Princípios de Uma Nova Ética

Já observamos qual é a posição assumida pelo Cristianismo perante o problema do sexo. Não estamos tomando posição contra ele, censurando as suas condenações. O que mais nos interessa é explicar os fatos. Sabemos que tudo o que existe tem a sua razão de ser, de outro modo não existiria. As condenações também se explicam, e, do seu ponto de vista, se justificam. O Cristianismo teve de iniciar uma luta titânica contra a animalidade humana, bem enraizada poderosa, luta realizada em tempos muito mais ferozes do que os nossos, quando a forma mental, os pontos de referência e os problemas eram diferentes dos atuais. Mas também o Cristianismo não pôde deixar de ser arrastado pelo progresso que tudo renova. Não lhe é possível,  porém, correr demais, para não se destacar das massas lentíssimas nos seus movimentos evolutivos. Por isso não pode operar transformações rápidas demais, nem tornar-se pioneiro do novo, o que poderia parecer revolução, e gerar desordem entre seus adeptos.

O  Cristianismo teve o grande mérito de lançar em tal ambiente, apesar de que às vezes em forma feroz (como naquele ambiente era necessário), o conceito da superação da animalidade para a espiritualidade, da sublimação da matéria, conceito que está de pleno acordo com as leis da evolução, mesmo sendo este fato desconhecido, porque desconhecidas eram estas leis biológicas. O que dominava no mundo era o ideal pagão do bem-estar terreno, baseado no direito do mais forte e nos gozos materiais.  Foi contra essa concepção, que era a concepção dominante, que o Cristianismo teve de impor um ideal que está nos antípodas daquele, do qual representa um emborcamento completo de valores.

O    Cristianismo teve de fazer o esforço do primeiro impulso de quebrar o anel de ferro do egocentrismo dos involuídos. É lógico que, no seu desejo de realizar esse objetivo, o homem fosse levado a usar o seu velho e habitual método da luta, nele enraizado, que sabia ser necessário para alcançar qualquer conquista. E a luta automaticamente o levou para a agressividade. Mas é lógico que ele não podia de uma só vez tornar-se outro biótipo e, apesar do ideal, não podia deixar de se revelar cidadão do AS.

Como seria possível, no início, o Cristianismo usar o método da bondade evangélica, como um ser levado por instinto à desobediência e à luta, pronto a abusar de qualquer liberdade que lhe fosse concedida? Nos níveis inferiores de existência aparece o ideal da ordem, qualidade do S, mas não há outro meio para a efetivar, senão o de uma imposição à força, que é qualidade do AS. Quando toda a humanidade está mergulhada num nível inferior de evolução, a pregação de uma teoria nova não pode assumir o poder de subverter as leis biológicas, deslocando de uma só vez os seres daquele seu plano de vida para outro mais adiantado. Isto pode ser apenas o resultado final do processo, e não o que o Cristianismo podia fazer no seu início, mas o que ele poderá realizar no fim do seu trabalho terrestre. Por isso o evangelho é uma meta longínqua, ainda a atingir, e não uma forma de vida atual. No presente estágio de evolução da humanidade vigoram leis bem diferentes do que as da biologia muito mais evoluída do Evangelho e o Cristianismo, para iniciar o trabalho lento de civilizar o homem de maneira a que ele chegasse até lá, não teve outra possibilidade a não ser a de assumir, ele também, os métodos da ética de luta, os únicos compreensíveis naquele ambiente. Foi assim que o Cristianismo, para sobreviver, teve de se adaptar às condições do mundo, usando os métodos deste, impondo-se à força como regra de disciplina, antes de tudo organizando-se na Terra como hierarquia de lutadores, providos de recursos materiais e de armas espirituais.

Este foi o mundo contra o qual o Cristianismo teve que se impor. Era o mundo corrupto do Império romano na sua decadência. A sexofobia nasceu como reação a esse estado de fato, em que o amor era só sexo, abuso e vício, isto é, um meio destruidor da civilização. Dentro dos impulsos que se revelaram no Cristianismo, era a própria vida que estava presente, reagindo para se salvar dessa queda. Foi por isso que se tornou sexófoba, para negar aquele tipo de amor que a levava para a decadência, e em compensação canalizando as energias para o dinamismo da luta salvadora. Foi assim que no Cristianismo apareceu o princípio da agressividade, o princípio daquele mundo inferior, não mais dirigido para a guerra e a conquista material, mas ficando de pé aquele instinto fundamental, como que torcido porque utilizado para outro tipo de luta e dirigido para outra conquista: a dos valores espirituais. Se hoje, em posição histórica diferente, essa ética sexófoba nos pode aparecer como uma contradição e um anacronismo, ela se explica, porém, e se justifica, porque representava a única forma que a luta, para superar a animalidade, podia tomar naquele momento e condições de ambiente Da ascensão espiritual apareceu, assim, antes de tudo o seu lado negativo, o da destruição do velho e não, o da construção do novo. O que se impunha de imediato era afastar o inimigo presente, representado pela animalidade vigorante, pela licenciosidade, à qual se contrapunha o ideal da sublimação espiritual, que representava o impulso novo que a vida procurava ressurgir da decadência. Além disso, a natureza não costuma realizar inovações rápidas, mas proceder por continuidade.

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A posição biológica e as exigências históricas atuais são diferentes, outros são os nossos problemas. Hoje, a psicanálise revelou-nos os desvios e doenças mentais que o método repressivo da agressividade sexófoba pode produzir. Pelas diferentes reações de um organismo, em sentido psíquico e nervoso, mais sensibilizado, hoje pode ser prejudicial o que uma vez foi útil e necessário. A ética sexófoba cometeu o erro de separar e contrapor o espírito à carne, fazendo de dois amigos que deveriam colaborar, dois inimigos que lutam para se destruir um ao outro, quando eles a final são dois elementos que em nosso ser humano, que é um, têm de viver juntos e, por isso, entre eles deveria existir harmonia e equilíbrio, e não antagonismo própria de rivais. Alma e corpo formam, pelo menos enquanto vivemos na Terra, um composto único, um conjunto matéria-espírito. É impossível dividi-los, perigoso contrapô-los. Assim, neste terreno, o Cristianismo, sem querer, seguiu uma concepção errada e patológica da vida, que pode representar um verdadeiro desvio dos princípios de bondade e amor, que nele são fundamentais. Desta luta entre os dois, espírito e corpo, às vezes o primeiro, em vez de sublimar saiu estropiado, de modo que um método, que no início parecia ótimo, se revelou contraproducente, porque acabava levando para resultados opostos aos previstos.

O amor tem que ser reabilitado deste estado de condenação como pecado ao estado de divina força criadora e defensora da vida, de impulso positivo de bem, dirigido para o S, que pretende vencer o impulso negativo do ódio, da morte, do mal, dirigido para o AS. É necessário compreender que o amor está do lado de Deus, porque representa as forças amigas da vida, e não do lado do anti-Deus, isto é, das forças inimigas da vida. É necessário desenvolver, não suprimir o amor. Qualquer agressão e tentativa de destruição neste sentido significa ir de encontro à vida, e não ao seu encontro. No castos, inertes, e nas pedras não há impulso algum para sublimar; os frígidos não possuem o calor do amor que é indispensável para se tornarem santos. Com o Cristianismo apareceu na Terra o ideal magnífico da sublimação espiritual, mas ele se enredou na luta contra a animalidade, que em vez de ser vencida por ele, muitas vezes acabou vencendo-o, dele nos oferecendo a forma torcida, que vemos hoje vigorando. O trabalho hoje a fazer seria o de endireitá-la novamente, e esta poderia ser a obra de um Cristianismo mais inteligente e iluminado, para que não fique inutilizado e desperdiçado um ideal que representa um dos maiores valores construtivos no terreno da evolução.

O caminho para Deus está na harmonização e nao nos atritos da luta, porque a vida evolui da desordem para a ordem, e não ao contrário. Por isso é necessário não contrapor, mas harmonizar espírito e corpo, moralidade e sexo, misticismo e sentidos, ideal e instintos. Permanece o fato de que a experiência nos ensinou que a concepção sexófoba não levou a humanidade para a sublimação no espírito, mas para uma cisão da natureza humana, em vez de uma fusão entre os seus dois pólos opostos. A influência das religiões (deveria ser sempre benéfica, em favor da vida, deveria ser sempre construtora, e não destruidora. A santidade não pode ser regra, mas só exceção. Alguns ideais de perfeição não podem descer ao seio da maioria a não ser desviados e corrompidos. Foi o homem que abaixou tudo ao seu nível e que, com a sua inferioridade, transformou o amor em luta de egoísmos, em culpa e mal.

A humanidade dos séculos passados, muito mais grosseira, ignorava os nossos problemas psicológicos, tal qual Freud no-los revelou, demonstrando como nascem tantos complexos que alteram a estrutura da personalidade. A humanidade atual está se tornando neurótica, e precisando, assim, duma ética menos grosseira e mais inteligente, menos agressiva e mais benévola. A civilização é uma forma de ascensão em benefício da vida, de modo que não pode deixar de tudo suavizar com o tempo.

Não se pode menosprezar a função do sexo como elemento equilibrador na formação e na saúde psíquica da personalidade. Um dos aspectos fundamentais do valor da obra de Freud é o ter demonstrado a grande importância da influência do sexo na vida individual e social, é a intuição clara do prejuízo que a harmonia do indivíduo e a da coletividade recebeu com a moral sexófoba. Essa se reduziu por fim num desabafo de instintos de agressividade contra a mais poderosa, benéfica e cristã das forças da vida, que é o amor, com todas as conseqüências morais, sociais e patológicas, daí decorrentes. Freud num escrito seu declara: "Todo o nervosismo do nosso mundo contemporâneo é devido à ação deletéria da repressão sexual, típica da nossa civilização". O tema central da doutrina freudiana é de fato: "a origem sexual de quase todas as neuroses".

Estamos acostumados à junção dos dois princípios, o da sublimação espiritual com o da condenação da sexualidade. E por isso que temos medo de destruir os maiores valores ideais da nossa civilização, representados pela espiritualidade, se acabarmos com a sexofobia vigorante. A experiência milenária do Cristianismo fixou essa conexão de idéias no subconsciente das massas. Para corrigi-las seria necessário submetê-las a um trabalho de psicanálise às avessas. No estado atual parece que não seja possível conceber a evolução espiritual senão na forma agressiva de autoperseguição e de autodestruição, o que representa a premissa natural das neuroses sadistas e masoquistas. É lógico que as conseqüências estão reservadas para os fracos que acreditaram e obedeceram. Isto não aconteceu com os rebeldes que se souberam defender, não tomando a sério a religião, que desenvolveram a sua inteligência para se conseguirem evadir. Estes são os que se chamam fortes, os que pensam com a sua cabeça e não com a dos outros. Mas se eles foram condenados e expulsos, dentro das religiões ficaram as ovelhas meigas, o rebanho dos fracos que nelas se refugiam em busca de defesa na luta, o grupo, não dos vencedores do espírito, mas dos vencidos da vida, doentes na alma atormentada, porque uma sublimação espiritual mal interpretada não gerou outro amor maior, mas o destruiu. Não é fácil intervir nas leis da vida. É necessário vê-las com inteligência positiva, e conhecer o que elas são de fato na realidade biológica, e não baseando-se apenas em abstrações filosóficas e teológicas.

Parece que a civilização cristã trouxe consigo o desenvolvimento de uma quantidade de formas psico-patológicas individuais e sociais. Freud descobriu a chaga que havia debaixo das aparências, com o que o homem moderno procura cobrir essa sua falência. Mas infelizmente Freud limitou-se a ficar no terreno curativo, e não entrou no das reformas sociais, porque isto lhe teria sido muito mais difícil, pela resistência que a própria humanidade opõe a toda reforma de idéias que se encontrem profundamente assimiladas no subconsciente.

As ideologias políticas, os diversos sistemas em que se divide o mundo, em substância são só formas diversas do mesmo egoísmo e espírito de agressividade para chegar ao domínio em favor de algumas classes escolhidas. O que pode, para a grande maioria, suavizar e embelezar a vida é o amor: mas um amor bem compreendido, anti-egoísta, sem perseguição nem mentiras, um amor que aplaca os ódios, abranda a agressividade, acalma as invejas, a cobiça, o orgulho, tranqüiliza e serena a alma, gerando paz onde há guerra, alegria onde há dor, ordem e harmonia no indivíduo como na sociedade.

Ordem, harmonia, eis para onde progride a evolução. Neste sentido é necessário canalizar as nossas energias, não lançando um contra o outro, os dois pólos do nosso ser, alma e corpo, mas, como já mencionamos, harmonizando-os, para que concordem e colaborem no objetivo único, que é o da vida, o da ascensão espiritual. A humanidade precisa de se equilibrar na harmonia, por dentro e por fora, isto é, o indivíduo consigo mesmo, e na sociedade cada um com os seus semelhantes. Não é o alto nível econômico e o padrão de vida, nem é o poder político, ou a supremacia bélica, ou o domínio do mundo, que podem sanar o mal, mas só um amor que nos encha de simpatia para com todos os seres e nos devolva a perdida alegria de viver. A inimizade em que vivemos, de todos contra todos, tudo divide, seca, destrói. Precisamos de bondade que tudo una, alimente, construa. Só isso poderá dar um alívio à nossa adoentada alma moderna. À atual tendência do mundo para concentrar tudo na conquista bélica ou na superioridade econômica, igual princípio de luta ao qual obedecem hoje as duas maiores potências do mundo, o Brasil poderá contrapor uma contribuição sua e única no planeta, a da bondade e do amor. A Europa já viu bastante os resultados da aplicação das teorias do herói da força, o super-homem de Nietzsche. A nova mensagem é a de viver em paz e amizade com todas as criaturas do universo.

Hoje, o trabalho que mais interessa à vida, não é o de se esmagar uns aos outros para selecionar o mais forte, mas o de fazer da humanidade um corpo coletivo unitário, como sociedade orgânica. Quando se construiu a sociedade orgânica das células que constituem o corpo humano, esse resultado não foi atingido inventando-se sistemas ideológicos e com métodos organizadores exteriores, mas antes transformando a natureza dos elementos singulares componentes para torná-los aptos a viver, com todas as qualidades necessárias, não mais num estado de desordem como indivíduos separados, mas no estado orgânico, em que as células se encontram no corpo humano. Da mesma forma, ao estado orgânico da sociedade humana, mais que com sistemas exteriores políticos e sociais, se poderá chegar pelo amadurecimento evolutivo dos indivíduos considerados isoladamente, que desenvolverão as qualidades necessárias para que saibam viver, funcionando como elementos constitutivos de uma sociedade orgânica. O ser humano terá de se educar nessas novas formas de coexistência, mais adiantadas do que as atuais. Isto não é desprezo ou condenação do estado presente. É  um convite para civilizar-se que se faz, porque representa uma imensa vantagem para todos.

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Os problemas estão todos juntos, ecoam e repercutem uns nos outros. Por isso a solução do problema do sexo significa também ajudar a solucionar o problema da convivência social. Tudo depende de nós, do que somos e queremos ser, porque com isso nos colocamos numa ou noutra posição diferente no plano orgânico do universo, com todas as suas conseqüências. As tristes condições de nossa vida atual dependem de nossa primeira concepção errada. Vivemos em estado de cisão e de revolta. À posição inicial se seguem todas as outras, porque da revolta nasce a reação corretora da parte da Lei, o estado de culpa, isto é, de desordem, que é o que gera o sofrimento. Esses elementos estão encadeados um ao outro, e todos juntos constróem o nosso mundo inferior. O termo final, que é o sofrimento, existe em função da revolta, que é o termo inicial. Mas se tirarmos o primeiro termo e o substituirmos com o seu oposto, o mesmo acontecerá também aos outros termos que o seguem, encadeados até à conclusão. Assim, se suprimirmos a desobediência à ordem, desaparecerá a reação da Lei, a culpa, o estado de desordem e o sofrimento; e, se no lugar daquele primeiro termo colocarmos a obediência à ordem, aparecerá a ajuda da parte da Lei, a nossa posição certa num estado de ordem, e a respectiva felicidade. Tudo isto é automático e lógico. O sofrimento está ligado à revolta e respectiva desordem, a felicidade, à obediência e respectiva ordem. Na obediência, o sofrimento tem de desaparecer, porque então não tem mais razão para existir.

Quanto mais o ser evolui e se civiliza, tanto mais se harmoniza com os ditames da Lei, e com isso se liberta da dor. Quanto mais a parte inferior do ser humano se liberta da sua animalidade e se torna menos besta, tanto mais se torna possível aproximá-la e uni-la à parte superior que é o espírito, porque então elas estão mais próximas uma da outra. Só nos níveis inferiores de existência, o corpo é inimigo do espírito, num ambiente em que tudo é luta e rivalidade. Subindo, porém, na escala evolutiva, tudo se harmoniza e irmana, o corpo não é mais uma fera rebelde que é necessário subjugar, uma prisão em que está encadeada uma alma revoltada, mas é uma casa para morar e trabalhar, é o templo onde vive a divina centelha dum espírito evoluído. Então, perde todo o sentido, e se desfaz automaticamente com a evolução o assalto do Cristianismo sexófobo contra o corpo.

Na sua essência o amor é um impulso próprio do S, porque possui as qualidades deste, sendo que a sua função é a de unificar e gerar. O que pertence ao AS é pelo contrário o impulso oposto, o egocentrismo separatista e destruidor. Quanto mais o ser sobe na escala evolutiva, tanto mais esquece o seu individualismo de ser que se isola no todo, para se fundir em unidade com todos os outros seres, não mais lutando contra eles, mas colaborando com eles. Nisto aparece evidente a passagem dos métodos do AS para os do S. Em nosso mundo, que está situado ao longo do caminho evolutivo, é lógico que não prevaleça nem um nem outro dos dois métodos, mas que os encontremos funcionando juntos e, pelo fato de que eles estão em oposição muitas vezes se encontram em luta para se eliminar reciprocamente. É assim que em nosso mundo o princípio altruísta do amor (S) se encontra unido ao princípio egoísta da posse (AS), e o amor costuma ser antes de tudo a procura da nossa satisfação, apesar de acompanhada pelo sacrifício dos outros, e não a sua satisfação com o nosso sacrifício. Assim, como a luz é oposta às trevas, o princípio da união (S), luta contra o da divisão (AS), e ao contrário. E reconhecemos que é perfeito o amor que tem as do S, como é condenável o que tem as qualidades do AS. Tanto mais é superior o amor, quanto mais se afasta da animalidade, perdendo esta característica.

Na terra , podemos encontrar em cada ato nosso, misturados, o método do S e o do AS, e a todo o momento estamos oscilando em nossa escolha entre o bem e o mal, isto é, entre o caminho que vai para o S e o que vai para o AS. É assim que no nível humano encontramos um amor corrompido pelo egoísmo, a pureza ideal do S manchada pela imundície do AS, e o divino princípio de vida torna-se até pecado. Mas todas as vezes que isto acontecer, é porque o AS prevalece sobre o S. O que encontramos na realidade é luta entre amor e egoísmo, entre egoísmo e amor. O mais forte vence, conforme a posição do indivíduo ao longo da escala da evolução, revelando a sua natureza. O amor liga em sentido positivo, o egoísmo liga em sentido negativo, porque o amor só quer dar, enquanto o egoísmo só quer receber, tirando dos outros. Há assim quem do amor faz negócio e quem por amor fica espoliado. Porém. quem enriquece explorando, se aprisiona; e quem empobrece dando, se liberta. Isto porque o primeiro involui para o AS, e o segundo evolui para o S. O primeiro se enriquece também  com as qualidades que o isolam da vida, e cada vez mais o abismam no reino da prepotência e da mentira; o segundo ganha qualidades que o unificam com a vida, e cada vez mais o levantam para o reino da bondade e sinceridade. A evolução está em eliminar o egoísmo do amor, sempre que for possível, para nossa própria vantagem.

Se este não é o problema atual, mas que poderá ser resolvido apenas no futuro, tal eliminação ainda não foi realizada e, se a inferioridade de instintos é o que se entende hoje com a palavra amor, as reformas sexófilas não podem ser efetuadas no estado atual porque, se o amor que hoje prevalece tem a forma de animalidade, sexofilia seria proteção dos seus baixos instintos que seria involução e não evolução. Esta nossa conversa se reduz a uma explicação dos fatos e a um programa para as gerações futuras que, por terem conquistado outras qualidades e instintos, tornarão possível viver-se uma concepção de amor mais adiantada, como liberdade e espiritualização, a qual sem prejuízo não pode hoje ser entregue às mãos do homem atual. Numa sociedade que não é um organismo de seres conscientes, mas um amontoado de elementos inimigos, não pode haver lugar para o que se poderia chamar de um super-amor. A triste conclusão é esta: enquanto o amor continuar sendo concebido e praticado, sobretudo, como inferior função animal, estão despertos os mais baixos instintos de egoísmo e de luta e a ética da atitude sexófoba do Cristianismo continuará, para não gerar maiores prejuízos.

Quando o moralista invoca o amor como tranquilizador e elemento de pacificação social, ele se refere a esse tipo de amor bondoso e inteligente. Mas foi neste mesmo sentido que lutou o Cristianismo que, com a sua sexofobia, se revoltou contra o que no amor é inferior instinto de egoísmo e animalidade, e não contra o que nele é superior anelo de bondade e espiritualidade. O Cristianismo procurou ser uma escola de superação, de evolução da vida. Mas, que podia ele realizar, quando a maioria, seja dos dirigentes, seja dos dirigidos, era constituída de involuídos? É lógico que abaixaram tudo ao seu nível, o da animalidade, tudo concebendo, inclusive o amor, com a respectiva forma mental. A culpa não é dos princípios do Cristianismo, mas do estado de involução do biótipo pelo qual ele teve de ser representado na Terra. Foi assim que, entregue nas mãos do involuído, o ideal da sublimação, ao invés de se realizar como impulso para o alto, acabou desviado e torcido para baixo, transformando-se em perseguição sexófoba. Nem podia acontecer de outra maneira, num mundo regido pelo princípio e forma mental da luta, que tudo domina e transforma em agressividade. E de fato esta é a psicologia vigente, que aparece nas mais diferentes manifestações humanas, seja fascismo, nazismo, comunismo, negocismo Norte-Americano, Cristianismo etc., porque é sempre o mesmo homem que, de formas diferentes faz as mesmas coisas.

Se é verdade que a tentativa do Cristianismo de transformar o mundo não alcançou os resultados esperados, e que grande parte do esforço acabou na forma torcida das psicoses modernas, é verdade também que a tentativa foi feita, foi lançada a idéia, e o mundo chegou a possuir o conceito da sublimação espiritual, que corresponde ao outro biologicamente verdadeiro de superação por evolução. Esta concepção pode transformar o amor animal num super-amor mais rico, espiritual e nobre. É lógico que os primitivos da Idade Média entendessem a espiritualização somente como podia entender a sua forma mental, conforme o tipo desta, isto é, no seu aspecto negativo e destruidor, porque tais são as qualidades dos atrasados do AS, e não como um processo positivo e construtor, qualidades que só os evoluídos do S possuem. Mas um esforço para subir foi feito. Sem ele, a humanidade teria ficado apodrecendo por falta do impulso que essa idéia nova lançou no mundo. Em alguns seres mais adiantados, aptos a compreender, aquela chama de dinamismo referveu e realizou o ideal cristão. Nasceram assim os santos, as estrelas que iluminaram os tenebrosos céus da Idade Média.

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Para concluir, a posição do problema nas condições atuais da evolução humana se poderia resumir nos seguintes pontos: 1) Respeito ao Cristianismo, reconhecendo o valor biológico da idéia da superação pela sublimação espiritual, sem por isso se cair na perseguição sexófoba. 2) Abolição da sexofobia, pelas conseqüências deformatórias que ela pode produzir na personalidade, como neuroses, desvios, complexos etc., assumindo-se uma atitude mais racional e compreensiva em face da sexualidade. 3) Uma reta educação sexual para construir uma consciência eugênica, necessária para dirigir inteligentemente os instintos eróticos e as suas conseqüências, aceitando-se toda a responsabilidade da criação dos filhos no caso de geração, sempre prevista e voluntária por meio do controle, somente admissível amanhã, nas mãos de indivíduos conscientes. 4) A direção do fenômeno biológico no planeta, confiada ao homem, sobretudo na parte que lhe pertence, para procriar em proporção aos recursos disponíveis, ao número, às condições de ambiente, evitando-se necessidades, fome, guerras, invasões, revoluções etc., como convém numa sociedade civilizada que chegou ao estado orgânico, em que nada pode haver de imprevisto.

Poderiam deste modo ser atingidos os seguintes resultados: 1) Defesa do ideal cristão da pureza, como bem entendida sublimação de instintos. 2) Defesa do normal e sadio desenvolvimento da sexualidade, tratamento e supressão das causas dos respectivos desvios. 3) Defesa dos filhos, com uma geração não mais casual e irresponsável, mas conscientemente controlada, com o conseqüente e absoluto sentido de responsabilidade. 4) Defesa da humanidade, sob constante ameaça, dos perigosos flagelos: necessidade de tudo, fome, guerras etc.

Assim, evitando o atrito que os destrói, poderão ser salvos os maiores valores da vida, ao mesmo tempo prevendo-se e evitando-se tantas calamidades que hoje afligem o mundo. Deixamos que os fatos nos levassem a estas conclusões. Se não as aceitarmos, eis as conseqüências: 1) Perda dos valores espirituais do ideal cristão, necessário para conseguir a superação, que é fenômeno que interessa de perto à vida, no seu ponto central, que é a evolução. 2) Triunfo de uma sexualidade-pecado, comprimida e torcida em todos os seus desvios patológicos, fonte de distúrbios e sofrimentos, em vez de uma sexualidade sadia, fonte de alegria e bem-estar. 3) Em muitos casos, falta de qualquer garantia de defesa dos filhos, fruto de uma geração descontrolada e irresponsável, conseqüência de  desafogo apenas de instintos. Fica de pé o prejuízo individual e social dos filhos ilegítimos e da mulher desonrada e abandonada, com todas as suas conseqüências. 4) Nenhuma defesa contra o controle por meio da morte, com que a natureza equilibra o aumento demográfico devido à falta de controle dos nascimentos. A humanidade ficará, então, em poder de métodos ferozes e desapiedados, quais a fome as guerras etc., com que a vida tudo corrige e compensa, eliminando com a destruição a superpopulação.

É lógico que o homem tem a liberdade de continuar com o sistema atual; ele não está livre, porém, de fugir das respectivas conseqüências. Não é possível deixar de levar em conta as leis da vida. O impulso do sexo não pode ser esquecido nem destruído, porque ele quer atingir os seus objetivos fundamentais. Então, os pontos fixos preestabelecidos dos quais não é possível fugir, são os seguintes: 1) Se destruirmos os valores espirituais, involuiremos sempre mais para a animalidade. Com isso pagaremos o erro. 2) Se não dermos aos instintos um desabafo natural, certo, eles partirão para outro, cego e errado, gerando complexos neuróticos e outras alterações da personalidade. Com isso pagaremos o erro. 3) Se não gerarmos em função das nossas boas qualidades de saúde os meios de subsistência, criaremos filhos doentes ou necessitados. Das conseqüências do egoísmo ou da leviandade ninguém poderá fugir. Com isso pagaremos o erro. 4) Se a humanidade não aprender a gerar inteligentemente, em proporção aos recursos e espaço disponíveis, a natureza providenciará, matando os que são de mais. Com isso pagaremos o erro.

Se tudo isto, pela imaturidade humana, não é hoje realizável, terá fatalmente de se realizar amanhã, porque teremos de sofrer até aprendermos, e a dor nos ensinará. A evolução não pode deixar de guiar o mundo para uma nova ordem dirigida pela inteligência do homem, mas de tipo diferente do atual: um homem consciente da sua posição dentro da Lei de Deus e do funcionamento orgânico do universo; um homem que, por isso, não se movimenta mais ao acaso, cegamente, por tentativas, movido só pelos seus instintos, errando e pagando a cada passo, mas atua inteligentemente, com conhecimento e honestidade  Se quisermos acabar com o sofrimento, é necessário começar a encaminhar-nos desde agora, para chegar até lá.  Devemos cessar qualquer impulso de agressividade, sempre destruidora em todos os campos. É preciso conciliar os opostos, levando em conta a realidade freudiana e os ideais das religiões; isto sem cair em excesso, nem de um lado nem de outro. isto é, nem na repressão sexófoba com a idéia de sexo-pecado, nem na licenciosidade e corrupção com o descontrolado gozo, fim em si mesmo. Temos que levar em conta as necessidades da alma, juntamente com as do corpo, e ao contrário, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. É urgente educar o ser humano para que, tornando-se mais consciente, seja possível confiar-lhe liberdades das quais hoje não pode gozar, porque tudo tem de ser proibido a quem de tudo está pronto a abusar. É necessário civilizar o homem no terreno religioso como no erótico, para que ele encontre o equilíbrio do seu eu entre os dois pólos opostos, o da animalidade a superar e o da espiritualidade a conquistar. Por isso se deve chamar a colaborar, em vez de condená-lo e sufocá-lo, este grande impulso vital que é o amor. Nunca destruir, mas tudo respeitar, enobrecer, dignificar, dirigindo-o para o bem: assim devemos utilizar tudo, inclusive o amor, para chegarmos à sublimação cristã.

A estas soluções a natureza humana involuída está pronta a cada passo a opor resistência, a imaturidade paralisa qualquer aperfeiçoamento. A maior dificuldade a vencer é a atávica forma mental do homem, que construiu uma ética sexual em seu benefício, pelo direito do mais forte. É lógico que a moral do sexo reservada para a mulher seja completamente diferente, porque se trata de um ser fraco. Se neste nível biológico a lei que vigora é a da força e do egoísmo, se tudo para o macho vai bem, para que preocupar-se com os outros? É ridículo pensar que num tal mundo os fracos possam exigir direitos. Naquela forma mental não há razão pela qual o mais forte renuncie à posição de favor que, naquele plano, lhe pertence de direito. Se isto representa prejuízo para os outros, a culpa é deles; e eles que aprendam a defender-se. Se não sabem fazê-lo com a força, façam-no com a mentira, dando prova de possuir pelo menos a astúcia, que neste nível representa o valor da inteligência. Tudo é lógico, porque o princípio é que qualquer vantagem só pertence a quem sabe conquistá-la, assim demonstrando que possui capacidade para vencer. Quando escolhemos um princípio, ficamos presos as suas conseqüências e não podemos fugir da sua lógica desapiedada, até ao fundo.

Enquanto isso, o nosso mundo caminha, sobrecarregado de injustiças e sofrimentos, como um tapete triunfal de vítimas, sob os pés do vencedor. E o amor, o maior impulso salvador da vida, está reduzido a uma fonte de lutas e aflições. A solução está na canalização das energias deste grande impulso no sentido da evolução e não da perseguição, está no refinamento, que faz do amor, além das funções reprodutivas, um meio de regeneração espiritual e de pacificação social. Lembremos que a natureza nada destrói, mas tudo transforma. A evolução exige que o amor se torne alguma coisa que é mais do que função de fecundação animal, ou satisfação do instinto; é tarefa consciente de cooperação criadora junto da obra divina da vida, para vencer a morte e continuar sempre subindo. Tudo, por evolução, tem que se espiritualizar, e o amor tornando-se prodígio de sintonização de almas que, em comunhão mística com a essência criadora do universo, no mistério da gênese, cumprem, com a descida duma alma que se encarna, a função religiosa da ascensão para Deus. Elementos vitais, sem os quais, hoje, pode existir o mais regular dos casamentos, elementos, entretanto, que são fundamentais e sem os quais o matrimônio, apesar de formalmente perfeito, é apenas uma acasalamento físico-animal. A evolução nos levará a uma nova concepção do amor, que se torna instrumento de superação do egocentrismo separatista, um amor que nos mostra que nós somos complementares com todos os outros seres e todos necessários uns aos outros, em mútua interdependência, quais elementos da mesma vida, incluídos na mesma unidade, fundidos no mesmo organismo universal, no seio e em função do qual todos existimos.

O  que mais almejamos é que a humanidade amadureça para chegar a compreender tudo isto, de modo que possa gozar das liberdades que, hoje, ainda não pode receber sem prejuízo. A esperança para o futuro é o advento de uma humanidade mais consciente dos seus deveres, para que ela possa fruir de maiores direitos; mais inteligente para compreender a vantagem de viver na ordem, sem a ameaça contínua da força, das cadeias, do inferno. Conhecemos as leis da vida e sabemos que ela não poderá deixar de passar do seu estado de guerra-destruição ao seu estado de amor-construção  O progresso vai do mal que semeia ruína, para o bem que semeia paz e felicidade. Terá de ser superada a forma mental do super-homem da força, do dominador esmagador de vítimas. A Alemanha pagou com a sua ruína o ter acreditado nas nefastas teorias nietzschianas.

O amor representa o elemento unificador que pode corrigir e superar o egoísmo separatista, sendo o único meio para quebrar esse estado de divisionismo caótico feito de rivalidades. Se destruirmos o amor, não resta senão egoísmo. Quem não irradia para os outros, concentra somente para si. Eis o orgulho, a cobiça de posse e de domínio. O caminho do amor é o da evolução, que vai para a unificação do S. O caminho do egoísmo é o da involução, que vai para o separatismo do AS. Cabe ao primeiro corrigir o segundo. Eis o grande valor do amor: o de ser instrumento da evolução que nos leva para o S, nossa salvação.

*   *   *

Se nestes capítulos falamos de sexofobia, foi porque o fenômeno do amor tem uma significação profunda, universal. Dele depende a solução do problema da convivência social. Ele é um dos mais vivos e urgentes a resolver, porque da sua solução depende a pacífica colaboração entre os semelhantes, acabando-se os atritos da luta, de que nascem os sofrimentos. Ninguém pode viver sozinho Quanto mais a humanidade evolui, tanto mais se organiza e funde os seus elementos. A coexistência se consolida cada vez mais e torna-se problema vital em todos os campos: política, indústria, religião, família, cultura; trabalho etc. O problema das relações sociais é um .problema de reciprocidade e compreensão. Neste sentido a máquina social, hoje, funciona muito mal, fato que custa lutas, resistências, duras reações, choques e dores para todos. Com isso pagamos, como é justo, o nosso erro. Constituiria uma vantagem incrível tornarmo-nos suficientemente inteligentes de maneira a sabermos evitar o erro, que tão caro nos custa.

Isto é ciência psicológica, uma arte a aprender, com as suas regras, técnica, dificuldades. Como nas células do corpo humano, também cada indivíduo lança o fruto do seu funcionamento na panela comum do corpo coletivo do ambiente social, do qual cada elemento faz parte e recebe a resposta correspondente. São motivos psicológicos, impulsos mentais que circulam de indivíduo para indivíduo, numa troca de ações e reações, de atrações e repulsões, de simpatia e antipatia, que continuam ecoando de um para outro, de alma para alma, até que acabam voltando à fonte, como fechados dentro dos limites dum espaço curvo. O fato é que a humanidade é um todo psicológico, dentro do qual fica tudo o que nele nasce. Ali as vibrações nervosas circulam como o sangue no corpo humano. Para a vida de todos e de cada um, é necessário que o sangue circule. Conforme as células sejam sadias ou doentes, ele traz saúde ou sofrimento. Mas é sempre preciso comunicar, seguindo os caminhos do grande corpo coletivo; e para comunicar têm que ficar abertos os canais de circulação. A bondade os abre, a agressividade os fecha. Fazer o bem é vital, fazer o mal é antivital para todos. No primeiro caso despertaremos confiança e todas as portas se abrirão. No segundo caso despertaremos desconfiança e todas as portas se fecharão. Então, o próximo será constrangido a colocar-se em posição ataque e defesa, ele se movimentará no sentido da luta e, uma vez movido o primeiro passo neste sentido, esse impulso negativo continuará repercutindo, tudo destruindo no seu caminho, até que um oposto impulso de amor o vença, o neutralize, o apague, a ele se substituindo com a sua positividade salvadora. Assim cada um vai enviando mensagem e esperando resposta Mas como é possível receber boas respostas de más mensagens? Todos gostariam de receber confiança e amor, mas às vezes estão transmitindo o oposto Seria necessário levar em conta o que temos de pensar a respeito dos outros, para receber dos outros o que quereríamos que eles pensassem a nosso respeito.

Como podemos receber bondade, se semeamos veneno? A ilusão de nossa ignorância está em acreditar que o mal possa ser lançado só contra os outros, sem que ele repercuta em nós. O egocentrismo faz-nos acreditar no absurdo de que vivemos divididos, quando vivemos todos juntos; que o dano dos outros possa ficar isolado do nosso, quando na vida nada há que possa existir separado. Assim, o sofrimento vai-se espalhando, atingindo todos. Para sofrer menos é necessário ser melhor e menos egoísta. O mal não se pode endireitar com o mal, a violência com a violência, mas somente com o bem e a bondade. Perseguir, inclusive em nome de Deus, não melhora, mas piora. Perante quem diz "eu" para se impor, todos instintivamente são levados a contrapor o seu "eu". Eis a luta. Logo que na Terra surge uma força, eis que aparece a sua contra-força, que a equilibra. Mas, se ao invés de dizermos "eu", dizemos “nós” então também os outros são levados a dizer "nós". Eis a concórdia e a paz. A mansidão nos outros nos tira a vontade de lutar, porque não mais motivo para isso. Há leis psicológicas que os inteligentes podem usar melhor ainda do que se faz quando se usa uma técnica de box. Logo que se aproxima um amigo, todos abrem os braços, logo que se aproxima um inimigo, todos se armam. Não há vantagem cuja conquista possa compensar a destruição material e espiritual, gerada pela luta, semeada pela guerra.

A primeira fonte de tantos sofrimentos nossos está nessa forma mental atrasada, feita de egocentrismo separatista, de agressividade. A culpa fundamental é a falta de amor, que é como falta de luz, de ar, de calor, necessários para viver. É esta falta que nos faz afundar no negativismo, o que significa nas trevas, na incompreensão, na luta, no erro, no sofrimento. Este é o ponto final de todo o processo. A culpa não é de Deus, não é que a Sua obra seja mal feita. A culpa é do ser que não se sabe movimentar inteligentemente dentro das regras com que a Lei tudo regula. Pregar, explicar, não hasta para renovar o homem. Não há outro remédio senão continuar sofrendo, até que a dor abra a mente, a fim de que se compreenda qual é o verdadeiro caminho, e o homem aprenda à sua custa a lição, renove a sua forma mental e acabe conduzindo-se melhor. Nós só podemos fazer votos que isto aconteça o mais rapidamente possível. De uma coisa não há dúvida: enquanto o homem não aprenda a arte da conduta certa, terá de viver num estado de inimizade entre indivíduos, como entre povos, de luta contínua, de insegurança universal, de perigos e sofrimentos sem fim.

FIM

 

Observamos os princípios gerais da ética do sexo e o caso da atitude sexófoba do Cristianismo, no seu significado e conseqüências. Procuremos agora observar a ética do sexo como problema atual, qual ele se nos apresenta no tempo presente. Coloquemos os elementos na mesa do laboratório da vida, imparcialmente, não para lutar e condenar, mas para compreender e resolver.

Os elementos do problema são os seguintes: 1) De um lado, o Cristianismo, com a sua ética sexófoba, cujas origens e razões explicamos, concepção que levamos em conta porque é a que domina a nossa civilização cristã ocidental. 2) Do outro lado, a realidade biológica, com as suas leis vigorantes no atual nível de evolução atingido pela raça humana. Essa realidade é o que de fato prevalece na vida e dirige o indivíduo por meio dos instintos, para que sejam atingidas as necessárias finalidades biológicas. Temos de levar em conta ambos estes elementos, com os respectivos impulsos, objetivos e resultados.

Ora, no tempo presente acontece que, enquanto a atitude sexófoba do Cristianismo fica inalterada, no terreno da vida se verificaram fatos novos devidos à ciência moderna. Antes de tudo o homem civilizado acabou por encontrar-se em condições biológicas diferentes das velhas. É um fato controlado na domesticação dos animais que, quando eles se encontram protegidos e, por isso, sem necessidade de concentrar as suas energias na luta para a defesa e a alimentação que agora lhes está assegurada, então, como já mencionamos, essas energias se canalizam, na direção do sentido erótico. Diminuem a ferocidade e a agressividade, enquanto aumenta o impulso do sexo. Assim, é, porque a natureza quer utilizar cada bem-estar supérfluo, logo este apareça, não para o gozo do indivíduo mas a multiplicação da raça, o que lhe interessa muito mais.  Assim a vida abaixa o nível de existência em favor do número.

O homem civilizado encontra-se nessas condições. Pela segurança atingida no que diz respeito à defesa e à alimentação, diminuíram nele os instintos de ferocidade e agressividade e, como já vimos, pela complementaridade dos dois caminhos (ou agressividade ou sexo), as energias se dirigiram no sentido do sexo, que levou vantagem sobre os outros impulsos. Com isso a natureza quer utilizar o melhoramento atingido no nível de existência, em favor da multiplicação da vida.

Mas outro fator importante concorreu em favor do número. O progresso da medicina diminuiu a mortalidade porque, com as suas descobertas e novos métodos, estabeleceu, como noutro lugar mencionamos, um verdadeiro controle da morte, com a conseqüência automática de um notável e sempre maior aumento de população, pelo fato que se lhe não seguiu um proporcionado controle dos nascimentos. Isto tanto mais se verifica quanto a vigorante ética sexófoba do Cristianismo condena o correspondente controle dos nascimentos, que é o único meio que poderia equilibrar o controle da morte.

O resultado final de tudo isto é um aumento vertiginoso de população. A conseqüência é que a humanidade se está encaminhando para um desastroso estado de fome  O progresso técnico para aumentar a produção alimentar não consegue preencher a falta devida ao consumo de tão grande multidão de seres humanos. Disto se segue que hoje, dois terços da humanidade, especialmente na Ásia sobretudo para os 400 milhões de Indianos, recebem uma alimentação inferior à que recebia no passado, menos do que é necessário para viver.

Os fenômenos estão ligados um ao outro como os anéis de uma cadeia. Acontece assim que, quando de um lado, graças à civilização, a vida se torna mais segura, porque defesa e alimentação estão garantidas, e por isso os impulsos eróticos se intensificam e a geração aumenta, ao mesmo tempo de outro lado a ciência médica, diminuindo as mortes, aumenta a sobrevivência. A conseqüência inevitável é que a produção dos recursos alimentares não corresponde em proporção ao aumento da população. O homem não regula o fenômeno com um controle dos nascimentos, e deixa tudo nas mãos da natureza que intervém com as suas leis desapiedadas e automaticamente resolve o problema. Ela, então, age por dois caminhos: 1) ou mata a superpopulação com a fome; 2) ou, acordando os instintos da agressividade (adormecidos pelo bem-estar produto da civilização) desencadeia guerras, invasões, destruições, mortes, que estabelecem de novo o equilíbrio. Dois caminhos que levam igualmente à morte. À natureza pouco interessa a vida e o bem-estar do indivíduo. A sua finalidade é a seleção de uma raça de fortes e, por isso, o sacrifica.

O raciocínio da vida não é o do homem. Neste ciclo de impulsos e elementos há como que um princípio de determinismo do qual ninguém pode sair. O instinto de alguns insetos, quais as abelhas e as formigas, mais evoluído que o do homem, como já mencionamos, os impulsiona a gerar só em proporção aos recursos alimentares que eles possuem, aumentando o número da sua população apenas na base da alimentação armazenada. O homem não sabe fazer isto, porque ainda não atingiu o estado orgânico dessas sociedades; vive, pelo contrário, numa fase atrasada de egocentrismo individualista, coletivamente caótico. Mas, pela lei de evolução, o homem também terá um dia de atingir o estado orgânico de verdadeira sociedade. Ele terá então de tomar as rédeas dos fenômenos biológicos, dos quais depende a sua vida, sobretudo do fenômeno biológico fundamental que é o da geração. Este não será mais abandonado ao acaso, ao poder da ferocidade das leis da natureza, mas será regulado inteligentemente em relação às possibilidades de sustento dos que vão nascendo, para não ocorrer o crime de gerar seres, destinados, não à vida, mas à morte.

Esta é a realidade biológica, da qual ninguém pode fugir. Não se pode resolver o caso sem a levar em conta, baseando-se sobre princípios teóricos, que nada têm a ver com ela. E a solução que nos oferece a natureza, os seus meios de controle demográfico, vimos agora que são terríveis. A ética sexual do Cristianismo, condenando o controle, resolve o problema otimamente em teoria, com a castidade ou continência, mas o faz em visível contraste com as condições atuais de intensificação do impulso sexual, devida, como vimos, à civilização. Que acontece então? Acontece que a natureza continua por sua conta, rindo-se das proibições da ética sexófoba, a impulsionar o ser para um maior erotismo, dirigido para a multiplicação descontrolada da vida, com todas as suas conseqüências. O choque então é inevitável entre aquela ética repressiva e os impulsos da natureza.    Como resolve o caso o indivíduo que está no meio desse choque? Qual as duas exigências sairá vitoriosa? É possível que o mundo não deva ter outra escolha a não ser a de continuar com o velho método das escapatórias e da mentira, fazendo todos às escondidas o que todos publicamente proíbem e condenam? Mas esta não é solução e, se por falta de melhor pode parecer remédio momentâneo, ele não é nem inteligente, nem vantajosa, nem honesta.

Este método só é eficaz nas aparências da superfície, deixa todo o mal amadurecer na profundidade, porque na realidade provoca grande prejuízo por todos os desvios, substitutos e resultados torcidos que gera. Isto pelo fato de que um impulso não pode ser destruído: quanto mais o comprimimos, tanto mais força ele adquire e se descarrega em direção errada, se não lhe for possível descarregar na direção certa. Se quisermos, então, pelo menos encaminhar-nos para uma verdadeira solução, racional, e não produto instintivo do subconsciente, é mister encarar corajosamente o problema, como é, com toda a sinceridade. Não sustentamos uma teoria contra a outra, nem aconselhamos uma ou outra solução. Só deixamos falar os fatos, escutando o que eles nos dizem e observando as suas conseqüências.

*   *   *

Perguntamos: o uso do sexo tem significado e valor apenas como função reprodutiva, como máquina de multiplicação de seres, ou tem também outro significado e valor, como função neuro-psíquica, que ele cumpre em benefício do indivíduo? Se ignoramos ou perseguimos esta segunda função de sexo, como não cair nas conseqüências desastrosas da neurose patológica, fazendo surgir por toda a parte complexos psicológicos, como de fato se encontram em nosso mundo, praticamente como produto dos erros da civilização, quais a psicanálise de Freud nos revelou? Eis o perigo da ética sexófoba.

E perguntamos ainda: qual é o significado e valor biológico dessa ética? É ela um produto racional, que merece consideração, ou é somente um produto descontrolado do subconsciente, que aparece em obediência aos instintos de agressividade, que acima observamos? Então, como pode considerar-se um dever moral, a sustentação de uma ética substancialmente baseada no princípio da agressão? Não são porventura os instintos de agressividade os mais atrasados, os que, para nos civilizarmos, é mais urgente superar e eliminar? Então, sustentar a ética sexófoba do Cristianismo, desviada não por culpa dele, mas dos homens que não entenderam, pode significar sustentar não o progresso que a religião quer, mas uma involução em métodos inferiores, que são os da ferocidade agressiva. Sustentar tal ética pode significar ir de encontro ao objetivo maior do Cristianismo, ou seja a paz e o amor fraternal, e não a luta que a sexofobia gera acordando os instintos de agressividade. Eis que essa atitude sexófoba, produto patológico dos homens da tenebrosa Idade Média, e não do Cristianismo originário, o levou a um torcido sentido de sublimação que representa o seu emborcamento.  Neste caso, não foi o espírito cristão o que venceu, mas o instinto do homem. Prevaleceu assim a ética de agressividade do involuído, em retrocesso e biologicamente contraproducente, porque negativa em relação ao objetivo fundamental da vida como das religiões, que é o do progresso evolutivo.

O fenômeno da riqueza e geração, quando não é dirigido pelo homem, mas deixado nas mãos da natureza, é um fenômeno de produção e consumo, de desenvolvimento automático. Para sair da necessidade, o homem, com o seu esforço, gera a abundância. Instalado no bem-estar ele procura satisfação na mulher. Segue-se a geração dos filhos. Mas, quanto maior é essa geração, tanto mais desaparece a abundância, porque aumentam os consumidores. O número abaixa o padrão de vida e destrói o bem-estar. A mulher cumpriu a sua função e o homem regressa à necessidade, para cumprir a sua função que é a de criar novamente, com o seu esforço, a abundância, e assim por diante, cumprindo-se em rodízio as duas funções complementares. A necessidade acorda o dinamismo masculino. Então as energias do homem dirigem-se no sentido da agressividade conquistadora, com a guerra, ou com o esforço produtivo do trabalho. Chega-se, assim, à abundância. O principio masculino já funcionou bastante, atingiu o seu objetivo, o impulso esgotou-se e a sua atividade tem que descansar para recuperar energias.  O homem, então, descansa no bem-estar, entregando-se às satisfações do sexo. Atraído pela riqueza, de que ele necessita para se sustentar e cumprir a sua missão de gerar, entra em função o oposto princípio feminino. Como, perante a necessidade despertou o dinamismo masculino, conquistador de recursos, agora, perante a abundância, desperta o dinamismo feminino, gerador de filhos. Enquanto o homem descansa e se recupera no bem-estar, a mulher trabalha e se esgota na geração. Chega-se assim à multiplicação do número dos seres, o que destrói a abundância, e com isso despertando, na necessidade, novamente o dinamismo masculino que, agora que descansou bastante e no gozo recebeu a sua recompensa, pode começar novamente o seu trabalho.

Esse trabalho é contínuo nos dois sentidos e o seu fruto vai-se sempre transformando em aumento demográfico, o ciclo pequeno dos dois elementos homem e mulher, no grupo familiar torna-se o ciclo maior dos povos famintos e agressivos, e dos ricos civilizados e pacíficos: os primeiros cumprindo a sua função masculina de atividade conquistadora, e os segundos a sua função feminina de passividade conquistada e fecundada pelos invasores, a eles fornecendo a abundância dos ricos, necessária para uma nova multiplicação de seres. A realidade biológica que sustenta a história e os seus movimentos, é esse dualismo ou principio de complementaridade entre os dois termos opostos e em equilíbrio, o masculino e o feminino.

Eis como se desenvolve o ciclo das civilizações. No seu início o que domina é a necessidade e o esforço (período masculino). No fim, domina a abundância e o descanso (período feminino). Acaba, então, de funcionar o primeiro princípio e prevalece o segundo. Quando repousa o homem guerreiro e trabalhador, movimenta-se a mulher geradora. Elementos complementares, mas rivais, porque cada um produz só no sentido que lhe cabe, e não produz, mas destrói, no terreno do outro. E de fato, o trabalho da mulher multiplicando os seres destrói a abundância que é fruto do trabalho do homem, como o homem com a sua agressividade bélica e seu esforço de lutador, destrói as vidas, que são fruto do trabalho da mulher. Estabelece-se, desta forma, na economia da natureza, o equilíbrio entre recursos e filhos, e ao contrário. Esta dá novamente lugar à abundância, nova geração de filhos, nova necessidade, novo esforço, e assim por diante. O resultado final é a queda das velhas civilizações e o nascimento e desenvolvimento das novas, em rodízio, através de um contínuo estado de esforço do ser humano, ora do homem, ora da mulher, com o resultado final da expansão demográfica, da conquista do mundo e do progresso da raça humana.

Tudo vai muito bem, mas não pode continuar assim ao infinito. Há um limite, representado pelo espaço determinado pela superfície do nosso planeta. Tal processo pressupõe um regime demográfico e econômico fechado dentro dos limites de um povo, pronto a intervir no terreno igualmente cercado de outros povos. A humanidade hoje, porém, está se tornando um só povo e aquela compensação não é mais possível. Aumentar o poder demográfico de cada povo como meio de invasão bélica, vai-se tornando cada vez mais coisa sem sentido, inclusive pelo fato de que a guerra hoje se faz cada vez menos com massas humanas e cada vez mais com armas, com a técnica que as dirige e a ciência que as produz.

Se a abundância da geração pôde já representar uma bênção para um povo, porque a riqueza demográfica constituía um poder para vencer outros povos, hoje tal conquista está se tornando cada vez mais difícil e absurda. Então o aumento da população não tem já na invasão de outros países uma porta de saída para se descarregar. O processo fica fechado em si próprio, no ponto que diz: o número destrói os recursos, a quantidade aniquila a qualidade. Que a civilização aumentou o número dos habitantes do planeta, é um fato. E as novas condições de vida impedem à natureza equilibrar o fenômeno praticando os seus habituais meios de destruição. Se no tempo do Império Romano a população do mundo poderá ter sido de uns duzentos milhões, temos hoje mais de dois bilhões e meio, e prevê-se que, se não sucederem novos acontecimentos, chegaremos no fim do século ao número assustador de cerca de seis bilhões de habitantes. Que acontecerá depois? Para onde nos leva esse caminho?

Agora a válvula de segurança da agressão contra outros povos não funciona mais. Estamos fechados na superfície desse planeta, e não vamos agredir outros. Então, não há outro caminho no caso de superpopulação, a não ser a descida do nível de vida, até chegarmos à necessidade, á fome. Antigamente, para isto, havia o remédio de pilhagem da casa do vizinho. O ciclo que vimos está agora quebrado no ponto em que a necessidade costumava acordar o dinamismo masculino, dirigindo as energias do homem no sentido da agressividade conquistadora. Nem há trabalho que possa renovar completamente o ciclo da produção de alimentos. O homem entrou num beco sem saída. A conseqüência fatal é uma descida involutiva que paralisa a civilização. Se é verdade que multiplicação dos seres destrói a abundância, e se hoje a superpopulação não representa mais um poder como meio de conquista para voltar à abundância, todo o processo do ciclo fica parado sem compensação no ponto morto da necessidade, do baixo nível de vida, da fome, o que quer dizer: retrocesso involutivo para os estados primitivos da humanidade. Eis que se impõe a exigência de regular inteligentemente o fenômeno demográfico, controlando o aumento de população, de modo que o número não destrua o progresso conquistado pela civilização.

O problema não é solúvel com os métodos do puritanismo sexófobo do Cristianismo. Essa regulamentação dos nascimentos não se pode realizar com sistemas repressivos, porque ninguém poderá aniquilar o instinto do amor que é fundamental na vida. Se o comprimirmos, ele estourará como já mencionamos, em forma diferente, com característica patológica, o que representa outro perigo e, para evitá-lo, é necessário escolher caminho diferente, se não queremos cair na perigosa evasão dos substitutos, na vergonha da hipocrisia ou no desastre dos complexos e doenças mentais.

*   *   *

Para resolver o problema, é necessário equacioná-lo de outra maneira. Antes de tudo, o amor não é só uma necessidade fisiológica do indivíduo, mas também nervosa e espiritual.  O amor não é somente um elemento da mecânica da geração, o qual tem direito a existir apenas em função dela. Esta é uma concepção primitiva, bestial, anticristã e antiespiritual. É necessário reconhecer que o amor cumpre duas grandes funções: uma em favor da espécie, outra em favor do indivíduo. O amor deve então ser defendido em ambos os casos. O indivíduo pode ter absoluta necessidade do amor para sustentar o seu equilíbrio fisiológico, nervoso e mental. Mas pela moral vigente, o seu direito ao amor só é tolerado enquanto é meio indispensável para a geração e dentro dos limites desta finalidade. O indivíduo não possui outro direito a não ser o de cumprir a função de instrumento multiplicador de seres. Então, se ele quer defender a sua saúde, tem que gerar, com todas as conseqüências, entregando-as ao acaso, sem que seja possível prever, tomar, e depois cumprir as suas responsabilidades, deixando assim tudo cegamente nas mãos da natureza, a qual já vimos, com que métodos ferozes sabe resolver.

A posição atual do problema, com os seus elementos, dos quais não se pode fugir, é a seguinte: o homem ainda não tomou a direção do fenômeno da sua reprodução, que ficou abandonado às leis da natureza, que são as da animalidade. O mundo vê-se, assim, obrigado a aceitar o controle demográfico realizado pela natureza, o que significa: fome, ou guerra. O Cristianismo, com as suas teorias fora da realidade biológica, não resolve, nem se responsabiliza pelas conseqüências. De fato, com a sua ética sexófoba, ele não leva senão a um destes dois resultados: 1) ou reprime, gerando desvios patológicos; 2) ou canaliza as energias para a agressividade em vez de o serem para o amor. Em ambos os casos o remédio é pior que a doença. Hoje o sistema de desafogar a superpopulação, atingida por falta de diretrizes do fenômeno da procriação, com a invasão de outros países, torna-se cada vez menos aceitável, cada vez mais difícil e perigoso. Vimos o que custou ao mundo a recente tentativa da Alemanha, para a conquista do seu espaço vital. Deus sabe o que poderá acontecer agora que a Ásia superpopulosa despertou. A conclusão é que o homem deve tomar inteligentemente a direção do fenômeno da sua reprodução, para que não fique abandonado às leis inferiores do plano biológico da animalidade, com todas as suas conseqüências. O progresso consistiu sempre no esforço bem sucedido, para que a inteligência humana substitua com a sua ordem mais evoluída a desordem dos níveis de vida mais involuídos.

É necessário compreender, ajudar, desenvolver o impulso do amor, e não agredi-lo, para o suprimir. Ele é o princípio da gênese e também da restauração individual. Perseguindo-o, colocamo-nos do lado das forças destruidoras, atentamos não somente contra a vida da espécie, como também contra a vida do indivíduo. As civilizações futuras reconhecerão e garantirão sempre o amor, como um direito à satisfação de uma das fundamentais necessidades da vida. É necessário, então, um amor completo, e não somente a metade, um amor que cumpra ambas as funções: não somente a função em favor da espécie, mas também a função em favor do indivíduo É necessário um amor que cumpra as duas funções: a da geração e a do bem-estar individual. Temos, então, que individuar os dois aspectos e momentos do fenômeno, para que seja possível isolá-los, quando necessário, evitando a confusão atual na qual eles estão misturados indiscriminadamente.

 Uma coisa é gerar, outra coisa é amar. A primeira satisfaz as exigências da espécie, a segunda as do indivíduo. As duas podem ficar juntas, mas há casos em que elas têm de ficar separadas. No caso de pobres absolutamente necessitados, gerar significa criar fome. No caso de doentes com marcas hereditárias, gerar quer dizer criar sofrimento. Para não gerar condenados, os pais não têm outra escolha a não ser condenarem-se a si próprios à castidade. O impasse é que tem de haver sempre uma vítima. Se não pagam os pais, têm que pagar os filhos. Com o sistema atual não há outra escolha: os pais que não querem sofrer, têm de condenar os filhos ao sofrimento. E isto infelizmente é fácil porque os filhos não se podem defender. A sociedade carrega-se assim de produtos de refugo, destinados apenas à criminalidade, às cadeias, aos hospitais.

Perante a necessidade de intervir no fenômeno da geração para dirigi-lo acima dos impulsos primitivos da natureza, surge o problema de saber fazer tudo isto com inteligência, sinceridade e honestidade. Para chegar a este ponto seria mister possuir essas qualidades, ou dirigir-se a educação necessária para atingi-las, de maneira a não se cair em outros erros. Para nos apoderarmos das alavancas dos fenômenos biológicos e manuseá-las, é necessário conhecermos a arte e possuirmos o amadurecimento de quem sabe dirigir. Na prática, encontra-se, pelo contrário, um amontoado de conceitos absurdos radicados no subconsciente, os instintos primitivos da animalidade, o espírito dominante de egocentrismo e agressividade. Se as leis religiosas muitas vezes seguem a direção sexófoba, não é por sua culpa. Elas tiveram de tomar essa atitude, porque estava em relação com a falta de amadurecimento do ser humano. É perigoso conceder liberdade a um ser que ainda não possui capacidade para dela fazer bom uso, e que, pelo contrário, é instintivamente levado ao abuso. A sexofobia do Cristianismo justifica-se assim com a necessidade de impor à força ordem e disciplina a um homem ainda involuído, inexperiente e inconsciente, levado a procurar na lei mais um meio para dela se evadir, do que compreender a vantagem de obe-decer-lhe.

 Tudo está proporcionado: o homem à sua lei, como a lei ao seu indivíduo. Há um equilíbrio entre as normas que regulam a conduta humana de um lado, e os instintos dominantes do outro Para que seja possível realizar a reforma do homem são necessárias leis mais adiantadas; mas para que seja possível, sem perigo, suavizar as leis nesse sentido, é necessário um biótipo humano mais adiantado - Os dois termos se influenciam reciprocamente, de modo que na prática o progresso se realiza deste modo: um deles dá um pequeno passo para a frente, segue o outro, de modo que o primeiro pode avançar ainda um pouco mais, e depois o outro por sua vez pode seguir progredindo ainda um pouco, e assim por diante .

A reforma é grande. Trata-se de mudar a atual comum psicologia do amor. Trata-se de não concebê-lo mais apenas como função animal reprodutiva, para a qual, pela sua satisfação, se unem dois corpos, mas sobretudo como função de geração espiritual, para a qual se fundem duas almas. Eis que a sexualidade aparece com um significado positivo, inclusive para além da sua função de multiplicação no plano material. Esta não pode representar todo o conteúdo do amor. Sustentar que o represente, significa viver exclusivamente no plano da animalidade. Quando falamos de amor, entendemos sobretudo este amor maior e mais nobre. Mas o biótipo atual não pode alcançá-lo de um salto. O ponto de partida está nos instintos. É necessário então nobilitá-los, não agredi-los para os destruir. E preciso secundá-los, canalizando as suas energias em sentido evolutivo, para que o amor, que é impulso fundamental da vida, seja utilizado para atingir a sua suprema finalidade, que é a ascensão. Se não a dirigirmos nesse sentido, esta força tão poderosa tomará o caminho da agressividade e da luta, desafogando-se, descendo e não subindo. Então iremos contra o verdadeiro espírito do Cristianismo, cuja tarefa é a de melhorar as condições de vida, amansando a fera e suavizando as relações sociais, para se chegar à pacífica colaboração. Por isso é necessário canalizar as energias no sentido do amor, bem entendido, e nunca no da agressividade. Mas é mister compreender que ele contém alguma coisa mais do que somente o sexo e a função animal da reprodução  Então será possível o amor, de que o indivíduo precisa, sem que ele o leve para um aumento de população, o que em muitos casos significa ter de voltar à luta e à ferocidade.    

Estes são os elementos do problema, que nos dizem só haver uma solução: a de canalizar as energias, não para a guerra, mas para o amor, sem que ele tenha sempre e necessariamente que implicar a geração. Não há razão para que se tenha de esperar que a natureza, com a fome ou a guerra, mate os filhos, para restabelecer o equilíbrio, quando este pode existir sem ser perturbado, porque o homem se tornou dono do fenômeno e o sabe regular com inteligência, não gerando filhos no caso acima citado, em que a natureza tenha depois de intervir para equilibrar, destruindo. Há povos que se encontram em condições diferentes, mas estas são raros e excepcionais.

A reforma é grande e não se pode realizar senão por degraus. A evolução é um monte, que tem de ser escalado, um passo após o outro, utilizando os elementos que a vida nos oferece. Um dos fundamentais é o impulso do amor. Nos seus primeiros degraus ele é só conquista animal para que vença o mais forte. Mas não se pode prescindir deste elemento básico, nem se pode substituir, porque não há outro. Tudo o que podemos fazer é utilizá-lo, aperfeiçoando-o, requintando-o, espiritualizando-o. Este é o caminho lógico e natural, conforme a lei da evolução. O erro dos representantes do Cristianismo foi o de não levar em conta esta realidade biológica, foi o de se lançar contra a animalidade para destruí-la, tomando, com a ética sexófoba, uma atitude negativa, de agressão contra a vida, em vez de ajudá-la a subir, reconhecendo o que ela é de fato e utilizando o grande impulso do amor para a construção da espiritualidade. O erro foi exigir a realização de um modelo espiritual quase inconcebível para o biótipo comum, e de impô-lo à força, com o método da agressividade, que é o mais contraproducente e o que está mais nos antípodas do verdadeiro espírito cristão do amor.

O problema da espiritualização do amor é problema da evolução individual, e dirigi-la é tarefa sobretudo das religiões; enquanto o problema da geração interessa mais à coletividade, e dirigir esse fenômeno é tarefa das leis civis e da ciência médica. Vimos a que resultados desastrosos pode levar uma geração descontrolada  Não é possível que a humanidade mais organizada do futuro queira ficar em poder de uma produção indiscriminada do elemento fundamental da vida social. Num mundo mais ordenado não poderá ser permitido que a inconsciência dos simplórios semeie à vontade as causas da fome, das revoluções, das guerras e de tantos sofrimentos. Então, a vida terá de ser protegida e garantida para todos. Por isso a geração não será apenas fruto de cego desafogo de instinto, mas de um plano raciocinado em que seres conscientes tomam as suas responsabilidades. Será julgado um crime o egoísmo dos pais que geram só para sua satisfação, fugindo às conseqüências. Hoje todos podem proliferar, os doentes de doenças hereditárias, sejam físicas como mentais, os criminosos, os ineptos, todos geradores de desgraçados. Hoje tudo isto é lícito, até abençoado no casamento, e é conseqüência da confusão entre amor e geração, e da ética sexófoba pela qual não é lícito amor sem geração. Infelizmente a humanidade é ainda como um relógio em que cada roda anda por sua conta. Terá, porém, de se tornar um relógio em que cada roda funcione de acordo com a outra, em movimentos calculados e coordenados. Para chegar a isto, o mundo terá de se educar, adquirindo consciência eugênica.

Reconhecido a todos o direito de amar, inclusive aos que não geram porque não devem, não existe mais a desculpa do direito ao amor que constrange a gerar. Então, uma geração em que ninguém se entrega ao acaso, será uma coisa séria, feita com plena consciência das conseqüências, para se assumir a seu respeito todas as responsabilidades. A vida, evoluindo, ficará sempre menos no poder dos seus impulsos elementares, no estado de caos em que cada indivíduo tem de procurar o seu caminho na luta, mas estará cada vez mais sujeita ao poder da inteligência do homem, num estado orgânico em que tudo é previsto e garantido. Ninguém pode impedir que tudo esteja relacionado e que tantos desastres que atormentam a humanidade não possam ser evitados, senão regulando inteligentemente, com a devida antecedência, os fenômenos cuja causa eles representam.

A vantagem não será apenas para a sociedade que passa a não ser mais perturbada por maus elementos; não será só dos filhos que encontrarão uma vida agradável, porque mais aptos a ela, num ambiente melhor, porque mais selecionado, mas será também para os pais que, sejam doentes ou não, criminosos ou não, ineptos ou não, terão o direito de se sustentar com o conforto do amor, sem ter por isso que praticar o crime, hoje lícito, de gerar mais desgraçados, condenados ao sofrimento. Hoje, a geração está abandonada ao acaso como uma tentativa cega, em que pouco é previsto e o indivíduo é deixado sozinho às suas forças, para encontrar o seu caminho num caos onde impera o método do individualismo egoísta pela inteligência do homem, mas pelas leis brutais da animalidade, nem o homem está maduro para sair desse nível evolutivo. É um fato, porém, que ninguém pode parar por isso a evolução e impedir que a humanidade atinja a sua fase orgânica, na qual estas teorias, por encontrarem um ser mais adiantada para tornar essas teorias uma realidade.

*   *   *

Nestas páginas, estamos só observando o fenômeno de todos os lados. Gerar é uma coisa séria, que leva a conseqüências graves e duradouras e que por isso não se pode fazer levianamente. Não se trata somente de um fato pessoal, que pode ser deixado ao poder do capricho do indivíduo, mas trata-se de um fato de interesse coletivo, no qual está implícita a vida de outros seres impossibilitados de se defenderem. Não há outra saída: se não quisermos aprender a dirigir inteligentemente o fenômeno, alguém terá que suportar as conseqüências de cada erro e desordem. A ética vigorante neste terreno é produto empírico dos instintos do subconsciente, nada resolvendo. Uma nova ética não se pode encontrar a não ser subindo a um plano de vida superior, onde o ser funciona com outra forma mental, aquela que é necessária para agir com inteligência e consciência. Mas isto não é fácil, porque se trata de subverter e renovar uma psicologia radicada através de milênios no subconsciente, e intervindo no próprio âmago da vida, onde se realiza o fenômeno da evolução. Levantar o homem de um plano de existência para outro, significa realizar uma transformação biológica profunda. Até que isto aconteça, será difícil aplicar estas teorias acompanhadas das qualidades necessárias, e por isso haverá muitos erros com tristes conseqüências. Tudo o que podemos, agora, fazer é demonstrar a necessidade lógica de algumas soluções, a serem realizadas num longínquo futuro, por uma humanidade mais inteligente e honesta.

Pelo princípio de que se deve todo o respeito às autoridades civis e religiosas, têm de ser respeitados também os princípios que elas sustentam no terreno do "birth control" , tanto mais que isto cai sob a sua responsabilidade. No código penal italiano há um artigo (553) que proíbe qualquer forma de propaganda anticoncepcional. É interessante, porém, observar como o mundo atual resolve o problema com tal ética e forma mental. Neste caso acontece o que já dissemos em geral a este respeito, isto é, prevalece o método do fingimento pelo qual se faz particularmente o que todos concordam em condenar oficialmente. Assim, apesar das leis, o ser humano vai livremente experimentando, para ter depois de aceitar as conseqüências. Como sempre, estamos perante o método da tentativa. Nem outro é possível num regime em que o homem foi feito livre por Deus, mas, devido à queda, é ignorante. É lógico que não se possa chegar, também neste terreno, ao bom uso da liberdade, com todas as suas vantagens, antes se faz mau uso dela, e se experimentam todos os prejuízos conseqüentes.

O  que deslocou, completamente, os termos do problema, até agora imóvel na sua posição de indivisibilidade entre geração e amor, somente admitida a castidade para a não-geração, foi o fato novo realizado pelo progresso da ciência médica pela qual os dois termos, geração e amor, se puderam tornar independentes um do outro. A conseqüência destas descobertas, se fossem bem entendidas, deveria ser que uma geração, que não encontra mais desculpa no desafogo sexual teria de ser realizada com plena consciência e responsabilidade. Isto leva a muito maior valorização da vida humana, que assim não é mais gerada por acaso ou por erro, fruto não desejado da própria satisfação, mas é uma vida mais protegida e garantida, porque fruto de uma vontade consciente das conseqüências, que neste caso são desejadas, e das quais assim se assumem todas as responsabilidades. O objetivo a atingir com o método do controle deveria ser o de garantir sempre mais a vida aos filhos que, gerados propositadamente, constituem um sagrado dever, do qual agora não há mais desculpa para evasões. Esta é a finalidade e não a de uma ilimitada satisfação pessoal, fugindo-se às conseqüências.  Este é o mau uso que o ser humano está pronto a fazer desta nova posição do problema, de tudo aproveitando inconscientemente. E esta é a razão que justifica e torna necessárias as proibições atuais, que por isso têm direito a todo respeito. Infelizmente, dada a ignorância e inconsciência do ser humano atual, não há, pelo momento, outra solução.

O problema do divórcio está implicitamente resolvido em função desta orientação geral que aqui explicamos. Com o método da geração não mais casual, mas prevista, no caso que ela se verifique, o primeiro direito pertence aos filhos. Quando não há filhos, é o interesse dos pais que pode prevalecer, sem prejuízo para ninguém. Mas quando há filhos, é o interesse destes que tem de prevalecer acima do interesse dos pais. Quando só há os pais, a eles o problema fica limitado; então, se lhes convier, o divórcio é possível, porque não implica o prejuízo de outras pessoas. A presença dos filhos torna o liame entre os pais não mais uma união só em função de si próprios, mas também em função do interesse dos filhos, para cuja criação é necessária a colaboração dos pais. Neste caso, quando desponta o prejuízo de outros, não pode ser lícito um divórcio, pois que cria vítimas. Ele será possível quando os filhos estiverem criados não precisando mais dos pais. A posição da mulher moderna, menos sujeita ao homem, porque, com o trabalho, se tornou economicamente independente, alterou a posição do problema do divórcio, tornando-o mais fácil em relação a ela que assim possui meios de subsistência, permanecendo, porém, sempre o mesmo princípio pelo qual o divórcio deveria ser possível só aos casais sem filhos ou depois da emancipação destes.

Não resolve esconder no silêncio ou sob hipócritas aparências estes assuntos escaldantes, ou procurar solucionar ou eliminar o problema com condenações e proibições. Que ele está vivo, prova o fato de que muito se fala nele, nem nós podemos esquecê-lo, junto com os outros que estamos observando. O cirurgião não cobre a chaga para não a ver, julgando, assim, curar o doente, mas antes a observa e faz a diagnose da operação, aceita ou não pelo doente.

Já observamos o problema nos seus dois pólos opostos: de um lado a condenação oficial, do outro os impulsos da natureza; e como ele na prática foi resolvido com o método do fingimento. Que temos, então? O homem não se rebela abertamente contra o ideal, porque não quer parecer nem mau nem atrasado. A presença de um sonho tão bonito embeleza a sua vida e satisfaz o seu orgulho de homem respeitável e respeitado. Mas ao mesmo tempo ele não é tão simples que tome a sério o ideal, e, por isso, renuncie à sua satisfação, que é coisa bem positiva e sensível. E ele está bem apegado à realidade. Então resolve o caso praticando particularmente e o que oficialmente condena em público e nos outros; e nesse jogo desenvolve a sua inteligência. O resultado final não poderia ser melhor, porque permanece o ideal bem visível, e com ele a consciência satisfeita, que sustentou a virtude. Mas permanece na realidade dos fatos a satisfação positiva, o que lhe mais interessa.

Assim se conciliam os dois opostos: para Deus a parte espiritual, para si próprio o gozo saboroso. Assim o engenho humano chegou a resolver a contradição, tanto as coisas da terra representam uma vantagem imediata e concreta, enquanto as do céu são duvidosas e longínquas! Foi, assim, atingida a convivência pacífica. As autoridades religiosas e civis continuam pregando com satisfação de todos a moral teórica perfeita, justificando desta forma, a sua posição social. Os seguidores e cidadãos continuam criando as suas comodidades, satisfeitos e quietos, que é aquilo de que as autoridades mais precisam, ou seja, bons súditos, homens de bem. Elas assim gozam também da vantagem de não assumir responsabilidades, porque se houver culpa, esta é dos pecadores desobedientes. Estes gostariam muito de ser oficialmente autorizados, para fugirem de toda condenação e responsabilidade. Mas os dirigentes sabem bem defender-se e não assumir essa responsabilidade perigosa. Assim tudo continua sendo feito em forma proibida, mas com risco e perigo apenas para quem os faz.

Assim, debaixo das proibições oficiais, o mundo continua por sua conta fazendo as suas experiências, para aprender. Neste nível em que o homem se debate atualmente, a tentativa não é o método normal da vida para explorar o desconhecido? Então, se se chega a constatar que os novos métodos não trazem prejuízo, mas vantagem, eles se tornam universais. Mas, quando se tornarem um estado de fato aceito por todos, porque deles se viram os bons resultados, então, porque não é mais perigoso assumir pessoalmente a responsabilidade, que antes pesava somente nas costas do violador, as autoridades reconhecem como certo todas as coisas, e aceitam tudo, justificando a sua mudança como sendo o seu progresso, que acompanha os tempos. É lógico que, num mundo de luta, esta exista também entre autoridades e súditos, e que aquelas tenham de pensar antes de tudo na sua defesa e não na deles, que por outro lado quereriam a autorização oficial somente para lançar sobre os chefes a responsabilidade de sua culpa, e dessa forma satisfazerem-se, livremente, sem o incômodo freio da proibição e a prejuízo da violação.

 Resumindo, eis qual é a posição atual do fenômeno:

1) A ciência médica está realizando meios de controle cada vez mais simples, baratos, acessíveis a todos.

2) A proibição não impede, mas ajuda a divulgação, porque o que é proibido é mais interessante e, por isso, procurado. Pela lei da luta o ser é levado mais para a desobediência do que para a obediência, que é julgada uma derrota reservada aos fracos, que não sabem defender-se.

3) Os métodos de controle podem representar uma proteção dos fracos que não se podem defender, e isto conforme a moral cristã, porque assim se realiza a eliminação dos filhos ilegítimos, que não existiriam mais, como no caso da mulher que está desonrada, porque gerou fora do casamento, com todas as suas conseqüências (aborto, mulher ou filhos abandonados, prostituição etc.). Nestes casos a sociedade condena e persegue os efeitos e não as causas, porque e mais fácil perseguir os fracos do que os fortes.

4) Muitos países sustentam o controle abertamente. Nos países onde é proibido, ele é praticado da mesma forma, mas às escondidas, o que oferece uma oportunidade para experimentar e assim conhecer qual é o valor prático, os danos e vantagens de tal método. O mundo vai, assim, aprendendo, como sempre o faz com o novo, com seu risco e perigo, com o habitual sistema da tentativa, como quem vive no escuro ou não tem olhos para ver, não pode avançar senão tateando o seu caminho no acaso. É lógico que as massas, dirigidas por educadores, que desses problemas novos sabem menos do que elas, tenham de se educar por si mesmas, pagando se errarem, e assim, como é justo, conquistando com o seu esforço, a sua sabedoria.

 

Pela sua atitude em relação ao problema do sexo, os povos, como os diferentes períodos históricos, se poderiam distinguir em duas grandes categorias: a dos sexófilos e a dos sexófobos. E por quê?

Para compreender é necessário subir aos conceitos fundamentais. Assim, vejamos: pelo princípio do dualismo universal, devido, através da revolta e da queda, à quebra da unidade do todo em Sistema e Anti-Sistema, tudo o que existe está dividido em duas partes opostas, inversas e complementares que, apesar de lutarem como inimigas, uma contra a outra, devido ao princípio divisionista da revolta dirigida para o Anti-Sistema, ao mesmo tempo se abraçam, atraindo-se reciprocamente, em virtude do princípio oposto que quer reconstruir tudo em unidade. Em nenhum fenômeno biológico aparece tão claramente esse contraste e ao mesmo tempo essa atração entre opostos, como neste caso do sexo que é um dos mais nevrálgicos da vida, no qual os dois princípios: o do egocentrismo separatista (Anti-Sistema) e o do amor reunificador (Sistema) lutam para prevalecer um sobre o outro.

Essa é a primeira origem do fenômeno da divisão dos sexos, que se poderia chamar uma bipolaridade biológica, caso particular da bipolaridade universal. Explica-se assim, no amor, esse contraste, que todos conhecem, e constatamos a toda hora, entre o instinto de generosidade altruísta que tudo quer dar sem nada pedir, e o oposto instinto de cobiça egoísta que de tudo se quer apoderar sem nada retribuir. A primeira forma de amor é a do evoluído mais próximo do Sistema, a segunda é a do involuído, mais próximo do Anti-Sistema. A segunda evolui para a primeira, o que quer dizer que o amor se torna cada vez menos egoísmo, avidez de possuir. agressividade e ciúme, e cada vez mais altruísmo, generosidade, benevolência e desejo de ajudar; tudo isto mais acentuadamente sucederá quanto mais estivermos próximos da espiritualidade, afastando-nos dos níveis inferiores onde vigora a animalidade.

Eis a estrutura do fenômeno do sexo e seu fundamento. Eis, então, o nosso mundo biológico dividido de acordo com este esquema: macho e fêmea. Vimos agora as primeiras origens deste fato. Mas esta cisão da unidade dividida em duas partes representa também uma divisão no trabalho da luta pela sobrevivência, que por sua vez é meio de evolução. O macho luta contra o ambiente hostil, feras e elementos Tem, assim., de desenvolver a sua força e inteligência nos seus níveis mais baixos, os da agressividade, da ferocidade, da guerra como objetivo da conquista, do egoísmo para o domínio. A fêmea luta por outro caminho para o mesmo objetivo, vencendo a morte com a geração. Desenvolve os instintos de proteção maternal, de pacifismo conservador, de altruísmo e submissão ao poder do macho. Em forma diversa, os dois opostos colaboram, canalizados ao longo do mesmo caminho e dirigidos rumo à mesma finalidade, que é a de viver para evoluir. Para esta finalidade converge o esforço que, ao mesmo tempo que defende, ensina e, ensinando, realiza a evolução. Isto porque a ascensão tem de ser atingida pelo esforço da criatura que, com a sua revolta decaiu. Eis aqui o motivo desta luta desapiedada e contínua para vencer a morte (Anti-Sistema) e voltar à felicidade (Sistema). Neste fato também encontramos novas confirmações dos princípios gerais desenvolvidos nos nossos precedentes volumes. As últimas conseqüências, vemo-las em nosso mundo, até na estrutura física do organismo do macho e da fêmea: o primeiro tem os ombros largos, desenvolvidos para a luta e para o trabalho, com a inteligência mais aguda para a função de dirigir; o tipo fêmea, pelo contrário, têm os quadris mais desenvolvidos para as funções da geração, com mais agudas qualidades de sensibilidade, intuição e sentimento.

São os dois tipos complementares da atividade humana: no macho a força para vencer, na mulher, o amor para gerar. É por isso que no primeiro caso temos o que foi chamado o sexo forte, e no segundo, o belo sexo. E, de fato, o que é mais apreciado no homem é a força, enquanto na mulher é a beleza. Estas são as qualidades que um sexo mais procura no outro. Conforme estas suas qualidades, cada um dos dois tipos, pelo seu egocentrismo, quereria impor-se dominando o outro. Isto porque, se quanto mais eles são evoluídos, tanto mais são aliados, quanto mais são involuídos, como em nosso mundo inferior, tanto mais são rivais. Acontece assim que, para o macho, que é o ser da força, o amor se torna um ato de conquista; e, para a fêmea, que é o ser do amor, a conquista se torna um ato de amor. Assim o amor é uma luta em que o macho ama com a força, enquanto a mulher conquista com o amor, com as armas da beleza e da bondade. Deste modo os dois biótipos, apesar de raciocinarem com forma mental oposta e concebendo como antípodas, se atraem e se unem fora do próprio raciocínio, sem se compreenderem se invertem um no outro, conseguindo deste modo atingir uma fusão em que ambos ficam satisfeitos, porque assim cada um pode compensar com o outro a sua complementaridade, cedendo e recebendo aquilo que um tem demais e o outro de menos.

Estes são os dois modelos que a vida nos oferece em nosso planeta com respeito ao fenômeno do sexo, inclusive a raça humana. Deste fato é que derivam neste terreno dois tipos fundamentais de ética

1)    a ética masculina da força, de natureza sexófoba.

2)    a ética feminina do amor, de natureza sexófila.

Trata-se de dois aspectos inversos e complementares da ética humana do sexo e a razão dessa sua estrutura. A história da humanidade desenvolveu-se seguindo ora um, ora outro, destes dois tipos de ética. E houve e há povos e raças do 1.º tipo, com a respectiva forma mental, amarrados à ética sexófoba; e houve e há povos e raças do 2.º tipo, com a respectiva forma mental, amarrados à ética sexófila. Agora que observamos as origens, a natureza e a razão deste fenômeno, podemos compreender o problema do sexo e da sua ética.

*   *   *

No mundo encontramos povos de diversas naturezas: os guerreiros conquistadores, com virtudes masculinas de força, trabalho e inteligência e com a respectiva forma mental que despreza o amor, da qual deriva uma ética sexófoba; e os povos pacíficos, sensíveis, com virtudes femininas de bondade, tranqüilidade e sentimento e com a respectiva forma mental que aprecia o amor, da qual deriva urna ética sexófila.

Essa distribuição que encontramos no espaço, também a encontramos no tempo. A história oferece-nos períodos masculinos e femininos. Assim, o ser humano vai oscilando alternadamente de um pólo a outro do fenômeno Ora prevalece, desenvolvendo-se um lado, ora outro, enquanto o seu contrário fica à espera. Trata-se de posições e qualidades opostas e complementares. O povo ou o tempo que desenvolve uma, não pode desenvolver a outra. Assim elas têm que funcionar em rodízio, uma de cada vez. Nos períodos de paz, o ser trabalha em sentido feminino (requinte, sexualidade, arte, exterioridade religiosa etc.). Nos períodos de guerra o ser trabalha em sentido masculino (agressividade, conquistas, expansão política e comercial, inteligência e progresso no conhecimento etc.). No primeiro caso o modelo é a mulher, e o homem torna-se efeminado (como no século XVIII). No segundo caso o modelo é o homem, e a mulher se masculiniza (como no tempo atual de emancipação e independência feminina). No 1.º caso é o espírito feminino que domina tudo, inclusive o homem. No 2.º caso é o espírito masculino que domina tudo, inclusive a mulher. No 1.º caso é a mulher que vence e prevalece, e o homem vive em função dela (como amante). No 2.º caso é o homem que vence e prevalece, e a mulher vive em função dele (reduzida a máquina para gerar guerreiros).

Os dois pólos do dualismo lutam um contra o outro para prevalecer. Logo que um, por ter funcionado, se esgota, o outro leva vantagem sobre ele, e ao contrário. Oscilação que é também compensação, porque o que se perde de um lado se ganha do outro, e ao contrário. Não se pode existir na plenitude duma posição, sem que isto gere um vazio correspondente na posição oposta Não se pode triunfar em cheio em ambos os pólos opostos ao mesmo tempo. Ou um, ou outro. Assim no 1.º caso, quando é a mulher que domina, o homem perde a sua virilidade, as suas qualidades de luta, trabalho e agressividade (tipo Luís XV e XVI na França). No caso, quando é o homem que domina, a mulher perde a sua feminilidade para tornar-se masculinizada, trabalhadora, independente, lutadora ao lado do homem e até contra ele. E o que ocorre nos períodos revolucionários ou bélicos, destrutivos-reconstrutivos, em que se realiza o maior esforço evolutivo. O contrário sucede nos períodos opostos. Depois de ter realizado o seu esforço, cada tipo repousa, enquanto funciona o tipo contrário, gozando neste intervalo dos frutos do seu trabalho precedente, para depois iniciar outro como antes, e assim por diante. Deste modo, nesta forma alternativa, progride o trabalho para ambos os opostos, trabalho em que cada um dos dois tipos complementares, compensa e corrige o outro porque, se assim não fosse, o princípio feminino sozinho acabaria apodrecendo na estagnação da inércia, enquanto o princípio masculino sozinho, não compensado pelo seu oposto, acabaria destruindo tudo.

Como se vê, logo que colocamos tudo no seu devido lugar, de tudo aparece a sua razão de existir, a sua função lógica que o justifica. Nada há de errado nas leis da vida. Tudo cumpre a sua devida tarefa útil. Não há que falar de superioridade ou inferioridade, mas só constatar a inteligente divisão de trabalho. Por isso. não há lugar para desprezo ou condenações. Ao completarem-se na diversidade, todos têm razão. Aqui procuramos mais observar e explicar o que acontece na realidade dos fatos do que impor conclusões e opiniões.

Afirmamos acima que em geral, os povos guerreiros e conquistadores seguem uma ética sexófoba, enquanto os pacifistas e sentimentais seguem uma ética sexófila. Perguntamos agora: por que acontece isso? Procuremos compreender a razão desse fato. É lógico que as energias humanas não se possam encaminhar ao mesmo tempo para um ou para outro desses dois canais, porque cada um é por si bastante para absorver todo o esforço possível. Acontece então que, quanto mais o ser se torna poderoso e tem abundância de um dos lados, tanto mais ele se enfraquece e sente falta do outro A vida completa essas unilateralidades opostas, espalhadas no espaço como no tempo, compensando reciprocamente a complementação de cada um dos dois termos com a do outro. Assim a vida atinge o equilíbrio e a ordem num conjunto completo, permitindo que funcionem as duas qualidades opostas, uma de cada vez. Foi assim que à corrupção do reino de Luís XV, com a sua ética sexófila, dirigida para o prazer, se seguiu na França a revolução com o feroz puritanismo de Robespierre, e o período guerreiro napoleônico, com a sua ética sexófoba, dirigida para a conquista. Assim, a vida acordou e renovou aquela sociedade, que de outro modo teria apodrecido na inércia.

Trata-se de dois impulsos fundamentais, dirigidos por dois caminhos diferentes, para a defesa e a conservação da vida. Trata-se de duas qualidades complementares: fortalecer os instintos de agressividade quer dizer enfraquecer os eróticos, e ao contrario. Por isso, nas sociedades militaristas e imperialistas, o que vale e domina é a força, não as qualidades do amor, o qual é desprezado como fraqueza feminina. Nos povos e tempos em que vigora a ética sexófoba, a guerra ou o trabalho são as coisas mais importantes, e o que vale menos é o amor. Nos povos e tempos em que vigora a ética sexófila, a guerra ou o trabalho são as coisas menos importantes, e o que vale mais é o amor. O fato é que, quando o ser humano segue o caminho da força e agressividade, negligencia o do amor e ao contrário. Assim os dois termos opostos, que não podem existir juntos, são: espírito de luta e abandono à sexualidade. Quando um dos dois prevalece, há a absorção de todas as energias para um, que as tira do outro. Quem está preso ao esforço de ataque e defesa não se pode abandonar às satisfações do amor; e quem ficou enredado nestas, não se pode defender na luta e facilmente será vencido por qualquer agressor.  O espírito de luta se une à sexofobia, e com esta ética o encontramos; o amor gera a sexofilia, e com essa ética o encontramos.

A vida tem que se defender numa luta contínua contra todos os inimigos do ambiente hostil, para sobreviver como indivíduo e como raça, vencendo a fome e a morte com a agressividade do macho e o amor da fêmea. Acontece, porém que, quanto mais o homem se distrai na luta pela sua atividade sexual, tanto menos ele se encontra pronto à defesa, sempre necessária no meio de mil perigos. Ora, este enfraquecimento das suas virtudes defensivas de guerreiro, em favor das de amante, pode levar a conseqüências terríveis num mundo onde a sobrevivência depende de uma vitória contínua, numa luta desesperada contra todos. No subconsciente instintivo tiveram de ficar gravadas as impressões de muitas dessas derrotas, devidas e conexas a momentos de fácil abandono à ingênua alegria de viver nos gozos do sexo. Então, no subconsciente, as idéias de satisfação sexual, de enfraquecimento, derrota com as suas terríveis conseqüências, se juntaram e soldaram uma à outra, até que a dura experiência tantas vezes repetida levou à assimilação do conceito conclusivo de todo o processo, gerando deste modo o instinto de condenação da sexualidade. Explica-se assim esse fenômeno e encontra-se a primeira origem dessa forma mental e respectiva ética sexófoba.

Permanece o princípio geral que diz: quando o ser tem, por qualquer razão, de cumprir um esforço, deve canalizar todas as suas energias nesse sentido, evitando qualquer desperdício em outros lados. Assim, quando um indivíduo ou povo tem de realizar uma luta defensiva ou uma conquista, nesse objetivo ele tem de concentrar todas as suas forças, abandonando todo o restante. E neste momento que a vida impõe ao ser o que para ele agora é necessidade absoluta, isto é, a forma mental e a respectiva ética sexófoba. Acontece, deste modo, que os povos machos, conquistadores, são naturalmente sexófobos, até vencerem os obstáculos e atingirem o domínio. Então a vida dá um prêmio ao esforço bem sucedido com o bem-estar. Mas eis que neste ponto, o esforço, não sendo mais necessário, é lícito finalmente descansar, entregando-se às satisfações do sexo. Prevalece então o principio, não o do esforço, mas o da vida fácil, com a forma mental e respectiva ética sexófila. Mas eis que, por este caminho o ser esquece as suas virtudes guerreiras. necessárias à defesa, engorda e se enfraquece no bem-estar, até que outra gente mais acordada pela necessidade e mais pronta à luta, o agride e facilmente o vence. O problema do sexo está conexo com todos os outros, dos quais nos revela a posição. Assim o ciclo se fecha, aquela civilização de bem-estar sexófilo acaba na corrupção em favor dos novos vencedores sexófobos, até que o mesmo ciclo se verifique para eles também, e assim por diante.

 Isto é lei geral da vida, e se realiza para os povos e para as classes sociais, as famílias, os indivíduos. Assim decaiu o Império Romano, quando as antigas virtudes se corromperam e os costumes se amoleceram no luxo e comodidades que o poder oferecia. Assim declinou a aristocracia francesa, com Luís XV, o rei das mulheres, até cair na boca da revolução. O mesmo está pronto a acontecer à velha Europa, rica e civilizada, saboreado petisco para as bordas russas e asiáticas, cada vez mais famintas, devido ao aumento da população, prontas a repetir a história das invasões bárbaras dos povos germânicos contra Roma. A vida está sempre alerta vigiando, escuta e percebe esses pontos fracos, e acorre para fortificá-los. Faz-se isto destruindo quem perdeu a força e substituindo-o por novos agressores mais poderosos, como nas doenças os micróbios para a mesma finalidade acorrem ao ponto fraco, de menor resistência, que em cada organismo representa o calcanhar de Aquiles, cuja vulnerabilidade constitui um convite para o mais forte aproveitar. É por isso que a ética sexófoba da agressividade e a ética sexófila do bem-estar são rivais. Quem se abandona a esta segunda, perde a força e cai presa de quem vive a primeira. O que assegura a vida é a ética sexófoba da agressividade e não a sexófila do bem-estar. Assim os bárbaros conquistaram o Império de Roma, a revolução francesa com Napoleão conquistou a Europa realista, e a Ásia guerreira, militarizada pelo Comunismo imperialista, se prepara a conquistar a velha Europa. Assim, em rodízio, todos percorrem o mesmo ciclo, obedecendo à mesma lei.

Estas observações podem-nos explicar algumas coisas. E um fato que em geral os regimes velhos, maduros, acomodados ao bem-estar da classe dominante, são sexófilos. Os regimes jovens, filhos de guerras ou revoluções e conquistadores, são sexófobos. Exemplo: os antigos Romanos em relação ao povo etrusco que eles venceram e quase destruíram, eram o que em nosso século podiam ser os prussianos de Hitler. Naquele tempo os Etruscos mais civilizados em relação aos Romanos eram corrompidos sexófilos, enquanto os Romanos, cheios de todas as virtudes da agressividade, eram puritanos sexófobos. O mesmo aconteceu quando os bárbaros do Norte desceram na península itálica para conquistá-la. Quem venceu foram os povos de costumes severos contra os povos de costumes relaxados, devido ao mesmo principio pelo qual a ética austera, espiritualmente lutadora, puritana sexófoba, do Cristianismo, venceu no plano religioso a ética fácil e enfraquecida, livremente sexófila dos descrentes e enervados pagãos de Roma.

Esses conceitos se poderiam hoje repetir a respeito dos regimes totalitários, como o fascista, o nazista, o comunista, que procuraram canalizar todas as energias dos povos no esforço dirigido para o domínio (a filosofia de Nietzsche se tornou a de Hitler), realizando por isso uma ética sexófoba. E isto se explica com o fato de que tais regimes são filhos de revoluções, isto é, de uma revolta contra a ordem precedente. Então, para que os rebeldes possam sobreviver, é necessário vencer custe o que custar, e por isso o ser forte é problema de vida ou de morte. Eles têm de realizar a ética da agressividade, naturalmente sexófoba, porque para quem vive de luta não se admite fraqueza, que significa derrota e a sua própria destruição.

Todas as energias têm de ser canalizadas de maneira a tornar-se agressividade, o que é mais urgente é possuir o espírito varonil de luta, enquanto o feminino do sentimento é desperdício perigoso. São, então, exaltadas as virtudes de coragem e de força, e desprezadas as de bondade e de amor, que se tornam fraqueza imperdoável. Tudo tem de se transformar neste sentido. Fica a família, mas de tipo coelheira, como fábrica de filhos para deles fazer novos guerreiros e poder demográfico-bélico. Do amor se percebe só o valor prolífico, e a mulher se transforma numa lutadora ao lado do homem, para o trabalho e a conquista, as suas verdadeiras funções de mulher ficando reduzidas só às de máquina reprodutora. Regimes guerreiros onde o Estado é tudo, tudo é devorado por ele os filhos lhe pertencem como meio de luta para o domínio.

No choque entre as duas éticas, vencem os povos sexófobos, porque os outros, enfraquecidos, não sabem resistir e os invasores os destroem, ou os escravizam. Mas eis que neste mesmo ponto a natureza reage, para reconduzir ao equilíbrio o desenvolvimento demasiadamente unilateral. Aparece, então, a reação sexófila da vida, através da mulher para isso construída e encarregada. Logo depois do movimento dos machos conquistadores, ela entra em ação para conquistá-los por sua vez, compensando assim a destruição de vidas por eles realizadas, com a geração de novos seres que preenchem os vazios da morte, neste trabalho de renovação, chamando a colaborar como amantes os vencedores destruidores. Desta forma, logo que tiver sido atingida a vitória e a conquista, a ética sexófoba do macho conquistador tende a transformar-se na ética sexófila do macho enamorado. Todos por instinto, neles falando as leis da vida. são levados para este caminho. Ninguém está mais ansioso de gozar dos frutos da vitória do que os vencedores, que tanto lutaram para atingi-la, e agora precisam de descanso. As belezas de uma mais adiantada civilização, com a qual eles tomam contato, são para eles um convite irresistível. Por outro lado, trabalha para o mesmo objetivo o instinto na mulher que, atraída pela fascinação que sobre ela exerce a força do vencedor, sente-se impulsionada a lançar-se nos seus braços. Então todas as mulheres dos vencidos pertencem aos vencedores, e para estes a satisfação do domínio se transforma na satisfação do rico banquete do bem-estar. Assim, o vencedor fica absorvido e submisso ao ambiente do vencido. Assim, a ética sexófoba do primeiro se transforma na ética sexófila do segundo. Assim, por sua vez, paulatinamente, os dominadores assimilam as qualidades dos dominados e, como eles, se acabam enfraquecendo, a fim de realizarem o mesmo ciclo, seguindo o mesmo destino.

Deste modo, cada um dos dois termos cumpre a sua função: o macho, para chegar à sua posição de domínio, desenvolveu força e inteligência; a fêmea, para chegar à multiplicação, e com isso à conservação da raça, realizou o trabalho da geração, tanto mais valiosa porque selecionada pelo concurso de um tipo biologicamente superior, qual é o vencedor. Eis que a vida, movimentando, pelos instintos, os seres inconscientes, atinge com a sabedoria das suas leis os melhores resultados, porque assim, não somente preenche os vazios produzidos pela destruição realizada pelos agressores, mas renova os falecidos da velha raça enfraquecida com filhos mais fortes, porque descendentes dos vencedores. No fim a raça se liberta dos fracos e se fortalece com o sangue dos fortes. Este é o verdadeiro conteúdo das guerras, o sentido da história, do qual, porém, ela não fala, apesar de ser ele o mais importante e duradouro.

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Eis como se cumpre o ciclo da transformação dos resultados dos das duas lutas complementares. Vemos, assim, como o impulso da agressividade acaba abrindo as portas à realização do impulso da sexualidade; e como o impulso da sexualidade acaba abrindo as portas à realização do impulso da agressividade. No primeiro trecho, trabalha o homem, enquanto vigora a ética sexófoba; no segundo trabalha a mulher, enquanto vigora a ética sexófila. Cada um quereria suplantar o outro, substituir-se a ele, invadindo todo o terreno, e para isso ambos lutam como rivais, ao mesmo tempo que colaboram para o mesmo objetivo. A razão que funde em unidade os dois termos da contradição está no fato de que eles são de natureza complementar, de modo que cada um dos dois egocentrismos opostos necessita do outro para se completar. O resultado final de todo o processo é que os dois opostos, conservando o seu egocentrismo, trabalham em concordância, como os dois pólos que são da mesma unidade, para cumprirem a metade que a cada um cabe do mesmo ciclo comum.

Este fato mostra-nos que a vida não resulta de modo nenhum dividida pelo dualismo universal, inconciliavelmente em dois termos separados, numa cisão irreparável, antes pelo contrário, tudo fica sempre mais fundido em unidade, porque o egocentrismo separatista de cada um dos dois termos permanece sempre compensado e corrigido pelo egocentrismo oposto que o equilibra na mesma balança que os unifica. Assim a vida oferece trabalho e descanso a cada um, em rodízio, deixando um trabalhar, enquanto o outro repousa. O ciclo se inicia do negativo para o positivo, para se inverter, depois, do positivo para o negativo. Na primeira metade do ciclo, o movimento começa partindo do negativo, representado pela necessidade que excita no macho (elemento positivo) a sua reação que, conforme a sua natureza, é positiva. Da necessidade (—) nasce o esforço que o macho (+) tira de si próprio, de que se segue a masculinização, a sexofobia, a agressividade, a conquista, a vitória que representa o clímax da positividade.

Atingido o cume da subida neste sentido, o fenômeno se emborca e retrocede para o seu ponto de partida. Eis então que na segunda metade do ciclo, o movimento inverso começa partindo da saciedade e cansaço do elemento positivo e esgotamento do seu impulso, O que gera um vazio que permite a intervenção do elemento oposto, que agora pode funcionar conforme a sua natureza, que é negativa. Como o ponto de partida da precedente metade do ciclo era a necessidade que acorda, o ponto de partida desta sua segunda metade é o bem-estar que adormece. Do repouso na paz (—) nasce a atividade que a fêmea (—), conforme a sua natureza, que é negativa, tira de si própria, de que se segue a feminilização, a sexofilia, a conquista do macho, a vitória do sexo, que representam o clímax no sentido oposto. Neste ponto, o ócio, o enfraquecimento das virtudes guerreiras e o aumento da população levam novamente ao ponto de partida precedente, que agora é de um novo ciclo semelhante.

Chamamos de positiva a primeira metade do ciclo, e de negativa a segunda, porque o nosso ponto de referência foi o macho. Mas se nós escolhermos como ponto de referência fêmea, poder-se-ia chamar esta metade de positiva, e de negativa a outra metade. Nada há de verdadeiramente positivo e construtivo, e nada de negativo e destrutivo em sentido absoluto; mas cada um dos dois elementos é tal somente em relação ao outro, seu oposto Na substância, ambos sempre cumprem uma função útil a favor e em vantagem da vida, porque cada um, destruindo o que o outro constrói, constrói o que o outro destrói. Isto quer dizer que onde o macho como lutador, destrói com as guerras as vidas que a mulher constrói, acontece também que com a vitória e o trabalho ele constrói os recursos que, para viver, gerar e criar filhos, a mulher destrói. E ao contrário, isto quer dizer também que onde a mulher, para viver, gerar e criar filhos, destrói os recursos que o macho com a vitória e o trabalho constrói, acontece também que com a geração a mulher constrói as vidas, que o macho com suas lutas destrói.

Tudo isto nos mostra que dentro da natureza existe uma proporção, como que uma equivalência entre a massa vital e os recursos que a sustentam. O que leva a esse equilíbrio nos revela a tendência da vida a transformar o bem-estar na abundância, que representa o fruto da vitória das lutas do princípio masculino, em aumento demográfico. O bem-estar enfraquece os instintos de agressividade e excita os sexuais, adormece o impulso de luta da ética sexófoba, e acorda o impulso oposto da ética sexófila, em que funciona não mais o macho, mas a fêmea. Neste momento a vida entra na segunda metade do ciclo; agora o objetivo que ela quer atingir não é mais a conquista, utilizada pelo homem, mas é a geração, utilizada pela mulher. Podemos observar como isto se verifica nos animais quando, pelo fato deles viverem no cativeiro do homem, a sua existência está assegurada sem necessidade de luta, e a nutrição não falta nem exige esforço para procurá-la. Então esse estado de segurança liberta as energias destinadas à luta e as canaliza para o caminho da sexualidade, que vemos despertar nos animais que se encontram nessas condições. Um caso parecido se verifica no ser humano quando começa a civilizar-se.

Com esse método, a vida estabelece o equilíbrio demográfico em relação aos recursos disponíveis. Método  corretivo equilibrador a posteriori, automático, porque se trata de coletividades que ainda não atingiram o estado orgânico, enquanto nas sociedades animais que o atingiram, a geração é regra a priori  em proporção aos meios de subsistência. Isto acontece por exemplo nas famílias de abelhas e formigas, como unidades orgânicas, mais adiantadas do que a sociedade humana. Neste caso a natureza mostra-nos um estado de inteligente controle da multiplicação, em proporção às reservas armazenadas, o que representa, em defesa da vida, uma sabedoria que o homem tem ainda de conquistar.

Eis como a vida equilibra as duas metades do ciclo, a da agressividade conquistadora e a da sexualidade geradora, colocando o impulso da luta e o fruto da vitória a serviço do aumento demográfico, de modo que seja o maior possível o número dos que desta aproveitam. Assim, a vida abaixa o nível de existência, volta à necessidade para estimular novo esforço varonil para novas conquistas, e assim por diante. O resultado final dessa seqüência de períodos alternados é uma perene atividade, seja do princípio masculino no seu esforço para a conquista, seja do princípio feminino no seu esforço para a geração, atividade cujo fruto é a continuação da vida e a sua evolução.

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Temos até aqui explicado qual é a origem da ética sexófoba. O princípio geral é que, quando um indivíduo ou povo tem de fazer um esforço que lhe é necessário para vencer na sua luta pela vida, neste esforço ele tem de concentrar as suas energias, canalizando-as todas para essa finalidade, evitando todo desperdício, e por isso desinteressando-se da sexualidade que enfraquece.  Eis por que, quem tem de lutar, deve tor-nar-se sexófobo.

Ora, o esforço que o ser deve fazer, pode não ser somente de tipo guerreiro — conquistador, qual até agora observamos, mas também de outro gênero. Permanece da mesma forma a necessidade de concentrar todas as energias num dado objetivo, mas este pode não ser mais a conquista bélica. Em nosso mundo a luta pela vida assume formas mais adiantadas, como a da conquista econômica. Pode-se, então, chegar à ética sexófoba sempre pela mesma necessidade de fazer um esforço e de canalizar as energias todas num sentido particular, mas desta vez esforçando-se não para atingir, com a agressividade bélica, a conquista material, mas por exemplo para atingir, com o trabalho pacífico, a supremacia econômica, o poder comercial e financeiro, a conquista do domínio do dinheiro etc.

Vigorando sempre o princípio geral acima desenvolvido, ele pode agora aplicar-se também a um esforço de tipo diferente, dirigido para outros objetivos, o que leva sempre, como todo esforço, à ética sexófoba. Encontramos essa ética ligada não somente ao esforço da conquista bélica, de tipo militarismo imperialista mas conexa também a outros dois diferentes tipos de esforço: 1) o econômico, trabalho produtor de riqueza; 2) o espiritual, para atingir a sublimação pela superação evolutiva.

O primeiro caso é o da nação Norte-Americana. O segundo é o do Cristianismo. Observá-los-emos, porque, por caminhos diferentes, ambos acabaram na ética sexófoba e nisto se assemelham. Assim, depois de termos estudado as relações entre agressividade e sexofobia, examinaremos agora as que existem entre dinamismo produtivo e sexofobia, as relações entre sublimação espiritual e sexofobia. Trataremos neste fim de capítulo do penúltimo destes três casos, o da América do Norte. Desenvolveremos o último, o do Cristianismo, nos outros três capítulos seguintes, porque ele é muito mais vasto e importante, por abranger o problema da ética sexual vigorante em nossa civilização ocidental cristã.

Com a América do Norte nos oferece no terreno da ética do sexo, é que aí prevaleceu o princípio sexófobo, como aconteceu no fascismo, no nazismo, no comunismo, apesar de que, como há pouco dizíamos, isto tenha acontecido por razões diversas e para atingir finalidades diferentes. Observando os fatos, vemos que os Estados Unidos nos oferecem um tipo de mulher emancipada, trabalhadora, masculinizada, que luta no mesmo plano do homem, às vezes em competição com ele, na corrida para a afirmação pessoal. Essa masculinização da mulher nos diz que é o princípio varonil da luta que prevalece contra o seu oposto, que é o feminino do sexo. Ali nos encontramos, então, não em fase sexófila (feminização do homem), mas no seu oposto (masculinização da mulher). Por que aconteceu isso? Como, e por que causas, é que neste caso prevaleceu a ética sexófoba?

Há duas razões fundamentais:

1) A civilização Norte-Americana recebeu essas suas características pela intransigência puritana, que os primeiros emigrantes levaram às colônias de New England. Por sua vez, a atitude sexófoba do puritanismo é, também, um caso particular, assumido pelo Cristianismo.

2) A sociedade norte-americana encontrou-se na necessidade de fazer um esforço gigantesco indispensável para a conquista de um continente. Aquele povo tinha de realizar esse esforço, para alcançar este objetivo, porque aquela terra era a sua pátria, procurada pela cobiça das nações européias, que a reclamavam como colônia. Tratava-se de uma revolução, também de princípios, os da revolução francesa contra os da velha Europa, e toda revolução não se pode sustentar senão com a luta e a vitória do novo contra o velho. Instava e impelia a necessidade de conquistar a independência, conquistar o território, conquistar como poder político uma posição entre as nações do mundo.

Houve necessidade de fazer o esforço necessário para realizar essa conquista. Mas não se trata de luta de guerreiro para submeter outros povos, o que desenvolve os instintos da agressividade, mas da atividade do trabalhador para dominar um continente virgem, o que desenvolve os instintos da laboriosidade. Urgia a necessidade de vencer. Impunha-se, dessa forma, a atuação do princípio que acima desenvolvemos, pelo qual quando um indivíduo ou povo deve esforçar-se para obter uma conquista, tem de canalizar todas as suas energias no sentido da luta, deixando de lado o restante, abandonando a forma mental sexófila. Então tudo se masculiniza, inclusive a mulher, e prevalece a ética sexófoba do lutador, enquanto no caso oposto, do bem-estar sem esforços para a conquista, tudo se feminiza, inclusive o homem, e prevalece a ética sexófila do amante.

Os Estados Unidos encontram-se num caso diferente na forma, do lutador guerreiro, mas igual na substância. Eles tiveram de enfrentar o esforço de todas as revoluções, como  francesa, a fascista, a nazista, a comunista, porque os princípios da vida funcionam iguais para todos. Há, porém, uma grande diferença: o esforço norte-americano tomou o caminho do trabalho produtivo, dirigindo-se para a atividade econômica, a fim de atingir a riqueza e levantar o nível de vida, não tomou a forma de agressividade guerreira, dirigindo-se para a conquista de outros países e do domínio sobre outros povos.

Somente assim se pode explicar a presença do puritanismo sexófobo e a posição social da mulher nos Estados Unidos. Não foi a luta para a conquista bélica, mas para o dinheiro, foi a adoração do sucesso econômico, que tomou o lugar da adoração da feminilidade. O impulso do sexo foi absorvido pela febre do trabalho para o progresso e a supremacia econômica. Em primeiro lugar estava não a agressividade bélica, mas a supremacia do dólar. Chegou-se deste modo ao triunfo da ética sexófoba como efeito da luta para a conquista do dinheiro, o que em forma diversa, como resultado final, é equivalente à ética sexófoba como efeito da luta para a conquista bélica. Trata-se sempre de um esforço que exige a canalização das energias num dado sentido, subtraindo-as às outras finalidades. Assim prevaleceu a forma mental do trabalho, que absorveu a da sexofilia.

A raça foi submetida a um processo de masculinizarão do qual nasceu o biótipo da mulher norte-americana. Evolvida nesse processo, ela tomou parte na corrida para o sucesso, que se tornou o objetivo principal, de modo que as energias desabafaram como atividade de trabalho, que assim substituiu a atividade e as qualidades naturais da feminilidade. A mulher se tornou econômica e socialmente independente, livre da sua habitual e natural submissão ao homem. Mas se ganhou de um lado, não pôde deixar de perder de outro. Conquistou respeito, liberdade, poder, mas perdeu a sua posição de rainha no domínio do amor, que, se interessa ao homem, é também fundamental para a mulher. Essa transformação da sexofilia em sexofobia pode ter gerado um povo rico, de elevado padrão de vida, economicamente poderoso, mas nem por isso um povo feliz. A riqueza, sem o amor e tudo o que ele gera e traz consigo, não dá felicidade. O indivíduo fica preso na engrenagem da luta sem saída. No meio de toda a abundância, a alma pode permanecer na mais amarga necessidade, por falta de bondade e de carinho. Quando os dois elementos fundamentais da vida, porque complementares efeitos para se fundir, constituindo uma só unidades, ao invés de se juntarem por amor, ficam divididos pelo seu egocentrismo, neste fechados como rivais um contra o outro, a vida desiludida chora dentro deles, sobretudo na mulher, cuja função específica é o amor. Nem há para ela vantagem que possa compensar tamanha perda.

 

Vejamos agora, a respeito da ética do sexo, um caso bem mais importante: o do Cristianismo  A sua evidente moral sexófoba responde sempre ao mesmo princípio do esforço necessário para realizar qualquer conquista. Vigora então, também neste caso que parece tão diferente, o mesmo princípio biológico fundamental pelo qual, quando a luta pela vida o exige, é necessário canalizar neste sentido as energias, para que elas não sejam desperdiçadas por outros caminhos, sobretudo o erótico. Neste caso também, se a forma é diferente, a substância é a mesma. Podemos assim compreender quais foram as primeiras origens e explicar o fenômeno dessa atitude sexófoba do Cristianismo, nas suas formas de catolicismo, protestantismo etc.

A diferença entre a atitude sexófoba das revoluções acima mencionadas (francesa, fascista, nazista, comunista etc.), devida à sua agressividade expansionista; entre a mesma atitude dos norte-americanos, devida à concentração de todo o esforço na atividade produtora; e à atitude puritana do Cristianismo, está no fato de que neste caso a concentração das energias necessárias para sustentar a luta não está dirigida para a conquista bélica, ou econômica, mas para a conquista espiritual. Os elementos e a técnica do fenômeno são iguais, mas o objetivo é diferente. Esta última também é conquista dura, que requer muito esforço. Daqui a necessidade de praticar a ética do puritanismo sexófobo, para que, como nos outros dois casos, neste também, todas as energias sejam canalizadas só para o objetivo atingir, evitando todo desperdício, o que seria fraqueza imperdoável. Isto nos mostra como as leis biológicas dominam a vida toda, mesmo quando esta assume aspectos religiosos de sublimação espiritual.

Desta vez, o grande inimigo a vencer, contra o qual se lança o instinto de luta e agressividade, não são outros povos ou o ambiente hostil, mas é a própria natureza humana, ainda submersa na animalidade. Então, o conteúdo fundamental que explica, justifica e valoriza o princípio sexófobo dentro do Cristianismo, é o conceito de sublimação espiritual. Nem se pode dizer que isso seja biologicamente errado. Pelo contrário, o processo de espiritualização interessa de perto à vida, porque ele significa progresso ao longo do caminho da evolução, que nos seus níveis mais elevados se resolve em espiritualidade. A bondade do objetivo não pôde, porém, impedir que a tentativa para realizar tal transformação evolutiva fosse executada com os meios disponíveis que o homem tinha ao alcance das mãos, isto é, com a sua forma mental de lutador e com os seus inferiores instintos animais. Aconteceu assim que, para superar a animalidade, ele começou a agredi-la a fim de destruí-la, praticando contra ela uma guerra em que os instintos inferiores funcionavam em cheio, e assim confirmando-a e fortalecendo-a sem quererem, em vez de eliminá-la. O processo se revelou contraproducente, porque, tornando uma atitude de autoperseguição, muitas vezes, desviou-se em vez de concorrer para o progresso espiritual.

Assim, para vencer a animalidade, foi chamada a funcionar, plenamente foi a animalidade. Mas, como podia o ser humano atuar diferentemente, se esta era a sua natureza e ele não possuía outros recursos? Não conseguindo sair do nível dos instintos, tudo o que ele fez foi lançar o seu instinto de agressividade contra o do sexo. Quando ele enfrentou o problema da evolução espiritual, não soube e não pôde utilizar senão a forma mental que já possuía, isto é, a da luta pela vida. Foi assim que, chamada a funcionar, essa psicologia instintiva de ferocidade se fortaleceu, em vez de ser vencida e eliminada e, ao procurar-se a evolução espiritual, foram atingidos resultados contrários. Pela concentração de toda a atenção e esforço na guerra contra o inimigo representado pelos instintos inferiores, quem se valorizou foi esse inimigo mesmo, que acabou sendo o grande pesadelo da vida espiritual da Idade Média. Mas, naquele tempo era desconhecida a crítica da psicanálise, para que fosse possível aperceber-se da verdadeira natureza de tais fenômenos.

Nasceu, então por esse impulso de agressividade e psicologia de perseguição, o conceito de amor-culpa, de sexo-pecado. O instinto de luta (sexofobia), prevaleceu sobre o instinto do amor (sexofilia).  O divino milagre da gênese foi condenado e repelido como um mal, o ser humano tornou-se filho de um pecado, só tolerado porque indispensável meio de geração, reduzido apenas a essa finalidade. Assim, para atingir a sublimação do amor, foi estimulado e reforçado o instinto de agressividade, que sobre o outro levou vantagem. Vamos, assim, penetrando na estrutura do mecanismo biológico e psicológico de que derivou a atitude repressiva sexófoba do Cristianismo, da qual nos é possível deste modo compreender a gênese e a razão de ser: fenômeno interessante, porque essa atitude espiritualmente representa um fracasso, por que neste caso, em vez da ascensão para o alto, isto é, progresso evolutivo, foi atingido o resultado oposto, uma descida para os impulsos inferiores que o Cristianismo combate, isto é, um retrocesso involutivo. Sem querer, a religião havia penetrado e mexido no terreno cioso de um dos problemas mais fundamentais da vida, o da evolução, e havia tocado um dos pontos mais nevrálgicos desta, o problema do sexo, ao redor do qual mais refervem todas as lutas, sobretudo a luta para a seleção. E tudo isto o Cristianismo da Idade Média fez sem conhecimento algum das leis biológicas e psicológicas que regem tais fenômenos, nem da ação do subconsciente, da técnica da formação dos instintos, seguindo princípios empíricos desprovidos de qualquer controle racional, sem conhecimento nomeadamente dos métodos da psicanálise e da psicossíntese.

É perigoso esquecer que atrás dos bastidores das  aparências exteriores e das teorias religiosas e filosóficas, há uma invencível realidade biológica que reage, se ofendermos as suas leis, que não é lícito ignorar sem depois ter de pagar as conseqüências do erro. Mas é essa realidade a chave que nos explica o porquê de tantos fatos que depois, sem sabermos como, aparecem na vida.  O fenômeno da sexofobia tem as suas razões e raízes profundas na estrutura das leis biológicas e da psique humana, levada por seu egocentrismo (tudo só para si) à rivalidade ciosa na posse, e por isso pronta a lutar contra todos os outros. Isto sobretudo na posse sexual, pela lei de seleção, reservada aos mais fortes. Essa é a realidade biológica, situada, e muitas vezes despercebida, no fundo desses problemas, essa a verdade escondida atrás das afirmações humanas, mesmo quando elas sobem até ao plano filosófico, religioso, teológico.

Um exemplo pode melhor esclarecer-nos. Observemos, com todo o respeito, o Cristianismo, mas com olhos de psicanalista, o caso da proclamação oficial da virgindade da Mãe de Cristo. Só pela grande importância dos impulsos do instinto sexual, fundamental no subconsciente, é possível explicar como, entre tantos problemas, haja sido escolhido exatamente este para ser definido, deixando em suspenso tantos outros, espiritualmente mais importantes e urgentes, seja para o indivíduo, seja para a coletividade. Nem a divindade de Cristo precisava do apoio desse dogma para se sustentar. Se em primeiro lugar surgiu esse problema no intelecto masculino dos representantes do Cristianismo, assim ocorreu como reflexo dos instintos que queimavam, aninhados no subconsciente, onde o impulso do sexo é mais vivo e ativo, apesar de escondido. O subconsciente é uma mina secreta de impulsos inferiores,  assimilados na vida animal do passado, sempre prontos a aparecer no intelecto, disfarçados na forma mais nobre para satisfazer a consciência  e, assim, sendo admitidos, conseguirem desafogar-se. De uma coisa não há dúvida: se os ministros do Cristianismo, em vez de terem sido representados pelo biótipo homem, o houvessem sido pelo biótipo mulher, que concebe o amor na forma passiva de silêncio, tal problema a respeito da Mãe de Cristo, em vez de ter sido resolvido entre os primeiros, haveria sido enfrentado por último, ou nunca.

Assim, os homens da Idade Média, desprovidos de qualquer crítica psicológica, nada suspeitavam, e neles caíram com pleno convencimento da verdade  Neste caso se percebe claramente que o problema foi resolvido pelos homens, com a forma mental do macho, para o qual o problema mais imediato para que uma mulher fique respeitável, é o afastamento, a ausência de qualquer outro macho. E principalmente neste caso, em que a mulher tinha de ser honrada e venerada com amor, como santa, o que para um homem é impossível quando outro homem se haja aproximado, o que quer dizer ter-se apoderado dela. Isto significa então que só este é o proprietário, e se outro se aproxima isto já é considerado furto. E acordado logo o instinto fundamental da luta pela seleção, bem vivo e difundido, porque foram os indivíduos, que com as suas experiências mais o praticaram e assimilaram, os que mais se reproduziram. Eis o substrato psicológico desse problema da gênese de Cristo, eis a escondida realidade biológica que tudo rege e impulsiona, por detrás das aparências teóricas. Para tranqüilizar o instinto do subconsciente masculino, sempre pronto a impor-se, eis a necessidade da castidade de S. José, pai ideal que não deve possuir os direitos do homem, surgindo a idéia de um substituto espiritual: a concepção por intermédio do Espírito Santo.

É sempre possível, atingir um acordo universal por espontâneo consentimento coletivo, quando este se refere a uma idéia que tem as suas raízes profundas no subconsciente das massas, onde os indivíduos funcionam em série e é fácil assim chegar à aprovação da maioria. Esta aprovação em geral não é resultado raciocinado do conhecimento, mas um  produto  descontrolado do subconsciente. Neste caso, sem querer, só se idealizou e assim se legitimou o desabafo do instinto que energicamente afirma que a mulher é profana se aproximar-se de qualquer outro homem, que não seja o sujeito. No fundo reaparece sempre a realidade biológica, em que é fundamental o instinto da luta pela conquista e exclusividade sexual, fato do qual deriva a sexofobia, mas que é dirigida contra todos os outros e em favor de si próprio. Não há teologia que possa paralisar esse impulso pelo qual cada macho é rival do outro, como cada fêmea é rival da outra. A sexofobia é também um derivado subconsciente do instinto de rivalidade (ciúme). Cada um é sexófobo para com os outros, mas não para consigo próprio.

Ninguém é culpado, nem é condenável, porque ainda não conseguiu superar, apesar do Cristianismo, este nível evolutivo de animal humano, onde vigora o princípio da luta, pelo qual a satisfação sexual deve constituir prêmio, só para quem deu prova de ser mais forte que os outros, vencendo-os na conquista da fêmea. O que mais interessa à vida nesse plano é chegar à seleção desse biótipo, ao qual mais que a todos os outros pertence o direito de se reproduzir. Os fracos são expulsos do banquete e têm que desaparecer.

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Eis aí, as razões desta atitude sexófoba e as causas biológicas deste instinto repressivo contra os outros, impulsos próprios também dos homens das religiões, porque, ninguém se pode evadir das leis do seu plano de vida. Neste seu plano eles permaneceram, apesar de vislumbrarem de longe um mundo superior e, na sublimação espiritual, procurando a superação e a libertação. Fora o que ficou nos domínios do sonho, na realidade as virtudes tornaram-se mais uma pregação para os outros e uma caça ao pecador, do que um desejo de realizar a sublimação.

Disto não se pode culpar o Cristianismo.  Trata-se  aqui da transformação de um biótipo num mundo. Se ela representa o objetivo principal das religiões, nem por isso deixa de constituir um trabalho longo e difícil, que se realiza na profundidade do fenômeno biológico, renovando-o no seu ponto mais central e substancial. Aconteceu assim que dentro do Cristianismo, vestido com a nova roupa de Cristão, ficou o biótipo guerreiro Romano enfraquecido, acrescido do bárbaro do norte, não enfraquecido, ambos grandes lutadores que, não podendo oferecer senão o que tinham, isto é, o seu instinto de agressividade, o deixaram prevalecer também no terreno do Cristianismo, na forma de perseguição sexófoba.

Isto não significa princípio da sublimação, vigorante no Cristianismo, não seja ótimo. Ele corresponde perfeitamente às leis da evolução biológica. Mas exatamente por isso pressupõe indivíduos evolutivamente maduros, prontos para que possam dar esse salto para a frente. A menos que se não tenha o estofo necessário, quem sabe fazer isso? Não há dúvida de que, neste sentido, o Cristianismo produziu exemplos maravilhosos, heróis do espírito, os santos, grandes lutadores e vencedores nesse terreno. Mas eles foram antes de tudo fruto da vida que neles tinha atingido o grau de amadurecimento necessário. Chegaram depois as religiões, que os enquadraram nos seus princípios e os assimilaram, transferindo-os para o seu seio. A sua glorificação chegou posteriormente, como conseqüência da sua vida, que era por sua vez conseqüência da sua natureza. Onde esta não se encontrava, as religiões geraram apenas seres medíocres. O reconhecimento oficial não representa senão a última do fenômeno, com o que o mundo dá prova de ter percebido a presença de um ser superior, o que a vida os produz em todos os tempos e lugares.

O Cristianismo aceitou e confirmou muitos desses seres excepcionais. Mas, se eles viram o lado positivo, construtivo das virtudes, e foram criadores poderosos no terreno dos valores espirituais, a grande massa do povo, por não ser nada amadurecida, rebaixou tudo a seu nível e, da sublimação espiritual, viu apenas o lado negativo, o da perseguição contra a animalidade. Por ser esta representada pelo corpo, que é tudo o que o involuído conhece, ele transformou as renúncias nas virtudes, não num meio para evoluir, mas numa moral de agressão, num impulso de destruição contra a vida, seguindo que a tendência dos seus instintos, que representavam o caminho mais curto e menos difícil.

Desse modo, o sexo se tornou sinônimo de pecado e castidade regra ideal de vida. A agressividade, desta vez dirigida não contra um inimigo para a conquista bélica, mas contra si próprio e os semelhantes, gerou uma ética sexófoba repressiva, nos antípodas do espírito do Evangelho, às vezes com conseqüências opostas ás que este queria atingir, de desvio e retrocesso involutivo, em vez de progresso evolutivo. Os inimigos do Cristianismo salientam este fato, como de devastação milenária, que abrange toda a Idade Média, e cujos efeitos até hoje atormentam a sociedade moderna com urna ética sexualmente agressiva e antivital. Mas, se é fácil condenar, lançando a culpa aos outros, isto não explica e não resolve o problema.

Cada medalha tem o seu reverso. Quem nos fatos resolve esses casos é a maioria com a sua forma mental, filha dos seus instintos, que obedecem às leis biológicas vigorantes no nível evolutivo em que o ser vive. É o peso enorme da maioria que, seguindo o seu subconsciente, estabelece as correntes de pensamento e os pontos de concordância, determinando o que é verdade. E quando a verdade chega à realidade, feita por revelação, a massa humana a interpreta, a transforma, a adapta a si, porque de outro modo ela não seria utilizável. Se o Cristianismo quis sobreviver, teve de aceitar essa adaptação: trabalho despercebido, absolutamente de boa fé, porque fruto os impulsos instintivos do subconsciente, em que a sabedoria da vida, fora do conhecimento consciente dos seres humanos, procurou resolver o contraste num compromisso de adaptação. Para isto não acontecer era necessária uma maioria de santos. Mas, já que ela não existe, que se podia esperar de uma maioria de involuídos?

Não há dúvida de que o Evangelho representa a lei da liberdade e do amor. Mas a humanidade não estava pronta para isso. Como se pode conceder liberdade a quem não sabe senão aproveitar-se dela para cair no abuso? Para quem possui apenas instinto de revolta, é necessário salientar, não a bondade de Deus, mas o seu poder punitivo, com a ameaça do inferno. O Evangelho é amor. Mas a única forma de amor normalmente conhecida e concebível era o amor carnal, fruto de imediata experiência, e não o espiritual para Deus e para o próximo, natural inimigo, pelo egocentrismo instintivo de cada um. Então, se para as massas o amor não pode ser senão desabafo e sexualidade animal, não se pode permitir o amor, mas só a castidade. Se o ideal está no espírito, e se este permanece inatingível porque a vida humana está concentrada toda no corpo. então lançamo-nos com toda a nossa ferocidade contra este corpo, que não conhecemos outro caminho para atingir o espírito. Não se pode negar, apesar da sua falência, a potência e a beleza desse esforço titânico, dessa desesperada tentativa de superação, em que foi envolvida a Idade Média, povoada de delinqüentes e de santos.

Na teoria, a palavra amor tinha um sentido. Mas na prática tinha outro bem diferente. Na luta entre o amor espiritual e o material, o segundo era o mais forte. Os instintos, que representavam o impulso maior, estavam todos deste lado. O contraste entre os dois mandamentos, o da natureza física e o do espírito, era vivo, sendo a guerra inevitável. Mas nem todos eram santos para conseguir vencê-la em favor do espírito, e muitos a perderam em favor da animalidade, ou pior, evadindo-se da luta por desvios e substitutos, que constituíram a base de tantos complexos e formas psicológicas torcidas e aberrantes, que atormentam os cidadãos da nossa civilização moderna. A falência do ideal cristão neste terreno está no fato de que, em vez de realizar uma revolução espiritual do amor, o que significa ir ao encontro da vida, o ideal tomou uma atitude negativa ou de perseguição contra o amor, que é o maior impulso vital da existência, o que significa ir de encontro à vida. O erro e o prejuízo no terreno biológico foi que, neste caso o esforço humano, em vez de se dirigir para o sentido positivo, construtivo, evolutivo, se dirigiu para o sentido negativo, destrutivo, involutivo. Em vez de se chegar ao paraíso de um amor sublimado, chegou-se assim ao inferno da negação e perseguição de todo o amor. Por esse caminho de destruição não foi possível chegar senão ao vazio, onde puderam crescer e prosperar os instintos egocêntricos da luta e agressividade, os que são mais inimigos do Evangelho e do progresso conseguindo através da organização coletiva da sociedade humana. Repetimos:    isto não foi culpa do Cristianismo, porque o objetivo estava certo. A culpa foi do animal humano que, para evitar o obstáculo, procurando atalhos e escapatórias, se afastou do caminho e caiu em desvios e becos sem saída. Assim, do ideal religioso ficou somente o seu aspecto antivital,  de virtudes negativas, de moral opressora, porque a destruição do inferior não foi compensada com a construção do superior, nada o substituindo. Difícil e longo é o trabalho de domesticar no homem o animal, e o Cristianismo encontra-se ainda no começo.

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Foi como conseqüência de todos esses fatos que o Cristianismo assumiu uma atitude sexófoba. O anseio de sublimação, em vez de ser incremento de vitalidade em favor do espírito, pela imaturidade da maioria dirigida como agressividade antivital contra o corpo, acabou, sem querer, canalizando as energias comprimidas pela falta de desafogo sexual, no sentido da ferocidade perseguidora, da doença mental, dos complexos psicológicos, dos instintos torcidos, dos desvios e substitutos eróticos.

Por detrás das teorias teológicas, o que vigorou de fato foi uma ética de subconsciente, em que os impulsos dos instintos procuravam desabafar-se cegamente às escondidas, torcendo aquelas teorias para com elas cobrir-se e justificar-se, ou buscando escapatórias. Hoje a psicanálise nos revelou a verdadeira origem de tais atitudes e ilusões psicológicas. O programa cristão de sublimação espiritual por vezes se tornou, assim, uma estratégia contra a vida, com todas as suas conseqüências reativas. Desta luta contra si mesmo nem todos saíram vencedores, mas muitos ficaram torcidos, feridos, atropelados, condições que, pela repetição milenária, se fixaram como qualidades na raça, gerando o biótipo atual da nossa sociedade neurótica. Podemos, assim, compreender a causa desse seu estado, sobretudo nos países mais civilizados do mundo ocidental cristão.

O objetivo ideal era a sublimação espiritual, mas o que prevaleceu de fato foi o instinto de luta. Sem dúvida não há luta que não sirva para atingir uma das maiores finalidades da vida, que é a de desenvolver a inteligência. Mas aqui a inteligência se aguçou e aperfeiçoou no sentido dos imaturos, isto é, no nível mais baixo, que é o da astúcia e da mentira, quais meios de ataque e defesa, que eram o que num regime de luta mais interessava. Se o mundo dos séculos passados tivesse conhecido as exigências absolutas das leis da realidade biológica, teria compreendido que era melhor procurar aproximar-se da atuação do ideal, por degraus, evolvendo, e não agredindo a animalidade para destruí-la, respeitando e não forçando a natureza, passando pelo caminho do aperfeiçoamento natural do amor desde os seus níveis inferiores, ajudando e não oprimindo a evolução, sem excitar as perigosas reações da vida, a sua revolta, a isto constrangida porque ofendida num dos seus pontos mais importantes. É lógica tal ignorância das leis biológicas e psicológicas nos séculos tenebrosos da Idade Média, deles mais não se podia exigir. Todavia as conseqüências de tal ignorância pesam hoje sobre a estrutura psicológica da sociedade moderna.

Teria sido melhor enfrentar o problema da sublimação dos instintos com mais inteligência e sinceridade, para resolvê-lo honestamente, com conhecimento, levando em conta as exigências fisiológicas. Assim, para suprimir tudo, exigindo demais, o ser se enredou nas areias movediças do fingimento. Desenvolveu-se e aperfeiçoou-se o método da hipocrisia dos aparentemente puros, com a qual, por caminhos oblíquos, se vai evadir, às escondidas, da agressividade sexófoba dos pregadores de virtude. Explica-se, assim, como nasceu o tipo de moral vigorante no mundo atual, herdada desse passado, pela qual os sinceros ingênuos, caindo no erro visível, são condenados, enquanto os astutos, que sabem representar a comédia da virtude, vão para o céu. Explica-se, deste modo, como é que nos resultados práticos, o impulso para a ascensão e a correspondente evasão mística do sexo, muitas vezes se tornou uma contorção da verdade e uma depravação dos instintos.

A atitude de ferocidade repressiva era natural e passava despercebida na Idade Média, porque era proporcionada à insensibilidade da maioria, e não chocava como hoje nos choca a nós, que a percebemos porque nos encontramos na posição diferente de mais sensibilizados. Por isso, só hoje nasceu aquela diferença, que é o que permite a percepção. O conceito da sublimação dos instintos se tornará sempre mais compreensível, à medida que a humanidade for evoluindo. Mas devia ser coisa difícil entendê-la num mundo herdeiro dos pagãos Romanos e dos bárbaros invasores ainda mais pagãos. É lógico que os primeiros passos para a superação no sentido cristão não podiam tomar senão a forma de luta para subjugar, o que representava o universal método de vida. Se o ideal impunha domesticar no homem a fera da animalidade, a primeira coisa a fazer era de submetê-la à força . Este era o modelo psicológico dominante na forma mental do ser humano naqueles tempos. Eis como o princípio da sublimação espiritual se transformou num sistema de guerra, apesar de que em si ele nada contenha de agressivo.

Mas não podia acontecer de outro modo. Nesta primeira fase, a do primeiro degrau da subida, espírito e corpo estavam longe demais um do outro, para que fosse possível concordarem colaborando. Eles eram terríveis inimigos, tanto mais que o espírito procurava tirar a vida ao corpo, para deslocar o centro dela para o seu nível mais alto. É necessário entender que, para o ser que vive no plano físico, a vida espiritual representa a negação e a morte daquela forma de existência. É natural, então, e conforme a economia da vida, que o corpo não queira morrer e reaja em legítima defesa, quando a evolução para o espírito se apresente numa forma de agressão destruidora. E o corpo com a sua animalidade bem sabe fazer a guerra que está no centro dos seus instintos de vida, e pode fazê-la porque ele se encontra na plenitude do seu plano no mundo físico, que é a sua pátria e terreno, e é, por isso, mais forte que o espírito, que ali não é senão um pobre desterrado.

Estas são as duas dificuldades que os primeiros dois milênios de Cristianismo tiveram de superar. Hoje que este primeiro degrau foi galgado, vislumbra-se a possibilidade de um trabalho espiritual mais requintado, todo pacífico, sem guerra e suas conseqüências reativas, um trabalho não mais com inimizade, mas em colaboração entre os dois termos opostos. Então, o corpo domesticado por um cérebro mais inteligente se torna obediente instrumento do espírito, para ajudá-lo numa obra de progresso que conduz à vantagem comum. Já falamos noutro lugar que a ética é relativa e em evolução. É lógico, então, que a nossa ética seja diferente da ética da Idade Média, porque o plano evolutivo em que o homem vive hoje não é o do passado. Como somos diferentes, a psicologia medieval hoje nos aparece feroz, e compreendemos que ela é contraproducente, o que naquele tempo não se concebia que o fosse, porque ela parecia bem natural para os que possuíam aquela forma mental. Ninguém se escandaliza e ofende do que corresponde à sua natureza, mas somente isso sucede quando nos encontramos numa posição diferente.

Por esta razão, a idéia de um inferno eterno, que noutros tempos era necessária porque o ser irracional não obedecia senão pelo receio do seu próprio dano, hoje convence cada vez menos e por isso se torna tanto mais contraproducente, quanto mais o homem aprende a raciocinar. Não é com a severidade das punições, quer civis, quer religiosas, que se pode eliminar o mal e civilizar o mundo. Temos visto quais os resultados que produziu o sistema do terror, civil e religioso, na Idade Média: a humanidade evoluiu não graças a ele, mas apesar dele. A imposição gera reação defensiva, não educa, gera por defesa a mentira, não a sinceridade e a verdade, produz a revolta, não a colaboração. A obediência obtida com a força, é a traidora do escravo que odeia o patrão, e espera qualquer oportunidade para se rebelar.

Aquele método foi, porém, útil no seu tempo porque, com a punição, começou a estabelecer-se uma conexão de idéias entre o ilícito e o dano. Pelo fato de que todas as vezes que ocorria a desobediência aparecia o sofrimento, as duas idéias começaram a ligar-se no subconsciente. Então, conexa com o mal, surgiu a idéia de medo, de remorso, de culpa, de arrependimento, uma consciência do mal cometido, e que é uma forma de educação. Assim, a desobediência levava a um estado psicológico de insegurança, todo erro se tornou culpa, pecado, fato que despertou o medo da desobediência por si mesma e com isso um sentido de responsabilidade individual. Foi por esse caminho que o ser foi acabando com o hábito dos velhos instintos da fera, para substitui-los por novos instintos, menos atrasados. Já noutro lugar explicamos que a longa repetição gera automatismo e, com isso, a assimilação no subconsciente de novas qualidades, que constituem depois os novos instintos. É assim que, armazenando experiências, com a vida o ser vai evoluindo.

Estamos observando o verso e o reverso do problema, para conhecê-lo de todos os lados. Foi assim que o mundo medieval se enredou no culto terrorista do diabo, mais que no culto vivificante do amor de Deus. Muitas energias se canalizaram para a negatividade destruidora, num caminho às avessas, para o AS, em vez de se dirigirem para a positividade construtora, que representa o caminho direto para o S. Movimento oposto, não evolutivo, mas involutivo, tortura, não sublimação do espírito, triunfo de Satanás e não de Deus. Religião opressiva, de sofrimento, não alegre, de satisfação. E, quando o homem queria alívio, bem sabia onde encontrá-lo, fora e contra a religião, nos gozos materiais da animalidade.

Nasceu, assim, no seio do Cristianismo um outro mundo completamente anticristão, nos antípodas do pregado por Cristo. Contra o Deus da bondade, do perdão, do amor, prevaleceu o Deus da vingança, da punição, do terror, a religião da inquisição, das fogueiras, dos feiticeiros, das bruxarias, do inferno com os seus diabos. A sublimação mística se tornou uma forma de perseguição sádica do corpo, com todos os seus castigos infligidos à carne (penitência, flagelação, cilícios)  Dessa repressão sexófoba nasceram os erotismos torcidos, a sua degeneração no sadismo e masoquismo, ou a explosão dos instintos comprimidos e corrompidos, em forma de psicoses individuais e coletivas. Isto por se ter à força exigido demais de indivíduos imaturos, por não se ter compreendido que a sublimação do espírito não se pode atingir com uma agressividade destruidora da vida, mas educando-a e ajudando-a a levantar-se. Nasceu assim um Cristianismo às avessas, que não vai ao encontro da vida, vitalizando, mas de encontro a ela, destruindo. Prevaleceram, assim, disfarçadas como forças do bem, as do mal. Não se pode destruir o amor, sem destruir o impulso fundamental da existência, o que é ir contra Deus. Assim, chega-se ao suicídio, não à elevação espiritual. Não há dúvida de que a tarefa fundamental da evolução é de sublimar esses impulsos; mas é erro grande, que se paga caro, o de querer destruí-lo.

Por detrás dos bastidores das aparências e das verdades proclamadas pelas teorias religiosas, foi vigorando uma verdade diferente, a da feroz realidade da vida, feita de luta desapiedada para o triunfo do mais forte. Quem sofreu mais com a atitude de agressividade antivital, foram os sinceros, os honestos, os obedientes sugestionáveis, prontos a aceitar a verdade que lhes é oferecida. Mas biologicamente eles são os mais fracos, os que a vida, com a sua luta, procura eliminar. Quem de fato no terreno biológico venceu, não foram as meigas ovelhas, mas os lobos ferozes, os rebeldes que não se deixaram submeter, os inteligentes que souberam transformar a forca em astúcia e venceram com o engano. Foram estes os que triunfaram, porque eram os mais providos de qualidades para vencer na luta pela vida. Realizou-se assim no Cristianismo a comum seleção biológica, que para ele representa entretanto, uma seleção involutiva, às avessas, a falência dos seus ideais. Assim, o biótipo inferior do AS venceu contra o superior do S, o qual apareceu só em casos excepcionais, nos santos, fora da realidade comum.

A substância da vida ficou sendo a luta feroz (Maquiavel), prevalecendo os que não acreditavam de forma alguma na sublimação espiritual, mas que utilizaram a religião para sua vantagem material, estabelecendo uma escola de hipocrisia, até hoje ainda vigente.

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Estamos observando algumas atitudes do Cristianismo medieval, porque nelas se encontram as raízes de que deriva, e que nos explicam o estado atual da sociedade moderna da civilização ocidental de origem cristã. Podemos assim compreender como nasceu a forma mental e respectiva ética hoje dominante, as que vigoram na substância e não na aparência, nos fatos e não na teoria, sustentando outra verdade.

Temos falado de hipocrisia. Se a sabedoria das leis da vida permitiu que ela aparecesse e se fixasse na realidade biológica dos fatos, é que a hipocrisia cumpre uma função que justifica a sua presença.. Por que razão, então, ela surgiu, se desenvolveu e existe em nosso mundo?

Não há dúvida de que a evolução humana progride para a sublimação espiritual, que o Cristianismo sustenta. Mas  ela é um cume, para atingir o qual é necessário desenvolver paulatinamente a inteligência, por graus, um após outro. Ora, o Cristianismo, apontando desde o início o ideal supremo, se colocou em absoluto contraste com a realidade da vida que existe e quer continuar existindo no seu terreno de nível inferior, bem afastado daquele cume. Daí o choque entre as duas exigências opostas dentro da vida, a do ideal e a dos fatos, e a necessidade de conciliá-los de qualquer maneira, resolvendo-se o conflito na prática para que seja possível viver.

O problema é este: a realidade biológica baseia-se na luta para seleção do mais forte. Ora, como prover a necessidade de lutar, quando o Cristianismo corta as garras à fera e lhe tira todas as armas de defesa? Então, que pode fazer o cristão, que assim se encontra desprovido dos meios que lhe são indispensáveis para sobreviver num mundo que se baseia na luta? A vida, no seu conjunto de massas humanas, não pode aceitar a posição do cordeiro que se oferece em sacrifício somente para engordar os lobos vorazes.

O homem, preso dentro desta armadilha, tem que aguçar a sua inteligência para encontrar uma solução. Aqui começa ele a galgar o primeiro degrau neste novo sentido. Até agora foi apenas força brutal e estúpida, ou força dirigida com astúcia. Neste ponto da sua evolução, o homem tem que deixar a força de lado, para substitui-la por outra força mais sutil: a da inteligência. Todavia é inteligência primitiva, míope, que vence no momento obtendo a vantagem imediata na luta, mas perde a batalha maior, a longo prazo, e vastos resultados. Desenvolve-se deste modo a inteligência que encontramos em nossa civilização atual, a inteligência da astúcia e do engano. Mais não pode compreender e melhor não pode fazer um ser ainda fechado no seu egocentrismo. É lógico que ele terá de sofrer todas as conseqüências dolorosas desse método ainda imperfeito. Mas o sofrimento está aí exatamente para cumprir a sua função, que é a de ensinar a quem ainda não sabe.

Na substância, evolução biológica e sublimação espiritual são a mesma coisa. Esses são os primeiros passos no caminho da subida. Trata-se de transformar o mundo da matéria no do espírito, com todas as suas qualidades. Quer dizer, transformar a ignorância em conhecimento, desenvolvendo a inteligência, atingindo a compreensão de tudo o que pertence à vida, a sabedoria para se orientar com consciência de si próprio a fim de evitar o erro e o mal, que trazem sofrimento, e praticar a verdade e o bem, que trazem felicidade. O ponto de partida da sublimação espiritual é a fera. O ponto de chegada é o anjo. O caminho é um só, é o mesmo, emprestem-se-lhe as palavras da ciência, ou as das religiões. É o caminho que vai subindo do AS para o S, o que corresponde ao impulso fundamental do existir do universo e ninguém o pode parar.

Hoje, estamos nos degraus mais baixos desse caminho. O espírito está ainda envolvido nas trevas da ignorância, preso na cadeia da matéria, de erro e do sofrimento, constrangido a viver dentro de um corpo que não pode sobreviver a não ser à custa de uma luta feroz. Em vez de luz de inteligência, temos armas para o ataque e defesa. Eis de que se necessita no mundo: força. No terreno da inteligência, a mais útil é uma inferior, ao nível da astúcia, para enganar o próximo e vencê-lo na luta, armando ciladas com as armadilhas da mentira. Isto terá que durar até o homem chegar a compreender, à sua custa, quanto esse método seja contraproducente e perigoso. Então ele o abandonará para seguir o método, muito mais vantajoso, da sinceridade e honestidade, e novo degrau da subida será galgado.

O Cristianismo não existe fora da vida, nem pode sair das suas leis, ficando por isso sujeito a esse processo de desenvolvimento biológico e à forma que ele assumiu. Se, com a sua lei de amor, ele suprimiu a força, nem por isso o ser se pode permitir o luxo de ficar fraco, sem defesa alguma. A cobra que não tem dentes e garras, teve de desenvolver o veneno para se defender e sobreviver. Assim, a natureza criou outras armas mais sutis. Eis, então, a necessidade de passar da fase da força, à fase mais refinada de astúcia, que a seguinte no caminho da evolução. Aparece automaticamente então, esse outro método de luta, necessário para ensejar uma seleção mais adiantada, onde começa a aparecer a inteligência. Ora, esse fato tinha de se verificar no seio do Cristianismo que, com o seu princípio de sublimação dos instintos, se havia tornado instrumento de evolução. Mas, de que grau de evolução? Se o Cristianismo não pode sair das leis da vida, é lógico que ele tinha de operar dentro do nível atingido pelo ser humano. Quer dizer: a transformação biológica que ele podia realizar não era a teoricamente proclamada e pregada, da sublimação espiritual, mas a que agora observamos, a do plano animal-humano, isto é, a transformação da força em astúcia. Assim, o Cristianismo realizou somente o que podia biologicamente realizar, conforme a sua natureza.

Isto não é culpa de ninguém. A universal luta pela vida não é brincadeira, é uma necessidade terrível para todos. Cada fraqueza pode custar a vida. Não condenamos o Cristianismo. Mas reconhecemos que ele não podia fazer mais do que fez, porque não há religião que possa permitir ao homem sair de súbito do seu nível de evolução sem ter de obedecer às leis que nele vigoram. Assim aparece o problema, se o enfrentarmos com a forma mental positiva da psicanálise, observando-o objetivamente, como fenômeno biológico.

Está explicado, portanto, como nasceu, em nossa civilização cristã, o hábito e o método da mentira, que foi racional e biologicamente justificado.
 A lição que muitos aprenderam foi a única possível no seu nível, isto é, a da astúcia, que se substituiu à forca, como arma necessária, mais refinada, porém, a que permitia o afastamento da violência que revela o lobo, para usar em seu lugar a astúcia, que permite ao lobo esconder-se nas aparências de cordeiro. É assim que em nossa sociedade puderam tornar-se possíveis as aparências duma tranqüila convivência social.

A sociedade atingiu o triunfo desse método no frívolo século XVIII em que, com o maior respeito formal pela religião e com o pleno triunfo do poder da hierarquia eclesiástica, com a mais hipócrita homenagem aos ideais religiosos e o puritanismo sexófobo, a classe privilegiada, fervorosa em todas as práticas edificantes praticava uma feroz exploração dos pobres e, debaixo da moral oficial, uma vida de livre licenciosidade. Esse foi o século mais corrompido, em que, porém, se construíram mais igrejas e capelas, quase para cobrir com a plenitude exterior, o vazio interior. Triunfo da hipocrisia, com a qual foi possível conciliar as duas exigências opostas: a de ficar de posse de um ideal, mas colocando-o, longínquo, no céu e no futuro, bem afastado, para ele não incomodar, e a exigência de vencer na luta, o mais facilmente possível, conduzindo-a às escondidas, coberta de ideais, com aparência evangélica.

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Em terreno algum prevaleceu tanto este método do fingimento, quanto no dominado pelo puritanismo sexófobo. Observemos as razões desse fenômeno. O fingimento representa a válvula de segurança, a escapatória da vida, e por isso aparece todas as vezes que ela precisa resolver um caso em que lutam dois opostos, que é necessário conciliar. Neste caso temos de um lado o princípio da agressividade sexófoba que o Cristianismo da Idade Média estabeleceu em nossa civilização ocidental. Prevaleceu, assim, o conceito da satanizarão do amor, que se tornou condenável como culpa, pecado. Da luz da sublimação espiritual não chegou à terra senão essa sombra de negatividade a respeito do maior impulso da vida. Assim, o estímulo para a evolução se emborcou, torcido, em sentido antivital. De outro lado, temos o princípio oposto, muito mais próximo e percebido, porque constituído não por ideais e teorias, mas pela realidade biológica: o principio da continuação da vida que se impõe por meio do instinto do amor. Instinto que se torna tanto mais poderoso quanto mais é comprimido, e tanto mais reage quanto mais é agredido com condenações.

Os dois princípios: o sexófobo em nome da sublimação espiritual, e o sexófilo da natureza, estão um contra o outro. Os seres humanos, mergulhados nas trevas da ignorância, não compreendem nada desse fenômeno que eles estão vivendo. Então, é a vida que resolve o conflito no subconsciente deles, é ela que automaticamente oferece o resultado final da operação com que resolve o problema. Como cada uma das duas forças é bastante poderosa para não ficar vencida pela outra, não podendo ser eliminada com a vitória completa de só uma das duas, os dois impulsos opostos ficam existindo um perto do outro, cada um deixando um pouco do seu espaço para o outro. Atinge-se desta maneira, que é a única possível, um estado de amigável convivência, fazendo na superfície brilhar os ideais com a sua moral perfeita de puritanismo sexófobo e, debaixo dela, deixando funcionar as concretas satisfações materiais que respondem aos instintos da vida.

Se isto se pode ser hipocrisia do ponto de vista do ideal, para quem o queira tomar a sério, é, entretanto, ótimo para a maioria que não pensa nisso, porque sacia todas as exigências, isto é: nas aparências satisfaz os ideais do espírito, na substância satisfaz a realidade do corpo. Assim, tributando todas as honras exteriores aos princípios das religiões, e dando toda a satisfação positiva aos instintos materiais, o caso foi bem resolvido, como de fato acontece, para satisfação de todos.

Não estamos formulando julgamentos e muito menos condenações, mesmo porque isso seria presunção inútil que não altera nada. Estamos apenas observando o que vai acontecendo em nosso mundo, para encontrar uma explicação e compreender o fenômeno pelo qual, com a mentira, foi possível chegar a um compromisso que concilia as duas exigências opostas, assim resolvendo o caso com a coexistência pacífica. O ideal da sublimação espiritual é pesado, a ascensão requer muito esforço mas também surgem prontas as escapatórias que permitem a evasão. Eis como se estabeleceu o método da proibição oficial, em perfeita obediência aos princípios-ideais, assim respeitados e triunfantes, e ao mesmo tempo o método da desobediência tacitamente praticada e tolerada, assim satisfazendo as exigências da animalidade humana. Deste modo, porque a vida resiste a tudo e não há puritanismo sexófobo que a possa subjugar, ficou o insuprimível impulso do amor, em muitos casos olhado como pecado que leva às punições eternas do inferno, em vez de ser uma forma de bondade para compensar tantas maldades existente em nosso mundo.

Foi assim instituída uma automática e contínua fabricação de pecados, por seres naturalmente nascidos pecadores. Mas eis que, como para as doenças há prontamente médico e farmácia, para os pecados as religiões oferecem todos os remédios. A função delas é exatamente a de limpar pecados, de modo que, para a sua difusão e prosperidade, a abundância de pecadores e de pecados é útil, assim como, para a prosperidade dos médicos e farmácias, é útil a abundância de doentes e doenças. Chegou-se desse modo a um acordo tácito entre autoridades espirituais e pecadores, que puderam assim permanecer como tais, enquanto necessários para justificar a presença dessas autoridades com o seu trabalho de salvação, com que as organizações religiosas se sustentam tornando-se necessárias. Felizmente atingiu-se a solução do conflito com satisfação de todos, porque no mundo deve haver lugar para todos em paz, e o compromisso subentendido convinha a todos. Por fim, tudo acaba sendo lógico e equilibrado. Dado os dois impulsos opostos em ação, cada um exigindo a sua satisfação, essa foi a melhor solução.

Como é lógico, venceu o mais forte, isto é, a lei vigorante no nível biológico em que está situado o ser humano, venceu a realidade da vida qual é neste plano, e ela continuou funcionando, enquanto sobre as torres desfraldava-se ao vento a bandeira do ideal, para testemunhar, satisfazendo o orgulho, a nobreza substituindo a animalidade (bem escondida) do ser humano. Assim, a honra foi salva, como também a satisfação dos pecadores, ao mesmo tempo que as religiões com a sua posição terrena. Ficou a pregação dos ideais para embelezar o mundo, ficou a obra salvadora da redenção dos pecadores, sempre em grande número, quais fregueses indispensáveis e razão de ser do poder social, econômico e político das organizações religiosas.

Dessa forma os pecadores ficaram satisfeitos com os seus pecados, como os condenadores com as suas condenações. Assim a secreta satisfação dos instintos satisfez o corpo, como a pública condenação da culpa satisfez o espírito. É como a vida, sempre utilitária, consegue atingir o acordo entre opostos, por meio de um ajuste no qual cada um dos dois cede de um lado para ganhar do outro, deixando o que para ele é menos importante e ficando com o que lhe interessa mais. E cada um pôde ficar com a sua parte: os pecadores com os seus pecados, o que mais lhe interessa; e os pastores com as suas posições, que para eles são a coisa mais importante, posições bem assentes sobre um vasto rebanho de pecadores, sempre pecadores, um nunca acabar, porque logo que isso acontecesse desapareceria o trabalho que justifica a posição. É necessário um rebanho de seguidores continuamente rebeldes para converter, mas que nunca se convertem, é preciso um estado de pecado universal e permanente, que deixe o problema não resolvido, à espera de solução. Com isto concorda perfeitamente a maioria, que nada mais almeja.

Ora, cada um realizando os seus objetivos, concórdia maior não se poderia atingir. Eis como tal posição se estabeleceu nos séculos e por que a encontramos em nosso mundo  Não se pode negar que, no seu gênero, esta não seja uma obra prima de arte, que a sabedoria da vida realizou, conseguindo, nesta fase de transição no caminho evolutivo, conciliar temporariamente dois impulsos opostos sem destruir nem um, nem outro, porque ambos necessários. Ambos têm de existir, porque cada um deve cumprir a sua função; de um lado a geração livre e abundante, como quer a natureza, e de outro, a ascensão espiritual, como quer a evolução. É necessário imparcialmente reconhecer o direito de a vida atingir, com todos os meios, custe o que custar, a sua finalidade, que é a geração da quantidade, que lhe é necessária para dela depois, com a seleção, tirar a qualidade, que faz a evolução. Não está contra as leis da vida que, para a maioria ainda imatura, os esforços que a sublimação espiritual requer representem um empecilho, um peso do qual se deve libertar. Não se pode exigir que um involuído obedeça às leis superiores, que estão fora da sua forma mental, situadas acima do seu nível de evolução.

Tudo isto não escandaliza a vida que contém em cada nível de evolução uma respectiva ética diferente, proporcionada a ele. Podemos escandalizar-nos se escolhermos como ponto de referência o ideal, porque então nos apercebemos da posição atrasada da nossa ética humana em relação superior. É então que, pelo contraste, se reconhece que o ideal seja mentira na Terra. Mas para a vida tudo é natural e justo, se colocado no seu devido lugar e julgado a respeito do seu e não de outros planos de evolução. Em cada plano de existência a vida raciocina de modo diferente. Amanhã, numa humanidade mais evoluída, a vida quererá aplicar princípios mais adiantados, quais são os da sublimação espiritual. Mas hoje, estes, para a involuída humanidade atual, para a maioria imatura, podem representar uma negação antivital, contra a qual a vida reage defendendo-se. Na obra de Deus não se pode dizer que coisa alguma não seja perfeita, enquanto estiver cumprindo a sua função. Se nos aparece de uma maneira diferente, é porque não entendemos o seu lugar e a sua função.

É lógico que as exigências do plano de vida, onde se encontra hoje o homem, e as do nível de evolução que ele atingirá no futuro, quando chegar a realizar os ideais das religiões, sejam completamente diferentes. O ideal da vida no nível humano atual é a seleção do mais forte através da luta. Só quem venceu por ter desenvolvido os instintos de agressividade egoísta, sobreviveu e foi escolhido para formar a raça atual e o biótipo hoje dominante. É lógico, então, que ele siga esses instintos, que com eles funcione, deles dependam a sua forma mental e a sua conduta. Então é natural que ele tenha no sangue o gosto da agressividade, se a esta ele deve a sua sobrevivência. Oferecer a este tipo alguma coisa para agredir e destruir, significa oferecer-lhe oportunidade para satisfazer os seus instintos.

Ora, quando esse indivíduo, no mundo civilizado, se encontra perante a lei que lhe pede que viva na ordem, ele nada compreende desse princípio superior, mas nele vê só um obstáculo que se opõe à sua liberdade, uma provocação que o estimula à revolta e à luta. Explica-se assim a instintiva satisfação na violação da lei, considerada não como uma vantagem em lhe obedecer, mas como um ataque contra o qual é bom defender-se. Tudo acorda a cada passo o instinto do lutador e a reação do rebelde. A coisa proibida, só por isso, se torna mais preciosa e procurada. Possuí-la significa ser forte e vencedor, e, como tal, possuir mérito e ter direito ao respeito. Eis como tudo se transforma nas mãos do involuído, conforme o que ele é. O indivíduo, forte nesse plano, é lutador e, como tal, gosta de proibições para violá-las, de inimigos para vencê-los, de perigos para superá-los. Essa é forma inferior, mas na luta há um princípio de esforço, que é evolução.

Chegamos ao final. Que acontece então quando tal biótipo se encontra perante a proibição do puritanismo sexófobo? Para tal ser cada obstáculo representa uma dificuldade a vencer e com isso um convite à luta. Então, só pelo fato de que uma coisa é condenada, ela se torna mais interessante e procurada, o perigo representa um desafio que excita o desejo de vencer, a idéia do não permitido confere um sabor de coisa especial e preciosa. A proibição aumenta a falta, com a falta o desejo e, com o desejo, o valor. É a lei natural da procura e oferta. Assim funciona a psicologia humana. Uma coisa permitida, que se pode encontrar em abundância, só por isso perde parte do seu valor; ao contrário, é valorizada quando é rara, é difícil de se obter; só se pode atingir às escondidas e custa esforço.

Eis como se reduz, no plano animal-humano, este conceito do puritanismo sexófobo do Cristianismo: reduz-se a um convite para o indivíduo lutador experimentar o seu valor. O objetivo atingido foi completamente diferente do previsto. Acima dos princípios-ideais das religiões, os que venceram foram os inferiores da realidade biológica atualmente vigorante. Ora, isto contradiz absolutamente com as finalidades da sublimação espiritual do Cristianismo, o que quer dizer a sua falência nesse terreno, porque na vida real o homem chegou a um ponto contrário ao qual ele deveria chegar. As leis que venceram foram as biológicas, vigorantes no atual nível de evolução, as do presente, e não as leis do mundo espiritual, vigorantes num mais alto nível de evolução, as do futuro. Estas ficaram longínquas, nos céus, à espera de descer um dia à Terra, para aqui serem concretizadas.

Realizou-se, aí, verdade deste nível, que é bem diferente Aqui de fato a vida recompensa o guerreiro que sabe vencer, porque neste plano ele é o biótipo que mais vale, o que a vida quer que se reproduza. E de fato ela fala neste sentido no instinto da mulher no momento da escolha sexual  Nesta o mais procurado é o homem forte, que é o que garante a defesa, enquanto é desprezado o meigo homem do Evangelho que, pelo fato de tomar a sério e viver os ideais das religiões, na prática é julgado um ser inútil, porque fora da realidade da vida.

Então, prevalece em nosso planeta não a realização da moral cristã, mas da moral do mais forte. Nesse nível vigora o princípio que lhe pertence o direito de estabelecer à vontade a sua verdade: a do seu egoísmo. Ele construiu, assim, a sua ética sexual de domínio e completa liberdade, enquanto para a mulher, porque fraca e por isso sem direitos, tinha de vigorar a lei da obediência. Para o macho audacioso ficou reservado todo o direito de seduzi-la e abandoná-la, se ele for astuto  Neste caso o filho tem de nascer ilegítimo e a mãe ser desonrada. Para eles, porque mais fracos, toda a culpa e todo o dano. E, também no casamento, o instinto leva o homem a considerar a mulher como sua propriedade

 A vida continua o seu caminho, indiferente às pregações de princípios superiores, torcendo-os continuamente. As proibições do puritanismo sexófobo são utilizadas pela vida para realizar a seleção dos mais rebeldes e astutos, que melhor sabem violar essas proibições, dando assim prova do seu valor e com isso adquirindo o direito de serem escolhidos pela vida para se reproduzirem, multiplicando-se com a geração, aquele tipo. O que de fato prevalece na realidade é a vida inferior, da animalidade, não a superior das religiões, o que nos prova que o nosso mundo atual está mais próximo do AS que do S. Para o homem evangélico, que toma Cristo a sério e o segue, não há outra posição a não ser a Dele, isto é, a do crucificado.

 

Agora que tratamos bastante da penetração introspectiva nas camadas profundas da personalidade, para conhecer o produto do seu trabalho no período pré-natal, possuímos mais elementos de pesquisa no terreno mental para proceder a uma psicodiagnose, mais completa podemos voltar com maior conhecimento ao problema central da psicanálise, que é a cura das neuroses e complexos, para chegar finalmente a explicar o método de tratamento por sublimação, como prometemos.

A psicanálise freudiana admite que os complexos sejam devidos aos choques que surgem na luta entre subconsciente e consciente, isto é, entre o que o primeiro incondicionalmente quer para satisfazer os seus impulsos instintivos, e as negações que o segundo a tudo impõe, pelos princípios da ética e da razão, exigindo, ao invés de espontânea satisfação, disciplina, sacrifício, dever. Conforme as teorias de Freud um complexo é o produto de um desejo subconsciente reprimido. Trata-se, porque é automática continuação do passado, de uma inconsciente e irracional vontade de manifestação que bate à porta do consciente, pedindo o apoio do seu consentimento, mas que o consciente nega, rebelando-se, porque isto não concorda com os princípios que o dirigem. Esse contraste pode provir do encontro entre os produtos de um passado, que ainda não morreu e ressurge das camadas inferiores do ser, e o impulso da evolução que impele para a frente, faz pressão para que se realizem as novas construções do futuro. As velhas experiências estão ainda vivas e se agitam no fundo, e de lá voltam, enquanto novas experiências estão se sobrepondo e querem se substituir a elas. É assim que se pode verificar, dentro da mesma personalidade, um choque entre dois impulsos antagônicos, um devido à inércia do misoneísmo conservador, e o outro devido ao dinamismo ascensional do transformismo evolutivo, que exige renovação e superação.

Quando não é possível um acordo entre subconsciente e consciente, eles entram em luta  Então ocorre o choque e se desencadeia a neurose. Isto pode acontecer sobretudo com os imaturos. quando o indivíduo quer sufocar demais e à força instintos que querem explodir, ou quer reprimir a vontade do inconsciente que se quer realizar, ou é o próprio ambiente que torna essa realização impossível. Então o impulso comprimido acaba produzindo formas mentais torcidas e, com esse esmagamento, a própria personalidade fica magoada e ferida.

Nesse ponto surge, como já mencionamos, um trauma psíquico ou doença particular do organismo mental. Ora, muitas vezes, a primeira origem de tais contrastes e choques não se pode encontrar na vida atual, mas só no período pré-natal. Os complexos que deles derivam são os mais profundos e radicados, os mais difíceis a corrigir, porque mais velhos e confirmados pelo tempo, e por isso bem impressos e fixados na personalidade.

Entremos neste momento, no terreno que mais interessa à maioria, o prático do tratamento dos complexos. A primeira coisa a fazer é a de chegar a conhecer qual foi a sua origem, o que agora é possível fazer porque possuímos os princípios para nos dirigir nesta pesquisa Trata-se de descobrir qual foi o ponto da personalidade onde se verificou o choque e se iniciou o desvio, ou caminho torcido ou desabafo do impulso comprimido. Trata-se agora não somente de cessar. reprimindo em sentido antivital, o que as leis da vida não querem seja suprimido, mas de ajudar a desenvolver-se, porém endireitado na posição certa, melhor dirigido, canalizado com inteligência em sentido vital, tudo o que representa os sadios e necessários impulsos da existência.

O trabalho do psicanalista se desenvolve em dois momentos: 1) Pesquisa sobre a origem e o decurso da doença para estabelecer uma diagnose do mal; 2) Tratamento, eliminando o contraste e atrito, causa da doença, pondo em acordo os impulsos opostos, base do choque, suprimindo a luta interior entre eles, cicatrizando a ferida, orientando e deixando agora desabafar pelo caminho certo o que não se pôde desabafar senão pela via errada, nada suprimindo dos impulsos da vida, mas corrigindo tudo o que estava torcido, substituindo a satisfação oblíqua e doente pela reta e sadia. É preciso procurar educar de novo o indivíduo, até chegar a imprimir na sua personalidade novos hábitos, que serão amanhã suas qualidades e impulsos instintivos, o que significa libertação do mal e a cura da doença.

Para chegar a tais resultados o psicanalista possui cinco meios: 1) A análise, como já explicamos, da estrutura da personalidade e do destino do paciente, observando os seus impulsos instintivos, para reconstruir com o exame deles o trabalho feito para os gerar e fixar no passado do indivíduo. 2) Análise de tudo o que é produto espontâneo do subconsciente e que pode melhor aparecer quando é afastado o controle do consciente. Por isso o psicanalista, colocando o paciente em estado de distensão nervosa, escuta e analisa as suas confissões, desabafo espontâneo de seu subconsciente. 3) Outro meio para penetrar no íntimo do paciente é a análise dos seus sonhos, com a qual se atinge o objetivo do psicanalista que é o de abrir o livro do subconsciente, onde tudo está escrito, para nele ler. Deixemos de lado, como fez Freud, o método da hipnose, que nos levaria longe demais. 4) Tratamento por substituição do velho pelo novo, enxertando-o no contínuo transformismo da evolução. 5) Tratamento por sublimação, processando essa substituição em sentido evolutivo, isto é, com um tipo de vida biologicamente mais adiantado. Observemos melhor estes pontos.

1) Do primeiro já falamos bastante. Trata-se de observar como funciona a vida do indivíduo, por que motivos ela é dirigida, a que estímulos ele responde e como contra eles reage, quais são as suas idéias inatas, a que impulsos seus, espontâneos, ele obedece. É possível assim reconstruir a história do paciente, estabelecendo o tipo e linha de desenvolvimento do seu destino, como já explicamos. A história menor dos seus complexos está contida nessa sua história maior, que constitui a base do exame da origem, natureza e desenvolvimento das doenças. Trata-se de um método de pesquisa racional, baseado na lógica e na observação, método positivo, importante também pelo fato de, por intermédio dele, uma pessoa inteligente poder tornar-se observador de si mesma, isto é, o psicanalista do seu próprio caso. O paciente, ele próprio, pode realizar em si tais pesquisas. Chega-se assim à autopsicanálise, que permite atingir resultados introspectivamente mais completos, porque a observação pode ser melhor percebida e conduzida, já que o observador é também o paciente, o que lhe permite descer na profundeza do fenômeno, porque ele mesmo é o fenômeno. Afinal de contas a psicanálise faz parte do problema fundamental do: "Conhece-te a ti mesmo".

2) A confissão, feita, ao psicanalista, ou no caso de autopsicanálise feita a si mesmo, com um sincero exame de consciência, é o meio para descobrir o conteúdo do subconsciente, isto é, daquela parte desconhecida do nosso eu, que pensa e funciona fora de nossa consciência atual, como automática conseqüência dos impulsos por nós lançados nas vidas passadas. A condição fundamental é a espontaneidade e sinceridade, de modo que a confissão revele qual é na verdade o conteúdo do subconsciente. É necessário por isso analisar tudo com olho imparcial e sem preconceitos, afastando as resistências e todas as barreiras inibitórias do controle e da autocrítica, atrás das quais o indivíduo se procura esconder e disfarçar, a isso constrangido na luta pela vida para defender a parte mais íntima e preciosa de sua personalidade, aquela que contém a reserva das suas qualidades. Assim, para que o paciente possa abrir completamente a sua alma, é necessário que ele tenha absoluta confiança no seu psicanalista, que por sua parte terá que a merecer e saber aproveitar, para proceder a uma profunda pesquisa com perguntas inteligentes e sábia interpretação das respostas.

A confissão pode ter, também, outra função. Ela pode representar não somente um meio de pesquisa, mas também ser útil para desabafar e, assim, eliminar a carga interior, deixando o paciente desabafar com o seu psicanalista, que deve ser seu amigo e confidente. A confissão se torna, assim, um alívio, primeiro passo para chegar ao tratamento. O paciente se fortalece com a convicção de ter um apoio que lhe permite entregar os seus sofrimentos nos braços de um amigo. Assim o psicanalista pode iniciar o seu trabalho antes de tudo acalmando as águas, colocando o paciente em estado de tranqüilidade que, neutralizando a tempestade, permite iniciar o caminho oposto, o da correção e endireitamento. Esse é o primeiro passo, o de enfraquecer o inimigo do tratamento, que é a resistência do indivíduo para ficar nas velhas posições, seguindo os velhos caminhos. Método que muitos procuram instintivamente realizar, apoiando-se em pessoa amiga. Método que também o catolicismo pratica, mas que presume um confessor inteligente apto na difícil arte de dirigir consciências, o que e raro encontrar, porque depende de qualidades pessoais, que nem todos possuem. Assim, na prática, a confissão se reduz à aplicação mecânica de regras estabelecidas, lista de pecados e correlativas penitências, tudo estandardizado no nível baixo da consciência média da maioria, para facilidade prática, reduzido a formas administrativas burocráticas, exteriores, que permitem ao confessor ficar juiz imparcial, mas ausentando-se do mundo interior do penitente, com a vantagem de não se meter em problemas psicológicos difíceis de resolver, de não se comprometer assumindo responsabilidades, mas, também, nada dando de si mesmo e, com frias pregações regulamentares, pouco realizando de espiritual.

Pelo contrário, o psicanalista deve possuir qualidades pessoais de intuição para saber adaptar a pesquisa e o tratamento ao caso particular. É necessária muita compreensão e compaixão, penetração e bondade, porque se trata de penetrar no mais íntimo segredo da alma, de manobrar as forças espirituais das quais depende o destino do indivíduo, a sua felicidade e sofrimentos, a sua conduta e o seu futuro. Trabalho difícil e de grande responsabilidade. Trata-se de uma intervenção, mais do que no cérebro, na própria alma, difícil porque pode salvar, mas pode também matar. Trata-se de desvendar mistérios ao próprio paciente, de penetrar, com o desapiedado bisturi da pesquisa, no terreno mais cioso das culpas secretas, que o ser não revela nem mesmo a si próprio. Com essa confissão se trata de fazer juntamente com o paciente um exame de consciência que revele antes de tudo a ele quais foram no passado os seus pecados, isto é, os erros que constituem o ponto fraco que deu origem à doença, da natureza dos quais agora depende o trabalho atual de endireitamento que realiza a cura.

3) A análise dos sonhos do paciente representa outra forma de pesquisa para penetrar no subconsciente e descobrir o seu conteúdo. No sono ele se mostra qual é, quando pela falta de controle do consciente fica abandonado aos seus impulsos espontâneos. Então, o psicanalista aproveita esse fato para observar os sonhos, e, interpretando o desabafo, emersão do mundo interior do paciente, chegar à reconstrução de sua história passada, na qual está contida a história da doença. Pode-se, desta forma, descobrir quais foram as exigências não satisfeitas ou mal satisfeitas, os choques recebidos e as feridas, traumas e chagas que se seguiram na personalidade, qual foi o erro inicial que deu origem aos desvios e depois à doença e correlativos sofrimentos, como e onde nasceu o primeiro germe que se aninhou na personalidade com todas as suas conseqüências. Estamos ainda na fase da pesquisa e análise do caso para chegar à sua diagnose, da qual depois derivará o tratamento. Temos de seguir esse caminho, porque se trata de desatar o nó que foi feito no passado.

A psicanálise estuda os sonhos porque eles contêm a realização imaginária dos impulsos que não foi possível realizar nos fatos, impulsos que, assim, aparecem nos sonhos, tanto mais se revelando quanto mais eles foram comprimidos. Os sonhos representam um trasbordamento do subconsciente para além dos limites impostos pelo consciente, quando este adormece e, na sua passividade, deixa a personalidade sem o seu controle, livre de se manifestar à vontade. É assim que nos sonhos o subconsciente nos devolve as impressões recebidas, nos revela os seus segredos, nos conta a sua verdadeira história, o que lhe é proibido de dia pela consciência acordada, que sabe quanto, na luta pela vida, cada sinceridade seja fraqueza perigosa. De dia a personalidade tem que estar desconfiando de todos e fica calada, cercando-se de prudência. Mas os impulsos que de dia não foi possível realizar, se satisfazem realizando-se no sono, na forma de imagens e miragens, com uma criação psicológica interior que representa o substituto da impossibilitada realização concreta dos desejos.

*   *   *

Com estes três pontos temos esgotado o primeiro período, que é o da pesquisa e análise do caso, do qual agora conhecemos a origem e a história. E possível, então, concluir esta primeira fase com a diagnose, nela depois se baseando para enfrentar a última fase de nosso trabalho, que é a do tratamento. Mas, antes de estudar este outro aspecto do problema, completemos o assunto com algumas observações mais.

O psicanalista deve chegar a conhecer a personalidade do paciente, o que ele pode fazer observando todas as suas manifestações por meio de exames psicológicos, grafológicos, testes de inteligência etc. O psicanalista deve possuir qualidades pessoais de intuição para penetrar na alma do paciente, orientando-se nas suas pesquisas com estas teorias gerais, aplicando-as e adaptando-as ao específico caso particular do indivíduo, com a sagacidade que o caso exige. Chegar a ler no subconsciente não é fácil, porque ele está bem fechado, protegido pelo próprio paciente que o defende por que contém e revela a verdadeira personalidade, mesmo nos seus pontos fracos, o que é perigoso mostrar porque, na luta pela vida, é mal necessário esconder para se defender de todos os inimigos, em busca de agressão e destruição.

É preciso individuar em que profundidade do eu se verificou o trauma psíquico, até que camada da personalidade do paciente é necessário descer na longa história do seu passado, para encontrar a primeira origem da doença mental atual, que assim surgiu. Temos, então, que ir à procura do ponto em que ela nasceu, seja descobrindo-o enquanto ele está colocado ao longo da história da vida do paciente, isto é, no tempo mais próximo ou longínquo, seja localizando-o na correspondente profundidade da personalidade, na série das estratificações sucessivas de suas experiências. Tal ponto de origem dos choques pode se encontrar situado na superfície, isto é, história recente, de há poucos anos, na vida atual, como também na profundidade, isto é, história mais velha, de há muito tempo, nas vidas precedentes. Ora, as doenças não podem ser tratadas senão voltando ao seu ponto de origem. E, quando este é longínquo, torna-se necessário, onde quer que ele esteja, atingi-lo, porque de outro modo não é possível realizar o tratamento por correção do caminho percorrido.

Pode-se verificar o caso em que o choque aparece recente, enquanto em substância ele não o é. Como nas doenças físicas, também nas nervosas, o fato delas serem ou não contagiosas, depende da predisposição do indivíduo, a qual se encontra nos pontos onde ele antes já tinha recebido outro choque com relativa ferida ou trauma psíquico. É por isso, então, que o paciente ficou magoado pelo novo complexo ou neurose, porque este encontrou o terreno já preparado e adaptado para isso por choques precedentes, que são o ato que constitui a predisposição e vulnerabilidade à correlativa doença mental. É assim que os indivíduos que não foram deste modo preparados são mais resistentes e menos sujeitos a adoecer. Por isso é necessário conhecer a história toda do indivíduo, porque a primeira origem das neuroses e complexos a que é necessário voltar para corrigi-los, não está no ponto próximo recente como parece, mas muito mais longe, no passado. Temos, assim, no tratamento de levar em conta o fato que às vezes lutamos contra doenças, que se desenvolveram e cada vez mais se fixaram na personalidade, sobrepondo-se e somando-se.

Vimos aqui só alguns aspectos do difícil caminho que o psicanalista tem de percorrer na floresta de problemas que podem surgir no tratamento de cada caso particular. Para descobrir qual é o verdadeiro temperamento, as qualidades e reações do paciente, o psicanalista deveria, pelo menos por um período de tempo, conviver com o doente. Não é por meio de uma pesquisa rápida e superficial, realizada numa consulta, que é possível penetrar na personalidade, entender e resolver um caso. Mas, em geral, o médico está assoberbado de consultas, em série, adaptadas aos tipos dominantes, orientadas pela preocupação do ganho material, e por isso, pela necessidade de satisfazer o cliente adaptando-se à sua forma mental. Tudo na vida funciona num regime de luta, que tudo domina, enquanto o trabalho do psicanalista deveria ser independente de preocupações econômicas, praticando como missão e sacerdócio, com espírito de compreensão e amor. O nosso mundo está cheio de sofredores, que pedem e precisam de ajuda. E são os próprios métodos de vida de tal mundo que, pela competência feroz, geram tais doenças e tornam difícil o seu tratamento. Em última análise, elas são o resultado de um imenso erro coletivo, de uma forma mental e regime de vida desviados, erro que abrange todos, médicos e doentes, toda a sociedade .

O próprio psicanalista precisa de um ponto de referência, em função do qual possa realizar o seu trabalho. Por isso ele deve estabelecer, como modelo a propor ao doente, um tipo biológico a imitar. Ora, este não poderia ser um super-homem evoluído, porque tal tipo poucos podem entender e muito menos imitar por falta de amadurecimento. É necessário que a distância entre o doente a educar e o seu modelo não seja grande demais, se queremos que um homem comum consiga superá-la. Então, o modelo, ponto de referência, deve ser o biótipo médio, medíocre, não demasiadamente evoluído, de pouco valor biológico, mas que em compensação possua uma forma mental compreensível e acessível para a maioria Quem não é feito assim, está errado. Em nosso mundo e necessário antes de tudo ser normal, de nível comum, nunca ser excepcional, porque então seremos anormais  e, por isso, condenados e expulsos.

4) Neste ponto, como há pouco mencionávamos, o psicanalista, concluída a sua pesquisa com a diagnose, pode enfrentar a segunda e última parte, que é a do tratamento. Falamos de tratamento por substituição. Como pode ele realizar-se?

Ele se baseia no fato de que a vida é um fenômeno em evolução, pelo que está sujeita a um contínuo transformismo. Isto se verifica ao longo de um caminho feito por uma concatenação causa-efeito, efeito que por sua vez é causa de outro efeito, e assim por diante. Isto significa, não somente, que o presente é conseqüência fatal do passado, e o futuro conseqüência fatal do presente e passado, mas que é possível enxertar na sucessão desses movimentos de forças encadeadas, outras diferentes que podem corrigir a trajetória daquele caminho. É assim que se torna possível endireitar o que foi lançado em sentido errado. Este método se baseia no fato de que, pelo seu livre arbítrio, o indivíduo pode gerar novos impulsos que funcionam como novas causas que, substituindo-se às velhas, podem gerar novos efeitos, que neutralizam os precedentes, conseqüência das velhas causas. É esta atmosfera de movimento, devida ao transformismo evolutivo, que, deixando atravessar novas experiências, permite essa contínua renovação do ser, e com isso a correção do passado.

A tarefa do psicanalista é a de provocar e dirigir o lançamento de novos impulsos corretivos da parte do paciente, porque nisto consiste o tratamento. Este é constituído pela neutralização dos movimentos errados iniciados no passado, dos quais deriva a doença. Trata-se de substituir a velha por uma vida nova, diferente, para educar o indivíduo, de modo que com uma nova experimentação ele possa assimilar, transmitir e armazenar no subconsciente qualidades melhores. Aqui o remédio e a cura. Por isso antepusemos a estas observações um estudo sobre o processo da construção da personalidade.

Ao longo do caminho evolutivo, o tempo mede fatalmente o incessante transformismo, sobrepondo na estrutura da personalidade uma camada sobre a outra, assim levantando o edifício do eu. É uma longa história que o ser vai escrevendo e que nele fica escrita indelevelmente. Este é o livro que o psicanalista deve ler,  para nele introduzir algumas páginas inéditas, páginas de sublimação da psicanálise. Ele se deve tornar o engenheiro da grande obra da construção da personalidade, a obra do levantamento do edifício do eu. Se a função da psicanálise fosse somente a de tirar doenças e dores, poderia ela fazê-lo suprimindo o atrito entre consciente e subconsciente, causa dos complexos, e deixando o subconsciente animal desabafar à vontade. Mas assim a psicanálise se tornaria uma escola de involução, traindo a sua maior finalidade: a de ser um meio de evolução.

Tudo isto implicitamente contém e nos indica o sentido para o qual se deve dirigir a obra do psicanalista. Então, o tratamento melhor é o que atua realizando uma transformação em sentido evolutivo, levando o paciente para o alto, atingindo assim não somente o objetivo de corrigir o passado, senão também o de um progresso espiritual, o que significa chegar a um plano biológico mais adiantado e a um melhoramento nas condições de existência. A função fundamental da psicanálise pode ser não somente a de corrigir defeitos e curar doenças, mas a de ajudar o ser a evoluir seguindo o caminho que vai do AS ao S, impulsionando-o para formas de vida progressivas e, por isso, mais felizes.

*   *   *

5) Eis como surge na psicanálise a idéia de sublimação, como método de tratamento. A ela já nos referimos, e agora chegou o momento de desenvolver este assunto, como prometemos no início deste capítulo.

A força em que o psicanalista tem de se apoiar é o sadio impulso vital que anseia pelo crescimento, o progresso, o aperfeiçoamento, a subida para a felicidade. Mas há seres atrasados, surdos a tudo isto, mergulhados na sua ferocidade e ignorância, que não sabem conceber formas de vida superiores, seres cujo subconsciente não possui senão o resultado de experiências de tipo animal. A sua ética, proporcionada ao seu nível, é uma ética primitiva, inadaptada para viver na sociedade dos civilizados, enquanto seria ótima na floresta das feras. Eles constituem os delinqüentes. O mundo pensa sobretudo em defender-se deles e os afasta e isola nas cadeias, punindo nos involuídos a culpa de serem movidos por uma ética de violência, que no passado foi o ideal do homem sadio e que agora. pelo progresso, se tornou crime. O resultado é a repressão violenta. que gera reações piorando a situação, porque confirma o criminoso na sua revolta e na convicção da sua justiça. Pelo contrário, a função da sociedade deveria ser a de educar, melhorando as condições de vida onde nasce o crime, seguindo, quanto possível, a técnica da superação, que eleva para o que é melhor, ao invés do método do esmagamento, que confirma o direito à revolta, leva o ser para trás para o que é pior.

O método de tratamento por sublimação pode ser aplicado com tanta maior amplitude, quanto mais o paciente é evoluído. O tratamento deve ser proporcionado às capacidades de compreensão e reação do indivíduo. Cabe ao psicanalista assim entender e julgar. É possível que ocorra o caso em que o doente seja mais evoluído e inteligente do que seu médico. Então, pode acontecer que seja o paciente que faz a psicanálise do psicanalista. E o próprio fato de que o primeiro vai no consultório do médico, já estabelece as posições recíprocas, pela qual um se coloca a priori em posição de inferioridade, para ser julgado, e o outro em posição de superioridade, de quem julga. Tudo se baseia na interpretação que, do que ele percebe e entende, faz o psicanalista com a sua forma mental, que é a premissa axiomática de todo julgamento. Então a psicologia do psicanalista faz parte do fenômeno e da observação do fenômeno psicológico do doente. Carl Gustav Jung, nos seus contatos com Sigmund Freud, fez a psicanálise dele, chegando à conclusão que o complexo de Edipo fosse o complexo do próprio Freud, que este tomava como base das suas teorias. Conforme o julgamento de Jung, a psicologia freudiana teria sido uma psicologia neurótica. O psicanalista pôde, assim, praticar uma psicanálise fantástica e destrutiva, baseada no seu próprio temperamento. Por isso, aqui sustentamos que ela se deve basear num sistema filosófico positivo e completo que a oriente, realizada em relação a um dado modelo biológico, em função das leis da vida, sobretudo da mais fundamental que é a evolução.

O problema do tratamento dos complexos e neuroses não é fácil e, na prática, requer sagacidade e adaptações ao caso particular. Mas em linha geral esse trabalho se pode dividir em duas partes fundamentais: 1) a parte negativa, cujo objetivo é a destruição do velho, que esteve errado, extraindo assim a causa da doença. Trata-se de arrancar o dente estragado, que dói. 2) a parte positiva, cujo objetivo é a substituição do velho pelo novo, um novo que não está errado, enchendo com um conteúdo certo o vazio produzido pela destruição precedente. É um erro perigoso, na qual caíram as religiões na sua perseguição da natureza humana inferior, o de destruir a vida embaixo, esmagando-a sem substitui-la por formas de existência mais adiantadas.  Qualquer destruição é elemento negativo, antivital, que pode ser tolerado só como condição de progresso. Não basta arrancar o dente estragado que dói, é preciso substituí-lo por outro, com o qual o indivíduo possa comer.

O método de tratamento por sublimação representa esta segunda parte positiva do trabalho do psicanalista. Mas este tem de iniciar com a primeira parte, o que exige muito cuidado. Pode acontecer que, para mais rapidamente resolver o caso, ele seja levado ao bombardeio dos complexos, para os eliminar. Ora, esta luta para destruir o velho, substituindo-o pelo novo, tem de ser praticada sem que o paciente se aperceba, sem excitar com isso as suas resistências inibitórias, prontas a paralisar o tratamento. É necessária a aceitação, a boa vontade, a obediência do doente. Ora, pelo fato de que a sua personalidade está formada com os seus complexos, qualquer tentativa de destruição destes pode ser percebida e entendida por ele como uma tentativa de destruição da sua personalidade, que, apesar de doente, constitui o seu eu, que pelas leis da vida ele mais se defende com o seu instinto de sobrevivência. Então, se o psicanalista não soube disfarçar com outro tratamento aparente o verdadeiro conteúdo do seu trabalho, poderá encontrar no doente uma inconsciente reação, uma oposta vontade que quer neutralizar o seu trabalho de salvação. É necessário, então, oferecer ao doente um tratamento fictício, contra o qual ele possa dirigir a sua luta de resistência, ao mesmo tempo que assim ele, sem o suspeitar, se deixa guiar pelo tratamento verdadeiro, ao qual não presta atenção. Este consiste em colocar o sujeito vivendo num ambiente oposto ao precedente, ambiente novo no qual os complexos não encontrem mais alimento que os sustente, e os velhos hábitos tenham, assim, que morrer por desuso e atrofia.

Chega-se deste modo à segunda parte do trabalho do psicanalista. A primeira parte representa a forma mais elementar de tratamento, adaptada aos menos evoluídos. A segunda dirige-se aos mais maduros, que por isso podem tentar escalar um novo degrau da evolução, resolvendo o seu caso pelo caminho da superação, canalizando as suas energias do nível animal-humano, para formas superiores. Mas como não existem duas classes separadas de amadurecidos e imaturos, mas há entre estes dois extremos uma série de formas intermédias, o psicanalista terá de praticar nos seus pacientes injeções de superação proporcionadas à sua capacidade de absorção e assimilação, se ele não quiser fazer um trabalho inútil, ou pior, por reação da parte do paciente, levá-lo para o sentido oposto.

No caso dos mais adiantados, pode acontecer que a neurose seja o resultado de uma crise de crescimento. Sair da animalidade, passar de um nível biológico a outro, representa deslocamentos e esforços enormes, necessidade de trabalhosa adaptação progressiva a uma atmosfera diferente. rarefeita demais para os pulmões do homem atual, representa ter de realizar uma profunda transformação do organismo, sobretudo nervoso e cerebral, para acompanhar o nascimento e permitir a vida do novo tipo biológico espiritualizado. Pode ser, então, que os distúrbios neuro-psíquicos sejam devidos ao esforço que um desenvolvimento da personalidade demasiadamente rápido requer.

Nestes casos o problema da neurose deve ser enfrentado de maneira completamente diferente, isto é, como fenômeno não patológico, de natural evolução biológica. A presença das neuroses pode, então, assumir um sentido e valor diferente. Neste caso o trauma psíquico é o resultado de um esmagamento do subconsciente, devido à luta contra ele da parte do consciente, que quer substituir aos seus impulsos inferiores outros superiores. Então a doença não é uma derrota, porque ela existe em função de uma superação, faz parte do processo da evolução, pelo qual o direito de vencer pertence ao consciente, que é mais adiantado do que o subconsciente, que deve ser superado, porque a lei da vida é o progresso. O trabalho da construção da nova personalidade do futuro realiza-se no consciente, ao qual pertence o comando e deve estar sujeito o inferior subconsciente animal. Então o que parece uma derrota não o é, porque é só destruição de um mundo inferior, condição necessária, porque sem ela não é possível subir. Logo, doença e sofrimento são meios naturais e inevitáveis, inerentes ao processo evolutivo, indispensáveis instrumentos de progresso; eles são as feridas do guerreiro, saudáveis, porque só descendo à luta se pode realizar a coisa mais importante da vida, que é a evolução. Tais males representam, na justiça da Lei, o preço do resgate para se remir da queda, o trabalho necessário para se voltar ao S.

Neste caso, a função do psicanalista não é a de combater as neuroses só para as destruir, mas é a de acompanhá-las utilizando-as para ajudar o desenvolvimento do paciente. A doença neste caso não é senão um elemento do processo evolutivo. A atenção do psicanalista deverá, então, dirigir-se para o fenômeno mais importante, que é a evolução do indivíduo, e, só em função desta, cuidando do fenômeno secundário que são os males conseqüentes do esforço necessário para obter-se uma conquista biológica. Isto não quer dizer que o psicanalista não tenha de tratar os distúrbios nervosos, mas ele terá de fazer isto em função do que mais importa, que é a transformação evolutiva que se está realizando no paciente. Então, os distúrbios poderão desaparecer por si próprios, quando tiver acabado o processo de transformação, e chegar ao seu efeito

Vemos, aqui, como é complexo o problema do tratamento das neuroses e vasta a tarefa do psicanalista. Ele pode tornar-se construtor da personalidade, artífice da evolução. Há energias vitais em todos os indivíduos. Em alguns casos elas foram comprimidas, torcidas, estragando-se na tentativa mal sucedida de se evadir à lei de evolução, expandindo-se para baixo, ao invés de para o alto. Por isso chegou a dor e temos almas aleijadas, doentes. A descida é a direção perigosa, a que leva para baixo, enquanto a direção certa é a da subida, a que leva para a verdadeira saúde. A expansão das energias em descida confirma e fortalece no subconsciente os instintos inferiores da animalidade, prendendo o ser sempre mais aos sofrimentos de um plano de vida atrasado, do qual o médico, doador de saúde, deveria procurar afastar o paciente, ajudando-o a deslocar-se não em descida, mas em subida.

O psicanalista pode tornar-se um canalizador de energias comprimidas, orientando-as e dirigindo-as para um mundo superior, realizando assim o progresso do indivíduo, o que significa atingir um resultado muito maior do que somente o de tratar uma doença. E para um indivíduo maduro, apto para isso, tal método de tratamento por sublimação representará a valorização de seus esforços evolutivos. O paciente será sustentado pela idéia de que a sua doença não é doença, mas uma crise de evolução, que ele não é um doente, mas um indivíduo em crescimento, que os seus sofrimentos são a condição necessária de seu progresso. Esperança grande, que leva a uma aceitação mais fácil, idéia que ajuda, saudável e salvadora, tanto mais quanto ela corresponde à verdade. E, para os menos amadurecidos, tal tratamento por sublimação pode ser aceito enquanto se apoia no natural amor próprio do indivíduo que, assim pode acreditar, que vai logo pertencer à classe mais adiantada dos evoluídos. Entretanto, baseando-se nesta fé, ele começará fazendo alguns esforços em direção da subida, que em todo caso lhe serão vantajosos, representando pelo menos uma tentativa de superação da animalidade.

Em resumo, na prática, o psicanalista tem que lutar contra duas exigências opostas: 1) a de impulsionar o paciente pelo caminho da evolução, superando os instintos inferiores, porque este é o caminho da salvação; 2) a de tratar os complexos eliminando os choques que os gerou, no esforço para realizar aquela superação.

Se a doença nervosa pode ser o resultado de uma crise de crescimento, isto é, de um esforço concentrado para realizar uma evolução rápida demais, assim representando o preço que o indivíduo paga por ela, eis que neste caso o tratamento para eliminar o complexo consistiria, como já frisamos, em deixar o subconsciente desabafar livremente na sua espontaneidade, sem constrangimentos, conforme os seus instintos inferiores, como procura fazer a maioria que, por isso, não possui complexos. Mas eis que, assim agindo, o psicanalista impulsionaria o indivíduo não a progredir, mas a retroceder, paralisando a evolução, que é a maior finalidade da existência.

Há pouco acima dizíamos: para tratar um complexo, é útil colocar o paciente em ambiente oposto àquele que continha as condições que geraram a doença. Mas se esta nasceu por querer substituir uma virtude por um vício, isto é, uma forma de vida mais adiantada por uma involuída, então para eliminar o complexo seria necessário abandonar a virtude e voltar ao vício, isto é, à forma de vida que não exige esforço para evoluir, resultando espontânea para o indivíduo atrasado. Mas isto representa o desvirtuamento da função do psicanalista que, como já mencionamos, é sobretudo a de educar, impulsionando para a subida. Hoje, alguns psicanalistas revelam fraqueza em face do doente, preocupados, antes de tudo, em tirar-lhe os sofrimentos. E assim procuram que, custe o que custar, ele fique curado e satisfeito. Dessa forma, o doente, ao invés de aprender novos hábitos melhores, continua praticando os velhos piores, que deste modo, em vez de serem eliminados por desuso, se fortalecem por novo uso.

A sabedoria do psicanalista está em conciliar as duas exigências opostas, reclamando do paciente o esforço que ele pode dar no sentido da evolução, ao mesmo tempo deixando-lhe o mínimo de satisfação inferior necessária para acalmar o complexo.  Por isso é bom que a arte da substituição de hábitos, dos novos no lugar dos velhos, se realize com inteligência, por degraus, adaptando-se ao indivíduo, para não gerar choques, isto é, novos complexos, para que o próprio tratamento, ao invés de curar, não acabe piorando a doença. Se, de um lado é preciso eliminar os complexos, de outro é preciso também evoluir  Se exigirmos esforço demais no sentido evolutivo, perseguindo o paciente, acabaremos gerando novos complexos. Mas, se o deixarmos completamente ao sabor dos seus instintos inferiores, curaremos os complexos, mas seremos mestres não de progresso, mas de atraso. A sabedoria está em se equilibrar no meio, para atingir o máximo resultado útil, seja no terreno do tratamento, como no da evolução; está em saber proporcionar o tratamento às capacidades de progresso e ao grau de evolução do indivíduo.

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Vimos que a psicanálise pode entrar, também no terreno, até agora reservado à ética e às religiões, da direção psicológica e espiritual para a salvação das almas, agindo, não em forma empírica, mas com competência científica. Eis que, num mundo mais inteligente, esta nova psicanálise poderá oferecer-nos um método positivo de redenção, praticando, com conhecimento da natureza do fenômeno, os princípios das religiões, que ensinam que é útil aceitar a dor, porque a podemos transformar em instrumento de ascensão evolutiva e, pois, de salvação. Tudo isto nós sabemos, não por aceitação cega de fé, mas por demonstração positiva e pela lógica da fenomenologia universal, que é convincente a quem queira pensar. Assim as ciências psicológicas se amplificam, atingindo horizontes muito mais vastos, tornando-se ciência do espírito, conquistando, pelo seu conhecimento dos problemas da psique, que as religiões não possuem, o direito de dirigir as almas.

Assim, podemos entender com a nossa forma mental moderna, em termos de psicanálise e evolução, o método da sublimação, o das religiões, que estas praticam há milênios. Elas quiseram fazer de cada fiel um soldado do ideal, para a conquista de um plano de vida biologicamente superior (o reino de Deus). Foram elas que no passado estabeleceram as normas de conduta, encarregando a consciência de as impor ao subconsciente para dominar os seus inferiores instintos de animalidade e transformá-los no sentido evolutivo. A mesma coisa deveria fazer a nova psicanálise, isto é, colocar o indivíduo no caminho da evolução, impulsioná-lo para a frente, aplicando, mas com conhecimento, o velho método empírico das religiões, que consiste em colocar o paciente extraviado no AS, que é o caminho da doença e da dor, no caminho do S, que é o da saúde e felicidade. Trata-se de acompanhar e dirigir o crescimento do ser, a transformação do animal em homem e o nascimento do super-homem do futuro.

De fato, o método das religiões é o de acordar a consciência (o consciente), para que ela controle os impulsos inferiores (subconsciente instintivo) aos quais o involuído é levado a obedecer. O exame de consciência faz parte deste método. Trata-se, de fato, de uma observação introspectiva dos impulsos aninhados no subconsciente, assim submetidos ao controle e domínio do consciente, que conhece e está encarregado de impor as regras de conduta que as religiões lhe ensinam. Este método faz parte do processo da descida dos ideais do alto para a terra. Assim, os maus hábitos podem ser transformados em virtudes, com a repetição podem ser gravadas no subconsciente novas e melhores qualidades, sendo possível educar o homem e realizar a evolução, construindo a personalidade em formas cada vez mais adiantadas. Eis o ponto de contato entre psicanálise e religiões, a ponte pela qual elas podem comunicar-se. Assim, a primeira se poderá enriquecer da longa experiência das segundas, e estas do conhecimento dos fenômenos psicológicos, que só a primeira possui. Desta forma a ciência poderá entender o significado biológico da sublimação religiosa e do misticismo, bem como o valor positivo dos métodos psicológicos praticados pelas religiões Assim, o que foi descoberto por intuição, mas ficou empírico na prática, poderá ser sustentado pela lógica de uma demonstração racional.

Eis o que Carl Jung escreve a respeito da relação entre psicanálise e religião: "Entre todos os pacientes que encontrei na segunda metade de minha vida, não houve um cujo problema em última análise não fosse o de encontrar uma concepção religiosa da vida. Todos estavam doentes, porque tinham perdido o sustentáculo e o apoio que as religiões oferecem, e posso afirmar que nenhum deles foi verdadeiramente curado, sem ter antes conquistado uma concepção religiosa".

Há, porém, uma diferença entre a psicanálise e as religiões. Nos seres primitivos, que funcionam mais por sugestão do que por raciocínio e entendimento, é ótimo o sistema da fé, pelo qual o indivíduo se entrega cegamente, como na hipnose, nas mãos de quem o dirige, deixando-lhe toda a responsabilidade, porque sozinho ele não sabe pensar, nem sabe o que fazer. Para essa massa de gente simples são bem adaptadas e bastam as religiões. O mundo moderno está, porém, se tornando cada dia mais racional e inteligente, a ciência lhe ensinando que, antes de crer, é necessário exigir demonstrações e provas. Por isso a psicanálise, quando se dirige para esse outro tipo de homem, tem de oferecer uma orientação demonstrada, que convença, dando prova das razões pelas quais temos de segui-la, o que só é possível possuindo o conhecimento do problema. Somente uma religião assim concebida pode resistir aos assaltos do materialismo científico. Talvez seja exatamente uma tal religião positiva o que mais falta ao nosso mundo moderno, e é esta falta de orientação certa a causa da angústia que o oprime. Ele precisa de uma idéia que dirija a sua vida, de uma esperança que o sustente, de uma meta a atingir, de uma razão para lutar e sofrer. Necessita mais dela para curar as suas neuroses, do que de tranqüilizantes e divertimentos que intoxicam. O sistema filosófico racional, que em nossa Obra oferecemos para dirigir com conhecimento a nossa conduta, quer cumprir a tarefa de dar ao mundo um meio para o salvar da loucura. A causa da neurose coletiva, que se vai cada dia mais espalhando, é a desordem espiritual, que é a coisa mais urgente a curar. Eis como a psicanálise, se cumprir uma função orientadora, pode adquirir uma grande importância social.

Com o método da sublimação, a psicanálise aplica um tratamento das neuroses oferecendo uma válvula de segurança, que permite descarregar os impulsos comprimidos do subconsciente, na direção mais útil à vida, isto é, em sentido evolutivo, na forma de conquista e progresso biológico. Assim, o caminho errado pode ser endireitado, a doença pode ser neutralizada com um substituto sadio, resolvida por superação, trabalho confiado ao consciente acordado, que representa a parte do eu encarregada da obra da construção da personalidade. Assim, a psicanálise adquire uma importância nova, muito maior, porque se torna uma escola de evolução, cuja função não é mais só aquela de tratar doenças, mas a de ajudar o homem novo a nascer, realizando o milagre da transformação biológica do involuído em evoluído, isto é, do primitivo atual, no biótipo que deverá constituir a humanidade do futuro. Então, a psicanálise se torna a arte de educar o homem para o levantar a um plano de vida superior. Ela pode desse modo colocar-se ao lado da ética e religiões, iluminando-as no terreno difícil da direção das almas, trabalho que hoje elas fazem empiricamente, com métodos obsoletos, às vezes contraproducentes, e até danosos.

É inevitável, quando tudo tem de ser feito em série, seguindo uma medida universal, que está adaptada apenas ao tipo médio. Pode assim acontecer que o indivíduo superior, que é muito mais moral e religioso do que o tipo médio, seja condenado. E nestes casos que a psicanálise, ao invés de se dirigir para o subconsciente, que é a parte inferior, tem de acompanhar o indivíduo na sua exploração e antecipação do superconsciente que, pelo amadurecimento do ser, já começa a transparecer, procurando-se manifestar, enquanto fica comprimido pela incompreensão dos atrasados, que impõem a todos as regras oficiais que melhor lhes convêm. Então, a psicanálise pode ajudar os evoluídos, que têm de se defender para não retrocederem ao nível de involuídos.

Eis que o próprio Jung escreve a este respeito: "O homem "normal" é um modelo ideal para todos os que estão ainda abaixo do nível normal de adaptação. Mas para os homens que possuem capacidades superiores à média, a idéia e a obrigação moral de não ter que ser outra coisa senão homens normais, constitui um leito de Procusto, um enjôo mortal e intolerável, um inferno estéril e sem esperança. Quantos neuróticos há que adoecem porque não se podem tornar normais!"

Parece que em nossa sociedade é dever ser involuído. Este é o modelo para todos, a unidade de medida que a maioria, porque lhe convém, escolhe e impõe a todos. Pertence ao evoluído defender-se, se ele quer sobreviver como tal. Pude observar vários casos nos quais a neurose foi gerada em evoluídos pelo esmagamento que eles tiveram de suportar da parte da maioria dos involuídos, que lhes quiseram impor a sua maneira de conceber a religião e a moral. Infelizmente, em muitos casos, esta maneira não representa senão um desabafo de instintos primitivos, de impulsos do subconsciente. que se procuram justificar, disfarçados em formas diferentes, praticadas até em nome de Deus. Coisa natural para um involuído, mas horrível para um evoluído que possui outra sensibilidade moral. Assim, no passado ninguém se apercebia da terrível contradição entre o Evangelho e as guerras santas, a inquisição, as perseguições e matanças de heréticos etc. Pude observar o caso de um indivíduo que teve de se afastar da religião, porque nela não encontrava senão pessoas que, com sua forma mental e conduta, paralisavam as suas tentativas de superação da neurose pelo caminho da sublimação. Não era culpa das religiões, mas dos involuídos que as representavam. O resultado foi que, para conservar uma religião sem ter que perseguir as outras e para seguir os caminhos da sublimação que salvava sua vida, aquele indivíduo foi constrangido a fechar as portas de sua alma, suprimindo qualquer manifestação exterior, que é o que atrai a intromissão dos involuídos e, para salvar a sua espiritualidade, e as suas vivas relações com Deus, teve de continuar sozinho, apenas interiormente, aonde eles não chegam.

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Mas temos de observar, também, o outro lado da medalha. Nem todos os indivíduos estão prontos para aceitar uma intervenção no sentido de uma sublimação. Por isso o psicanalista tem que estudar a personalidade do paciente, para ver se tal método lhe está adaptado. Tudo depende do estado de amadurecimento do indivíduo. A sublimação não é coisa que se pode impor à força a quem não está pronto para a receber. Neste caso, ela se torna uma forma de perseguição, o que representa aquele esmagamento da personalidade, que é o caminho direto para a neurose. A destruição do que é inferior, sem uma contemporânea substituição pelo que é superior é somente negatividade suicida, contra a qual a vida tem razão de se rebelar, defendendo-se com as suas reações, porque a perda causada pela destruição não é compensada por uma paralela construção positiva. Nestes casos uma tentativa de sublimação pode excitar revolta ou adaptações torcidas, desvios, ao invés de superações, descida e não subida.

No ambiente humano, se encontra-se todas as possíveis formas de vida. Quem escolhe é o indivíduo, conforme seu gosto, atracões e forma mental, nisto revelando a sua natureza. A espiritualidade das religiões só oferece exemplos de sublimação a todos, aconselhando e impulsionando nessa direção. Mas o primeiro instinto do involuído é o de se rebelar contra o esforço de superação e, se isto não for possível, de se evadir. Então, o sadio impulso em sentido evolutivo se resolve na prática à procura de escapatórias, de fingimentos para se disfarçar, de mentiras para esconder a realidade, de adaptações para satisfazer os instintos da besta, salvando as aparências. Eis o tipo de sabedoria que as religiões, impondo a superação, muitas vezes acabaram gerando nos seus seguidores  Eis como as entende o involuído, ainda mergulhado no plano animal. Nem por sonho ele pensa que os ideais de superação sustentados pelas religiões possam ser praticados na realidade. Nestes casos o método da sublimação se torna uma escola de enganos. Isto é tudo o que o involuído pode entender dos princípios de uma vida superior, porque eles estão situados acima de seu nível biológico. E dado que tal biótipo representa a maioria, esta é a maneira de viver os ideais, que prevalece em nosso mundo com um subentendido consentimento geral. Isto não acontece por maldade, mas por falta de capacidade de compreender. Tais indivíduos fazem isto em perfeita consciência (a do seu nível), assim convencidos, conforme sua forma mental, de ser honestos e religiosos, de possuir e praticar a verdade. Por isso em nome dela, concordam em condenar quem quer levar a sério os ideais o condenam porque ele prega e vive o que para eles é inaceitável e inconcebível.

O evoluído diz: "mas acabai com esta vergonha d adaptações para intrujar a Deus, praticando uma religião de mentiras e uma moral só de interesse". O involuído responde: "mas eu não engano ninguém, sou sincero e honesto, é assim que se pratica a religião. Temos o dever de levar em conta as necessidades concretas da vida e de não nos matar vivendo fora da realidade, nas nuvens. Para ser bom religioso, bastam as formas exteriores. Nós as praticamos. Então somos religiosos".

Como pode o biótipo, que entende apenas a matéria, suspeitar que as religiões possam valer sobretudo pelo seu conteúdo espiritual? Tudo depende da forma mental, que é o instrumento com o qual se julga. Para um evoluído a parte formal, que para um involuído pode representar toda a religião, assim desprovida de um conteúdo espiritual, pode parecer uma profanação e uma mentira. Perante maneiras tão diferentes de conceber a religião, cada um está convencido de possuir a verdade. Mas claro que ele não possui senão a sua verdade pessoal, estabelecida a priori por aquela premissa absoluta e indiscutível, que é o temperamento individual.

Ora, quando um indivíduo entra a fazer parte da nossa sociedade, logo se coloca junto dos que possuem a sua forma mental, assim se agrupando com os seus semelhantes. Os seus impulsos espontâneos, fruto de sua experimentação nas vidas passadas, o que constitui a sua sabedoria, lhe dizem qual é a verdade que ele tem de escolher entre as que encontrou no mundo. E ele, com segurança e em consciência, escolhe a verdade que mais lhe convém, aquela verdade temporária e relativa que, para ele, porque corresponde a seu temperamento, representa a verdade absoluta. Entre os indivíduos do mesmo tipo biológico, logo surge um entendimento recíproco porque, pela sua idêntica forma mental, eles escolhem a mesma verdade, a concebem da mesma forma, falando a mesma linguagem. Assim eles se unem por afinidade, para funcionar em série, seguindo os mesmos princípios e métodos. "Diz-me para onde vais e te direi quem és". É o impulso de atração que instintivamente liga entre si os semelhantes.

Quando o indivíduo entra na vida da coletividade, vai buscar ao armazém de seu subconsciente a idéia que o dirigia na vida, e não pode tomar senão o que nele pode encontrar. Vai depois procurando no mundo o ambiente onde possa realizar aquela idéia. Esta é a parte determinística da vida do indivíduo, a que representa o seu destino Ora, o primitivo, quando chega à terra, traz consigo no seu subconsciente, pronto, todo o conhecimento necessário para viver no baixo nível de existência de nosso mundo. Aqui tal biótipo encontra um ambiente a ele bem adaptado, feito de medida para os seus instintos animais. O problema lhe é fácil de resolver, porque a sua sabedoria inata lhe basta, representando exatamente o que é necessário para viver aqui. No caso do evoluído acontece, porém, o contrário. Ele, sendo mais adiantado, assimilou na sua personalidade as qualidades de um nível biológico superior, com as quais é instintivamente levado a dirigir a sua conduta, mas que o fazem inepto a viver na terra, que pratica outros métodos, obedecendo a outras leis, que condenam e punem a superior maneira de conceber e de agir do evoluído. Este chegou a possuir em forma de instinto ou qualidade adquirida o que para a maioria do mundo é somente um ideal longínquo situado no futuro e, dada essa sua posição biológica, não pode de modo algum retroceder ao nível da animalidade humana, dirigida por instintos inferiores.

Tivemos de salientar a importância de uma interpretação do tipo de personalidade, porque é nela que se baseia a possibilidade de tratar as doenças nervosas com o método da sublimação. Este será tanto mais adaptado, quanto mais o paciente for um biótipo evoluído, e ao contrário. Como já frisamos, aqui confirmamos que querer fazer o tratamento por sublimação com um involuído, não maduro para isso, pode ser inútil, até contraproducente. Não há dúvida, porém, no caso de indivíduos que demonstram ter já conquistado instintos superiores, um tratamento psicanalítico por sublimação representará o método mais adaptado, um impulso para a salvação, uma ajuda que o paciente aceitará de todo o coração. Eis que o estudo, que aqui antepusemos, da personalidade humana, é indispensável para o psicanalista, porque não é possível fazer com sucesso tratamento algum, sem ter antes conhecido a qual biótipo ele se dirige.

 Em alguns casos, o tratamento pode basear-se não somente na correção do subconsciente, mas também na antecipação do superconsciente. De fato, relativamente à própria posição na escala evolutiva, para todos existe uma zona superior a conquistar apesar de que o seu conteúdo e nível sejam diferentes, para cada indivíduo, de modo que sempre o psicanalista se pode tornar, além de médico, mestre de evolução para todos, funcionando também como construtor de personalidade. Esta, para quem a entenda, poderia ser uma maravilhosa tarefa, uma grande missão.

Eis como poderíamos imaginar o indivíduo que progride ao longo do caminho da evolução. O superconsciente é como uma lista de alimento que se prolonga na frente, ainda a atingir e devorar. O consciente é a boca do ser, que segue aquela lista e trabalha para mastigar e engolir aquele alimento. O subconsciente é o estômago que o recebe e assimila, processo pelo qual o corpo vai engordando, isto é, a personalidade vai crescendo, se enriquecendo, progredindo ao longo do caminho marcado pelo superconsciente. Eis, o que se realiza na vida, apesar de cada um ter posição diferente ao longo do caminho da evolução.

De qualquer forma, o progresso é sempre uma sublimação relativamente à precedente posição inferior. Por sublimação entendemos o progresso dos mais maduros, o que significa superação por espiritualidade. Então, a regra para o psicanalista no tratamento das neuroses é a de proporcionar o método da sublimação ao amadurecimento espiritual do indivíduo. Quando este estiver pronto, ele mesmo instintivamente será levado a solucionar o seu caso pelo caminho da superação em sentido espiritual, porque as fases precedentes já foram percorridas, e ao psicanalista caberá acompanhar somente dirigindo o natural processo evolutivo.

Não se trata de novidade, porque está implícito e funcionando pela própria estrutura da Lei de Deus. A psicanálise pratica o que a Lei já realizava sem o homem saber. A finalidade de reeducar endireitando o passado errado, como faz a psicanálise, é a mesma que a Lei quer atingir quando corrige o indivíduo, endireitando o seu erro por meio de uma dor proporcionada. Então, a tarefa do psicanalista é a mesma que a da Lei, isto é, a de impulsionar e dirigir o paciente para que ele volte ao caminho certo, reconstituindo-se na ordem da qual se havia afastado. No caso da Lei, ela faz o mesmo trabalho de endireitamento que o psicanalista faz, com a diferença de que ela dirige o indivíduo para a autocorreção por intermédio da dor, que neste caso representa o remédio no tratamento, é o agente encarregado de endireitar o torto, o mestre que ensina a lição a aprender para não errar mais. Pode-se, assim, verificar o caso em que o psicanalista tem de aceitar o método de tratamento usado pela Lei, reconhecendo a utilidade e às vezes a necessidade destas lições de dor. Há casos em que esta não pode ser suprimida, porque faz parte do tratamento que automaticamente a própria Lei realiza. Então o psicanalista terá de aceitar a dor como parte integrante e meio de cura, porque suprimi-la seria tirar o remédio. O médico, porém, pode explicar ao paciente qual é o sentido e a função do sofrimento, e ensiná-lo como utilizá-lo para seu próprio bem.

Vemos, assim, quantos problemas outros o psicanalista tem que levar em conta e resolvê-los, para praticar o método do tratamento por sublimação  As lições que os indivíduos têm de aprender na vida são diferentes uma da outra. A maioria, que subiu há pouco do nível animal, tem de aprender o que lhe pode ensinar a luta para vencer e satisfazer as suas necessidades materiais, conquistando deste modo, os primeiros graus da inteligência. É uma forma de experimentação e um tipo de aprendizagem que não têm mais sentido para o ser mais evoluído, que se tornou apto a viver, não mais no caos dos primitivos, mas num estado social orgânico, no qual o trabalho da vida não consiste mais somente na luta para o domínio material, mas na conquista do conhecimento e da espiritualidade.

Tudo estar em seu devido seu devido lugar. O nosso mundo inferior está adaptado para o homem atual, para que ele realize as suas experiências de primitivo. É lógico que, para os mais adiantados, este mundo não possa ser senão lugar de desterro e sofrimento. Ele não é terreno para a realização do superconsciente (aqui o ideal é utopia fora da realidade), mas é terreno para o domínio e desabafo dos impulsos inferiores do subconsciente. Em nosso mundo não é o espírito que quer subjugar a matéria, mas é a matéria que quer subjugar o espírito. Apesar de tudo isto, o evoluído, em que os ideais já estão assimilados no subconsciente, não poderá deixar de se realizar no mundo em sentido elevado, ainda que haja martírio como o involuído não poderá deixar de se realizar no sentido da animalidade. Isto porque, para o evoluído, os ideais superiores se tornaram instinto, impulso espontâneo, que se querem realizar deterministicamente, como parte integral do destino do indivíduo, porque conseqüência fatal das causas semeadas e das qualidades adquiridas nas vidas precedentes. O psicanalista deve conhecer a lógica e a técnica desses processos.

Eis a psicanálise que aqui apresentamos: uma psicanálise vasta, ciência da alma, que abrange os maiores problemas da vida, os da personalidade humana e da evolução biológica, da orientação individual e social, da direção da conduta, da espiritualidade, os da ética e das religiões; uma psicanálise que segue o percurso do nosso eu até às suas passadas encarnações, a que, por mais completa em conhecimento, se pode confiar a tarefa de dirigir-nos para os mais altos destinos, seguindo a Lei de Deus e trabalhando em função do plano geral da existência. Atinge-se assim um objetivo muito maior do que o de tratar doenças mentais, mas o da construção da personalidade, levantando-a com inteligência para formas de vida superior e reconhecendo que algumas vezes o que parece doença se assemelha às dores do parto, necessárias para gerar um novo ser. Psicanálise que não é uma ciência avulsa e isolada, mas que está fundida no funcionamento do todo, concebido como um fenômeno orgânico, do qual esta ciência faz parte; psicanálise que penetra o mistério do espírito e trabalha na luta entre a animalidade e o ideal, para a superação dos instintos inferiores em favor da espiritualidade, para a transformação do biótipo primitivo do homem evoluído do futuro; psicanálise que se enxerta no âmago do funcionamento das leis da vida, penetrando e operando no drama cósmico da evolução e da redenção.