delas, ao qual ele não se pôde adaptar, porque a sua fase de trabalho evolutivo é diferente, o homem do 3.º nível permanece no mundo um isolado e condenado, envolvido num tremendo esforço ascensional, pelo qual este pioneiro do porvir está procurando sozinho aproximar-se sempre mais de Deus. Tal indivíduo não pode ficar preso a formas diferentes que dividem as religiões, enquanto para ele a coisa mais importante não é a forma. mas a substância, que pouco interessa ao nosso mundo. Ele sabe que a verdade de Deus está acima da luta, e que a do homem não pode ser atingida por absolutismos, porque é relativa e progressiva.

Mas o nosso mundo está constituído pelo homem do 2.º nível, que pensa com a sua forma mental e dela não pode sair. Ora, para quem vive nesse nível, o homem do 3.º tipo é irreligioso, causa de escândalo porque está fora do rebanho, condenado por isso. Mas para o homem do 3.º tipo, o do 2.º é um ser movido, sem conhecimento, pelos instintos do subconsciente. E quando o 3º tipo se queixa, porque a religiosidade não é o que deveria ser para ele, os representantes das religiões entendem sua queixa como condenação do que é santo, como falta de religiosidade, como suspeita rivalidade de interesses religiosos, porque tal é a forma mental dos homens do 2.º tipo, que pronunciam esse julgamento. Tudo tem que existir em função da capacidade de entender de um dado biótipo. Também as religiões têm que obedecer à psicologia das massas, se adaptar às formas que ela exige, se querem penetrar em nosso mundo. O 2.º tipo precisa de imagens que impressionem os seus sentidos, o 3.º tipo, ao invés disso, se ocupa em modificar a sua vida a cada momento. O 2.º tipo procura seguidores para potencializar o seu grupo. O 3.º tipo deixa tais proselitismos fanáticos e, sem impor à força a sua fé aos outros, procura melhorar-se a si mesmo e à sua conduta para diante deles.

O homem do 3.º nível é um desterrado em nosso mundo, um expulso pela maioria que faz tudo só para si, obedecendo às leis do seu plano biológico. Tal expulsão é lógica, porque esse homem está saindo das fileiras da gente comum, está se deslocando com o seu centro vital para outro plano de vida, ainda desconhecido para os outros, não pode então funcionar como eles, em série, dentro do rebanho comum. O 3.º tipo está definitivamente superando e abandonando ao seu passado o que pertence ao nível inferior dos instintos, que representa o mundo dos outros, e está acordando no nível do superconsciente. Dura é a vida desse tipo, mas é verdade também que ele está ocupado no maior trabalho da evolução, o de fazer nascer um novo ser. E ele tem de realizar tal esforço no meio da luta pela vida, que na terra não cessa. Então, neste caso o indivíduo tem de sustentar duas lutas, uma interior e outra exterior, uma para chegar à superação das suas velhas formas de vida, e outra para não ser esmagado pela agressividade dos outros. O mundo só pratica a segunda luta, a dirigida contra o próximo, não se interessando pela primeira. Encontra-se por isso em posição de menos trabalho, o que é vantagem. Mas o mundo não realiza o esforço da superação e por isso continua ficando no seu nível evolutivo, o que representa a sua maior condenação, porque sabemos que dores ele contém. Tudo isto está claro para quem entendeu a verdadeira finalidade da vida, isto é, a conquista de valores superiores, para avançar no caminho que vai do AS ao S.

Enquanto o mundo muito pouco entendeu de tudo isto, o biótipo do 3.º nível está todo empenhado no esforço da superação. A sua personalidade contém e domina os três momentos ou posições evolutivas do eu: a inferior (instintos), a média (razão), a superior (conhecimento). Neste caso o que dirige a vida é o espírito, dominando os outros dois momentos do eu com um regime de disciplina estabelecida conforme os princípios superiores da Lei de Deus. Ao impulso para o gozo substitui-se o hábito da virtude. Cabe ao eu superior tomar a iniciativa das novas criações biológicas, arrastando para a frente a sua parte inferior, ignara e preguiçosa, amarrada aos velhos caminhos que já experimentou e refratária a enfrentar o perigo dos novos. O eu inferior sabe que a sua parte constitui a parte sólida onde se funda o edifício da vida e repele a aventura que lhe oferece o fascínio do desprendimento, que arrebata para o alto o eu superior. Eis dois destinos: o do homem do mundo e o do super-homem, pequeno destino cinzento o primeiro, satisfeito por engordar e proliferar; destino trágico e sublime o segundo, cheio de lutas e dores, mas com vitórias imensas.

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Finalmente, que quer esse homem superior? Ele é um ser que procura a libertação. Entramos em nosso mundo pela porta do prazer, para sermos condenados a uma vida de ilusões e dores, dominados ao mesmo tempo por uma imensa fome de felicidade. O homem procura, usando qualquer meio e vai ao encontro dela furtando-a, violando a Lei de Deus. Mas, quanto mais alegria ele acredita encontrar, tanto mais se afunda na insatisfação e sofrimento. Isto parece um jogo cruel e traidor, mas corresponde à lógica e justiça O ser quereria voltar de graça a possuir a perdida felicidade do S, mas para atingi-la é preciso remir-se, percorrendo com fadiga, subindo, o caminho fácil que foi percorrido na descida, com a involução depois da revolta. Por isso estamos amarrados à cruz. Entretanto almejamos o contrário. Então, acreditando ser astutos, quando somos só ignorantes, escolhemos o caminho mais agradável, o da descida, assim, ao invés de subir para o S, que é felicidade, descemos para o AS que é sofrimento. Esta é a trágica posição do homem do 2.º nível, a de um esfomeado que não pode comer, porque não pode encontrar outro alimento senão aquele que ele próprio envenenou com a sua revolta. E para o desenvenenar não há outro meio senão o caminho da cruz. Eis o drama da vida humana: desesperadamente almejar felicidade, mas ser condenado ao sofrimento, e não ser possível sair dele, senão por um doloroso esforço de superação.

O homem do 3.º nível entendeu tudo isto, sabe que há um caminho pelo qual é possível atingir a libertação, enfrenta-o corajosamente, e vai subindo e afastando-se do nosso mundo, nele deixando o homem do 2.º nível mergulhado no sofrimento, em vão procurando realizar o paraíso no seu inferno terrestre. Outra solução não há. Parece coisa bem estranha que quem procura gozar encontre o contrário, e que a alegria não se possa encontrar senão através do sofrimento. Tudo isto parece um truque diabólico, um emborcamento para enganar. Mas é assim exatamente porque se trata de endireitar o que estava emborcado, por culpa do próprio ser na sua revolta contra à Lei de Deus. É por isso que a escola da vida é uma dura lição cheia de dores. Ela representa o caminho difícil da subida, que deve corrigir o outro fácil, às avessas, percorrido na descida. A vida é um jogo sutil, completamente diferente daquele que parece ser. O nosso destino, seja nos seus princípios universais, seja no caso particular de cada indivíduo, contém nem mais nem menos o que nos pertence, conforme o nosso merecimento e justiça.

Que lei justa e tremenda há atrás das aparências! E o homem acredita que seja possível com a sua força ou astúcia eximir-se dela! Cada um escolhe o seu caminho: quem é gozador, quem é avarento, apegado à posse dos bens materiais, quem é orgulhoso, ávido de poder e glória, quem é agressivo, guerreiro, quem segue a vereda do sacrifício e do amor. Assim cada um constrói o seu destino, em que se realiza a prestação de contas. Em geral isto significa ter de pagar a violação da lei com o próprio sofrimento. O princípio do egoísmo, do separatismo, do antagonismo e luta, do qual derivam tantos dos nossos males e que constitui a base de nosso tormento, não foi criado por Deus, que não podia agir contra si mesmo, mas é conseqüência da revolta, e por isso é justo que paguemos. Mas o homem do 2.º tipo está fechado na forma mental do seu nível, de modo que não pode entender esta conversa.

Para ele a sabedoria não consiste em ter compreendido a imensa vantagem de obedecer à Lei de Deus, mas em saber enganá-la, para chegar à satisfação de obedecer aos instintos inferiores. A inteligência serve para esconder a verdadeira cara sob uma mascara que permite parecer por fora pessoa nobre e digna de respeito. Para ele o homem sincero que acredita no ideal é um simplório que não conhece a vida e que por isso é a coisa mais procurada, porque é fácil enganá-lo e explorá-lo. Assim a inteligência deve ser usada para a própria vantagem e para dominar os outros, e é louco quem a usa para o seu  prejuízo e proveito do próximo.

Mas eis que, acima das sagacidades humanas, o que de fato manda e acaba vencendo é a justiça da Lei. O homem do 2.º tipo obtém a sua vantagem imediata de vencer no seu mundo e com essa satisfação recebe a retribuição do seu trabalho, momentânea que acaba com a vida. Na vida seguinte ele se encontra no mesmo nível evolutivo, sem ter ganho um passo. O homem do 3.º tipo é um desterrado e vencido neste mundo, onde não encontra senão luta e sofrimentos, está envolvido num duro trabalho de evolução que o outro biótipo não conhece, mas constrói o seu futuro. Na sua vida seguinte ele receberá o fruto desse, trabalho, porque se encontrará num mundo de nível evolutivo mais adiantado, usufruindo bens valiosos.

O princípio da evolução é que, todo esforço que o ser executa para subir, está compensado por um proporcionado melhoramento das condições da sua existência. Esta é a justiça da Lei. Ora, se a vida é mais fácil para o homem do 2.º tipo, porque não se fadiga com trabalhos em sentido evolutivo, é verdade também que ele fica estacionário no mesmo nível e, do ponto de vista do seu progresso, a sua existência é inútil, representando perante o maior objetivo desta, um tempo perdido. Disso o indivíduo é avisado pela sua intima insatisfação, por uma sensação de vazio e cansaço de tudo, que o persegue e que para ele desvaloriza as coisas mais preciosas. E regra geral: o que possuímos vale em proporção do esforço que nos custou o fato de o procurar. Eis então que o bem-estar no ócio tira todo valor à vida do indivíduo, que não pode deixar de sentir que não vale nada, porque não sabe fazer e não quer fazer nada. E assim que  pela dita lei de justiça, as  que parecem ser as melhores posições sociais, as que a maioria inveja, muitas vezes são as piores. porque roídas por dentro por essa desvalorização do indivíduo, devida à sua vida inútil no bem-estar.

Ora, o homem do 3.º tipo, que luta desesperadamente contra o mundo para superar a sua própria inferioridade animal, não pode deixar de ter consciência do seu valor, que lhe testemunham as conquistas que ele está realizando. No meio dos seus sofrimentos sabe que se está deslocando para o alto, realizando o maior impulso da vida, ao qual os preguiçosos se recusam, e que é do crescimento. O teclado que tal biótipo pode tocar é muito mais extenso que o comum, porque seu centro vital se está deslocando de baixo para cima e permanece ativo em vários níveis. Assim, ele possui uma personalidade rica, até ao ponto que ela na luta entre o subconsciente e o superconsciente, pode parecer múltipla e, para o psicoanalista superficial, até patológica. No meio dessa guerra para a superação, a personalidade fica fervendo numa contínua febre, que não aparece em quem está tranqüilamente adormecido, radicado no 2.º nível. Febre pode significar complexos, crises de adaptação, desequilíbrio de impulsos e movimentos, conduta contraditória, que parecem sintomas de doença, quando representam crises de crescimento. Outro é o modelo biológico do homem do 2.º nível, equilibrado, mas numa posição estática, ignaro de tais dinamismos revolucionários e criadores. É lógico que, olhado do ponto de vista de tal biótipo, o homem do 3.º nível seja condenado.

Sobre estas bases se levanta o destino de cada um, já marcado conforme sua natureza. O mundo parece inconscientemente se aperceber da desvantagem do seu método de vida, e parece que esteja com ciúme de quem quer superá-lo. Por isso se lhe agarra para paralisá-lo, parando-o na sua subida. Então, num mundo onde o que importa é parecer virtuoso, mais do que sê-lo, o homem superior acaba sendo o mais censurado, porque não trabalha para esconder os seus defeitos, mas para destruí-los, assim ajudando, contra si próprio, a agressividade dos outros. Deste modo, ao invés de se cobrir, se descobre; ao invés de se desculpar, se acusa. O mundo se rebela contra tal emborcamento dos seus métodos, que soam como uma condenação para ele. Assim o homem do 3.º nível será sempre condenado pelo mundo como um escândalo, um mau exemplo, um perigoso descobridor de mentiras, porque ele incomoda estragando o fruto da trabalhosa adaptação milenária dos ideais às exigências da animalidade humana.

Eis o destino do homem superior no mundo: o de ser tratado como louco, condenado como rebelde, esmagado como merece um fraco vencido, enquanto é um vencedor da maior batalha da vida, a da evolução. Eis o conteúdo biológico dessa sabedoria que o mundo chama de loucura dos santos. Eis a explicação racional, o sentido cientificamente positivo da vida, que parece estranha, de tais indivíduos que as religiões veneram, mas sem nos esclarecer a seu respeito com estes conceitos, dos quais o homem moderno precisa para ficar convencido.

Assim se desenvolve nos seus vários níveis, o complexo jogo da vida e de nosso destino.

 

PRINCÍPIOS DE UMA NOVA ÉTICA é o 20° volume de toda a Obra. Estamos, desse modo, nos aproximando do encerramento dessa gigantesca Obra composta de duas partes, uma italiana (escrita na Itália) e outra brasileira (escrita no Brasil). Um conjunto com cerca de 10.000 páginas. Por isso, a fase atual de desenvolvimento do pensamento central da Obra não é mais aquela das teorias gerais, orientadoras do conhecimento a respeito do imenso problema do universo, mas a fase de estudo das consequências das afirmações gerais e das suas aplicações no terreno prático, para iluminar ainda mais quem queira viver, honestamente, compreendendo o pensamento das leis que dirigem a existência de todos os seres.

Neste ponto, o leitor amadurecido poderá ver a importância desses últimos livros conclusivos, escritos para nos dirigir na ação, com inteligência, evitando erros que depois, pelos princípios de equilíbrio e justiça da Lei, é inevitável ter de pagar, duramente, cada um às suas custas, com a própria dor.

Em nossa Obra, não queremos impor uma conduta ou outra. Cada um permanece livre e ninguém pode constrangê-lo. Podemos, apenas, orientá-lo, mostran-do-lhe o melhor caminho para evitar a reação da Lei, a dor, aviso saudável para não voltar ao erro; mostrando o que fatalmente acontece depois, como consequência, se escolhermos não viver de acordo com a Lei, mas contra ela. O destino de cada um está nas suas próprias mãos e não das de quem só pensa e escreve e com isso pode explicar, pelas leis que dirigem a vida, o que acontece ao indivíduo como consequência de seu livre comportamento. Para um ser inteligente, que sabe raciocinar, uma demonstração plausível basta. Mais do que isto o autor deste volume não pode fazer. Se o leitor não entender bem, vai ler outro livro, escrito por ele mesmo, com a própria dor, no seu destino. É bom, todavia, que lhe seja oferecida uma explicação preliminar, um tipo de aviso, para conhecer o funcionamento das leis que regulam a sua vida e lhe seja possível evitar o sofrimento.

As teorias gerais estão contidas nos volumes básicos da Obra: A Grande Síntese, Deus e Universo, O Sistema e Queda e Salvação. Eles oferecem um sistema científico-filosófico-ético-teológico completo. Os pormenores estão nos outros livros, explicando e ampliando os aspectos particulares. Nos básicos estão as demonstrações que nos autorizam a chegar às conclusões contidas no presente volume. Isto prova que não chegamos a elas levianamente, fantasiando, mas amadurecidos pelo pensamento desenvolvido em milhares de páginas, que constituem a premissa positiva das conclusões.