Antes de entrar no estudo dos pormenores da maravilhosa técnica de funcionamento da Lei, que nos mostra a sua expressão gráfica em nossa figura, continuamos observando as razões que a explicam e justificam.

Falamos no capítulo precedente do constrangimento ao qual o ser está sujeito para que se realize a sua salvação. A este respeito surge expontânea a pergunta: como se pode conciliar de um lado essa absoluta necessidade de salvação que leva ao constrangimento, e de outro lado a liberdade do ser, sua qualidade fundamental e inviolável? Como se pode conciliar essa invencível vontade da Lei de realizar a salvação, com o livre arbítrio do ser? Se é a Lei que tem de atuar, e se o ser está fechado dentro dela sem possibilidade de evadir-se- então, ele não é mais livre. Eis que encontramos aqui a Lei em conflito consigo mesma, porque vemos existir nela dois princípios opostos: o do domínio absoluto da Lei  e o da liberdade do ser. Posição de plena contradição, porque num momento a Lei quer a liberdade do ser, e num outro ela quer a sua obediência. Como se resolve esse conflito?

O fato é que a Lei foi elaborada para o ser funcionar nela por convencimento, para ser obedecida espontaneamente e não à força. O constrangimento não existia no S e somente apareceu fora dele com a revolta, com a necessidade de salvação dos rebelados. Nem a Lei é responsável pela desobediência. Previu porém, a doença e a cura, que atinge com o constrangimento, de outro  modo não seria necessário. Ele não é concebível no S, e sim fruto do AS.

Se a Lei, porém, realiza essa coação, ela o faz somente para o bem de quem errou. Quando um homem se enlouquece e ameaça matar-se, aí alguém, mesmo respeitando o máximo possível sua liberdade, o constrange a salvar-se da autodestruição, pode ser chamado de escravagista? É isto escravagismo ou um ato de bondade? Representa isto para o ser um ataque ou um ato de defesa? E como poderia não ter que fazer isto uma Lei baseada na justiça e na bondade? E de fato é justo que o rebelde sofra as conseqüências da desordem que semeou e no sofrimento experimente para aprender a lição e assim não cair mais. É também ato de bondade o de constranger um louco suicida a salvar-se, tirando-lhe até para isso a liberdade, quando esta nas suas mãos se torne um instrumento de mal e um prejuízo para ele.

Mas será que o Deus verdadeiro escraviza recorrendo à  força? Toda a ação Dele neste caso não vai além do que chamamos:  a  reação da Lei. Mas isto não é escravidão, porque o ser não fica de modo algum constrangido pela força. Aqui não há nem força, nem coação direta. Deus não tira, nem poderia tirar a liberdade á criatura, porque deste modo faria dela um autômato.  Se isto houvesse sido possível, Deus teria antecipadamente resolvido todo o problema da queda, criando u‘a máquina perfeita e, por isso, totalmente obediente, e não um ser livre e consciente.

Mas os fatos nos mostram o contrário. Tudo o que aconteceu no tirania da revolta é exatamente o efeito da inviolável liberdade do ser. Se a Lei reage é porque o ser foi deixado livre para violá-la; e se ela continua reagindo, é porque o ser está livre de continuar violando-a quantas vezes quiser. Mas isto não pode significar que Deus renuncie aos Seus planos e deixe nas mãos da criatura o poder de emborcar e destruir toda a Sua obra. Tanto mais que isto seria a destruição também do rebelde que a quis Tudo que o ser pode realizar com a revolta transforma-se em seu próprio prejuízo. Eis perfeita justiça e equilíbrio, o efeito tem de ser proporcionado à causa.

A criatura não gosta de receber punição e quereria uma liberdade que lhe permitisse fazer o mal sem ter de ficar sujeito às conseqüências. O poder de violar a Lei e ter, por isso, de pagar, não é liberdade para o ser, que a chama de escravidão. Ele se rebela ao amargo remédio. Mas como pode o médico não procurar curar a doença e, para satisfazer o doente, suprimir o amargo remédio e assim paralisar a sua ação salvadora? Como pode Deus deixar de impulsionar a criatura para o caminho da evolução se, embora duro, esse é o único que leva para o S, onde somente é possível encontrar a salvação? Com a revolta o ser se tornou ignorante e agora ele é tão louco que vai procurando a plenitude da vida na morte, no AS. O ser é um emborcado, e quer continuar a descer. Se ele não fosse pela dor constrangido a endireitar o seu caminho para a subida, ele se aprofundaria sempre mais no pântano, até à sua destruição. Esta não pode ser uma solução, nem a pode permitir um Deus que gerou a criatura para a vida e não para a morte. Eis, então, que no meio do triângulo verde (AS), aparece a linha vermelha da Lei, ou evolução, que representa a salvação. Todo o fenômeno se desenvolve em cada momento com perfeita logicidade.

Ora, a sabedoria da Lei tem de conciliar as soluções de dois problemas opostos: o da necessidade de salvação e o do respeito à liberdade individual. A salvação tem de ser atingida, porque se o não fora, fracassaria toda a obra de Deus. Mas ao mesmo tempo ela não pode ser realizada à força, porque o ser não pode regressar ao S como escravo. No S não há lugar para escravos. Eis então que a solução dos dois problemas é dada pela reação da Lei. A função dela não é a de impor-se à força, mas a de ensinar e educar. E à força não se educa. Então a Lei deixa o ser livre de experimentar para aprender. Com a sua reação ela não escraviza, mas educa. Com a dor a Lei ensina a lição e com essa aprendizagem, ela reergue o ser para salvá-lo.

Se olharmos bem veremos que há uma razão mais profunda para tudo isto. A reação da Lei em substância não é o que ela parece, isto é, o resultado duma vontade contrária inimiga, no terreno do ataque e defesa; mas é o automático efeito da negatividade que o ser com a revolta produziu na positividade o S. Trata-se duma auto-reação contra si mesmo, devida à posição emborcada em que o ser se quis colocar com a revolta. Com esta ele só renegou a si mesmo, não alterou a Lei como pensava, mas só mudou a si próprio dentro dela que continuou indestrutível, apesar de tudo, indelevelmente escrita dentro de si, porque constituía a sua própria natureza. Pensando renegar a Deus, com a revolta a criatura só renegou a si mesma. Sendo ela um elemento do Sistema de Deus, agindo contra Deus ela agiu contra si, de modo que o que agora aparece como reação da Lei não é na realidade senão a reação da íntima e própria natureza do ser contra a sua revolta, que o levou para a dor e para a morte, enquanto ele não pode deixar de querer a felicidade e a vida.

Não há escravagismo algum nisso. O ser ficou perfeitamente livre de continuar a aprofundar-se à vontade na dor, até anular-se. Por isso, para que não seja violada a sua liberdade, foi que tivemos de admitir a possibilidade até da sua destruição final como individuação ou eu pessoal, "eu sou", no caso limite de ele querer insistir na revolta e aprofundar-se na negatividade até ao aniquilamento da sua positividade como elemento do S.

Então, se há reação da Lei, esta na substância não é senão a reação do ser que não quer sofrer e morrer. A escravidão dele é dada pelo fato de ser ele indestrutivelmente cidadão do S, filho de Deus, isto é, da felicidade e da vida. O constrangimento depende apenas do fato de que o ser não pode viver fora do S, nem deixar de ter de voltar para o S. E se ele hoje se encontra nesse impasse de estar situado no AS, isto foi devido exatamente ao fato de ser ele livre,  e de ter querido sê-lo demais. Enquanto o ser estava no S, estava cheio de liberdade, mas perdeu-a pelo mau uso que fez dela. Assim o ser se lançou por si próprio na falta de liberdade não lhe restou senão o endireitamento do erro, se não quiser piorar sempre mais as suas condições e sofrer mais ainda. Não há coisa alguma que possa sair de Deus e da sua Lei, feita de justiça e ordem, e a Ele não voltar. se os equilíbrios foram deslocados, não resta outra alternativa senão reequilibrá-los. Se o ser quis lançar-se na negatividade do AS, agora não há para ele outro caminho a não ser o de reconstruir a positividade perdida do s. Tudo isto é conseqüência natural e automática da estrutura do S. Não se trata de escravidão, mas da necessidade de reintegrar os rebeldes na posição de filhos do Pai.

Esta é a lição a aprender: é absurdo e impossível encontrar a positividade da negatividade, a felicidade na revolta, uma vantagem no emborcamento. Isto nos explica a função educadora e saneadora da dor, cuja presença assim se justifica, de acordo coma bondade de Deus, como instrumento seu para atingir o nosso bem. A este Ele nos leva, respeitando a nossa liberdade e usando um método duplo, isto é, o do livre arbítrio nas causas, e do determinismo nos efeitos: o primeiro temperado, corrigido e retificado pelo segundo. É o método da livre semeadura e da colheita obrigatória. Assim a sabedoria de Deus soube conciliar a necessidade de o ser ficar livre, com a necessidade de que ele seja salvo. Maravilhosa escola na qual os alunos, ficando livres, têm necessariamente que aprender e subir.

Eis então a série dos momentos sucessivos com os quais, por um encadeamento lógico, se desenvolve o processo da salvação:

1) Deus é bom e quer o nosso bem e felicidade. 2) Bem e felicidade não podem ser atingidos, a não ser no seio do s. 3) Deus, respeitando a liberdade do ser, o deixou afastar-se do S, e com isso cair no mal e na dor do As. 4) Para regressar ao seio dos é necessário evoluir. A salvação está na evolução para recuperar o que foi perdido. 5) Por não haver outro caminho para a salvação, Deus nos impulsiona para que avancemos ao longo de nossa trajetória evolutiva. 6) O ser não pode voltar ao seio do S, senão livre e consciente. 7) Então Deus não pode escravizá-lo. Uma máquina ou autômato, embora perfeito e obediente, não serve. 8) O ser, para voltar ao S, tem absolutamente de transformar-se, ficando livre, sem coação.  9) Não resta a Deus outra coisa senão educar-nos, sem usar a força e a escravidão, que não educam. Deus não pode querer o absurdo. Ele não age loucamente, mas com sabedoria e poder. 10) Por isso não há para Deus outro caminho, senão o de nos educar, para nos fazer conscientes cidadãos do S. 11 ) Para se tornarem tais, os alunos têm de aprender a lição, experimentando-a livremente. 12) O que significa: aprender à sua custa; livres de cometer erros, sem que depois seja possível fugir às suas conseqüências; livres de se afastarem do carrinho da Lei, mas não dos dolorosos efeitos que esse afastamento produz. 13) Por isso Deus usa o único método que satisfaz a todas essas exigências, isto é, o método do constrangimento indireto. 14) Esse constrangimento é representado pelas reações da Lei, que nos devolve em forma de dor cada violação nossa contra sua ordem, golpeando-nos, até que aprendamos a lição, ensinando-nos a não errar mais.

O método da reação da Lei resolve o caso. Ela diz: o ser fica livre de violar a Lei à vontade e de afastar-se do S. Mas com isso ele se afasta da felicidade e cai no sofrimento, perde em positividade e vida e aprofunda-se cada vez mais na negatividade da morte. Então, se o ser não quer anular-se, tem de voltar para trás e evoluir para sair com o seu esforço do inferno que gerou para si. Esta é a encruzilhada em que ele se encontra: ou ter que sofrer sempre mais, se quiser continuar satisfazendo o seu desejo de revolta, ou arrepender-se e mudar a sua trajetória, se quiser libertar-se do inferno e reconquistar o paraíso perdido. São os próprios resultados da sua revolta que o obrigara a revoltar-se contra ela, cujos frutos são amargos dentais para ele os aceitar.

É o que nos confirmam os fatos que nos oferece a vida. Os seres estão-se disputando os fragmentários sobejos da grande vida que possuíam no S. Aprofundados no AS, não é possível viver senão em trechos entrelaçados com períodos que negam a vida, sempre abraçados à morte, devorando-se uns aos outros numa luta contínua. A existência tem de ser ganha a todo o momento com o próprio esforço, o que significa necessidade de evoluir, experimentando, aprendendo e assim desenvolvendo a inteligência e acordando o espírito. Da grande vida no S não ficou senão esse pobre resto, uma vida fechada no tempo e a cada momento despedaçada pela morte, que está sempre à espera, espiando-a para destruí-la. Quem pode aceitar isto para sempre? Eis então o que gera o impulso irresistível para a libertação dessa condenação e com isso a necessidade de fazer o esforço de evoluir. Eis em que consiste o livre constrangimento com o qual a Lei obriga o ser a atingir a sua salvação, voltando aos- Até então a nossa vida, insegura, com medo em cada instante de perdê-la, terá de ser defendida com o nosso esforço de toda hora. E muito teremos de lutar e sofrer, para poder subir todo o caminho da volta e atingir no s o ponto final de chegada.

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Os problemas estão conexos e interdependentes uns com os outros. Resolvendo agora o do constrangimento, nos aproximamos dum problema paralelo: o do aniquilamento da substância que constitui o ser, no caso de ele querer definitivamente persistir na sua revolta. lá tocamos neste ponto em nossos dois livros: Deus e Universo e O Sistema. Será útil para o leitor encontrar aqui o assunto rapidamente resumido, ao mesmo tempo que apresentado em forma diferente, em relação aos outros problemas de que estamos tratando, assim eles, também, ficarão mais esclarecidos.

Tratando há pouco do assunto do constrangimento, vimos que a Lei só indiretamente impulsiona o ser à sua salvação, ficando sempre na posição dum absoluto respeito para com a sua liberdade. surge então o problema: esse respeito da Lei para com a liberdade do ser chega até ao ponto de ter que aceitar uma sua definitiva revolta? se o ser quiser usar da sua liberdade até ao caso limite, teoricamente possível, de nunca querer voltar para trás evoluindo até à salvação, então a Lei pode permitir que o ser a viole até ao ponto de aniquilar os seus efeitos? Esse respeito para com a liberdade chegará ao ponto de deixar que o ser, com a sua revolta, vença definitivamente a Lei, construindo um AS não temporário e sanável, mas eterno e definitivo, o que representaria o fracasso da obra de Deus? Como a sua sabedoria resolve esse outro conflito entre duas exigências opostas?

Temos aqui dois princípios contrários: o da liberdade do ser, que não pode ser destruída; e o da supremacia da Lei, que tem de atingir as suas finalidades.

Temos de um lado a impossibilidade de tirar a liberdade do ser, porque ela é o requisito fundamental da substância divirta de que o ser está feito. O filho tem de ser da mesma natureza do pai. se a natureza do pai é a de ser livre, também a do filho o tem de ser. se o espírito não fosse livre, ele não seria filho de Deus, porque não seria construído com a livre substância do Pai. Mas eis que, ao mesmo tempo, é a própria liberdade que contém o perigo da revolta, que nela está implícita. se tirarmos do espírito a liberdade de desobediência, ele não seria mais livre. A liberdade deve ser total, completa, com possibilidade também de revolta perpétua e definitiva.

Eis, então, que há necessidade de deixar nas mãos da criatura o poder de desvirtuar para sempre, com uma rebelião permanente, a obra de Deus. Isto porque se nesta sobreviver só uma gota de desobediência e de mal, a obra não seria mais perfeita, mas feita de bem corroído pelo mal, de divindade derrotada pelo seu inimigo, manchada, manca e falha na sua imperfeição.

Encontramo-nos na contradição entre duas posições opostas. Existe a liberdade do ser e ela representa um perigo, mas não se lhe pode tirá-la, para garantir a obra de Deus. Que esta fique sujeita à vontade do ser, é absurdo inadmissível. Então é necessário admitir que, pela divina sabedoria, existe um meio para impedir a essa liberdade de fazer naufragar a obra de Deus. Qual é esse meio.

Antes de tudo, para resolver o caso, existem muitos meios antes de chegar ao último e definitivo, evitando, dessa forma, a necessidade de usa-lo. Há a elasticidade da lei, o que se costuma chamar de divina misericórdia, que nos espera no tempo, oferecendo-nos assim a possibilidade de encontrarmos as condições mais adaptadas para compreendermos, pagarmos e nos corrigirmos. Há a bondade de Deus que nos ajuda, e a sua vontade que nos impulsiona ao longo do caminho da evolução.

Há duas grandes forças que operam neste sentido: uma negativa e outra positiva, colaborando para atingir a mesma finalidade. Pela primeira, o ser é repelido para longe do AS, pela segunda, ele é atraído para o S. Quanto mais o ser insiste na revolta, tanto mais ele desce para o AS, isto é, aprofunda-se nas suas qualidades de negatividade, que são as trevas, a dor, a morte. Ora, como é possível que o ser queira insistir para sempre num caminho que o leva para uma tão absoluta negação do que ele mais almeja? O que vai contra ele mesmo, contra a sua própria natureza, não pode durar.

Por outro lado, quanto mais o ser se torna obediente à Lei, tanto mais ele se aproxima do S, isto é, ganha nas suas qualidades de positividade, subindo para a luz, para a felicidade, para a vida. Como pode o ser continuar usando a sua liberdade no sentido de aumentar o próprio dano e diminuir a própria vantagem, quando o seu instinto quer o oposto, isto é, diminuir o primeiro e aumentar o segundo? O fato é que há sempre maior vantagem em obedecer e sempre maior dano na desobediência. Do fundo do senão pode deixar de falar a sua própria natureza íntima, que é a de ser cidadão do S. Acontece então que automaticamente a posição em descida se faz cada vez mais insustentável e insuportável. Eis que o problema tende a resolver-se por si mesmo, porque a mecânica da utilidade cessante e do dano emergente, por si mesma leva fatalmente ao arrependimento à retificação.

Tudo isto, porém, não basta para destruir a possibilidade teórica duma revolta perpétua e definitiva, possibilidade que não se pode negar, porque sem ela a liberdade do ser não seria mais liberdade. É necessário que a obra de Deus esteja em absoluto acima de toda tentativa de alteração, inatingível na sua perfeição. Então, há no fim outro meio, último e definitivo de defesa: o da destruição do ser. Veremos agora em que sentido.

Antes de tudo a lógica impõe ter de admitir essa possibilidade teórica, porque se não se admitisse a mesma, seria necessário admitir-se uma possibilidade ainda mais difícil de aceitar: a da criatura destruir a obra de Deus. Resta então apenas uma solução: quando o ser quiser usar a sua liberdade para permanecer definitivamente rebelde a Deus, então não é escravizado; ele é eliminado. Essa solução é devida a duas impossibilidades:

1) a de tirar ao ser a liberdade, violando a própria natureza da divina substância de que é constituído.

2) a de permitir que tal liberdade possa destruir a perfeição da obra de Deus.

Temos falado de destruição e eliminação do ser. Como é que isto acontece?

Neste caso também, Deus continua sempre respeitando a liberdade do ser. Não é que Deus o queira destruir à força, o que sereia pior que tirar-lhe a liberdade. A destruição do ser está implícita na própria estrutura do fenômeno. O ser não fez na liberdade o uso para o qual ela estava destinada, isto é, no sentido positivo, construtivo, mas a empregou às avessas, em sentido emborcado, isto é, negativo, destrutivo. É lógico que, com a revolta o ser, aprofundando-se cada vez mais na negatividade do AS, por si mesmo acabe destruindo-se e eliminando-se. É lógico que, no caso limite da revolta perpétua e definitiva, o ser tenha que atingir o extremo do processo de emborcamento da positividade na negatividade, isto é, um estado de destruição completa de toda a positividade e de absoluto triunfo da negatividade, o que quer dizer o nada. É automático e fatal que,  por sempre querer negar tudo, o ser rebelde acabe negando até a si próprio, até ao seu próprio aniquilamento. Não quis ele, usando a sua livre vontade, destruir todas as qualidades positivas que possuía no S? E o que pode ficar quando tiramos de uma entidade tudo o que é positivo? Não pode ficar senão o nada. Eis a solução, automática e fatal, implícita no próprio fenômeno da queda, sem intervenções coativas e exteriores. É o próprio fato de ter o ser desejado com a revolta escolher o uso do método da negação, que fatalmente deve levá-lo para o seu aniquilamento do nada.

Tudo é simples e claro, regido por uma lógica perfeita, como num processo matemático. A dificuldade em compreendê-lo está no fato de que estamos acostumados a pensar antropomorficamente e ficamos fechados nessa forma mental, também quando enfrentamos esses problemas. Por isso eles não são equacionados de modo certo e, não encontrando explicação, tudo tem de acabar na fé cega e no mistério. Mas esta não  é solução, não  pode ser aceita hoje, que a mente humana vai amadurecendo. Deus não é exterior aos fenômenos, como o é o homem que vive no relativo. Seria pensar antropomorficamente. Deus é interior a tudo o que existe, como o nosso eu é interior ao nosso corpo e nele age, o movimenta e cura, por dentro e não de fora para dentro. Eis o que nos ensinam estes fenômenos que vamos observando.

Continuando o nosso processo lógico, poder-se-ia, porém, contrapor esta dificuldade: o ser, criatura filha de Deus, é antes de tudo espírito, constituído da substância de Deus que é eterna. ora essa substância e o espírito feito com ela, porque não tiveram origem, não podem ter fim, porque não foram criados, não podem ser destruídos .

Respondemos: que foi criado na primeira criação realizada por Deus? O que nasceu não foi a substância, mas a sua individualização pessoal, que constitui o ser. A substância de Deus é a sua obra que, com a criação, foi transubstanciada no particular modelo da individuação pessoal. Somente esta individuação teve um nascimento. Por isso, ela somente pode morrer. Então o aniquilamento final de que aqui falamos, se pode referir só a essa individuação, que constitui o ser, e não à eterna substância da qual ele é constituído. Eis que, quando entendemos o conceito de destruição e aniquilamento neste sentido, tudo se torna lógico, claro e admissível .

Tudo isto é também justo, porque o rebelde, neste caso, acaba destruindo somente a si próprio e nada mais, só a sua individuação, seu eu pessoal e nada do que pertence ao S, à Lei, nem aos outros elementos que não se rebelaram ou que escolheram recuperar o que tinham perdido, seguindo o caminho de volta. Assim o  mal fica sempre fechado em si, isolado, levado à destruição só de si próprio, quando o singular elemento livremente o quiser. Ninguém pode ser infectado por essa doença, que mata só quem a gerou dentro de si e quis depois, definitivamente, aceitá-la.

Tudo isto é justo, também, porque a destruição do ser é o retorno contra ele, do impulso de destruição que ele com a revolta lançou contra o S. Quanto mais aprofundamos a nossa pesquisa para compreender a estrutura da Lei e as suas reações, tanto mais nos apercebemos que não há um Deus à imagem e semelhança do ser humano que intervém premiando ou punindo. Os fatos falam diferentemente. Deus não opera nesta forma antropomórfica. Embora Ele exista em forma pessoal no Seu aspecto transcendente, em nosso universo não O encontramos, a não ser no Seu aspecto imanente em forma impessoal, presente a todos os fenômenos e individuações do Ser. Então, quando nós violamos a Lei e ofendemos Deus, não é que a Lei reage ou que Deus pune; são as forças do S que nos devolvem os impulsos que lançamos contra Ele. É o retorno dos nossos próprios impulsos que ricocheteiam para trás, que proporciona a reação à ação e as equilibra, constituindo a base da justiça  divina. O que os fatos nos dizem a respeito da natureza de Deus, é diferente do que o homem, pensando antropomorficamente, até agora imaginou. É difícil para ele, acostumado à incerteza da escolha e tentativa, própria do seu estado de imperfeição, compreender esse estranho modo de operar segundo um determinismo automático que parece mecânico, porém, age com lógica, justiça e segurança absolutas, como só pode acontecer na obra perfeita de Deus.

Somente encarando-o assim, em sua profundidade, podemos compreender o problema da destruição do ser. A Lei automaticamente nos devolve, em bem ou mal, o que de nós recebeu. Os seus equilíbrios se restabelecem à nossa custa, na medida em que nós quisermos deslocá-los. Qualquer que seja o dano que fizermos, temos de restaurá-lo. O fenômeno da evolução se baseia nesse princípio. Temos que reconstruir os equilíbrios da Lei, na medida em que os violamos. Assim acontece porque quando saímos da ordem da Lei aparece a dor, que nos continuará golpeando até regressarmos àquela ordem. A dor não é o efeito duma intervenção de Deus, mas é a carência da harmonia de forcas da qual depende a nossa felicidade. Cada revolta nossa destrói essa harmonia, lançando-nos na desordem e carência que se chama dor. Assim, a cada afastamento da Lei, tem que corresponder uma proporcional aproximação junto dela. Então, é lógico que com o esforço da evolução se possa pagar uma revolta temporária, corrigindo o seu impulso limitado, percorrendo em subida o caminho feito em descida. Mas quando a revolta é completa e definitiva, não há subida que possa corrigi-la facilmente, tão grande é a desordem provocada. O ser tanto se aprofundou, que é difícil recuperar-se. Ele, não pode ressuscitar do seu negativismo, daí a razão do seu aniquilamento.

Tudo é lógico. Com a revolta o ser procurou destruir a obra de Deus. Mas a obra de Deus a respeito do ser foi a de cria-lo. O seu estado de criatura como eu individualizado, é exatamente o produto da criação. Então o ser, revoltando-se contra a obra de Deus, se revolta contra a sua própria existência e procura destruí-la. A individuação do ser representa um campo de forças, dentro do qual só lhe é permitido agir, e não pode sair dele. Isto quer dizer que o S, a obra de Deus, é inatingível pela criatura, que é dona só do que lhe pertence e é livre somente para se destruir, a si mesma, seja temporariamente, recuperando-se depois com a evolução, seja definitivamente, se quiser para sempre insistir na revolta.

Tudo é justo e lógico. Mas queremos saber ainda mais e continuamos olhando para a nossa visão, para ver nela sempre mais profunda e pormenorizadamente. E perguntamos: como acontece mais exatamente esse aniquilamento do ser? Com estas continuas perguntas, às quais vamos respondendo, pedimos a Deus que Ele nos mostre um pouco da Sua face, que é feita de pensamento, na qual procuramos lê-lo .

O conceito de aniquilamento do ser está conexo com o conceito de limites de desmoronamento da queda, que se realiza em proporção ao poder do impulso originário na revolta. O efeito tem de corresponder à causa. Isto quer dizer que à amplitude  do caminho percorrido em descida na queda, tem de ser proporcionada ao volume do impulso que o ser gerou com a sua revolta. Deus, criando dentro de Si, com a Sua substância, as individuações desta, que constituem as criaturas, as gerou conforme o modelo central que Ele representa, isto é, qual eu central, dentro dos limites da obediência hierárquica, autônomo, gerador de impulsos próprios independentes, que só tinham o dever de coordenar-se com os paralelos impulsos de todos os outros seres, em função do impulso central de Deus, como acontece nas células de nosso organismo. Assim, dentro dos limites do campo de forças da própria individuação, o ser estava livre de gerar e lançar os impulsos que quisesse, dando origem a efeitos que depois eram fatalmente seus. Isto é o que aconteceu com a revolta. Os efeitos desta têm de ser proporcionados ao poder do impulso que a gerou.

Então, se esse impulso foi limitado, no momento em que esta causa terá atingido o efeito que representa a sua completa realização, o dito impulso se esgota, como vimos no capítulo precedente, o ser pode voltar atrás, para tudo corrigir e recuperar. Mas isto não pode acontecer se maior foi o volume do impulso da revolta, se ela foi completa, absoluta e definitiva. Cada causa não pude parar de funcionar até se ter esgotado, atingindo todo o seu efeito. Então, se tal foi o impulso originário, ele não poderá parar sem se ter esgotado, nem o ser poderá voltar, para trás, mas terá de atingir a realização da causa até à sua plenitude, representada pelo estado de negatividade absoluta, isto é, o aniquilamento do ser.

Ora, esse processo de destruição do ser não corresponde à sua causa só como quantidade, na medida dos efeitos, mas também como qualidade, isto é, na natureza deles. A revolta representa um movimento separatista, correspondente a um impulso do ser, pelo qual este procura afastar-se e separar-se do S. Podemos agora ver qual é a técnica do fenômeno da queda ou aniquilamento. O impulso originário é de tipo separatista. Uma vez que o processo se iniciou ele não deixar de continuar a desenvolver-se como uma desintegração atômica em cadeia, que não pode parar até esgotar o impulso. Se este foi de revolta completa e absoluta, o seu resultado final é a pulverização do ser. E isto é possível porque o espírito, sendo constituído de substância divina, isto é, de natureza infinita, pode gerar impulsos e com isso efeitos de natureza infinita.

Mas, por que pulverização? Porque o impulso é de tipo divisionista. Ele, como vimos, não pode sair dos limites do campo de forças do ser. Então o divisionismo que ele tinha lançado contra o S, ricocheteia e começa a trabalhar dentro do indivíduo que o lançou, por aquele princípio de regresso à fonte, pelo qual tudo o que é lançado para fora acaba introvertido para a sua causa e origem, Então o princípio do divisionismo começa a transformar interiormente o ser, progressivamente desagregando-o sempre mais nos seus elementos componentes. É um processo parecido ao que vemos verificar-se num organismo biológico no momento da sua morte física que, com o afastamento do eu central diretor do organismo, representa o fenômeno da dissociação dos elementos competentes que se verifica no caminho involutivo. Como na desagregação do corpo físico cada célula não vive mais em função das outras, não mais se conhecem, se dissociam porque se dissolve a unidade orgânica; também na morte da célula, as moléculas dos elementos químicos componentes se separam, seguindo apenas os mais simples impulsos associativos da matéria inorgânica. Essa desagregação do edifício biológico poderia continuar até à separação dos átomos constituintes da molécula, e os elementos constituintes do átomo, e assim por diante... O mesmo processo de pulverização se verifica no caminho involutivo, de modo que a unidade orgânica do eu se vai dissolvendo sempre mais quanto mais desmorona a organicidade do S, e o ser, involuindo, se aprofunda no estado caótico próprio do AS. É lógico que, se o impulso foi limitado, num dado ponto, ao esgotar-se, o processo pára o ser, pode desemborcar a descida em subida. Mas é claro também que, se a revolta foi completa e definitiva, (neste caso excepcional e praticamente só possibilidade teórica) esse processo de desagregação terá que acabar no aniquilamento da unidade que constitui o ser.

A contraprova de tudo isto a encontramos no fato de que, enquanto a involução se nos apresenta como um processo divisionista, a evolução é constituída por um processo unificador. Não vemos mais, neste segundo caso uma desagregação do estado orgânico do s, na desordem do As, mas uma reorganização desta na organicidade do S. De fato, como explicamos em A Grande Síntese, na evolução vigora a lei das unidades coletivas, cuja função é a de reconstruir, com os elementos que se desuniram, a organicidade destruída do S. Então o fenômeno, em toda a sua amplitude, resulta situado entre dois pólos opostos ou casos limites, isto é: no extremo da queda, no fundo máximo do As, temos a plenitude da dissolução da unidade até ao aniquilamento do ser; no extremo oposto, no cume máximo do s, temos a plena eficiência da unidade no Tudo-Uno-Deus.

De fato vemos a evolução progredir neste sentido, levantando andares cada vez mais elevados da sua construção com o agrupar dos seus elementos, organizando-os em unidades coletivas sempre mais vastas. O ser humano encontra-se ao longo desse caminho. Ele é constituído pela organização de átomos em moléculas em células, de células em tecidos e órgãos, destes num organismo unitário dirigido por um só eu. Mas o ser humano é ainda célula desorganizada em relação à unidade coletiva-humanidade e sociedades de humanidades, embora conheça o organismo familiar, o do grupo ao qual pertence, várias formas de associações, até a de Estado, de povo e unidade étnica. Eis o passado e o futuro, o caminho percorrido e aquele a percorrer no trabalho da reconstrução da unidade máxima na completa fusão orgânica do S.

Quando o ser com a sua revolta sai dessa organicidade que o funde em unidade com os outros elementos constitutivos do S ou criaturas irmãs, ele se encontra sozinho, abandonado ao processo de sua desagregação interior, pela qual se vai dissolvendo nos seus elementos constitutivos, até que o edifício todo do seu eu se pulveriza. Assim a centralidade representada pelo eu pessoal se fragmenta e tritura cada vez mais num movimento centrífugo para a periferia, oposto ao que se realiza na evolução, em direção centrípeta, para a reconstrução da unidade que se expressa na forma de eu. O máximo é o "Eu sou" de Deus, que centraliza e reúne em si todos os elementos do todo, suprema unidade que a revolta tentou quebrar, conseguindo, porém, quebrar somente os revoltados.

Eis como se realiza a eliminação do ser rebelde. O ter observado esse fenômeno de perto, nos levou a uma compreensão mais profunda do processo involutivo e evolutivo. Quando o ser escolhe o caminho da revolta, ele movimenta as forças da negatividade, então se inicia e se desenvolve o desmoronamento do seu eu numa progressiva desintegração das suas dimensões, que parará somente quando o impulso originário se esgotar, a causa realizar-se no seu efeito. O fato de chegar ou não até ao aniquilamento final depende do peso do impulso que o ser quis lançar em sua revolta. Deus não persegue e não inflige pena a ninguém, mas é pela própria mecânica do fenômeno, que o rebelde se condena e se penitencia por si mesmo, quando livremente quiser esse caminho. A culpa e a sua pena não saem do campo de forças do ser responsável. Cada um por sua conta paga o que deve e recebe o que merece. O S fica perfeito e inatingível, acima de qualquer revolta e queda. Não é possível vencer Deus. Quem procura fazer isto, vence a si próprio. se a vontade do filho é a de destruir a obra do pai, ele atinge o seu escopo, porque acaba destruindo a si mesmo, que é a obra do pai.

Quando nos outros volumes falamos de destruição de espírito, muitos não entenderam e reclamaram. Mas repetimos: trata-se da destruição apenas da particular individuação da substância que constitui o ser, não da substância que o constitui. só essa individuação, que com a criação teve princípio, pode ter fim; mas a substância eterna, que não teve princípio, não pode ter fim. Também esse processo do aniquilamento da individuação é regido pela ordem do S e tem que desenvolver-se segundo as regras precisas que aquela ordem impõe.

Concluímos esse assunto com um exemplo prático. Neste caso acontece como se tivéssemos uma estátua feita de matéria indestrutível. Esta matéria não pode ser destruída; pode-se, no entanto, anular a sua forma de estátua. se a mesma é de bronze, fundindo a estátua o bronze permanece, mas não a forma de estátua, que não existe mais, porque como tal ela foi aniquilada, enquanto fica intacta a sua substância, que é o bronze. No caso que observamos, a substância espiritual, sendo indestrutível, volta à origem, à fonte que a gerou, reabsorvida em Deus. Sendo Ele um infinito, não pode por isso ser aumentado nem diminuído, e tudo permanece inalterado e inalterável, seja qual for a quantidade (n) que se lhe acrescente ou que se lhe diminua, porque

 

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Eis o que quer dizer destruição do espírito, o que, bem entendido, é concebível e lógico. Eis como a sabedoria de Deus resolve este caso, em concordância e harmonia, satisfazendo todas as exigências opostas.