O trabalho realizado. Controle e confirmação dos escritos precedentes. Completa?se a visão. Ela satisfaz à mente e ao coração, explicando tudo, e apresenta nova finalidade para a vida. A grande marcha da evolução. A reconstrução da ordem elimina a luta e a dor. A evolução faz, do caos, um sistema orgânico. Paraíso pela rearmonização. Reunificação universal. A vida em expansão. Tantas verdades relativas, aspectos de uma só verdade. A visão que domina tudo. Termina a grande viagem no seio de Deus.
Eis-nos chegados ao fim deste novo trabalho,. de caráter realístico, tão diferente dos precedentes. Estudamos no volume anterior: A Grande Batalha, a propósito de um caso vivido, o significado do Evangelho levado à realidade pratica, as armas, a estratégia e a vitória de quem o segue, as conseqüências desse modo de conceber e viver a vida. Depois, no presente volume, examinamos a posição atual do Catolicismo, em relação a tais problemas, os perigos dessa posição e a possibilidade de salvação. Enfrentamos a seguir o problema do telefinalismo da evolução. Após haver observado a grande batalha entre o Evangelho e o mundo, no caso particular ali narrado e em seguida no caso da Igreja, agora a vemos em sua última finalidade e conclusão, à qual ela levará humanidade que está caminhando, ou seja, à espiritualização. No fim, traçamos agora as linhas de uma nova moral que segue os princípios expostos.
Com isto, completa-se o quadro e está terminado o assunto da "Grande Batalha". Este volume —Evolução e Evangelho — quis ser prático, concreto, positivo, para tratar sobretudo dos problemas da terra, mais próximos a nós. Aqui, os pontos de referencia, são, prevalentemente, diferentes dos da maior parte dos outros volumes. Neste último, os problemas são vistos mais em relação com a realidade que todos vivemos, do que quanto aos princípios gerais que tudo dirigem, mais em relação aos efeitos reais, do que ás causas distantes de onde eles derivam. A perspectiva é diferente. Entretanto, a visão é a mesma, embora contemplada de um ponto de vista diferente. Ao invés de olhar as coisas do céu para a terra, olhamo-las permanecendo na terra, entre as exigências do mundo, imersos em suas leis, e daqui debaixo, olhando o céu como uma coisa distante que alcançaremos um dia com a evolução. Assim pudemos ver os pequenos problemas da terra, iluminados e justificados pelos princípios gerais e achamos a aplicação lógica destes princípios naqueles problemas. Aconteceu que, contemplando a mesma visão dos princípios gerais demonstrados nos outros volumes, com uma perspectiva diferente, fizemos aqui uma aplicação que nos permitiu realizar novo controle, que nos fez achar na prática nova confirmação de sua verdade, que antes podia parecer apenas teórica. Os que ainda duvidavam dos conceitos expostos nos volumes: A Grande Síntese, Deus e Universo e O Sistema, poderão achar, no presente texto, como que uma prova experimental e uma razão do porquê da conduta humana e das diretrizes impostas à vida, que de outra forma nem sempre poderão ser explicadas, e tudo isto num quadro lógico em que aparecem repostas a muitas perguntas e soluções a muitos problemas.
Este livro é também controle e confirmação, demonstração prática das teorias já expostas, que aqui vêm revalidadas pelos fatos, que provam corresponder a elas. Assim a visa o dos volumes: A Grande Síntese, Deus e Universo e O Sistema se completa, enriquecendo-se de pormenores e de provas, embora substancialmente permanecendo a mesma, porque a verdade é uma e não pode mudar. Os três volumes acima citados mais o presente formam um conjunto que, embora complexo, parece-nos agora (salvo novos desdobramentos) bastante completo, pela vastidão e quantidade dos problemas que resolve, pela concordância das partes subordinadas sempre à unidade, e também por suas conclusões, que satisfazem as exigências da mente e do coração.
Agora a visa o está toda diante de nossos olhos. Respondendo a uma necessidade lógica, ela explica?nos tudo, convencendo-nos porque está de acordo com os fatos que podemos observar, mostrando-nos a razão deles. Essa visão não só ilumina, satisfazendo o desejo de conhecer, como também reanima e conforta, porque é boa e bela, sacia a instintiva ânsia de ordem e justiça, dá-nos de Deus um conceito altíssimo, fazendo triunfar a Sua perfeição numa obra perfeita. O grande impulso telefinalístico triunfa definitivamente sobre todos os esforços e dores do ser, sobre todos os erros e obstáculos, e Deus permanece o eterno imóvel, o princípio e o fim, em torno do qual gira o grande ciclo que, embora se tenha afastado, a ele volta, como seu único e supremo fim.
O biólogo, o geólogo, o paleontólogo, o matemático, tanto quanto o físico atômico, não apenas o filósofo como o teólogo, poderão ver, nesta visão, um princípio orientador para dirigir suas pesquisas, embora aceitando-a de início apenas como hipótese de trabalho. Eles mesmos, fundindo e aprofundando seus estudos, poderão chegar ás mesmas conclusões, revalidando-as. É preciso resolver os enigmas do conhecimento. A mente humana quer saber qual é a meta final de tão longo caminho, qual é o objetivo último de tanto lutar e sofrer. Se a vida não caminhasse para a espiritualização, para onde iria? Que existe uma meta final, todas as religiões o ensinam e isto corresponde a um desejo instintivo, além de ser o único fato que possa justificar o longo trabalho da evolução. Essa visa o satisfaz a esse desejo nosso. Ela dá-nos, do fenômeno vida, uma interpretação que faz, de uma existência miserável, dura, incerta e insatisfeita, uma experiência criadora, útil, cheia de esperança. Seria atroz se todo o trabalho terminasse numa ilusão e tanta dor numa zombaria. Ao contrário, assim não estamos mais sozinhos, abandonados nos intérminos espaços do universo; nosso apelo de seres vivos e pensantes não se perde no silêncio morto do incomensurável vazio, mas a ele responde a voz de infinitas criaturas irmãs, feitas da mesma vida, orientadas para o mesmo Deus. Assim, ao nosso apelo responde o amplexo de um Pai que nos ama e nos ajuda a subir, para chegarmos a ser felizes com Ele.
A alegria que esta concepção nos traz à alma, a paz que aí nos deixa, a fé e a esperança com que nos reanima, são provas de sua verdade. Não podemos deixar de senti-la. Se o presente é tão baixo e triste, ao longe resplende um radioso futuro, que deverá um dia ser alcançado. A consciência desse fato, sobre o qual tanto insistimos, dá-nos a força de suportar confiantemente todas as dores atuais e de realizar o esforço de atravessar o deserto de todas as provas, para chegar à terra da promissão, da libertação e da felicidade.
O presente é árduo. Mas estamos a caminho Avança sem deter-se a grande marcha da evolução. Adiante, adiante, sempre mais para o Alto. O universo não é apenas um grande organismo que funciona, mas é um organismo que, a cada momento, se transforma, para aperfeiçoar esse seu funcionamento. O universo é pela presença de Deus imanente, nele animado por um contínuo movimento, não apenas espacial, mas muito mais profundo, de maturação evolutiva, dirigido com suma sabedoria para fins de salvação.
Tudo o que existe faz parte desse fenômeno e é transportado pela sua corrente. Todos aí esta o, todos estamos aí dentro, sem possibilidade de evasão. Mas é justamente essa necessidade, esse determinismo que nos obriga a subir, mesmo quando não queremos, é isto que constitui a nossa salvação, porque desse modo Deus, embora indiretamente, nos constrange a redimir-nos; impelindo-nos a evolver, obriga nossa própria redenção. Em sua lei, que parece desapiedada, a vida é supremamente justa e boa porque, exigindo nosso esforço, quer tornar-nos fortes para vencer, e vencer significa subir, tornar a achar em Deus a felicidade perdida. Áspero é o caminho em baixo, tanto mais penoso quanto mais próximo estamos do anti-sistema. Mas ele se torna cada vez mais suave, quanto mais o ser se aproxima do sistema. Então a gravitação que o mantinha em baixo, desaparece, vencida pela atração que o eleva para o Alto. Esse é o esforço e a sorte de cada um e de todos. Assim caminha a gloriosa epopéia da vida dos mundos, guiada pelo chamado de Deus.
Na meta final, espera-nos a perfeita harmonia, reconstituída na Lei de Deus. Ela se encontra numa relação harmônica entre todas as coisas. O ser caiu na dor porque desobedeceu a essa Lei que é ordem, e donde derivam paz e alegria. Quem sai da Lei cai no caos, donde provém a luta, e portanto a dor. Mas eis que a evolução nos salva, permitindo-nos, embora através de provas e esforços, reconstruir a ordem violada Assim, eliminando aos poucos a desordem, elimina-se também a luta e a dor. A evolução é um processo de reordenamento e rearmonização de partes, deslocadas da posição justa em que haviam sido colocadas, e que assim se chocam dolorosamente umas com as outras. A evolução as recoloca em seu lugar, é um processo de pacificação de elementos, antes amigos, que se tornaram depois inimigos. De um montão deles, que caoticamente se agitam e se chocam porque não se conhecem, a evolução faz um sistema orgânico, em que eles funcionam colaborando concordes. O paraíso perdido a que temos de regressar é a harmonia entre seres que se compreendem e se amam. A evolução tem de realizar esse trabalho de liquidar o separatismo egoísta, a luta, o instinto de agressividade, a desordem, que constituem o inferno dos planos mais baixos.
Em nosso plano humano o processo de harmonização chegou a criar o organismo fisiológico do indivíduo (em que as células colaboram na ordem), e o grupo família, e algumas aproximações dos grupos cidade, nação, humanidade. O resto, além desses pequenos centros de reunificação, é caos, desordem, luta. Mas a meta é uma reunificação bem mais vasta: a de todos os seres, de todo o universo, quando tudo chegar a conhecer-se e a colaborar organicamente. A evolução consiste na dilatação sempre maior desses grupos ou centros de ordem, dentro dos quais a luta — que e a característica do mundo anti-Lei — está eliminada. Com sua dilatação, dilata-se também o terreno dominado pela ordem, e se restringe o dominado pela desordem, que cada vez mais é expulsa dos confins em expansão dos grupos da ordem. Isto até a completa eliminação da luta e da dor, como da própria desordem que as traz consigo. A evolução realiza assim a cura milagrosa de todos os males, quando os leva — reabsorvendo-os, depois de havê-los invertido em bem — do anti-sistema ao sistema.
Desta grande marcha da evolução observamos, na primeira parte especialmente, o tratamento que o involuído dá ao evoluído. Estamos hoje numa grande curva do caminho da vida. Como outrora ela saiu de seu berço das quentes águas do mar e se expandiu nas terras emersas, assim agora ela se expande da terra, conquistando os espaços estelares. É um processo de expansão da vida e dos princípios que a dirigem, pelos quais se dilata também a concepção do ser, que não mais vive em função do momento e de seu pequenino eu, mas em função da eternidade e do universo. O jogo da vida torna-se cada vez mais amplo, complexo e de maior alcance; não abarca mais, apenas, a existência terrena, mas em sua previdência estende-se a toda a vida futura. Cada um faz a jogo segundo a amplitude que seus olhos conseguem dominar, mas quanto maior é a amplitude dominada, mais se torna livre e feliz. O modo de conceber a vida, o possuir uma ou outra forma mental como conseqüência do próprio grau de evolução traz, ao dirigir a nossa conduta, conseqüências importantes sob forma de alegria ou de dor. Aliás, é lógico e justo que cada um sofra e goze, em relação ao grau de evolução que, com os próprios sofrimentos e esforços, conseguiu atingir.
Assim avança a grande marcha da evolução. A visão que nos sustentou através de nossos volumes, mostra-nos a mecânica de seu transformismo e a natureza do último telefinalismo que dirige todo o vir?a?ser. Essa visão diz-nos que tudo é disciplinado por uma lei única, dada por um pensamento que, como luz central, se fraciona em miríades de reflexos ou aspectos menores, que regem as particularidades. Daí a existência de inumeráveis formas que, apesar de suas diversidades, estão orientadas ao longo do mesmo caminho, convergentes para o mesmo centro, Deus, unidas na mesma lei, e parentes, porque são constituídas pela mesma substância divina fundamental.
E difícil fazer uma representação mental das vertiginosas dimensões do fenômeno, que se estende de galáxia em galáxia e para mais além. Os infinitos momentos em que o todo se pulveriza, o seu decompor-se nas minúcias do pormenor, não fraciona nem lesa a unidade do conjunto, dirigido por uma só lei, impelido por uma só vontade, dirigido para o mesmo e único fim. Maravilhoso universo em que colaboram os dois pólos opostos, que parecem estar em contradição, isto é, o absoluto e o relativo, o imóvel e o transformar-se, a substância espiritual da Lei e a aparência material da forma. Os dois extremos estão em antítese, e no entanto se compensam, abraçados na mesma luta pela redenção.
Este universo é todo vivo, todo animado por um princípio espiritual, e olha para si mesmo com infinitos olhos diferentes, de infinitos pontos de modo diverso, chegando a sensações e julgamentos vários, que formam muitas verdades relativas diferentes, mas que são apenas os infinitos aspectos da mesma e única verdade. Cada um vê apenas o que o cerca, até onde pode, e só com os olhos que possui. Tudo pode parecer-nos, de um modo ou de outro, não apenas pelo que olhamos, mas também de acordo com o que somos. Podemos então ver o universo como matéria, ou como espírito, como forma ou como substância, como princípio diretivo ou como sua atuação concreta. Podemos vê-lo como análise, na complexidade de um pormenor que se multiplica sem limites, ou como síntese, na simplicidade de um lampejo instantâneo. Cada um vê tudo segundo a forma mental que possui, segundo o grau de consciência que conquistou, até as formas de existência mais involuídas que, por não terem conquistado nada, talvez sejam totalmente cegas e obedecem sem saber nada.
Nenhum ser — só Deus — pode ter a visão total. Esta contém todos os extremos, todas as contradições, todas as formas, todas as possibilidades. Ela só abarca tudo, o presente, o passado e o futuro, o espaço em expansão e a contração do tempo, o nascimento e a morte das dimensões. Só ela domina a gênese dos mundos, as metas da vida, toda a série dos planos de existência, ao longo dos quais o ser que evolui realiza sua grande viagem de regresso ao ponto de partida, Deus.
Tudo caminha sem repouso. De forma em forma, o ser viaja de superação em superação, através das eras milenárias, subindo a grande escala da evolução, peregrino cansado, dobrado ao peso da queda, peso que, no entanto, a cada degrau, se torna mais leve. Os gênios criadores, com seu tormento que os outros desconhecem, arrombam as portas do futuro e abrem sozinhos o cortejo. As grandes massas, que devido ao seu estado de involução não sabem fazer outra coisa senão imitar, seguem atras. A cada passo aparecem horizontes novos, abrem-se melhor os olhos para ver e as forças para conquista-los se tornam mais robustas. Sempre novas construções surgem, das cinzas das velhas. O ser aproxima-se cada vez mais de Deus, que sempre mais o penetra e sustenta com Sua radiação.
Subir, subir, sempre subir mais em direção à meta! No fim, cessou o transformismo, porque a evolução atingiu seu termo. Então o tempo não é passado porque foi apenas uma variante da eternidade; a morte não matou, porque tudo ressurgiu; a caducidade de todas as coisas nada destruiu, porque tudo voltou a ser indestrutível, como o era no início. O milagre da redenção da queda está realizado. Terminou o esforço da subida, o relativo, a ilusão, a dor. O ser sofreu e caminhou bastante, mas chegou. Agora pode repousar feliz, fora do tempo que conta as horas, para sempre, no seio de Deus.
Como age a nova moral? Mundo de luta. Evolução por ação e reação entre dirigentes e súditos, por comum abrandamento de costumes. Progressiva eliminação da luta, e da dureza das leis. Em direção a uma moral cada vez mais amiga. A vida, estado de guerra. A ética que se vive nos fatos, e suas conseqüências. A função biológica da mentira. A virtude como astúcia. A liquidação do simples e honesto. Ética emborcada. A psicologia do selvagem e do civilizado. Inteligência prática, para a luta, e não especulativa, para o conhecimento. A moral da nova civilização do espírito.
Dadas as condições atuais do mundo, como fazê-lo evoluir ainda, levando-o a viver a nova moral? Aplicando-a ao real estado de fato, que reações excitará e recebera em resposta, quando se trata de passar seriamente de uma ética pregada a uma ética realmente vivida? Não podemos esquecer que se trata de um mundo em que tudo se baseia na luta, um mundo em que a norma ética teve de aparecer até agora como imposição armada de sanções, resultando como conseqüência o desenvolvimento da arte de escapar delas. Há luta entre o evoluído que quer subir e o involuído que não quer subir, luta entre duas leis diferentes que aspiram ao domínio absoluto sobre o homem.
Ora, é lógico que, nesse ambiente, qualquer inovação tem de ser iniciada de cima, isto é, por parte dos vencedores, que são os únicos, nesse plano, e têm o direito de mando. Se nesse plano tudo funciona assim, se esses são os princípios que estabelecem a conduta dos que aí vivem, não podemos sair deles nem mesmo quando queremos estabelecer uma norma ética, embora desça ela de planos superiores, regidos por princípios diferentes. As normas concebidas nos ambientes mais elevados constituem o que se chama a teoria. O modo com que são recebidas, adaptadas e até invertidas no ambiente humano terrestre constitui o que se chama a prática. A teoria é bela, resplandecente, mas a tendência é que seja deturpada e corrompida logo que desce á prática.
A realidade apresenta-nos, então, um espetáculo bem diferente do que se poderia imaginar. Quem faz as leis é a camada social superior, que tem o direito de mandar porque venceu a batalha da vida. Se essa camada não faz a lei ética, porque só poucos e excepcionais evoluídos conseguem intuí-la, pode todavia formulá-la em artigos de lei, dosá-la e, sobretudo, enchê-la de sanções que, na terra, são as coisas mais importantes, se não quisermos permanecer no campo teórico. E então a ética, que no Alto é outra coisa — ou seja, norma espontânea de convicção — também se torna luta, para adaptar-se à lei da terra em que desceu. É sob esse aspecto que a moral aparece em nosso mundo, fato que pode parecer estranho e contraditório, mas do qual compreendemos as razões. A ética resolve-se assim, na prática, numa luta entre a classe superior que impõe as leis, e as classes inferiores que devem aceitá-las, luta entre a classe dos juizes que estabelecem a culpabilidade e condenam, e a dos julgados culpados, que são condenados se não obedecem.
Podemos perguntar-nos agora: como consegue a vida evoluir, se a descida dos ideais á terra está submetida a esse sistema que a converte em luta e assim paralisa seu efeito mais importante, que é o de provocar uma melhoria? Eis então o que acontece: o progresso é um impulso íntimo, que age de dentro, indistintamente sobre todos, tanto em quem manda, como em quem obedece. A evolução não pode submeter-se ao contraste entre os dois impulsos opostos em luta; então, ao invés de ficar dominada por ele, domina-o e o utiliza. Não podendo caminhar em linha reta, avança tortuosa como um rio, por impulso e contra-impulso, por ação e reação entre as duas partes contrárias que, assim, acreditando eliminar-se, colaboram substancialmente na mesma direção, que é a da evolução. Os dois grupos opostos influenciam--se mutuamente Logo que um progrida um pouco, o outro recebe e assimila os benefícios, civiliza-se, abranda seus costumes, obedece com um pouco mais de consciência e conhecimento, mais espontaneamente convencido porque experimentou as vantagens de viver na ordem. São a luz e a bondade que começam a chegar, desmantelando aos poucos o castelo das coações e sanções, duro ônus que pesa sobre todos, e de que agora é possível começar a libertar-se, porque cada vez se torna menos necessário. Isto permite aos dirigentes a mitigação das penas, abandonando cada vez mais o método psicologicamente impositivo de terrorismos, indispensável para disciplinar seres rebeldes e ferozes. Antes, não se podia assim proceder sem prejuízo destes, que teriam interpretado qualquer ato de bondade como sinal de fraqueza e autorização à devassidão. A idéia do inferno não foi criação de um grupo sacerdotal, mas uma necessidade psicológica, imposta pelo estado de involução em que se achava o homem no passado. Sem esses terrorismos hoje inaceitáveis, o edifício ético, em virtude de sua estrutura mental, teria caído na anarquia. Mas é lógico que tudo isso deva ir desaparecendo, automaticamente, sem danos, logo que o homem, por ter-se civilizado mais, o permita.
Caminho lento, gradual e difícil, mas caminho fatal. Sem dúvida os dirigentes, por causa da natureza de seus súditos, têm necessidade de defender-se e não podem abandonar-se a excessivos atos de bondade, sem que seja invertida a ordem que a lei ética deseja, tornando-se anti-ético, porque impediria que a vida atingisse seus objetivos. Para o involuído, a ética precisa estar armada de chicote, pois só assim o levará ao bem. Mas não restam dúvidas de que o dever da iniciativa dos melhoramentos cabe à classe dos dirigentes (abolição da pena de morte, da escravidão, melhoramentos no sistema de prisões, mitigação da pena, justiça econômica, previdência social etc.)., Essa iniciativa deverá ser levada até ao limite máximo possível, como grau de bondade que o estado de civilização atingido já permite. Dentro desses limites, as classes menos evoluídas da sociedade poderão restituir à classe superior o bem que recebem, na forma de um abrandamento de costumes. A finalidade da lei é sobretudo de educar, ensinando, à força de sanções, a viver mais civilizadamente, pronta a abandonar esse sistema, logo que os súditos aprendam a lição, e demonstrando assim não mais necessitarem desses métodos. Na feroz Idade Média realizavam-se as execuções capitais e as punições corporais nas praças, à vista de todos, usando o sistema terrorístico, julgando-se educar o povo no respeito para com os detentores do poder. Mas isto também educava o povo no gosto do crime, nunca dominado com esse sistema que, no fundo, só demonstrava o medo que os dominadores tinham de ser derrotados. Com o tempo, o trabalho subterrâneo da evolução abrandou tudo, tanto que esses espetáculos aos quais a multidão acorria com satisfação, agora gerariam nojo e condenação..
Assim, por golpes e contragolpes, realiza-se a evolução e a humanidade progride para formas de vida que contêm cada vez menos o mal e cada vez mais o bem. As massas, educando-se cada dia mais no bem, permitem aos dirigentes e às leis que sejam melhores, e estes, tornando-se melhores, educam as massas cada vez mais no bem. Esse é o sistema utilizado pelo progresso num mundo de luta, onde isto pareceria impossível, precisamente por causa da luta. O progresso, paradoxalmente, realiza-se por meio da luta, isso nos mostra como é profunda a sabedoria da vida.
A repressão forçada é um mal necessário nos tempos involuídos; mal que se destina, porém, a ser superado. Não é a repressão que liberta a sociedade de seus males, mas a mecânica progressiva que acabamos de ver. Ao contrário, a repressão aumenta a reação, a violência gera a violência e, em última análise, o mal só pode ser combatido com o sistema da não-reação, e só pode ser vencido verdadeiramente se o neutralizamos com igual medida de bem. Muitos abusos e delitos nascem, freqüentemente, de um abuso e delito maior, o de não reconhecer nos dominados os direitos que os dominadores reconhecem para si mesmos. Os princípios superiores da ética são tanto mais dificilmente aplicados, quanto mais poderoso e ativo é o sistema de luta que vigora na terra, para a qual eles são trazidos.
A humanidade futura será mais inteligente e compreenderá a enorme vantagem de comportar-se de modo diferente. No fundo, os conceitos de moral e evolução coincidem, como os de anti-moral e involução. Ao evoluir, o indivíduo torna-se espontaneamente moral, como ao involuir se torna anti-moral. Por natureza o evoluído é mais moral que o involuído. Moral é evoluir, anti-moral é involuir, como viver uma vida estéril que nada produz de bom nem para si, nem para os outros. Moral lógica e utilitária, baseada no utilitarismo da vida, que não é de superfície nem míope visando a efeitos imediatos, mas profundo e de longo alcance, substancialmente frutífero. Definimos a dor como um estado de desarmonia, devido à própria posição da desordem. A dor deriva, com efeito, da desordem, que leva os indivíduos a luta, fazendo-os chocar-se uns contra os outros. É lógico, pois, que ela tenda a desaparecer com a evolução que leva à ordem, que pacifica os indivíduos, fazendo-os caminhar disciplinadamente, cada um em seu lugar, sem mais chocar-se com o vizinho, ofendendo-o.
Como a fera que se torna menos feroz e perde as garras ao evoluir, ou seja, como a evolução realiza uma progressiva eliminação da luta pela vida, assim a moral, à proporção que evolui, se torna menos opressora, menos terrorística, menos armada de duros castigos. Com a evolução tudo tende à harmonia, à alegria, à bondade. Torna-se o homem mais livre e ao mesmo tempo adquire maior sentido de responsabilidade. Quem quiser subir aproveitará, depois as vantagens; quem não quiser subir, permanecerá em seu nível de vida, com todos os males inerentes a ela. Em substância, a nova moral diz apenas: civilizai-vos e vivereis muito melhor. E se agrada a todos viver melhor, é lógico que, descoberta a estrada para atingir isto, se ache conveniente submeter-se ao esforço indispensável para percorrê-la. A ética atualmente em vigor na prática, embora teoricamente bela, é torcida pelos instintos elementares, cheia de trasbordamentos do subconsciente e de ilusões psicológicas, devidas a perspectivas erradas, produzidas pela forma mental que dirige o homem em seu atual plano de vida. Moral em que reaparece a cada passo, nos fatos, o cálculo do próprio interesse, o medo do patrão, o desejo de evitá-lo, enganando-o com escapatórias, o contínuo sentido de luta para tornar-se o mais forte e assim vencer a todos.
Esse triste estado deve ser abandonado e superado com formas de vida mais altas e felizes. Não mais tantas condenações, que sufocam a vida, mas esforços inteligentes para melhorar, andando ao encontro dela. U‘a moral amiga, que nos levará ao bem querendo-nos bem, e não u‘a moral inimiga, em que o instinto humano de luta e agressão encontra desafogo. É preciso afastar-se cada vez mais dos grandes absurdos e aberrações do passado, como as guerras santas, as inquisições., os infernos eternos, a benção das armas e as condenações em nome de Deus, como de toda coação espiritual que leva à aceitação forçada, como substituto da aceitação espontânea, por convicção. U’a moral fraterna e pacífica de onde desapareceu a luta, em que, sendo tudo lógico e claro, não pode aparecer a mentira, porque é contraproducente. Para eliminar todos esses efeitos maus é mister eliminar as causas. Não é uma moral para uso dos vencedores, em detrimento dos vencidos, mas uma moral de justiça em que há lugar para os direitos e à vida de todos. Então a classe dos rebeldes à ordem social não teria mais razão de existir e desapareceriam essa praga, essa luta e esse perigo. Mas, enquanto dominar u’a moral de classe, ao invés de u’a moral biológica imparcial, a humanidade terá de continuar a luta, e não poderá purificar-se de seus elementos mais daninhos.
Estas são as regras do jogo e não podemos sair delas: se semearmos justiça, colheremos ordem e paz; mas se semearmos injustiça só poderemos colher revolta e mentira. Se, no próximo, quisermos enganar a vida, a vida, através do próximo, nos enganará. Esta é uma realidade à qual não podemos escapar, mesmo se tudo fizermos em nome de Deus, da pátria, de um ideal, do bem da humanidade. Esta é a verdade a que tudo se reduz, para além dos esquemas filosóficos, religiosos, ideais e sociais. As aparências não contam. Se não formos sinceros, teremos mentira; se oprimirmos teremos revolta; se não soubermos mandar para o bem alheio, não obteremos obediência.
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O ponto fraco da moral vigente é sempre o de permanecer imersa no plano da luta, de ser uma expressão dela, de existir em função dela, permanecendo assim uma moral de involuídos. A causa primeira dos males daí derivados é o princípio do mais forte, que domina nesse plano, princípio que leva à derrota. Segundo esse princípio a verdade é estabelecida pela maioria, com suas idéias, para satisfazer a seus instintos e interesses. Cabe-lhe esse direito, porque ela é numericamente mais forte. Mas quais são as idéias da maioria, que certamente não pode representar uma elite selecionada? São as que correspondem aos impulsos mais elementares da vida. E é a essa altura, própria dos involuídos, que os evoluídos são constrangidos a nivelar-se. E então, mesmo que a verdade possa descer do Alto pela revelação, o que a humanidade aceita, aplica e vive, é estabelecido pelos limites impostos pela capacidade de compreensão das massas, que não sabe ir além de um consentimento instintivo do subconsciente, que representa a parte mais involuída, a animal do ser humano. São estas as forças que, através dos fatos, tendem a dirigir a atividade humana e com a qual a ética tem de contar, pagando o seu tributo, ainda que, na teoria, essa atividade pretenda justificar-se proclamando-se conseqüência e aplicação de princípios absolutos, e sendo praticada em nome de Deus e dos mais altos ideais. A realidade positiva que aparece nos fatos é a satisfação do imperativo dos interesses da vida, que quer atingir sua finalidade. Constrói-se assim o castelo da ética sobre bases escusas, que se enterram nas vísceras do mundo biológico e que pouca afinidade tem com abstrações lógicas e teológicas, onde a ética pretende fundamentar-se para assumir valor absoluto, acima de nosso contingente. Como o homem construiu para si uma idéia toda antropomórfica da Divindade, para seu uso e consumo; como se colocou na posição de único objetivo da criação, num planeta que estava no centro do universo, em função de valores considerados absolutos, por exemplo a imobilidade da terra e a solidez da matéria; do mesmo modo o homem construiu para si uma ética na base de ilusões psicológicas, que a observação acurada das mentes mais adiantadas vai gradualmente desfazendo com a análise, à proporção que, com a evolução, se abre a inteligência humana.
Justifica-se essa forma mental, responsável pelo conceito de verdade absoluta, através do desejo instintivo de atingir a última meta do conhecimento Acreditam assim que a atingiram e a possuem, ao passo que para o homem, situado no futuro, só são possíveis verdades relativas e em evolução. De fato é. isto o que a realidade nos mostra apesar das mais absolutas e dogmáticas afirmações em contrário. Diante do transformismo universal, a que nenhum ser pode escapar porque está imerso no fenômeno da evolução, o absoluto imutável só é admissível como distante meta final, ainda não tocada, e só atingível no término do processo evolutivo. Até esse momento, tão distante que escapa à avaliação de nosso concebível, só podemos admitir para o ser uma progressiva sucessão de diversas aproximações da verdade, como etapas da contínua conquista do conhecimento. A ética é apenas um dos aspectos dessa verdade e, como tal, também só pode ser relativa e em evolução. Eis então que a ética, como o conhecimento e tudo o mais, é dada pela posição que o homem atingiu ao longo da escala da evolução, e existe em função desta, ou seja, do grau de desenvolvimento alcançado, o que estabelece, em todos os campos, os limites do concebível humano.
Surge, então, na terra, a possibilidade de existirem diversas éticas, relativas ao grau de evolução atingido. É verdade que a maioria estabelece um nível médio, proporcional à sua sensibilidade e compreensão, adaptado às massas que, nele se encontram à vontade. Mas é também verdade que os mais evoluídos podem considerar essa ética como altamente imoral, já que encara como lícito e natural o que a eles pode parecer até mesmo um crime. A moral dos selvagens atinge a antropofagia. A moral do homem civilizado admitiu, até há pouco tempo, a escravidão, e ainda admite, em vários casos, o direito de matar o seu semelhante. Quanto mais civilizado é o ser, e ilícitas, muitas coisas que a moral comum permite, mais é evoluído e mais fica horrorizado como os seus semelhantes realizam, sem nenhum sentimento de culpa, atos que seriam, para ele, inadmissíveis. Esse tipo biológico poderia então fazer uma lista de crimes que a ética comum, tanto religiosa como civil, admite tranqüilamente, sem perceber a sua atrocidade, com a mesma ingenuidade com que — em proporção — o antropófago devora o seu inimigo. Vejamos alguns desses casos.
1) Julgarmos não em função da justiça, imparcialmente, mas em função da força de que o julgado dispõe: seja em posição social, poder econômico, capacidades bélicas etc., chegando assim a uma justiça que funciona de modo exemplar apenas para o faminto e inerme ladrão de pão ou de galinhas
2) Julgarmos e condenarmos o próximo sem conhecer suas condições reais e só em função deles mesmos. Sermos tolerantes quando nos outros encontramos os nossos próprios defeitos, pelos quais também nós poderíamos ser condenados primeiro, se os condenássemos; e tornarmo-nos desapiedadamente intransigentes e modelos de virtude, quando nos outros podemos apontar defeitos que não temos, pelos quais, portanto, não podemos ser alvo do retorno de acusação.
3) Servirmo-nos das altas coisas do espírito e de Deus como meio para alcançar vantagens materiais, para vencer na vida e nos afirmarmos no mundo, prostituindo-as até fazer delas instrumento de astúcia de guerra. Em outros termos, servirmo-nos da política para satisfazer o próprio orgulho ou para nos tornarmos uma potência social e econômica, e não para ajudar a nação; servirmo-nos da religião para assegurar uma posição e não para cumprir a missão de levar o bem às almas; trairmos os princípios que dizemos professar, usando-os para outros fins, enganando a respeito dos verdadeiros métodos de vida, bem camuflados sob um belo manto de hipocrisia, e, praticando na realidade, sob tão belas aparências, o jogo duplo do Maquiavelismo.
4) Segundo a moral em vigor, é lícito vivermos no desperdício do supérfluo, enquanto outros nossos semelhantes carecem do estritamente necessário, assim como é lícito entrarmos na posse de bens que não foram ganhos com o próprio trabalho.
5) É lícito roubarmos quando com isto damos prova de uma inteligência, que sabe enganar a justiça estabelecida pelas leis. Saber escapar astuciosamente, aos castigos, pode até merecer como prêmio a velada estima da opinião pública, que não a regateia a quem saiba vencer e tornar-se poderoso, e que se torna incondicionalmente admirado só por isso, relegando ao esquecimento os meios utilizados, desde que atingiu resultados tão brilhantes e invejados.
6) É lícito, com a benção de Deus e as honras da pátria, matarmos quando isto corresponde aos interesses do próprio país ou dos detentores do poder. Aos maiores carrascos da humanidade, que realizaram as maiores matanças bélicas, foram tributadas as maiores honras da história.
A lista poderia continuar. Estes são alguns dos delitos que a ética humana atual reconhece como lícitos, na realidade, embora os condene teoricamente; delitos que qualquer um pode tranqüilamente cometer, continuando pessoa de bem e cidadão estimado na sociedade, como bom cristão, ao qual as religiões prometem o paraíso. Assim a maioria cria a própria ética, satisfazendo seus instintos, aos quais obedece de boa fé, acreditando permanecer na verdade e na justiça. Não tendo atingido ainda o nível evolutivo suficiente para perceber o que está fazendo, a pessoa se julga honesta e sincera. Nada mais se pode fazer, então, senão repetir com Cristo: “Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. E para compreender o comportamento desses seres, temos de raciocinar com a inteligência da vida, que os faz movimentar-se por meio desses instintos, sem que eles saibam o porque. Eis que então aparece, além da ética pregada e teoricamente professada — artificiosa construção do pensamento — esta outra moral biológica e realística, em que a vida impõe as férreas leis de seu plano de evolução.
Esta realística moral biológica pode parecer mais livre, porque permite muitas coisas que são proibidas mais acima; entretanto nem por isso é menos dura. Justamente porque mais involuída, está armada com reações férreas, para manter na linha o involuído, menos sensibilizado. O homem comum sente-se livre e por isso acredita que lhe é permitido poder realizar impunemente qualquer desejo, não imaginando que vive constrangido nas malhas de uma rede de ferro, estabelecida pela Lei. Como esta lhe deixa liberdade de ação ele acredita poder fazer o que quer e não percebe que a cada movimento seu corresponde uma inexorável reação. Assim o homem faz o que quer, mas a lei é um sensibilíssimo organismo de forças que, à mínima violação de sua ordem, responde com um proporcionado e adequado contragolpe, que coloca cada coisa em seu lugar, de acordo com a justiça. Essas forças são como tentáculos que atingem quem errou contra a lei, sem possibilidade de fuga, em qualquer tempo ou lugar que ele se encontre. O homem, acreditando-se totalmente livre, está imerso nessa atmosfera de ordem imposta pela lei; faz parte desse organismo de forças que o vinculam de todos os lados e no qual precisa saber manobrar com sábia retidão, se não quiser depois ser coagido a suportar tremendos contragolpes como reação da lei.
Justamente nesse ambiente — de cuja verdadeira natureza o homem não pode tomar conhecimento por causa da ignorância — é que o homem gosta de mover-se, segundo seus loucos caprichos, perseguindo miragens de dominador, que pretende impor-se a tudo. É fácil imaginar que dilúvio de dores daí resulte. E é isso que de fato vemos acontecer no mundo. É como se um aviador quisesse voar sem conhecer nem respeitar as leis do vôo, e ao contrário, pretendesse impor-se a elas, para dobrá-las, obrigando-as a funcionar segundo sua vontade. O resultado lógico seria que, ao invés de mudar as leis do vôo, o aviador caísse ao solo pagando as conseqüências fatais de sua louca pretensão. Qualquer técnico que conheça aquelas leis poderia matematicamente explicar-lhe a necessidade lógica das conseqüências.
As primeiras características do involuído são a sua ignorância e o instinto de revolta, de modo que, aumentando essas qualidades com a involução, aumenta proporcionalmente a força dos golpes recebidos. Mas é justamente desses golpes maiores que a insensibilidade maior do involuído precisa, para aprender a conhecer a lei e a não ofendê-la com a própria revolta. Os meios para educar são enérgicos, na medida adaptada à capacidade perceptiva dos alunos. Estes podem semear a desordem que quiserem, mas só para si, e para depois pagarem os prejuízos, à própria custa. Ninguém pode impedir que tudo esteja proporcionado em perfeita ordem, na lei.
O objetivo da escola da dor é ensinar a obediência, ensinar a saber movimentar-se seguindo a ordem da lei e não chocando-se com ela, provocando reações. Todavia o homem é um rebelde por natureza, e julga-se honrado e sábio, quando sabe impor-se a todos, e se gaba da arte de violar a lei, conseguindo depois escapar às suas reações. Entre o involuído e a Lei estabelece-se assim não um regime de consentimento e harmonia, mas como um duelo em que o homem desejaria superar a Lei, a qual lhe aparece não como uma norma de sua felicidade, mas como um inimigo que deva ser dobrado e enganado. Acredita-se desta forma dar prova de inteligência, usando de astúcia ao querer lograr nas barbas de Deus e dos homens. Trágico mal-entendido, que escancara as portas à dor, necessária para corrigir esse erro. A lei não é um obstáculo que valha a pena superar com bravura, mas um guia amigo que quer levar-nos à felicidade que procuramos destruir, quando nos rebelamos contra a Lei. Com a desobediência semeamos dor, onde a lei, se fosse obedecida, faria nascer alegria.
E‘ assim que, através dos oceanos de todos os sofrimentos, o homem aprende a conhecer os artigos da Lei. É assim que, pagando pela desobediência, se aprende a arte de obedecer. Desse modo a Lei, duplamente sábia, compensa a loucura do homem, impelindo-o, apesar de tudo, a realizar a própria evolução. E quanto, mais o homem, na sua luta contra a lei, procura escapatórias para fugir de seu castigo, tanto mais esta o chicoteia para trazê-lo à sua ordem. O jogo que vale para as leis humanas, que é possível enganar, não vale para a Lei de Deus, que não se pode lograr. Nossa ignorância pode ser tão grande que nos faça crer seja isto possível. Mas não muda a realidade dos fatos. Quando julgamos que fomos mesmo sabidos, conseguindo burlar a Lei e escapar de suas sanções, explode a sua reação maior, com a tempestade corretiva. Aprende-se, então, a lição mais salutar, a que nos ensina que o erro maior, que se paga mais caro, é justamente o de julgar seja possível impor-se à Lei com a força e escapar das conseqüências da desobediência com a astúcia.
As estradas de fuga abrem-se diante de nossos olhos, amplas e convidativas. Os ingênuos acreditam que fizeram a grande descoberta e encontraram os atalhos da felicidade. Lançam-se a eles aos montões, como moscas ao mel. Que convite: ganhar a bom preço, com pequeno esforço Como resistir a isso. Mas a Lei é justa e não admite se possa obter uma vantagem sem ser conquistada e merecida. Essas soluções cômodas são uma ilusão; esses caminhos fáceis que parecem conduzir à felicidade são redes de fundo sem saída, becos cheios de dor, e para sair deles, é mister caminhar para trás, engolindo o erro e tornando a percorrer a íngreme subida por todo o caminho percorrido na descida fácil.
Há uma estrada que não engana e verdadeiramente resolve o problema, sem trazer-nos sofrimentos. Mas esta é pequena, estreita, lateral, e ninguém lhe dá importância; é íngreme e incômoda, e não atrai os caçadores de vitória, fáceis. Termina numa passagem muito estreita, e para entrar nela é preciso estar nu, sem nenhuma roupagem de mentiras, despido dos enfeites das coisas terrenas, sutil e leve, espiritualizado e livre do peso da matéria. Aquela passagem estreita é a honestidade. Sé passam por ela os justos, os sinceros, os obedientes à Lei. Seria possível sair por ali sem chocar-se com as reações da Lei, mas é difícil e ninguém pensa nisso. Para consegui-lo são necessárias qualidades que não se tem e que são duras de conquistar; requerem-se esforços que não são agradáveis fazer. Por isso ninguém olha para esse lado, onde, no entanto, está o caminho de saída a todos os sofrimentos. E são preferidas as outras estradas, amplas e convidativas, mesmo que depois não conduzam, como é lógico, senão ao engano. É justo, está de acordo com a Lei, que quem quer enganar seja enganado; que quem se glorie do saber lograr, seja logrado. Depois diz que a vida é ilusão. Mas esta foi desejada pela psicologia de astúcia que ilude primeiro quem acreditou poder iludir a Lei.
Quando depois, por obra de seres mais adiantados, desce do Alto uma ética, norma de conduta que nos leva a evitar esses males, mesmo assim o homem, como fazia com a Lei, procura todas as escapatórias para lográ-la. O involuído primitivo não sabe responder de outra forma. Quando, por maturidade evolutiva, falta a consciência das próprias ações, a ética poderá impor normas mecânicas e exteriores, mas não poderá improvisar essa consciência. Nesse nível, a ética reduz-se então, à prática formal daquelas normas e, realizadas elas, o indivíduo sentir-se-á tranqüilo em sua consciência, convencido de que nada mais se deva nem se possa fazer. Nesse nível não se pode exigir mais que esse cumprimento formal, já que falta a sensibilidade necessária para perceber o peso das coisas espirituais. Para chegar a percebê-las, os imaturos as revestem de formas materiais, procurando assim segurá-las, ao dar-lhes corpo concreto, porque de outro modo ficariam inatingíveis, perdidas no mundo do super-concebível. É assim que se pode chegar a uma ética formal exterior, que os involuídos praticam de perfeita boa-fé, julgando-a uma ética de substância, mas que não pode deixar de aparecer aos olhos do evoluído como uma mentira e uma traição de princípios. E no entanto não se pode culpar ninguém, porque ninguém pode dar o que não tem, nem ser mais do que é. Não se pode exprobrar a planta de ser planta, o animal de ser animal, nem a qualquer criatura de só saber existir conforme as qualidades que possui. A condenação ou o prêmio cada um o traz em si, com a própria inferioridade ou com a própria superioridade. Aos involuídos não se pode culpar se a vida, no seu nível, não sabe funcionar de forma mais adiantada Na realidade não há nenhuma vantagem em ser involuído, e quem não sabe viver melhor, merece compaixão pela sua desgraça. Ninguém mais do que o ignorante é vítima, e, acreditando mandar, é obrigado a obedecer a leis que não conhece. Não é a eles mas apenas ao evoluído consciente, que se pode pedir que compreenda o mecanismo de seus instintos e reações, que constituem a chave de seu comportamento, a verdadeira moral íntima que o ser sente e é levado a viver, não lhe importando qual seja a moral oficial que, por outros motivos sobrepostos, teve de aprender a representar, formalmente, na prática. Só assim pode compreender-se o verdadeiro jogo da vida, que, de modo geral, é duplo, porque a primeira coisa que o instinto ensina ao involuído que tem de viver em regime de guerra, é esconder suas próprias e verdadeiras intenções, como ensina o Maquiavelismo: parecer sincero e honesto, sem o ser.
Assim, o sistema da luta, índice seguro que estabelece a inferioridade do plano evolutivo humano, não é eliminado pela ética para dar lugar a um regime de justiça, como se presume; mas é apenas escondido nos subterrâneos da vida, onde a luta continua mais exacerbada que nunca, mais sutil e astuta, e nem por isso menos feroz. Esta é a ética verdadeira, com a qual é preciso, em última análise, fazer as contas, a que rege o mundo e constitui a substância de todos os problemas. Enquanto permanece no campo teórico e, embora muito alta, não lesa interesses concretos; enquanto não aborrece e nada custa respeitá-la, é respeitada. Se por isso pôde formar-se e dominar uma ética feita de altas teorias e belas práticas, sem tocar na substância da vida, porque aí a coisa muda de figura e recrudesce a luta. Mas logo que a ética quer tocar na realidade dos interesses tangíveis, que todos sentem, então afloram aquelas verdades que são na prática as verdadeiras verdades da vida, acima das belas aparências. Acaba então o jogo das belas palavras e chega-se aos fatos. Se aparece um interesse ou um prejuízo concreto, toca-se na realidade da vida, que reage, e surge o verdadeiro jogo. O outro, o das belas teorias e das exterioridades formais, pode continuar imperturbável, pois todos sabem que não é o verdadeiro. Mas se tocarem no ventre e no sexo, nos bens e nas satisfações materiais, todos compreenderão que se age seriamente. Não são os problemas do conhecimento, mas estes é que constituem os grandes problemas do subconsciente das massas, aqueles segundo os quais caminham as correntes da psicologia coletiva, aqueles de que mais se ocupa o pensamento da maioria — o que estabelece a verdade dominante. Só quando, alem das palavras e práticas convencionais, soubermos ver esse outro recôndito pensamento escondido entre as dobras da aparência, só então poderemos compreender a verdadeira natureza do jogo da vida e da ética, e a verdadeira razão das ações humanas.
A ética do mundo faz muita questão de distinguir um grupo do outro, seja por fé, religião, partido etc., e não a distinguir honestos de desonestos, onde quer que estejam. Isto justamente porque o maior interesse destes últimos, que são os mais espertos, é permanecer misturados em todos os grupos com os honestos, que são os mais fáceis de serem subjugados.
Assim, sob outras aparências, pode fazer-se o verdadeiro jogo da vida, que é o de vencer na luta, e pode aplicar-se a verdadeira ética vivida, que é ética de guerra, pela qual os mais fortes e astutos podem atingir os altos postos, dominando os mais fracos e simples. Eis a verdadeira ética, que vigora sob as aparências da moral oficial, ética que oferece a palma do vencedor a quem souber fazer o jogo da vida as expensas de quem não sabe fazê-lo.
Essa é a verdadeira face da verdade na terra. O honesto faz todas as despesas e parece injustiça. Mas nem tudo acaba aí. Os melhores são expulsos do ambiente da terra, o que constitui, em última análise, uma grande vantagem para eles, pois lhes permite tornar-se cidadãos de mundos mais evoluídos, enquanto os piores, que se acreditam vencedores, continuam empilhados no pântano terrestre, para agredir-se mutuamente, segundo seu instinto de luta, fazendo assim com as próprias mãos o seu inferno. Saber triunfar no mundo, pela força ou pela astúcia é, na verdade, o maior prejuízo, porque significa fazer parte de planos inferiores de vida e ser condenado a permanecer aí, suportando todos os seus males E eis que, em última análise, quem vence na vida é a justiça de Deus, pela qual cada um volta segundo o seu lugar e merecimento. Quem acredita chegar em melhor situação que antes, por seguir vias transversas, na realidade, chega em pior condição. Quem pratica o mal, acreditando com isso vencer, faz mal na realidade a si mesmo e perde, devendo ainda por cima pagar o próprio dano. Só a ignorância do involuído pode acreditar seja possível tal absurdo uma derrota para Deus, pela impotência de sua Lei de justiça ou que Ele pudesse ser vencido pela prepotência ou pela astúcia da criatura.
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A pior moral é a de não acreditar no que se prega e, consequentemente, não o praticar. Com isto se engana a Deus, incorrendo-se em culpa, e a nós mesmos acarretando prejuízo. A hipocrisia é a pior conclusão de todas as morais. Então os mestres ensinam e os discípulos ouvem, mas na realidade tudo se faz por outras razões. Pode formar-se um acordo tácito, porque de ambas as partes se sabe que a vida é outra coisa. Os primeiros partem o pão da verdade, os segundos o aceitam segundo as regras estabelecidas, e tudo fica na mesma. Respeita-se a tradição, acredita-se no que se deve, cumprem-se as práticas regulamentares A Que mais pode exigir-se? Todos sabem por experiência própria que a vida, na realidade, é bem diferente da teoria que se prega, e, na prática, domina outra verdade, pela qual não é o melhor, e sim o mais forte que vence. E desta verdade não se fala, porque é muito mais honroso aparentar-se um ser superior, cheio de qualidades nobres. Assim os ideais na terra podem oferecer uma utilidade na prática. Podem conciliar-se as duas exigências opostas, ou seja, salvar o espírito, continuando a praticar a outra lei do mundo.
A culpa não cabe toda aos dirigentes. Sendo a minoria, tiveram que adaptar-se à maioria, que representa o maior impulso. A maioria suporta de má vontade os moralistas, procurando expulsá-los, e não os suportaria de modo algum se eles quisessem agir de verdade. Durante séculos realizou-se, assim, a seleção dos que perturbam menos, por terem achado a fórmula da convivência, resolvendo o difícil problema por meio de acomodações. Nem isto constitui toda a culpa. Se pode parecer traição de princípios, este é o único modo que torna possível certa dose percentual de sua aplicação, que em sua totalidade seria impossível num mundo assim. Desta forma, uma parte da conduta humana está entregue à hipocrisia. Mas que fazer, se a realidade da vida na terra está nos antípodas dos ideais?
As próprias religiões partem do princípio de que o mundo é composto de pecadores. As leis civis também partem do pressuposto de desonestidade do cidadão, e ao lado de cada norma colocam de imediato o castigo pelo não-cumprimento. O ponto de partida é sempre a presunção de que se trata de um rebelde, cuja vontade de desobediência é admitida implicitamente e presumida a priori. Tudo isto é a conseqüência lógica da lei que vigora no plano biológico humano, lei de luta de todos contra todos, baseado no ataque e na defesa. Se existem essas presunções, porque a maioria dos indivíduos é feita efetivamente de pecadores e de cidadãos que gostariam de não obedecer. Eles são, portanto, proporcionais a tal pressuposto e relativo tratamento, são adequados a tal mundo e selecionados na arte de defender-se, o que é indispensável à sua sobrevivência. Prova-o o fato de que estes, se não são como se presume que sejam — isto é, se são verdadeiramente bons e honestos — são rapidamente liquidados na realidade. Quaisquer que sejam os princípios teoricamente proclamados, a lei vigorante, de fato, é a da luta, do ataque e da defesa, pela qual a reação do indivíduo contra qualquer autoridade pode explicar-se com o instinto, como legítima defesa, provocada pelo fato de que, quem tem em mãos o poder, costuma usá-lo para vantagem própria ou da classe, e não como uma função social para o bem de todos. Jamais se poderá impedir que a vida reaja em defesa própria, ao sentir-se atacada em qualquer ser. Reaparece aqui o conceito já desenvolvido, da reciprocidade das posições entre autoridade e dependentes, que não podem deixar de influenciar-se mutuamente; e o conceito de que não se podem alegar direitos, se antes não se cumpriram todos os deveres próprios, em relação àqueles de quem se reclama. Mas se esta é a nova moral, a atual move-se ainda num terreno de luta. Então as condenadas acomodações, que escandalizam porque propiciam o não-cumprimento dos deveres, podem aparecer-nos sob uma luz diferente, e serem justificados diante da sabedoria da vida que as permite. Isto aconteceria, de fato, porque elas cumprem biologicamente uma função útil, isto é, a de tornar possível uma convivência relativamente pacífica num ambiente de lutas, o que é utilíssimo para dar tempo a que o novo seja assimilado e a que a evolução possa amadurecer, para subir mais um pouco
Contra todas as morais, persiste o fato de que a vida humana é um contínuo estado de guerra. Esta é o estado normal, ao passo que o de paz é constituído de intervalos, necessários para preparar outra guerra. O que mais liga os homens pela amizade, a força de amor que mais os une, é o ódio contra um inimigo comum. Então os inimigos se abraçam, mas só para que unidos possam vencer o outro. Se a mentira floresce, é porque na guerra ela é útil. Pode convir mostrar-se bons, porque assim se atrai a estima e a confiança e, com a veste do cordeiro, pode melhor desarmar-se o próximo e obter-se mais. As virtudes podem tornar-se ótima astúcia de guerra, para enganar e assim vencer o inimigo. Desse estado não nasce uma ética única que irmana e une, mas uma ética de agressão e uma de defesa, conforme se pertença à classe dos deserdados ou à dos já poderosos. Cada um forja para si a própria moral, segundo seus interesses e posição social, e muda essa moral ao mudar sua posição. Há a moral dos vencedores e a dos vencidos, a moral dos ricos e a dos pobres. Mas quando estes se tornam ricos, e penetram nas altas classes sociais, assumem a psicologia delas, os costumes e a ética respectiva.
Esta luta se desenrola sub-reptícia, escondida sob as aparências obrigatórias de paz e amor, é a substância da vida humana na terra. A moral, em sentido lato, torna-se um meio para enganar os simples que acreditam nas aparências. Infelizmente, dado que no plano humano a vida tende à seleção do mais forte e astuto, isto não poderá terminar enquanto o biótipo do ingênuo não for eliminado. Se psicologicamente ele é um fraco, que pode fazer a vida — segundo a lógica da lei vigente no nível terreno — senão procurar liquidar esse biótipo, se ele não souber evoluir conquistando inteligência? Aqui estamos ainda nos primeiros degraus desta, e tudo consiste em astúcias de guerra. No entanto é necessário percorrê-los, para chegar aos superiores, nos quais se compreenderá a estupidez da guerra e de suas astúcias. Entretanto, enquanto os ingênuos não aprenderem, nada mais lhe resta senão servir de pedestal aos astutos que sabem emergir, escapando às sanções das leis humanas, que ficam reservadas aos simples que não sabem defender-se. Isto é injusto e horrível. Mas, dados os princípios segundo os quais funciona a vida no plano animal-humano, não podemos ter resultados diferentes.
Não pode negar-se que seja bela a moral que o mundo apresenta na vitrine. Em teoria tudo é excelente. Mas seria mister que ela conseguisse fazer o homem subir a um plano superior de vida, onde essa teoria se tornasse prática. Resta a realidade biológica, pela qual o homem vive num nível que não satisfaz o seu ideal. Então, num ambiente de luta, é natural que os princípios superiores fiquem torcidos e invertidos, se tudo, ou quase, existe nesse ambiente em função da luta. Fala-se muito de bens espirituais, mas o que vale na terra são os bens materiais, tanto que, para ser compreendido o valor espiritual do homem superior, é necessário que ele seja demonstrado exteriormente pela riqueza de um monumento ou de um templo, se ele morreu, ou de alta posição social, se está vivo. Se Cristo aparecesse hoje na terra, sem nenhum apanágio terreno, talvez ninguém o percebesse. O homem comum carece de um sentido próprio para julgar as coisas superiores e só adquire por imitação o julgamento que o mandam repetir e que circula pela maioria.
Encerremos este assunto com uma anedota significativa, que resume vários conceitos já expostos. Um missionário que se achava na África, para civilizar os selvagens, explicara com cuidado a um grupo deles o sentido do bem e do mal, para fazer nascer neles o senso moral, base do cristianismo. Para assegurar-se de que havia ensinado bem e que tinha sido compreendido, tomou à parte um dos mais inteligentes e perguntou-lhe: "diga-me então o que é o bem e o mal".
O selvagem pensou algum tempo, e depois formulou claramente a sua resposta: "mal é quando o vizinho rouba a minha vaca". O missionário aprovou. Sem dúvida, roubar é mal, e o ato é moralmente reprovável. E acrescentou: "E o bem, que é?" O selvagem respondeu muito depressa, convictamente: "Bem é quando eu consigo roubar a vaca do meu vizinho".
Que vergonha diz, a essa resposta, o homem civilizado, que certamente não teria respondido assim, porque conhece o conceito de bem e de mal. Mas, por que o civilizado não a teria dado? Certamente não seria porque não estivesse convencido de que o selvagem, do ponto de vista individual, tivesse perfeitamente razão. O africano respondeu assim porque era um simples e falava com a ingenuidade do primitivo, que ainda não sabe esconder o próprio pensamento. Então a diferença está apenas no fato de que o homem civilizado — que bem gostaria de fazer como o selvagem — já aprendeu a não dizer o que lhe atrairia as sanções da lei e a condenação do próximo. A diferença não está no fato que o civilizado pense diversamente do selvagem — tanto que o imitaria de boa-vontade — se o próximo lesado, organizado em sociedade, não o fizesse pagar por isso, anulando a indiscutível vantagem dessa ação.
O utilitarista, mais refinado, compreendeu que e muito mais fácil buscar o próprio interesse sem dizê-lo, isto é, sem descobrir os próprios planos, revelando a sua estratégia de guerra. Então, a habilidade pode consistir em esconder, e a virtude em falsear, ao invés de dizer a verdade. Nesse caso, a culpa do selvagem seria a sua ingenuidade, que o civilizado não lhe perdoaria porque não a possui, já que se está mais pronto a condenar as culpas que não se tem, do que as que se tem. Estamos num ambiente de luta e não pode impedir-se que tudo exista em função desta. É natural que os ideais também sejam utilizados para esse fim, sendo transformados num manto de hipocrisia, para melhor enganar o próximo. Se esta está tão espalhada na terra, deve haver uma razão; é que nesse plano de vida, ela pode ser vantajosa, ao passo que, nos planos mais evoluídos ela não é praticada porque é contraproducente. Assim, na terra, a sinceridade pode ser julgada ingenuidade de tolo, inábil para a luta. Acontece, pois, que na prática, a culpa que mais se condena não é a mentira, mas o fato de ser tão tolo que se deixe descobrir a mentira; não é não ter defeitos, mas o não saber escondê-los, mostrando assim o ponto vulnerável onde se pode ser derrotado. Pelo involuído plano biológico em que isto ocorre, não se trata de maldade, mas de afloramentos do subconsciente animal na luta para sobreviver.
Acha-se o homem numa fase de transição entre a animalidade e a espiritualidade. É natural que, em seu mundo, a teoria que se prega da moral, da bondade e justiça, se ache em contraste com a prática, da moral de força e astúcia. Com efeito, o que mais se pune é o erro de deixar-se apanhar em erro. As leis humanas não punem quem seja tão hábil que não se deixe apanhar. A verdadeira justiça é só aquela da qual não se pode fugir, como a justiça de Deus. A humana é uma luta entre legislador e réu, entre acusador e acusado, entre juiz e julgado e ao contrário, na qual vence o mais forte e o mais hábil. Na prática, o maior valor do indivíduo não consiste naquilo que é proclamado em teoria, ou seja, em obedecer à lei, mas na habilidade de saber escapar dela. Lógico que num ambiente de luta, onde reina o culto da força, seja fraqueza obedecer, e valor o rebelar-se.
Como pode uma moral ideal, feita para um mundo orgânico de ordem, ao qual ela quer levar o nosso mundo humano por meio da evolução, não ser invertida neste, que é um mundo caótico, feito de competições? Em nosso ambiente humano, como no caso do selvagem acima narrado, o bem e o mal são concebidos apenas em função do próprio eu, ignorando o próximo (o bem é a utilidade própria, o mal o prejuízo próprio); ao passo que no plano superior ao qual pertence a moral oficial, o bem e o mal são concebidos em função de toda a coletividade, levando-se em conta o próximo (mesmo o bem alheio é utilidade própria, e o prejuízo alheio é um prejuízo próprio). Também o desenvolvimento mental, nos dois planos ocorre em sentido diverso. Em nosso mundo a inteligência mais apreciada é a que dá fruto imediato na luta, a que serve para. vencer, e não a especulativa, que procura o conhecimento e leva à consciência da Lei. Quem a possui é considerado em geral um homem que vive nas nuvens, um simples que não conhece a realidade prática da vida. Esta exige astúcias para resolver os problemas imediatos e não sabedoria que resolva problemas altos e distantes, sabedoria que não oferece nenhuma utilidade imediata para a defesa da vida.
O estudo de u‘a moral positiva, racionalmente demonstrada, presa aos princípios da vida, não podia deixar de revelar-nos também esses seus lados negativos. Tínhamos que analisá-los imparcialmente, para compreender a realidade em toda a sua amplitude. Fizemo-lo para explicar o nosso mundo e compreendê-lo em muitos de seus aspectos, não para condenar, o que é inútil, já que não modifica nada e não é útil a ninguém, gerando apenas reações. A condenação está em nossas dores. Neste livro, ao invés dos problemas altos e distantes que tratamos nos outros, nós estudamos a realidade de nosso mundo, tal qual é. Não devemos escandalizar-nos com essa realidade, que tem suas razões biológicas de existir sob essa forma. Cobrir tudo com belas aparências é o que menos serve para curar o mal. Ter visto claro, quer as razões pelas quais tudo isto existe, quer a grande vantagem de melhorar-nos, pode ser um meio de levar-nos ao bem. Os fatos são fatos. Não podem ser mudados mesmo se forem escondidos, nem pode impedir-se que produzam os seus efeitos.
Não é esta hora de sentar-nos à beira da estrada, dando-nos como vencidos. Certamente a salvação está nas mãos de Deus, mas o homem deve contribuir com todo o esforço para a sua salvação. Não devemos concluir com o desencorajamento e o pessimismo. Assim como o presente superou o passado, que era pior, assim como um futuro melhor superará o presente. Vimos que ninguém jamais poderá deter a grande marcha ascensional da evolução, dirigida aos objetivos supremos. Onde tudo evolui, também a moral não pode deixar de evoluir. E assim que um dia teremos de chegar à realização vivida da ética ideal, que hoje, na terra, luta para levar o homem a um plano superior de vida, em que triunfará a nova civilização do espírito.
Comprova-se que a evolução vai para a espiritualização. O espírito não é criação da vida, mas revelação através da vida. Tudo caminha para Deus que é Espírito. A escada de Jacó. As construções psíquico-espirituais da biologia do futuro. Do inferno ao paraíso (passado e futuro). A moral e a evolução. A vida dirigida pela Providência. O esforço do homem e a ajuda de Deus. A evolução, por uma atração íntima caminha para Ele, como o rio para o mar. O futuro do homem e da vida. Os sistemas planetários, seu apoio. Matéria, energia, vida, para o mesmo telefinalismo. A vida desmaterializada, sem mais sustento planetário.
Até aqui quisemos penetrar nas causas e na estrutura do fenômeno da evolução, para compreender sua substância. Foi-nos assim revelado que, guiando todo o processo, existe um telefinalismo que o dirige. Parece-nos agora suficientemente provado que a evolução é um fenômeno pré-ordenado, nunca abandonado ao acaso, mas dirigido por uma inteligência e vontade para determinados fins preestabelecidos. É mister agora esclarecer qual a direção e provar o que já muitas vezes afirmamos, ou seja, que ela é dada pela espiritualização do ser.
E como poderia ser de outra forma, se o processo da evolução não é — como o demonstramos em outros volumes — senão um regresso do anti-sistema ao sistema, o que significa caminhar da matéria para o espírito? Nesse sentido é que se desenvolve o fenômeno da evolução, que é uma superação continua de dimensões, consistindo num processo de desmaterialização e espiritualização. Se tudo, em seu caminho ascensional, caminha na direção de Deus, única meta universal, e se Deus só pode ser espírito, o telefinalismo da evolução só pode significar espiritualização. Pelo fato de que Deus é espírito, de que o anti-sistema em que ruiu o sistema é dado pela matéria, e de que a evolução vai deste aquele estado da substância, essa evolução não pode caminhar senão para o espirito.
Ora, a biologia concebeu, até hoje, a evolução, num sentido materialístico, compreendendo-o como um processo de transformismo morfológico, e não lhe viu as causas profundas e o telefinalismo para a qual estas fazem caminhar o fenômeno. Na verdade, apresentar a essa ciência uma continuação da evolução, no sentido da espiritualização, representa uma novidade tão grande, que parece uma revolução biológica, dificilmente admissível. Mas a evolução só caminhou até hoje também por meio de revoluções, e, assim sendo, não farão elas também parte de seu método de transformismo? Não é novidade que este, após longas e lentas maturações, chegado as curvas decisivas, precipita-se para novos estados que parecem muito distantes dos precedentes, para poder-se aceitar que aqueles sejam a continuação destes. Não é a primeira vez que a evolução dá saltos semelhantes para a frente. E a cada um deles vemos nascer um mundo, regido por novos princípios. Por que não deveria agora a evolução poder realizar, chegada a este ponto, esta nova transformação, que, relativamente, não representa um desvio maior do que os realizados no passado? Por que agora, que chegou diante da espiritualização do homem, deveria a evolução mudar de método e fazer uma exceção, detendo a sua marcha? Já observamos a técnica íntima com que se desenvolvem essas revoluções. Agora que vimos o princípio determinante da evolução, que a anima e a guia, ficam elas logicamente explicadas e compreensíveis. Não é necessário que, no estágio inferior da evolução, sejam visíveis as causas de seu futuro desenvolvimento, porque estão sempre em ato causas mais profundas, suficientes para provocar o deslocamento para um plano superior. De todo o processo evolutivo, são elas que o impelem para a frente, para seu fatal telefinalismo.
Assim como da matéria e da energia nasceu a vida, mesmo que elas sozinhas sejam insuficientes para gerá-la, assim da vida poderá nascer o espírito, ainda que ela sozinha seja insuficiente para produzi-lo. E nada mais lógico, quando se sabe que o caminho de toda a evolução vai da matéria ao espírito, sabendo-se que esta é a meta final que deve ser atingida por todo o processo da evolução. Como a evolução utilizou as construções precedentes de matéria e energia para chegar a vida, é também lógico que o mesmo aconteça para o espírito, ou seja, que para chegar a isto, a evolução utilize as construções precedentes de matéria, energia e vida. Não pode ocorrer diversamente na construção de um edifício, senão por sucessivos planos superpostos.
Explicamos pouco atrás como pode verificar-se esse estranho fenômeno do "mais" que nasce do "menos", e podemos agora compreender como se pode realizar, por evolução, esse processo de espiritualização da vida O espírito, repetimos, não é uma criação da vida, mas uma revelação através dela, disto que agora simplesmente reaparece, porque já existia no sistema antes que ele caísse. Não é a vida que cria o espírito, mas é o viver que permite, com a experiência, o despertamento dele, ainda latente, ainda não revelado naquela fase de evolução, como muito menos se revelara nos planos mais baixos dela. Assim, a vida não é um trabalho inútil, sem objetivo, fim de si mesma, nem se esgota apenas com seu funcionamento, sem nada produzir; mas é um meio para atingir conquistas mais altas, como acontece sempre a cada passo do processo evolutivo. Como o plano da matéria gerou e sustenta o da energia, como o da energia gerou e sustenta o da vida, assim o plano da vida gera e sustenta o do espírito.
Vemos verificar-se aqui o mesmo fenômeno que comprovamos nos casos precedentes, na passagem de um plano inferior ao superior, pelo qual a quantidade se destila na qualidade. Assim, neste caso, o poder dirigente da evolução consegue extrair da vida os valores substanciais do funcionamento biológico, que são os da inteligência e do espírito. É assim que poderá fixar-se na raça humana um novo biótipo, o do evoluído sensibilizado, psicológica e espiritualmente desenvolvido.
Tudo isto é lógico, sem dúvida. Mas estas afirmações estão em contraste estridente com a realidade do mundo de hoje, diante das quais elas podem parecer otimismo leviano. A humanidade parece caminhar precisamente pela estrada oposta Aquelas afirmações caberia objetar-se que não se pode impedir que a luta pela vida, num sistema livre, leve a inteligência a desenvolver-se — ao contrário — no sentido da esperteza e do abuso. E é isto justamente que hoje está acontecendo no mundo. O homem é livre de desenvolver a inteligência mesmo na direção do mal, tanto mais que isto lhe poderá aparecer falsamente como vantajoso atalho, para chegar primeiro a vitória. Mas então, como vai o homem para a espiritualização, que inicialmente deve ser consciência da Lei, para disciplinadamente enquadrar-se em sua ordem?
Em primeiro lugar, o momento atual é apenas um encrespamento na superfície de uma das grandes ondas da evolução, e poderá desaparecer entre os movimentos de alcance tão mais amplo. Virão reações e corretivos para tornar a pôr a vida humana em seu justo caminho.
Em segundo lugar, justifica-se o fenômeno com a técnica da tentativa, que a evolução costuma usar, como vimos. Isto significa que a humanidade é totalmente livre de seguir esse caminho, ou seja, desenvolver a inteligência, caminhando para o mal, em vez de dirigi-lo para o bem. Pode fazê-lo, mas a seu risco e perigo. Mas o passado da evolução mostra-nos que ela abandonou, depois, ao extermínio, essas tentativas erradas, que não correspondem ao telefinalismo que ela quer atingir. Ao homem pertencerá um futuro mais alto, quando mostrar-se digno dele Mas não é impossível o caso de uma humanidade, que teimosamente querendo desenvolver-se as avessas, descendo pelas estradas do mal, ao invés de subir pelas do bem seja liquidada, justamente pelo fato de que se rebela contra o princípio fundamental da evolução, que é subir para Deus, e não descer ao pólo oposto. Neste caso não faltam outras formas de vida e modelos biológicos atualmente concorrentes, prontos a substituir o homem em sua posição biológica se este quisesse obstinadamente engolfar-se num erro decisivo. E o pior seria exatamente isto: querer revoltar-se tentando derrubar a Lei, querendo ir em sentido contrário ao estabelecido por ela. Renovar-se-ia assim o processo da queda, filha da revolta, da qual só pode nascer involução. A raça humana regrediria automaticamente, em proporção à revolta que ela quis. O desenvolvimento da inteligência, se não for torcido por má vontade, deve levar, pelo contrário, a consciência da Lei, a obediência na ordem, e não, portanto, a revolta. O desastre ocorreria se a humanidade inteira estivesse estragada. Mas não o está totalmente. Assim é mais fácil que a vida resolva o problema por meio de uma separação ou depuração, afastando do ambiente terrestre s6 a parte que, com a revolta, gerou as causas de seu retrocesso.
O certo é que o impulso fundamental da vida, o de atingir o seu telefinalismo cedo ou tarde por um caminho ou por outro, imporá a sua vitória. E se esse telefinalismo significa espiritualização, a fase vida terá fatalmente que desembocar na fase espírito.
A evolução tem um caminho traçado e não pode sair dele. E a humanidade, mesmo que possa permitir-se temporárias digressões, terá de seguir, nas linhas gerais, a direção própria da evolução, que cada vez mais se torna dinamizante, libertadora da forma e do determinismo da matéria. Isto é também imposto pela necessidade lógica, implícita no transformismo, que é a de substituir, com uma continuação do existir numa forma nova, aquela sua contínua decadência que lhe é própria, pela qual o inferior deve ser abandonado e o passado superado. Se não quisermos que tudo acabe, é necessário que essa caducidade universal do ser seja compensada com uma correspondente criação contínua reconstrutora. Só o equilíbrio entre os dois impulsos opostos, o destruidor e o reconstrutor, pode permitir que eles sejam canalizados no caminho do transformismo, e assim disciplinados como instrumentos da evolução. Se o primeiro impulso não fosse continuamente corrigido pelo segundo, venceria o poder negativo que leva a dissolução, o que, além da absurda destruição da substância, cujas formas se sucedem subindo, constituiria, com o fim de tudo, a falência da obra de Deus.
Eis então, que, automaticamente, pelo princípio da indestrutibilidade da substância, a destruição do universo, expresso na forma do plano físico, implica a gênese do universo no plano espiritual. Não há razão para que não continue verdadeiro, também neste nível, o princípio geral que vemos dominar em toda a evolução, pelo qual, se nada se cria e nada se destrói, mas tudo se transforma, a cada morte só pode seguir-se outra forma de existência. E o que estabelece a natureza dessa forma só pode ser a direção em que caminha toda a evolução, coisa que agora conhecemos. Tudo morre e tudo renasce, e assim se transforma, mas não ao acaso, e sim seguindo um caminho preestabelecido por uma inteligência que bem sabe aonde vai. Sobe-se, dessa forma, por uma escada, em que cada degrau é um ponto de chegada, ao mesmo tempo que um ponto de partida Os seres que estão ao longo da escada, podem ocupar níveis diferentes, adiantar-se, deter-se e até retroceder, mas não podem mudar o traçado estabelecido por ela.
Assim podemos compreender a imagem bíblica da escada de Jacó, como uma intuição do processo evolutivo. Os seres encontram-se escalonados em varias alturas, enquanto Deus os aguarda em cima. Corresponde isto perfeitamente a concepção da existência em planos superpostos, sendo que a inferior desemboca na superior. Cada plano representa uma etapa do transformismo, na qual a evolução faz uma parada. É por isso que cada plano é dirigido por uma lei diferente que lhe é própria, justamente porque representa uma forma diversa de existência, que é tal por achar-se situada a maior ou menor distância da meta final: Deus. Ao subir cada novo degrau, acontece como se o ser saísse do sistema precedente para entrar em outro, que imprime novo endereço, ao processo evolutivo, mesmo seguindo sempre a estrada que o leva a meta. Podemos agora explicar-nos tudo o que dissemos nesta obra, ou seja, que desaparecerá, por evolução, a lei da luta pela seleção do mais forte, própria ao plano animal-humano, sendo substituída pela lei que leva a seleção do mais justo e inteligente. Explica-se desta maneira a razão pela qual podemos ver no Evangelho a verdade biológica que dirigirá a vida do homem civilizado do futuro. Se o poder do impulso telefinalístico da evolução soube guiá-la até aqui, operando a transformação da matéria em energia, e desta em vida, não lhe faltará de certo o modo de continuar o mesmo trabalho, transformando o mundo biológico no espiritual. O Evangelho é apenas a Lei deste plano superior da vida.
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Que nos reserva o ilimitado futuro? Já tendo caminhado tanto no passado, até onde poderá a evolução levar o homem? Agora, que nos parece suficientemente esclarecido, a direção que o telefinalismo impõe a evolução é precisamente a da espiritualização, possuímos elementos para responder a essas perguntas, e concluir este assunto, explicando cada vez mais e confirmando tudo o que acima dissemos.
Que existe no universo também o elemento pensamento, é fato que não se pode negar. Os astros e planetas constituem o corpo físico deste universo, enquanto a alma é representada por Deus, assim como o esqueleto e a carne constituem nosso corpo físico, cuja alma é o nosso eu. E o dinamismo radiante move o universo físico, dirigido pela Lei que representa o pensamento e a vontade de Deus, assim como o sistema nervoso move o nosso corpo, que é dirigido pelo pensamento e vontade do nosso eu. A presença do pensamento no universo é-nos provada pelo funcionamento e pela evolução do mesmo.
Ora, o nosso futuro é representado, justamente, pelo desenvolvimento desse pensamento. Hoje está o homem apenas nos primeiros passos nesse caminho, tanto que não lhe é fácil conceber quais serão os seus futuros desenvolvimentos nesse sentido. A biologia do futuro compreenderá uma nova forma de evolução que substituirá essa fisiológico-morfológica, para tornar-se cada vez mais nervosa, psíquica, espiritual. A vida atenderá. a uma construção própria, diferente, que se dirigirá para a conquista do conhecimento e da ética, dos valores espirituais e sociais, das grandes idéias abstratas e sintéticas. O tipo precedente de evolução tendia a uma perfeição mecânica do corpo. Mas para cada perfeição existe um limite natural de desenvolvimento, que se atinge quando se chegou ao rendimento máximo e ao resultado melhor, utilizando o meio mínimo. Então aquela perfeição mecânica se detém, porque não é mais susceptível de progresso como tal, e, se ainda quiser avançar, deve transformar-se em qualquer outra coisa.
Fisicamente pouco mais tem o homem a construir. Não é desta forma, na qual progrediu bastante, que poderá encontrar um futuro a sua evolução. Não é no plano físico, de que já foi percorrida e superada a amplitude total e esgotadas as possibilidades, que o homem pode continuar a avançar. Com as religiões e o desenvolvimento do pensamento, com o Evangelho e a ciência já se iniciou essa nova forma de evolução. Ela gerará novo biótipo: o homem moral, dotado de instinto ético. A nova construção se está apenas iniciando. O sentido moral — que disciplina a própria conduta, em função de princípios mais altos do que a imediata satisfação da utilidade individual — é completamente desconhecido nos planos inferiores de existência, em que a vida ainda não chegou ao estado orgânico social humano. Desse novo sentido, a humanidade está esboçando as primeiras formações. Ele é indispensável para poder atingir, substituindo-se o caos pela ordem, a pacífica convivência nas grandes coletividades sociais do futuro.
Se a evolução quiser continuar através de seu mais alto produto, que é o homem, terá de continuar precisamente através das mais altas qualidades deste, que são as psíquico-espirituais. Para uma evolução, que vemos ter-se encaminhado já pela estrada da especialização psíquica, é absurdo que o progresso biológico volte exclusivamente ao sistema do passado, ou seja, a construção de órgãos que revolucionem a estrutura anatômica no plano físico. O homem físico representa um ponto de chegada da evolução orgânica, como aperfeiçoamento da forma, em nosso planeta. Já, agora, não é anatomicamente que os mais evoluídos diferem dos menos, mas é por suas qualidades intelectuais e morais. O médico vê e cura o mesmo corpo no delinqüente ou no selvagem, como no gênio ou no santo. Os homens hoje se diferenciam, mais do que pelo corpo, pela personalidade, que é agora a verdadeira base das distinções sociais. Embora teoricamente, as qualidades mentais e morais já começam a ser mais valorizadas que as físicas. O homem, em verdade, é o resultado muito mais de outras finalidades do que as que são apenas do seu organismo corpóreo. O homem futuro não será um animal forte, nem um astuto lutador, mas um cidadão consciente do universo.
A humanidade já procurou responder as perguntas que agora fizemos a nós mesmo. Ela possui, de formas diversas, nas várias religiões, a idéia do inferno e do paraíso. Ora, conceitos tão universais, como essas idéias que predominam no mundo, não podem ter nascido do nada, se não corresponderem a uma realidade profunda que as gerou. Se essas idéias existem de forma tão difusa, devem exprimir algo de fundamental na vida. Não podemos explicar a sua presença impressa na alma humana, quase como um instinto, senão como uma lembrança do passado e um pressentimento do futuro. Referimos acima, rapidamente, esses conceitos que aqui desenvolvemos. Estas idéias não apareceram no mundo por acaso, fruto de fantasia ou por vontade de chefes religiosos, mas fazem parte do desenvolvimento da vida, assumindo um significado biológico.
A idéia de paraíso exprime, justamente o estado a que a evolução levará o homem no futuro. Isto confirma tudo o que dissemos, porque já vemos existir nas religiões o conceito do telefinalismo que, segundo nos mostram, consiste exatamente na espiritualização. Se o inferno é matéria, o paraíso é espírito, e o atingimos fazendo da vida um processo evolutivo de purificação, que consiste em nos espiritualizarmos. Isto é o que ensinam as religiões, que demonstram assim admitir, elas também, a nossa tese do telefinalismo da evolução.
Esta se dirige do inferno, que exprime o passado involuído e bestial, cujo limite extremo é o anti?sistema, para o paraíso, que exprime o futuro evoluído e angélico, cujo limite extremo é o sistema. Inferno e paraíso indicam os dois pólos do processo involutivo-evolutivo, ou seja, Satanás e Deus. Por isso o inferno é situado em baixo, na fase de maior involução (matéria) e o paraíso no céu, na fase de maior evolução (espírito). O inferno é constituído, então, pela aterradora lembrança, que ficou impressa no subconsciente, daquele nosso estado feroz animal e dos sofrimentos a ele ligados; e os demônios são apenas as forças e criaturas inimigas que nos fizeram sofrer.
O mesmo que pudemos dizer do Evangelho, considerando-o como antecipação da lei que regulará a humanidade civilizada do futuro, podemos agora dizer destas idéias de inferno e paraíso; ou seja, que isto não tem apenas um sentido religioso, puro objeto de fé, mas outro mais profundo, e que constitui um fato biológico positivo que racionalmente se impõe a ciência. O subconsciente humano registrou o passado, tão duramente vivido, e agora no-lo restitui com as impressões que ele gerou, nesta forma de instintivo terror. De fato, é nesse passado biológico involuído que são buscadas as figuras demoníacas, de que se julga povoado o inferno, reconstruindo-se o ambiente em que elas se movem. Os diabos são, com efeito, seres extremamente involuídos, monstros pré-humanos, com pelo, rabo, garras, chifres, presas, como os animais: seres ferozes, capazes de todas as crueldades. O ambiente, por sua vez, é de natureza vulcânica, como fogo, enxofre, agitado por conturbações telúricas e atormentado por chuvas incandescentes. Mas este era apenas o estado do homem primitivo, indefeso, a mercê das feras e dos fenômenos naturais, num planeta que ainda era teatro de desencadeamento caótico de forças primitivas.
A terra situada em baixo, campo de tantas lutas, continha muitos perigos de morte. Do céu, no alto, vinham luz e calor, trazendo a vida. Em baixo, dor; em cima, alegria. A passagem do primeiro ao segundo nível de altura forneceu a imagem, e formou a idéia da subida que se eleva do inferno ao paraíso Assim a evolução foi concebida como um processo de redenção, que significa libertação da matéria baixa e suas dores, para conquistar a felicidade do céu. Pensou-se no inferno como em algo que deve estar situado em baixo, fechado nas tenebrosas e incendiadas vísceras da terra, enquanto se concebeu o paraíso situado no alto, povoado de seres livres e alados, nos luminosos espaços do céu.
Quisemos compreender a gênese dessas formas mentais e seu significado diante da realidade biológica, não para diminuir sua importância no terreno religioso, mas, ao contrário, para lhes dar, de forma racional positiva, uma confirmação de significado e valor científico. Assim uma fase de desenvolvimento ou plano de vida se liga ao outro como uma conseqüência lógica. O paraíso pressupõe o inferno como seu ponto de partida; o inferno pressupõe o paraíso como o seu ponto de chegada. Tudo isto corresponde exatamente a teoria da queda e da subida, segundo a visão expressa nos volumes Deus e Universo e O Sistema. O paraíso representa o estado futuro, que constitui, de tantas formas diferentes, a grande esperança do homem, estado em que se realizarão todas as aspirações que fervem na profundidade de seu irresistível instinto de subir. Só o fato de que se caminha nessa direção, pode dar bom e justo significado a dor, conforto a tanta luta, e um amanhã melhor a vida.
Somente assim podem dar-se sólidas bases biológicas a moral, bases estabelecidas pelas normas que regem a vida, nas quais se exprime a Lei, que representa o pensamento de Deus que guia o funcionamento do Universo. Se seguirmos essas normas, obedecendo àquela Lei, evoluiremos, ou seja, nos redimiremos do horrível passado em que caímos, e num maravilhoso futuro reencontraremos a felicidade. O conceito de dever e as normas de conduta humana passam a fazer parte integrante do processo evolutivo e assumem um valor biológico positivo. Desse modo podem dar-se bases racionais a moral, de forma que ela seja reconhecida pela ciência como fator que se enxerta no fenômeno da vida, como determinante de sua evolução. Então, a revolta contra a ordem, a desobediência as normas da ética, significa caminho de descida com todas as dolorosas conseqüências que a involução implica. Disto deriva o reconhecimento da importância positiva das religiões, como guia da conduta humana, importância que, assim, nem sequer a ciência pode desconhecer. As concepções da fé e da ciência, ao invés de chocarem-se, fundem-se, explicam-se e se sustentam mutuamente. Fazer o bem e o mal significa sintonizar com determinados ambientes, que por isso se tornam nossos, e dos quais acabaremos participando, para gozar ou sofrer, consoante nossas obras. Chega-se a uma moral biológica positiva, racionalmente demonstrada, solidamente baseada nos princípios que regem a vida. Já explicamos bastante o sentido e a importância da evolução. Ora, essa moral positiva é a que nos dita as normas para realizar o nosso trabalho, é a que nos ensina a arte de evoluir, para atingir aquele radioso futuro que nos aguarda. Procuraremos, nas páginas seguintes, delinear brevemente o conteúdo dessa moral, que representa o caminho para atingir aquele telefinalismo da evolução, que consiste na espiritualização.
* * *
A evolução é um fenômeno complexo, porque é dirigido pelas forças superiores e ao mesmo tempo permanece como que abandonado a si mesmo. Se os destinos da vida tivessem sido confiados apenas aos próprios recursos, uma vez iniciada, só teria sabido realizar uma multiplicação de seres, e não sua transformação no sentido do aperfeiçoamento. Sem a intervenção de outros impulsos, que a vida por si mesma não possui, não se explica como possa ela ter realizado um caminho ascensional. Nem se pode negar que, embora partindo do caos, nos achamos diante do fato consumado do milagre que a vida chegou a construir, até ao homem.
Entretanto, não se pode ignorar que isto é também produto de grande esforço do ser, que não pôde subir gratuitamente. Mas esse esforço que o ser teve de realizar para evoluir, não pode fazer-nos esquecer que, se não tivesse encontrado prontos os pontos para os quais se dirigir e todos os elementos necessários para alcançar a meta estabelecida, teria sido vão e se teria perdido, em vez de se canalizar ao longo desse processo particular, que chamamos evolução. Eis então que, ao lado do esforço necessário para subir, é mister reconhecer a presença de uma providência que forneceu paralelamente todos os elementos indispensáveis para que a subida pudesse realizar-se, elementos preparados com antecedência e encontrados no ambiente, para que o esforço do ser pudesse utilizá-los.
O acaso não pode ter pré-organizado tantas condições necessárias para o desenvolvimento da vida: formação de planetas, irradiação solar, presença de uma atmosfera, sua adequada composição química, umidade, oceanos, terras emersas, calor, luz, prontas no ambiente as substâncias utilizáveis, tudo dosado para que a vida fosse aí possível, dado que qualquer excesso ou deficiência a teria destruído. Pensemos que, no princípio, tudo isto era caos, e deste nasceu uma ordem maravilhosa, construindo-se, por planos, o edifício biológico que agora vemos funcionar e ao mesmo tempo evoluir, um organismo feito de partes comunicantes, que vivem trocando entre si o material de nutrição, combinando-se e fundindo-se numa só vida. O acaso não pode, de maneira alguma, ter pré-organizado tudo isso, nem tornado possível sua utilização até chegar a saber produzir o milagre da inteligência humana Sem dúvida era necessário o esforço do ser, mas era também necessário encontrar pronto e acessível todo o indispensável para realizar seu trabalho. Se tivesse faltado uma só condição, seu esforço teria falido. Comprovamos na evolução, não apenas um telefinalismo, que é o alvo a atingir, mas também uma previdência, que fez com que se achasse disponível tudo quanto era necessário para se chegar ao ponto estabelecido.
Por outro lado, o ser permanece como que abandonado a si mesmo, para que a evolução represente o fruto merecido de todo o seu esforço. Este lhe é totalmente entregue, porque sem esforço seu, o ser não poderia verdadeiramente aprender. Eis então que Deus se comporta como um pai que assiste aos primeiros passos da criança, ajudando-o indiretamente, deixando-o cair para que aprenda a não cair mais, e, ao mesmo tempo, vigiando-o e sustentando-o para que a criança não se perca. Quando então esta cresce, Deus lhe dá liberdade, para que aprenda a guiar-se por si mesma, assumindo as suas responsabilidades. Assim., se por um lado a criatura caminha com dificuldade tentando o futuro, por outro lado o auxílio que dirige a evolução nunca deixa de estar presente. Vemos, com efeito, que um poder interior a levantou a cada queda sua, repondo-a sobre o caminho devido, para fazê-la dirigir-se, de um modo ou doutro, para a sua meta. É assim que a vida pôde dar prova de saber vencer tantos obstáculos.
Explica-se dessa forma a técnica da tentativa. Eis por que, apesar do auxílio, aparecem erros e quedas ao longo da vida, ramos extintos, linhas desviadas ou congeladas, paradas nos lados da grande estrada da evolução. Esta é uma corrida em que alguns tipos perecem, eliminados pela porfia, ou permanecem superados; outros, enfim, como o homem, passam a frente de todos. Para cada candidato a futura vitória, há milhares de rivais que com ele competem. O homem, ao menos até agora, venceu-os todos. Mas isto não basta para garantir-lhe que vencerá sempre. Se ele se desviasse do caminho, do telefinalismo fixado a evolução, e utilizasse os poderes de sua inteligência para rebelar-se as diretivas da Lei, ao invés de obedecer, então também o homem poderia perder-se; e em tal caso, como já dissemos, não faltam outras espécies para substitui-lo na primazia sobre o planeta. Isto significa que as diretrizes do fenômeno da evolução exigem, em primeiro lugar, que o biótipo vencedor seja digno da vitória e que a esta corresponda um valor real. Quando um modelo de vida se demonstra inadequado à posição que pretende ocupar, então a inteligência diretora o lança fora, e o substitui por outro melhor; trata-se, de fato, de pormenores formalísticos, cuja mudança não impede, de modo algum, que os fins gerais da evolução sejam substancialmente alcançados. A vida caminhará de outra forma, atingirá o alvo com outras espécies, mas chegará de qualquer maneira aonde quer chegar.
Concluindo este assunto, podemos agora dizer que temos diante dos olhos os principais elementos que constituem o fenômeno da evolução.
Temos de um lado a sabedoria de uma inteligência que dirige. Revela-se ela em três momentos: 1) Imposição de um telefinalismo, como meta final do processo evolutivo, que, por um caminho ou por outro, tem de ser atingido. 2) Pré-organização das condições indispensáveis ao desenvolvimento desse processo (providência previdente). 3) Guia do desenvolvimento do ser, acompanhando-o e dirigindo-lhe o esforço na direção desejada, estabelecida pelo telefinalismo.
Por outro lado, temos o ser que luta para subir, se debate na tentativa, cai, levanta-se, sofre, aprende, vence ou perde, experimentando a grande aventura da evolução. Já falamos da técnica da tentativa. Aqui podemos ver-lhe uma razão de ser ainda mais profunda: essa técnica é a conseqüência lógica do estado em que o ser caiu com a revolta, ou seja, ignorância, cegueira que impede de ver o caminho a seguir. A técnica da tentativa representa justamente a condenação, que consiste em ter de realizar sozinhos, como abandonados a si mesmos, todo o esforço de reencontrar aquele caminho; ou seja, cegos, perdidos, nas trevas, tornar a achar a luz; ignorantes, perdidos na ignorância, reconstruir o conhecimento. Não é este o caminho da evolução e o progresso da humanidade? E que são as descobertas científicas e todas as grandes construções do pensamento, senão pedaços de conhecimentos reconquistados? A evolução representa para a criatura, verdadeiramente, um grande esforço e uma aventura perigosa, cheia de incógnitas, de lutas, de dores. Mas é justo seja assim, porque ela significa também redenção, e no alto está o reencontro da felicidade perdida. No entanto, Deus ajuda a evolução, embora não se fazendo ver, tanto menos quanto a criatura menos o merece nos planos mais baixos da vida, e tanto mais quanto a criatura mais o merece, por ter realizado o esforço de redimir-se, subindo a planos mais altos.
Assim caminha a evolução como um rio, que é livre, e entretanto tem de chegar necessariamente ao mar. Em ambos os casos, a coação não é exterior, mas devida ao poder dos impulsos interiores, como a gravitação, que é física, para a terra, no caso do rio, e espiritual, para Deus, no caso da evolução. Em ambos os casos a corrente é livre, e no entanto deve obedecer a esse princípio de atração que a leva, num caso, a descer materialmente para baixo, no outro a subir espiritualmente para o Alto. Tudo resulta livremente constrangido por esse íntimo chamamento irresistível. O rio, como a evolução, não sabe o que encontrará em seu caminho. Ele deve cavar seu próprio leito, adaptar-se ao terreno, superar as dificuldades, ora correndo rapidamente, ora precipitando-se em cascatas, ora repousando em lagos ou pauis. Mas o ponto de chegada está fixado: o mar. A corrente do rio não pode escapar ao impulso que lhe imprime aquela atração. Também a evolução sente o chamamento poderoso que a movimenta e não pode deixar de responder-lhe obedecendo. Ora, como é certo que, cedo ou tarde, o rio terá de chegar ao mar, então é certo que, cedo ou tarde, de um modo ou de outro, a evolução deverá levar o universo ao estado perfeito do sistema. Como no rio, cada gota d‘água chegará ao grande pai de todas as águas: o mar; igualmente com a evolução cada ser chegará ao grande pai de tudo o que existe: Deus. Como o rio, a evolução é livre de escolher o caminho que quiser, mas está fechada nos limites de sua lei, que a constrange a caminhar, sempre para o seu ponto final. O caminho do rio não está traçado e as águas devem procurá-lo, mas sempre seguindo o telefinalismo preestabelecido, dessa forma acontece com a evolução.
Esta aproximação de exemplos faz-nos compreender melhor a estrutura do fenômeno da evolução. Nesta encontramos liberdade de escolha, independência de ação, como se ela estivesse abandonada a si mesma, como parece ocorrer também com a corrente do rio. Daí, tentativas, erros, adaptações e também falências; mas ao mesmo tempo, repetições, salvamentos e triunfos. E o contínuo chamamento da meta final, impresso e sentido nas mais profundas vísceras do fenômeno, que põe freios aquela liberdade e a dirige e guia a bom porto; liberdade que, se fora abandonada a si mesmo, sozinha, acabaria naufragando como uma louca, na falência. Se, ao contrário, mesmo não possuindo conhecimento próprio, ela atinge perfeitamente a meta determinada, tornando sábia a sua liberdade, este fato só se explica pela direção daquela inteligência que apenas a sabedoria possui. No fenômeno da evolução, vemos balançar-se, em equilíbrio, impulso independente de liberdade e um impulso oposto, determinístico. No rio, como na evolução, não interessa muito que se siga esta ou aquela estrada (zona de livre escolha, deixada ao arbítrio do ser), mas que se atinja a meta (zona determinística). À evolução não importa se vai sobreviver este ou aquele biótipo, desde que sobreviva o melhor, e, por meio dele, triunfe a vida.
Assim se realiza, através de tanta luta, a ilimitada aventura da evolução, incerta e falaz no particular, mas segura e vitoriosa em seu conjunto, dirigida pela lógica de seu telefinalismo.
De um lado, ignorância e liberdade do ser, que segue a evolução; do outro, sabedoria e telefinalismo determinístico, na inteligência que dirige a evolução. Duas qualidades opostas e complementares, que harmonicamente se compensam, equilibrando-se. Deus se debruça para o ser, a fim de ajudá-lo a subir; o ser estende os braços para Deus em busca de ajuda. Assim, na grande obra, os dois extremos se casam e ela se realiza pela colaboração deles, resultado de um amplexo entre Criador e criatura. Deus atrai, convida, guia e dirige a criatura em seu penoso caminho. A criatura corresponde com o seu esforço para superar as dificuldades, suportando as dores que sucedem ao erro, executando o duro trabalho de reconstruir-se, renovando-se.
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Nesta imensa perspectiva da marcha cósmica da evolução, desenvolve-se o trajeto da maturação da vida do homem, para sua espiritualização. O que estudamos no volume anterior é apenas um episódio, um caso da grande batalha no plano humano. Mas existe uma batalha ainda maior do que aquela ali descrita. É a batalha entre sistema e anti-sistema na evolução do universo, para que este possa regressar a Deus. No presente volume, estamos dilatando cada vez mais a visão do caso narrado, até chegar a uma visão muito maior, de caráter universal, que nos mostra os erros da conduta humana diante da lógica da vida. Assim, subindo sempre e ampliando os horizontes, chegamos a harmonizar a realidade dos fatos que todos vivemos na terra, com as teorias expostas nos dois volumes: Deus e Universo e O Sistema. Em contato com aquela realidade, pudemos verificar que elas receberam plena confirmação, demonstrando ainda uma vez, depois do controle racional, a sua verdade com o. controle experimental.
Chegados a este ponto, podemos responder melhor as perguntas que fizemos um pouco acima: Que acontecera ao homem no futuro? Aonde o levara a evolução? A isto já respondemos em parte. Podemos agora caminhar mais à frente e perguntar: A que estado chegará o homem na conclusão dessa interminável viagem da evolução? Este será um momento muitíssimo distante, mas é certo que deverá chegar um dia. O ambiente terrestre não pode conter as possibilidades para todos os futuros desenvolvimentos da vida. Nem pode ele ser eterno. Onde e como poderá continuar a viver e evoluir o homem, quando o sol estiver apagado e a terra morta? E, mesmo que a raça humana tivesse de perecer, onde e como a vida, que não pode extinguir-se continuara sua evolução? Já dissemos pouco atrás que o universo tende a sua destruição como forma material, por desintegração atômica, e como forma dinâmica, por entropia. Que acontecera, então, com a vida que se desenvolve na superfície dos planetas? Como poderá ela continuar a evoluir, sem um suporte físico, ao qual estamos hoje habituados a vê-la ligada?
Se bem observarmos, veremos que o processo da liquidação do universo físico e dinâmico não é um fenômeno isolado; mas que, paralelo a ele, se verifica um correspondente processo genético de um universo espiritual. Nada se cria e nada se destrói. O que morre, tem de renascer sob outra forma. A substância que desaparece como manifestação no plano físico e dinâmico, reaparece em diferente manifestação no plano espiritual. Os dois fenômenos de destruição e reconstrução estão equilibrados, e o seu transformar-se de um no outro é apenas um processo criativo de reintegração, através da mudança de forma.
Diz-nos esse paralelismo que, quando o universo físico e dinâmico forem liquidados e desaparecer esta sua forma, então a vida humana terá superado sua atual forma física e, por haver-se espiritualizado completamente, ter-se-á transferido ao plano do imponderável. Ser-lhe-á possível, dessa maneira, continuar a existir, sem ter mais necessidade de suporte físico. Portanto o homem nada tem de temer, quanto a destruição de seu planeta e do sistema solar.
O problema é vasto e diz respeito as espécies todas da vida, a qual sabemos não poder existir sem apoiar-se no suporte material, oferecido pela superfície de um planeta. Deduz-se que a vida esta sob a dependência do fenômeno da formação e existência dos planetas no universo. Segundo a velha concepção antropomórfica-egocêntrica, seguida pelos teólogos, a terra teria sido o único ponto habitado do universo, o centro e o fim da criação. Embora fosse aceito isto também porque, sendo muito honroso, podia satisfazer ao míope orgulho humano e ao natural instinto egocêntrico da maioria pouco evoluída, continuava o absurdo de um tão ilimitado universo existir apenas em função de um tão minúsculo homem, que mal o conhece, perdido sobre um grãozinho de poeira que gira nos espaços. Então todo o resto existiria para nada.
Uma necessidade lógica nos força a admitir que as formas planetárias necessárias a evolução da vida, estejam bastante espalhadas, para que esse importantíssimo fenômeno possa realizar-se nas devidas proporções. Mas vejamos o que a respeito diz a ciência. Até ha pouco tempo, os astrônomos geralmente acreditavam que os sistemas planetários do universo fossem muito raros e, portanto, também a vida neles. Isto porque se supunha, como no caso de nosso sistema solar, que a série dos planetas nascesse de uma colisão de estrelas. A matéria tirada da massa de nosso sol, ter-se-ia assim destacado do corpo central e recolhido nos planetas em torno dele. Com efeito, eles continuam a girar em redor do sol na mesma direção em que ele gira em torno de si mesmo e quase no mesmo plano. E no mesmo sentido os planetas continuam a rodar em torno de seu eixo polar, e a girar em redor deles os seus satélites. Isto, exceto o caso de Urano e do movimento retrógrado dos satélites mais externos de Júpiter e Saturno etc., é verdade até agora.
Há o fato, porém, de estarem as estrelas muitíssimo distantes uma das outras. Então esse método de gênese estelar torna a formação de sistemas semelhantes ao nosso, extremamente improvável. Pensava-se que menos de um caso sobre um milhão pudesse dar lugar a essas formações. Concluía-se que a nossa terra habitada devia enumerar-se entre os acidentes raríssimos.
Os astrônomos modernos acreditam, ao invés, que as estrelas se formam por condensação de levíssima matéria cósmica, antes difusa, a qual, concentrando-se, começa a esquentar até ao ponto de gerar reação nuclear, e assim a brilhar e irradiar energia, a maneira da bomba de hidrogênio. Durante esse processo formam-se correntes interiores turbinosas espiralóides, que lançam á periferia menores massas rotativas, que formam os planetas, que continuarão a girar em redor da estrela. Sua matéria condensar?se?á cada vez mais em torno de seu centro de rotação e eles formarão corpos separados.
Eliminada assim a hipótese do choque, coisa improvável, preside então á gênese planetária uma causa mais comum, que pode facilmente verificar-se em muitos momentos e pontos do universo. Então pode aceitar-se que as formas planetárias não sejam de modo algum raras. Pode-se supor, com razão; que em redor de muitíssimas estrelas existam planetas em que é possível a vida, embora em forma diferente, mas dirigida pelos mesmos princípios fundamentais e dirigida para os mesmos objetivos finais para a qual caminha a nossa. Esses planetas não são visíveis, porque não possuem luz própria e estão muito próximos aos seus respectivos sóis, com os quais se confundem ao serem observados da terra. Mas a oscilação da luz de muitas estrelas faz pensar que outro corpo se mova diante delas, interceptando-lhes a luz intermitentemente. Hoje a ciência aceita que uma galáxia possa conter desde o máximo de um milhão, até um mínimo que não seria inferior a cem mil sistemas planetários
A hipótese sustentada por Flammarion, da pluralidade dos mundos habitados, tornou-se mais aceitável pelo fato de que os astrônomos julgam que a composição do universo seja resultante mais ou menos dos mesmos elementos fundamentais. Deduz-se daí que os outros planetas devem ser constituídos pelo mesmo material que o nosso, de modo que neles poderão ter sido produzidos ambientes e condições semelhantes de vida, o que implica a possibilidade de que essa tenha podido aí manifestar-se e desenvolver-se, tal como ocorreu na terra. Não é portanto, contrário as conclusões da ciência admitir que exista, espalhada pelo universo, uma infinidade desses berços da vida. Isto significa que esta se espalha por todo o universo e que a evolução possui, desta maneira vastíssima base de operações para desenvolver a consciência e despertar o espírito, avançando de fato para o seu telefinalismo, como acima explicamos.
A ciência nos confirma também aquela exigência lógica, a que acima fizemos referência, pela qual parece estranho que o nosso planeta ou sistema planetário se tenha achado em condições tão felizmente excepcionais e superiores, que pôde ter o privilégio, só ele, ou poucos mais, de hospedar um fenômeno tão elevado, como a vida, e o desenvolvimento de consciência que ela tende a produzir. Fato este tanto mais difícil de admitir, quando se pensa que todo o processo reconstrutivo da evolução teria ficado sustentado por este único e tênue fio, que é a vida na Terra, enquanto todo o resto do universo teria ficado sem significação nem objetivo, em relação aos fins supremos que deviam ser atingidos, e que já agora demonstramos suficientemente. Não se compreende como a evolução possa permanecer operando, concentrando-se apenas num ponto, no meio de um deserto sem limites, e que seria qualificado como inútil. Como admitir tão flagrante absurdo, no meio de uma logicidade constante, que vemos aparecer a cada momento do funcionamento e evolução do universo? Como se explicaria uma tão excepcional violação dos tradicionais métodos de utilitarismo e economia que dirigem o transformismo evolutivo? Não se consegue imaginar um universo tão sem finalidade; sua existência sem uma razão que a justifique; tanta sabedoria e poder para nada. Não se pode admitir também o outro absurdo, isto é, que a sabedoria e poder de Deus, para atingir seus fins mais altos, se tenham dirigido só para este ponto, escolhido em todo o infinito dos mundos, para esta nossa invisível Terra a fim de, fazer do homem o mais alto modelo dos produtos da vida.
Só com a teoria acima exposta tudo se explica; inclusive as estrelas e as galáxias. Deste modo a existência no plano físico e dinâmico, adquirem um significado e assumem uma tarefa que se realiza em função do telefinalismo de toda a evolução. A infinita multiplicidade do transformismo fenomênico e reconduzida a um conceito unitário, e se compreende a razão última de tanto esforço para subir. Só assim tudo o que existe, seja na forma de matéria, ou de energia, ou de espírito, tem sua função a realizar e sua lógica razão de ser, para atingir a meta final de tudo, Deus. No ilimitado universo não gira no vazio tanta matéria morta inútil, mas caminham muitos mundos que servem de apoio onde se possa desenvolver a vida, para que depois, por meio dela, possa reconstruir-se em seu estado espiritual, que e o único que pode agasalhar perfeição e felicidade.
O trabalho da evolução esta assim distribuído no universo: nos planos da matéria, o trabalho se realiza nas estrelas e galáxias; nos planos de energia, nestas e nos espaços interestelares; nos planos da vida, na superfície dos planetas. Aqui amadurece o universo e evolui, através da vida, para sua fase superior, que é a do espírito. O ser subirá de forma em forma, de ambiente em ambiente, de planeta em planeta, até que, evoluindo e desmaterializando-se, assuma formas tão espirituais que para elas não será necessário suporte planetário, e a vida poderá existir sem o concurso da matéria, sobrevivendo, no fim do universo físico, como produto final de sua transformação.
A moral biológica positiva. Convicção e não terror. Andar a favor, e não contra a vida. Moral positiva de construção. Se surge um conflito entre a ética e a vida, é esta que vence. Moral mais livre, mas consciente e responsável. Moral é tudo o que faz evoluir para Deus, e ao contrário Utilitarismo superior. Definição de moral. Na evolução, ela é relativa. Conceito de ética progressiva, em várias dimensões. Respeitar os direitos da vida. Suas três exigências fundamentais, os três maiores instintos humanos e as obrigações da ética. A atual é moral de guerra, não de justiça. Garantir: 1) A conservação do indivíduo (bens e propriedades); 2) a conservação da espécie (amor e família); 3) a evolução (defesa do evoluído). A dor é desarmonia. Renúncia e castidade. As virtudes positivas. Triste sorte do gênio.
Referimo-nos, no capitulo precedente, a uma moral biológica positiva, racionalmente demonstrada, baseada nos princípios que regem a vida, e prometemos que delinearíamos o seu conteúdo. Podemos agora, ao concluir o presente volume, desenvolver este assunto.
As normas da ética tiveram, no passado, a função de disciplinar a vida do homem, refreando-lhe e guiando-lhe os instintos animais, para que adquirisse outros mais evoluídos. Essa moral, dirigida ao grande objetivo de refazer o homem, melhorando-o, foi por ele aplicada, porém, segundo a sua forma mental e instinto dominante, ou seja, com espírito de ataque e defesa, que corresponde a lei de seu plano animal, a da luta pela seleção do mais forte. Como conseqüência, a execução das normas dessa moral é confiada, em grande parte, ao terror de sanções punitivas, ao cálculo do pr6prio prejuízo, o que introduz, no seu utilitarismo criador, próprio da vida, um elemento negativo, tendente a invertê-lo, dando-lhe um aspecto de agressão e destruição.
A nova moral, ao contrário, é concebida não contra, mas em função da vida. Sempre e totalmente positiva e construtiva, jamais e em coisa alguma negativa, destrutiva ou agressiva, pois, mesmo visando ao bem, jamais poderá posicionar-se contra as leis da vida. Trata-se de uma moral mais evoluída, que não destrói, mas respeita toda a moral precedente e atual, e que justamente, por ser mais evoluída, não pode deixar de perder alguns de seus caracteres negativos, feitos de luta e imposição, os quais são necessários nos planos inferiores de vida porque se destinam a conquistar, a partir daí, outros planos positivos, feitos de amor e compreensão, possíveis apenas nos níveis mais elevados da existência. Tudo o que evolui, — e também a moral não pode deixar de evoluir, procedendo do anti-sistema ao sistema, — tem de perder cada vez mais os caracteres do primeiro, para substituí-los pelos do segundo. Feita para um ser mais evoluído, a nova moral, perderá os opressores e anti-vitais atributos de culpa, pecado, condenação, que significam esmagamento, e a vitória do mal infligido pelo mais forte com sua sanção punitiva, para basear-se, não na coação pelo medo do prejuízo, mas pela convicção de ir ao encontro da vantagem própria. É um reerguimento de posições, pelo qual se trabalha não mediante repulsão, mas por atração, sendo o móvel não a fuga de um mal que nos ameaça, mas a consciência da utilidade de obedecer às normas da ética. Só se pode, porém, chegar a essa nova moral, quando a evolução tiver amadurecido bem o homem, para que este novo modo de concebê-la possa ser usado sem prejuízo; ou seja, quando o homem tiver chegado a um tal desenvolvimento como inteligência e sensibilidade, que, para alcançar os objetivos educacionais que a moral se propõe, possa dispensar-se o chicote dos terrores infernais. Então bastará o fato de compreender que obedecer à Lei de Deus não está em contraste, mas concorda perfeitamente com o nosso instinto de subir. Esse é o próprio instinto da vida, isto é, o de atingir a maior vantagem: utilitarismo que se justifica pelo fato de ser um meio para subir, avizinhando-se, assim, cada vez mais da realização dos supremos fins da evolução.
Deduz-se daí que, quando dizemos nova moral, não queremos com isso condenar e muito menos refazer a atual, mas apenas compreender sua razão de ser e suas funções, para usá-la cada vez mais com inteligência e bondade, como convém a um evoluído, e com cada vez menos inconsciente desafogo de instintos, como tende a fazê-lo o involuído. Não se trata, aqui, de anular o passado, mas apenas de fazê-lo ascender a um plano mais alto, como o impõe a evolução. Como se vê, damos aqui à palavra moral, o sentido amplo de norma ética, anteposta a todos os campos da conduta humana.
A qualidade da nova moral, pelo fato de ser mais evoluída, deve apoiar-se sempre mais nas forças positivas e construtivas, do que nas negativas e destrutivas; deve funcionar mais por convicção de que a disciplina leva a uma vida melhor, do que pelo medo de que a desobediência leva a uma vida pior. No primeiro caso, seguem-se as normas aceitas por livre-adesão convicta e por amor; no segundo caso seguem-se as normas impostas à força, constrangendo pelo medo. A conseqüência a que leva a primeira atitude é o espontâneo e pacífico cumprimento da norma; a segunda leva, ao invés, a uma obediência coagida, contra a qual o ser luta, procurando todas as evasões, e aceitando-a à força, até que consiga rebelar-se. O fato de que, ao lado de cada norma se põe, em nosso mundo, sua sanção punitiva, demonstra que esta é a fase em que ele atualmente está situado. Se é verdade que a moral coativa terrorística é uma necessidade para os tempos menos adiantados, já que não há outro meio para induzir o involuído a obedecer, e assim melhorar, é também verdade que esse método se torna supérfluo e até contraproducente, logo que o homem se civiliza. Contraproducente, porque feito de luta e cheio de atritos; porque, embora seja para fazer subir a vida à espiritualidade, se tenta matá-la em sua animalidade, excitando-se assim as suas reações, já que se põe em ação o espírito de agressividade, que atrai para baixo (zona a que pertence), em vez de conduzir para o Alto.
A nova moral é precisamente a do Evangelho e a novidade consiste em levá-lo a sério e começar a vivê-lo. É superlativamente positivo e opera pelo caminho do Amor. Representa ele a moral do futuro, a do evoluído. Corresponderá às exigências dos tempos novos, mais amadurecidos, que o compreenderão e praticarão. Então a nova moral, sem destruir a velha, a levará a um nível mais alto, mais livre, mais criador, em que será demonstrada a lógica e a utilidade de obedecer. Não haverá mais em primeiro plano, como sendo a coisa mais importante, o trabalho de matar, no homem, o animal. Esse trabalho sozinho produz apenas um cadáver e só este permanecerá se não tivermos feito ao mesmo tempo, ressuscitar o anjo. O objetivo da evolução é subir, e o que mais importa é construir o novo. Destruir o velho não tem valor, em si mesmo, mas apenas porque serve para deslocar-nos para mais altos níveis de vida. O objetivo de tudo é subir, e tudo só se justifica se leva à realização do supremo telefinalismo da vida, que é a sua espiritualização. Tudo o que é destruição anti-vital pertence aos poderes negativos do mal, ao passo que tudo o que representa construção vital pertence aos poderes positivos do bem.
Distingue-se a nova moral da velha por haver superado a necessidade de usar impulsos negativos opressores anti-vitais. Não ha razão para que deva ser tão penoso e esforçado o viver espiritualmente, e se procure fugir dele, por considerar tão agradável e desejável viver bestialmente. Basta evoluir um pouco para conseguir compreender que é justamente o contrário. Basta civilizar-se um pouco para sentir náuseas das satisfações que formam a alegria de quem vive no plano animal. Aqui não condenamos a moral da revelação mosaica, em que as religiões se assemelham. Mas achamos que será inadequado aos novos tempos o método de coação forçada, com a qual foi necessário aplicar aquela moral à dura cerviz e aos instintos de agressão e revolta do antigo povo hebreu, assim como do feroz homem medieval, nosso próximo progenitor. Não são os princípios da velha ética que mudarão, mas o espírito com que ela foi entendida e ainda é aplicada. Isto nos levaria a crer que não se pode alcançar a evolução senão através da sufocação da vida. Mas por que a virtude deve consistir apenas no sofrimento, do qual fugimos instintivamente, e não na alegria? Por que a vida espiritual deve ser concebida só como renúncia, e não como conquista, só como destruição e não como construção? Porque deve ser só morte e não ressurreição? Como pode admitir que a vida goze com a morte e não se rebele contra a sufocação? No entanto, se não quisermos que se rebele, não é morte que se lhe deve oferecer, mas uma vida melhor e maior, e então todos a procurarão.
O estado involuído do homem fez com que até hoje as religiões entendessem a subida moral como ação negativa de destruição da animalidade, ao invés de ação positiva, construtora de espiritualidade. O progresso deve afastar-nos da primeira forma, para aproximar-nos da segunda. O progresso neste terreno reside em compreender que é lógico e justo que a vida resista e se rebele contra os assaltos que procuram diminuí-la. Assim se encontra a origem da luta, tanto mais que estamos num plano em que esta é a lei da vida, lei que vemos aparecer também no campo da ética. Acontece então que a própria ética por si mesma se torna um instrumento daquela luta, em defesa dos direitos adquiridos com a força do vencedor: ética não de justiça, imparcial, mas em defesa de interesses de classe, o que excita os deserdados a rebelar-se, como na Revolução Francesa. Não se pode deter o impulso da lei biológica, que quer sempre a luta da vida em todos, para sobreviver.
Já nos referimos em vários lugares no curso do presente volume a estes conceitos, orientando-os diversamente em relação a outros problemas. Quisemos aqui retomá-los, coordenando-os dentro do tema da ética, que agora desenvolvemos. Onde tudo evolui, também a moral não pode deixar de evoluir. Significa isto tornar-se mais luz de conhecimento e menos trevas de ignorância, mais paraíso e menos inferno, mais triunfo que sufocação da vida, mais Amor que terror, mais inteligente e livre aceitação que coação forçada. Com a ascensão, tudo tende a libertar-se da ignorância, da imposição escravizadora, do terror de ameaças de um inimigo desconhecido. Torna-se tudo mais límpido, livre, convicto. Compreende-se então, cada vez mais, que Deus é um amigo nosso e que é nosso interesse obedecer a Sua Lei. Ele nos governa para nosso bem e não para impor-nos, como senhor, uma vontade Sua egoísta. Esta última é a forma mental humana que o homem, possuindo-a e não sabendo dela fugir aplicou a tudo, inclusive ao comportamento de Deus, não conseguindo imaginar outra diferente da sua própria. Mas logo que a sua inteligência se abre um pouco, muda completamente o modo de conceber a vida, e eis que aparece a nova moral que, embora ditando as mesmas normas, o faz à base de um princípio totalmente diverso, que não é o da egoística imposição de um senhor a um escravo, mas a de um Pai bom que não exige obediência por si, mas só porque esta representa o bem de seus filhos. A maior altura evolutiva alcançada pela nova moral consiste no fato de que nela desaparece o atrito da luta e o conflito entre o imperativo ético e a utilidade do indivíduo: utilidade verdadeira, entendida não no sentido do gozo imediato, o que mais se procura e ao contrário pode constituir um prejuízo, mas utilidade compreendida no sentido de real e permanente vantagem, não ilusória como as coisas terrenas.
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Chega-se assim a delinear as características fundamentais desta moral. Atingido o conceito desse utilitarismo superior, poderemos então, dizer que é moral tudo o que leva a alcança-lo, e imoral tudo o que dele se afasta. Trata-se, pois, de uma moral utilitária não no sentido pequeno, egoísta e desagregante em que é geralmente compreendido o utilitarismo, mas em sentido superiormente afirmativo, verdadeiramente vantajoso em plena lógica, que caminha para a vida, obra de Deus, e não contra ela. Podemos, então, definir como moral tudo o que é útil à vida, sabendo que nada é tão vantajoso quanto o espiritualizar-se, que a leva ao fim supremo: Deus.
Encontramos então o princípio diretivo fundamental que nos permite reconhecer o que é moral e imoral, no mais amplo sentido de ético e anti-ético. Jamais, provocar conflito entre moral e vida. No plano biológico humano, onde costuma nascer esse conflito, acontece que, na prática, é a vida (ninguém pode torcer) que vence e a lei ética perde, ficando como teoria não aplicada, e em substância, uma forma de hipocrisia. Dado que a evolução traz harmonização, no plano de vida em que funciona a nova moral, deve desaparecer todo traço de luta.
Foi suficientemente demonstrado nos nossos volumes anteriores qual é o conteúdo desta maior utilidade. A nova moral é uma moral mais evoluída, adaptada a uma humanidade mais civilizada, moral que presume já estar realizado em grande parte o baixo trabalho de superar, no homem, o animal, para poder dedicar-se sobretudo ao de construir o anjo. Com o progresso da evolução começa-se a chegar aos planos superiores, onde a atividade construtiva deve assumir formas diversas, aptas a alcançar finalidades diferentes. Trata-se de uma moral cada vez mais de substância, e cada vez menos de forma; sempre mais sentida e menos imposta; mais livre e espontânea e menos constrangida, à força de sanções; baseada na aceitação pacífica, e não na luta que procura todos os meios de evasão. A penalidade para cada violação reside, então, nas inevitáveis conseqüências das causas que cada um estabelece como quer, com a própria conduta. Nesse plano de vida, o ser conhece a Lei e sabe que essas conseqüências são fatais reações daquela Lei, de acordo com a justiça de Deus, reação lógica e merecida, à qual não se pode escapar; e é ignorância pueril tentá-lo, como se costuma na terra, com as astúcias humanas.
Eis uma moral que, ao involuído, parece mais livre, mas em que o ser é obrigado à obediência e mantido na ordem, por uma força mais sutil, porém mais poderosa que a prepotência humana, ou seja, pela persuasão. Mas só se pode chegar à persuasão por meio da inteligência que atinge a consciência da Lei. O homem atual, porém, geralmente, não possui essa forma de inteligência e nenhuma consciência da ordem que regula o universo. Assim, a cada passo, ele comete o erro de rebelar-se contra essa ordem, acarretando, depois, duras conseqüências. Para poder tirar desse tipo biológico algo de bom a fim de fazê-lo evoluir, é necessária a atual moral armada, carregada de castigos e ameaças, porque se nem estas hoje são suficientes, ele zombaria integralmente de uma moral desarmada, que pedisse obediência só por convicção e por amor.
Formalmente, a nova moral é muito mais livre, embora o seja muito menos na substância. A norma e a obediência aprofundam-se cada vez mais quando se progride, procedendo do exterior para o interior . Tudo se desmaterializa com o avançar da evolução, espiritualizando-se em potência, e, ganhando ao mesmo tempo em amplitude de concepção. O ser liberta-se da opressão de uma mecânica regulamentar, miúda, pedante, necessária para o involuído nos planos inferiores de vida. Mas a Lei, logo que o liberta, o retoma sob seu poder numa forma mais alta, tornando-o mais livre, porém mais responsável, agora que pode fazê-lo, porque ele se tornou mais consciente.
A nova moral pode dizer o que seria absurdo enunciar no plano do involuído, porque aí geraria completa anarquia. Como cada povo tem os chefes que merece, assim cada tipo biológico esta preso à lei que merece e lhe esta proporcionada. Quanto mais involuído é o ser, mais a Lei se lhe manifesta dura e inflexível, porque é melhor para ele que seja assim, e porque esta é a única forma que a sua inferioridade lhe permite ver. Ao contrário, quanto mais evoluído é o ser, mais a Lei se manifesta benévola e livre, porque, ja que ele não abusa, isto não o prejudica, e porque esta é a forma pela qual o olhar mais agudo de quem esta mais adiantado a vê. Eis que a nova moral pode dizer: pode fazer-se tudo, desde que seja honestamente feito. Mas, que quer dizer honestamente? Honestamente significa: sem que o resultado seja prejuízo, isto é, mal em todos os sentidos, nem para si nem para outros. Podemos então definir o conceito de culpa ou pecado, como tudo o que traz prejuízo, ou mal, em qualquer sentido, a si ou a outros. Como se vê, trata-se de um sistema não opressivo, mas livre e utilitário, fato que o torna menos penoso e mais facilmente aceitável. Vemos também que a norma, subindo, se torna sempre mais simples e sintética.
Mas perguntamos: em que, exatamente, consiste esse prejuízo que se deve evitar? Se, como explicamos, o objetivo da vida é evoluir, a tarefa da moral é dirigir, com normas oportunas, a conduta humana para a realização desse objetivo. Segue-se daí que o conceito de moralidade coincide com o de subida evolutiva, e o conceito de imoralidade com o de descida involutiva. E paralelamente o conceito de bem e de vantagem correspondem ao de evolução, por meio da qual são obtidos, e o conceito de mal e prejuízo correspondem ao de involução, aos quais ela leva.
A norma supracitada poderá então repetir-se: tudo pode fazer-se, desde que seja honestamente feito, sem que provenha mal ou prejuízo nem para si nem para outrem, sem que leve ninguém a descida involutiva. Então a escala que mede o valor da nossa obra coincide com a escala da evolução, e nela temos três posições possíveis: 1) uma positiva, em ascensão, que leva ao bem, a nossa utilidade, e que constitui a moral; 2) uma negativa, em descida, que leva ao mal, ao nosso prejuízo, e que contém a anti-moral; 3) uma neutra, estacionaria, que não sobe nem desce, não leva ao bem nem ao mal, nem à nossa vantagem nem a nosso dano, uma zona de atos indiferentes, sem valor, nem moral nem imoral, sem importância diante da evolução, uma zona que contém o amoral; deter-se nela significa apenas perder tempo.
Eis que assim, sem códigos, regulamentos, juizes nem sanções humanas, com um princípio simplicíssimo, podemos autodirigir-nos. Saberemos então que fazer tudo o que nos leve a Deus é moral, virtude e um dever. Ao contrario, fazer qualquer coisa que nos afaste de Deus é imoral e, constituindo culpa nossa, temos o dever de não fazê-lo. Este principio ainda mais sinteticamente pode exprimir-se com aquela fórmula única e liberal, que um santo seguiu: “ama a Deus, e faze tudo o que queres”.
Esse princípio é susceptível de muitas explicações e pode exprimir-se de muitas formas. Moral é o nosso bem, a nossa utilidade, ou seja, tudo o que vai para Deus. Imoral é o nosso mal, o nosso prejuízo, ou seja, tudo o que nos afasta de Deus. Bem é evoluir, subindo para o sistema; mal é involuir, descendo para o anti-sistema. Temos assim de um lado uma série de conceitos positivos, e de outro lado uma série de conceitos negativos. Subida, evolução, utilidade, bem, sistema, Deus, constituem o campo da moralidade. Descida, involução, prejuízo, mal, anti-sistema, Satanás, constituem o campo da anti-moral. Ao primeiro grupo de conceitos estão conexos os de vida, luz, consciência, felicidade etc. Ao segundo grupo estão conexos os de morte, trevas, ignorância, dor etc.
Assim, o problema ético é resolvido de forma lógica, simples e cabal. O instinto fundamental da vida e seu sadio utilitarismo não são negados nem sufocados. Logo que o ser torna bastante inteligente para chegar a compreender que se trata de seu próprio interesse, ele é levado, por esse fato, à adesão espontânea. Desaparece, dessa forma, automaticamente, o regime terrorístico das sanções punitivas e todos os males a ele ligados. O mundo da ética recebe assim nova luz. Resumindo então: moral é tudo o que é elevado: imoral, o contrario. O mesmo pensamento, o mesmo ato, podem assumir sentido e valor diferentes, conforme o plano de vida em que se realizam e pelo qual são julgados. Assim pode ser imoral para um evoluído, o que ao involuído pode parecer lícito; e a maior moralidade para o involuído é comportar-se como evoluído, ou seja, a besta comportar-se como anjo e ao contrario; a maior imoralidade é o anjo comportar-se como animal. Subindo aos planos superiores de vida, tudo se enobrece e purifica, espiritualizando-se. Mudam os critérios com que se julga; as palavras verdade, bondade, justiça assumem sentido diferente. E a natureza diferente do biótipo que tudo transforma e adapta ao próprio nível, e tudo realiza segundo as leis deste.
Damos aqui — como acima referimos — as palavras: moral e imoral, o amplo sentido de bem ou mal, de justo ou injusto, de lícito ou ilícito etc., e não o sentido restrito em que são usadas na linguagem comum. Podemos, assim, chegar a uma "definição de moral" dizendo que ela é: “o conjunto das normas de conduta que guiam o homem para atingir o maior objetivo da vida: encontrar Deus, subindo com a evolução o caminho que a Ele conduz todos os seres” O modelo da moral perfeita é dado, então, pela Lei que representa o pensamento de Deus, que dirige tudo. Desta perfeição ética o ser, ao progredir, conquista varias aproximações sucessivas que constituem as morais relativas em evolução, que são o patrimônio ético próprio a cada plano de existência. Falamos, pois, de uma moral de proporções cósmicas, que aparece em todas as dimensões e níveis evolutivos, moral que assume o amplíssimo sentido de norma, que guia a subida de qualquer forma de existência para contínuas superações, até levar a substância, do estado de anti-sistema, ao estado de sistema. Trata-se de uma moral universal, cujos princípios progressivamente se realizam através do transformismo do relativo, em varias alturas, — têm suas raízes e acham sua justificação no absoluto, — donde parte e para onde volta o ciclo do ser. Dadas as dimensões cósmicas dessa moral, que abarca todas as formas do ser, não podia deixar de aparecer nela o princípio do dualismo universal. Achamo-lo aqui sob a forma de: moral e imoral, que são os dois aspectos, o lado luz, positivo, e o lado sombra, negativo, ou seja, o direito e o avesso do mesmo fenômeno que chamamos moral. Estende-se ela, assim, desde o anti-sistema, em que esta toda invertida, ou seja, imoral, até o sistema, em que se encontra toda positiva, ou seja, moral.
Pelo fato disto ocorrer através de um processo de transformação evolutiva, a lei ética muda, de plano a plano, oferecendo-nos assim, de acordo com os diversos níveis, uma série de morais relativas diferentes, que são aproximações diversas da mesma moral perfeita do evoluído. Desta forma podemos chegar não só ao conceito de uma variedade de morais sucessivas, escalonadas em varias alturas da escala evolutiva, como também chegar a admitir a maturação de uma moral relativa em evolução; ou seja, não apenas uma moral (aparentemente) estática e definitiva para uso da forma mental humana, como também uma moral progressiva muito mais vasta, que lhe garante um amanhã. Isto nos é confirmado pelo fato de que em cada coisa encontramos esse fenômeno de relativismo que evolui. A própria verdade é para o ser, relativa e esta em evolução, proporcionada ao grau de consciência conquistada. É lógico, aliás, que a norma de conduta que deve guiar o ser em seu regresso a Deus, deva ser proporcionada à posição conquistada na subida evolutiva, e deva ser diferente, de acordo com a maior ou menor proximidade do ápice.
Pode chegar-se, assim, ao conceito de uma ética especial que não esta numa só dimensão, como a comum humana, mas de uma ética em tantas dimensões, quantas são as possíveis posições do ser, ao longo da escala evolutiva, uma ética que não diz respeito apenas ao homem, mas a todas as formas de existência, que vão dos movimentos atômicos ao espírito. Ética que, naturalmente, se manifesta de formas diversas nos vários planos: determinístico no da matéria, e por meio do livre arbítrio, no nível humano. O estudo da ética, compreendida em tão vasto sentido, deveria enfrentar o fenômeno de sua evolução, ou seja, examinar os princípios normativos de todas as formas de existência, e o do transformar-se destes, uns nos outros. Chegar-se-ia desta maneira ao conceito de uma só ética ascendente que, mesmo transformando-se, permanece idêntica a si mesma, porque em cada ponto de seu transformismo, está sempre condicionada ao seu mesmo telefinalismo. Desse conceito deriva o do valor relativo de cada posição, incluindo a humana atual. Conclui, também, uma, confirmação de tudo o que foi aqui sustentado,
isto é, que, como a moral de hoje não é a de nossos avoengos selvagens, assim ela não poderá ser a de nossos descendentes mais civilizados.
Compreende-se que se deve conceber a moral em função da evolução. A que for seguida por determinado tipo biológico, será o melhor índice de sua natureza e grau de desenvolvimento. "Mostra-me como ages, e dir-te-ei quem és". Assim, na mesma humanidade acharemos vários níveis evolutivos e éticos, indivíduos de morais diferentes, na base das quais sentem e agem. Teremos a moral do evoluído e a do involuído, diferentes como o é o próprio tipo biológico. Assim os julgamentos sobre tudo e sobre todos, serão diferentes, de acordo com o plano evolutivo, a forma mental e a moral relativa do indivíduo que os formula, e não terão valor superior a esta sua relatividade. O mesmo metro único da ética estandardizada para uso prático, será assim diversamente interpretado e aplicado para cada um dos numerosos elementos que constituem a sociedade humana, numa rede de julgamentos, dos quais cada um, em sua relatividade, pretende ser absoluto e definitivo. Mas é óbvio que tudo isto tem valor relativo. O julgamento último, completo e perfeito, não pode sair desse relativo, só podendo provir de uma fonte que esta fora e acima de todos os seres, no absoluto, em Deus. Todos os demais julgamentos exprimem, em primeiro lugar, a pessoa que os profere seu tipo. sua evolução, sua posição na vida, seu interesse, sua forma mental etc. Assim por coisa alguma uma pessoa é tão bem julgada, quanto por seus próprios julgamentos. O único que pode julgar sem que por isso seja julgado, não pertence a este mundo, esta acima de todos os julgamentos, é o único verdadeiro juiz que julga a todos, juizes e julgados: o supremo juízo de Deus.
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Observemos, agora, o problema ético mais de perto, em relação ao homem em nosso mundo atual. Nesse ambiente domina a lei da luta pela seleção do mais forte, impregnando a conduta humana e gerando uma ética relativa, ao menos na pratica, embora seja diferente a teoria. Segue-se que na terra o campo da moral não é nada pacífico. Ora, dissemos acima que sua função é de guiar o homem ao cumprimento dos objetivos da vida, e que, portanto, não deve nascer conflito entre esta e a moral, ao negar satisfação as suas exigências sadias. Neste caso, deve esperar-se logicamente suas respectivas reações e, se quisermos ser justos, teremos de reconhecer que constituem um direito seu pleno: o de viver. Tudo o que quer diminuir ou matar a vida, só pode provir das forças negativas, inimigas de Deus. Eis então que, quando nasce um conflito entre ética e vida, estas reações contra a ética formal geram o anti-ético, pelo qual o indivíduo é julgado culpado, por uma moral que cometeu a culpa maior de ter agredido a vida em seus direitos fundamentais. Nesse caso, dos dois, quem é o culpado? O moralista que não respeita os direitos da vida ou esta que se defende? Somente quando a essas exigências for dada legítima e suficiente satisfação, só então poderemos dizer que a culpa seja do indivíduo que desobedeceu. Só quando forem respeitadas por ambas às partes — sociedade que faz as leis e indivíduo que deve obedecer — as posições recíprocas de direitos e deveres, será justa a condenação do não-cumpridor. Mas enquanto a vida da sociedade humana se basear no egoísmo e na luta, as reações defensivas encontrarão justificativa, invertendo-se a moral em sua zona negativa cheia de abusos e males. No caso menos grave sobressairá a mentira tão difundida, o compromisso pela elasticidade da consciência e semelhantes formas híbridas de acomodação de que o mundo está cheio, e tudo isto somente será justificado pelo natural e inevitável efeito das condições em que a vida humana se acha agora. Neste caso, fingir seria um recurso usado pela vida como um lubrificante indispensável para permitir, com menor atrito, a coexistência pacífica dos egoísmos inimigos. Não há efeito sem causa e na economia da vida cada fato realiza sua função que o justifica. Só assim poderemos explicar porque a mentira é tão difundida no ambiente humano.
Mas precisemos, em suas particularidades, os elementos do problema. Explicamos em outros volumes que as exigências fundamentais da vida, são três: 1) a conservação do indivíduo; 2) a conservação da espécie; 3) a evolução. Essas exigências, que objetivamente se verificam na realidade, explicam-se como efeito dos princípios que regem a vida, mostram-nos seu funcionamento, sua razão de ser e seu telefinalismo, num quadro lógico completo. A vida impõe satisfação a essas suas três exigências, por meio de três fortíssimos instintos: 1) a fome, 2) o amor, 3) a ânsia de melhorar. A ética reserva-se a tarefa de disciplinar esses três instintos, para guia-los no cumprimento dessas três exigências. É por isso, pois, que se ocupa: 1) da aquisição e uso dos bens, propriedades, trabalho etc.; 2) das relações de sexo, formação da família, deveres dos pais e dos filhos etc.; 3) da tarefa de fazer evoluir, confiada a poucos indivíduos, embora o desejo de subir seja comum a todos. Quanto aqueles raros indivíduos, a ética comum não os protegerá, porque eles se situam fora dela, no seio de seu mais alto plano de vida.
Esses três instintos representam os impulsos principais que movimentam o homem (mesmo que em redor deles girem outros menores, conexos com eles) todos visando a defesa da vida: 1) como indivíduo, 2)como espécie, 3) como evolução. Não é o capricho do homem que os quer, mas a sabedoria da vida, com o meios para alcançar seus objetivos; portanto, fazem parte da Lei, do pensamento e da vontade de Deus, no plano humano. Qualquer ética poderá, pois e até devera disciplinar esses impulsos, a fim de que melhor alcancem seu objetivo, mas jamais poderá opor-se a eles, pois isto significaria opor-se a Lei, tal como ela quer manifestar-se nesse nível. Então a ética tem pleno direito de impor a disciplina de sua lei, mas deve cumprir também o dever sagrado de respeitar a vida nestas suas exigências fundamentais. Em outros termos, a sociedade, para poder exigir obediência a sua moral, deve antes permitir a qualquer um o mínimo indispensável para que sejam satisfeitas aquelas exigências da vida. Se esse mínimo fosse negado, o responsável seria mais o que faz a lei do que quem a viola, porque aquele, e não este, é a maior causa do mal, tornando-se em primeiro lugar anti-moral.
Mas, desgraçadamente, dado o regime humano de luta, vigora mais uma moral repressiva, do que preventiva, mais "a posteriori" que "a priori", mais atenta a perseguir os efeitos que a eliminar as causas Intervir só depois do fato consumado pode significar não apenas a culpa do violador, mas também a falta de sabedoria de quem, tendo o poder em mãos, não soube impedir que se formasse o mal, e aparece só depois que o prejuízo se verificou, acreditando cancela-lo com a repressão. Desta forma, não se cancela o mal, antes, é ele agravado, como o exemplo, que se acreditava salutar, dos patíbulos públicos medievais, que habituava o povo espectador ao prazer, e não ao terror do delito. A moral do futuro será mais preventiva que repressiva; será mais uma ajuda para levantar, educando, que uma opressão provocadora de revolta; ocupar-se-á antes de tudo, de criar condições de defesa em favor da vida, em vez de agredi-la. Só assim poder-se-á evitar que a vida, para atingir seus objetivos, seja obrigada a desviar-se por aqueles atalhos tortos e oblíquos que constituem o mal.
No mundo atual, infelizmente, o respeito a essas exigências fundamentais da vida não é obtido por um sentido de disciplina, que deriva da consciência da utilidade para todos, de um estado de ordem, mas é dado pela força que impõe esse respeito e pelo interesse egoísta que gera e movimenta essa força. Assim, o respeito a propriedade alheia, como a mulher do próximo, existe sobretudo porque há alguém que, no interesse próprio, sabe movimentar uma reação punitiva, logo que venha a faltar esse respeito. Explica-se desse modo porque a ética humana, no atual plano de evolução, só pode ser uma ética de luta, ou seja, à base de sanções. para fazer-se obedecer forçosamente por parte de quem impõe, e, reciprocamente, a base de revoltas para não obedecer por parte de quem a deve suportar. Essa é a ética que vigora nos fatos; ou seja, não uma ética de paz, em que cada impulso vai por si ao seu lugar e segue espontaneamente o caminho exato, mas uma ética de guerra, decidida a sobrepujar de todos os lados os limites devidos, para usurpar É mais que puder em benefício próprio e a prejuízo alheio. Tarefa da evolução será de levar o homem desta ética de guerra, a base de luta (imposição de um lado e revolta do outro) a uma ética de justiça, a base de compreensão (respeito das exigências da vida, de um lado, e obediência espontânea a ordem, do outro. Examinemos o problema em cada um de seus três pontos.
1) Segundo a nova moral, para que a sociedade possa adjudicar-se o direito de impor respeito a propriedade dos que a obtiveram, da parte dos que a não obtiveram, deveria em primeiro lugar cumprir o dever de garantir a estes últimos um mínimo indispensável para viver: uma casa, alimentação, roupa, educação etc., embora exigindo o trabalho correspondente, se não se tratar de incapazes Enquanto aos deserdados faltar esse mínimo indispensável, a vida, que não quer renunciar a si mesma, os impelirá a revolta contra a ordem social, seja com assaltos organizados pelos partidos políticos, seja com o furto ilegal que viola a lei, ou com o furto legalmente realizado enganando a lei, como todos os delitos que ameaçam a propriedade e a vida. Nada disso deixará de aparecer, todas as vezes que não for satisfeita a primeira das três exigências fundamentais da vida, ou seja, quando esta se sentir ameaçada na conservação do indivíduo. A fera assalta a presa quando necessita de alimento para viver. Na nova moral, a culpa para o indivíduo começa quando ele exige o supérfluo, o que esta além do indispensável para as necessidades da vida. Isto é confirmado pelo Evangelho, que diz que devemos dar o supérfluo aos pobres. Então, ele não nos pertence, mas aqueles a quem falta o necessário, e não temos direito de possuir o que lhes cabe. Isto porque os bens não são um meio para satisfazer cobiça de poucos, mas um instrumento a serviço da vida de todos, para que ela possa levar todos a obtenção de seus objetivos. Assim, o supérfluo se torna cada vez mais anti-moral, quanto maior for, porque, aumentando, diminui a necessidade de possuí-lo e cresce o dever de fazer dele bom uso, útil a vida e a seus fins.
Se esse princípio do Evangelho tivesse sido seguido no passado, e se hoje ainda o fosse, não teria havido nem hoje surgiria a possibilidade de revoluções sociais. Com isto a vida tenta por sua conta, uma primeira aproximação de justiça econômica, colocando de tal forma as várias classes sociais, cada uma a seu turno, na posição privilegiada. Sistema nada perfeito, porque são necessárias desordens e extorsões, para que os bens passem das mãos de quem tem muito, as de quem tem pouco. Com o mesmo fito, a vida tende também ao desgaste interior dos favoritos. Ou seja, acontece que o bem-estar os enfraquece e assim automaticamente os coloca em condições de inferioridade na luta pela vida. pelo que rapidamente perdem sua posição de vantagem. Depois, o próprio fato de achar-se, só pelo nascimento, com uma riqueza já feita, não adquirida pelo próprio esforço, parece diminuir seu valor aos olhos de seu possuidor, de modo que, embora tivesse a força, ele se sente menos pronto que o normal, a lutar para não deixar que a riqueza lhe escape. Paralelamente acontece que, enquanto este se torna cada vez mais inábil a mantê-la, a necessidade estimula as forças e aguça a inteligência dos deserdados, que proporcionalmente, se tornam cada vez mais espertos e audaciosos na luta de conquista. As duas tendências levam ao mesmo resultado, que é um deslocamento de classes, com uma distribuição diferente da riqueza. Isto prova que a vida tende por si ao equilíbrio, à justiça — neste caso uma eqüitativa distribuição econômica — que é atingida por meio da instabilidade das posições. O homem gostaria, porém, da estabilidade hereditária, que sustenta com leis, defesas e estacas de toda a espécie. Esta permaneceria, se fosse equilibrada, ou seja, de acordo com a justiça, como quer a Lei de Deus; permaneceria automaticamente sem os artificiais armamentos que a sustentam; e se eles não bastarem a sustentá-la, é porque esse sistema esta contra a Lei. Acontece então que a sagacidade humana não consegue paralisar essa tendência a justiça, tendência que os mina por dentro e acaba fazendo-os ruir, como de fato se observa na história. Sistema penoso e doloroso, que se poderia evitar, aplicando o Evangelho, que elimina as causas. Mas o homem não atingiu ainda um grau de inteligência que lhe permita compreender isso. Deve, pois, sofrer o prejuízo desse sistema, ja que mais não é possível obter-se no plano de evolução em que esta situado o homem.
No futuro estado organizado da humanidade, nada disso acontecera, porque terão sido eliminadas as causas. A sociedade será então dirigida por esta nova moral, que, respeitando a propriedade, a destina cada vez menos ao fim individual egoísta, e cada vez mais, com espírito altruísta, a subordina aos fins de utilidade social. O primeiro a tirar vantagem desta que parece uma limitação, será o indivíduo, que, numa sociedade orgânica, encontrara uma proteção que hoje lhe é desconhecida, porque tal sociedade lhe reconhecera e garantira o direito de viver, direito que antes o indivíduo só podia fazer valer no caso em que suas forças pudessem impor-se a todos os outros
2) O amor é uma função fundamental do ser, porque necessária para a conservação da espécie, e é meio indispensável para que os indivíduos possam reencarnar-se, voltando e tornando a voltar a terra, para fazer experiências e assim evoluir para os supremos objetivos da vida. Se, como dissemos, é moral tudo o que leva a alcançar esses fins, também o amor é moral se dirigido a procriar, fazendo disto um meio para que esses objetivos sejam alcançados. O amor não se detém apenas na procriação, mas implica que esta seja completada com a proteção e educação dos filhos, ajudando-os em tudo para que a experiência da vida produza neles evolução e se resolva em melhoria espiritual. Quando, porém, por motivos fisiológicos a procriação não fosse possível, o amor pode ainda ser necessário como conforto, para manter a vida individual dos cônjuges, devendo eles, nesse caso, tender, embora no campo mais restrito de sua existência e do auxílio recíproco, a obtenção dos supramencionados fins da vida. Recordemos que o amor é a maior potência criadora, ao passo que o ódio representa o poder destruidor. O amor deve ser apenas disciplinado para que se desenvolva de acordo com a Lei; guiado, para que se harmonize na ordem, como é sua função, para que nos leve para o Alto; não deve ser combatido nem destruído, porque se o destruirmos, destruiremos a vida. E quando ele não puder ser maternalmente criador de filhos, pode sê-lo espiritualmente, tornando-se fecundo de bondade e elevação.
Neste sentido, amar é moral, quando ocupa seu lugar justo na ordem da Lei, ou seja, quando é usado como meio para atingir os supremos objetivos da vida. Amar torna-se imoral quando não é função deles, fazendo da própria satisfação egoística o único fim, que se substitui ao da vida. O mal começa logo que se sai da disciplina da ordem, com o abuso, com excesso, com a busca do supérfluo, com a falta de respeito aos direitos alheios, sacrificados no altar do próprio egoísmo. Este representa uma força separatista e destrutiva do amor, que só pode ser altruísta, para dar e não para desfrutar, para harmonizar e fundir as almas, e não para dividi-las, sem preocupar-se das ruínas semeadas ao longo de seu caminho.
Então começa o erro, e dele somos logo advertidos, não em teoria, mas com fatos bem percebidos. Prova que erramos — a Lei com sua reação nos impõe a dor. A ordem da Lei é alegria. Logo que se aproveite de uma alegria que esteja fora dos limites fixados por essa ordem, se entra na desordem, na anti-Lei. Verifica-se, então, fatalmente, a automática inversão da alegria que se torna dor. Entrega-se no terreno negativo, em que a saúde se torna enfermidade, a paz se torna guerra, o amor gera o ódio. Também o alimento é útil e agradável. Experimentemos, porém, ao invés de ganhá-lo, roubá-lo ou comer demais, e inevitavelmente nos acharemos diante da reação da Lei que nos expulsa de sua alegria e nos lança fora, no terreno da anti-Lei, onde essa alegria se invertera em dor. É lógico e justo que assim aconteça, porque, se nós invertemos as posições nas causas, como podem elas não aparecer invertidas também nos efeitos?
Insistimos neste ponto porque, no terreno da ética, ele é fundamental. A dor não é uma reação punitiva da Lei nem muito menos uma sanção vingativa por parte da Justiça Divina, porque a violamos. Pode até a dor definir-se como “um estado de desarmonia, motivado por termos querido, livremente, assumir uma posição de desordem em relação a ordem da lei”. A dor depende de uma posição errada que o homem assume. Inevitavelmente, logo que sai da harmonia da Lei, que é alegria, ele penetra na desarmonia da anti-Lei, que é dor. Esta é a campainha de alarme que, com notas bem claras, nos avisa que estamos fora da estrada, e que nos impele a retomar o caminho certo, a fim de livrar-nos dos sofrimentos. É desta maneira que, mesmo respeitando nosso livre-arbítrio, a vida nos coage a buscarmos seus superiores objetivos.
Mesmo neste terreno do amor, a nova moral é moral de ordem, de paz, de respeito. Faz parte de ética de um plano superior ao atual humano, em que a vida não quer mais selecionar um ser egoísta, mais forte e astuto, vivendo só para si, dominador de tudo, mas o homem social, que aprendeu a coordenar-se com o estado orgânico futuro da humanidade, o homem que não causa dano a ninguém, mas protege a vida, primeiramente em sua companheira e em seus filhos, tornando-se guia de sua elevação. A evolução levar-nos-á cada vez mais distantes dos tempos em que o macho roubava a mulher e o amor se realizava numa atmosfera de destruição e violência, forma mental viva ainda nos menos evoluídos, e que vemos reaparecer nos romances tão difundidos, em que o amor se torna crime e morte, ao invés de afeto e bondade. Mesmo neste campo, a moral atualmente vivida nos fatos é moral de guerra, em que o maior grau atingível na ordem é dado por aquela ordem que se obtém dentro do castelo fechado e armado da família, dirigida por um chefe que saiba defendê-la contra todas as outras. Mais não se pode conseguir num plano biológico em que tudo se realiza em função da luta que é sua lei. Toda a psicologia daí derivada, terá de ser superada pela evolução. A prepotência do homem, considerada hoje como valor, será amanhã julgada defeito, porque anti-social. Sua prova de força não consistira em submeter ao próprio egoísmo um ser fraco, necessitado de proteção, como a mulher, mas em defendê-la, elevando-a ao estado de companheira e colaboradora na construção do edifício da família e na obra da ascensão espiritual desta.
Antes de terminar este assunto, temos de ocupar-nos de uma classe a parte: a dos que renunciam. A renúncia ao amor, isto é, a castidade, é moral ou anti-moral? Se, como acima dissemos, é moral tudo o que, no mais amplo sentido, é útil a vida, porque leva a obtenção de seus fins supremos, a renúncia só poderá ser moral se pudermos descobrir nela algum elemento que satisfaça a essas condições. À primeira vista, se a vida quer a procriação, como indispensável meio para evoluir, a renúncia que nega essa procriação parece imoral. E verdadeiramente, na renúncia existe algo de negativo, que se limita a dizer "não", e jamais uma afirmação positiva. Ora, dado que a moral faz parte da Lei, que é toda positiva e construtiva, dirigida ao ser, e jamais ao não-ser, a renúncia pode ser julgada como imoral, se olhada segundo a lógica estreita do plano de vida animal
O problema agora é ver se a renúncia pode conter também um lado de afirmação positiva, que justifique e compense o seu negativismo, porque só assim a sua imoralidade poderá transformar-se em moralidade. Mas, se no plano animal a renúncia é simplesmente negativa, não é nesse plano que poderemos encontrar compensações e substituições Resta-nos então procurá-las em plano mais alto, no mundo espiritual. Poderemos dizer, pois, que o negativismo da renúncia, imoral pela própria natureza, porque anti-vital, encontra plena justificação e se torna moral, quando esse negativismo seja neutralizado por uma conquista num plano mais alto, ou seja, no espiritual. Tudo o que é destrutivo pertence as forças do mal. Mas o que é destrutivo, num plano, pode ser construtivo em outro; e cada destruição, que por natureza própria é negativa e portanto imoral, pode tornar-se meio de construção, transformando-se assim em positiva e moral. Então, uma mutilação de vida, que por sua natureza é imoral, pode ser moral quando, em outro sentido, é criadora e produz um acréscimo de vida. A renúncia é moral quando não vai contra a vida, mas, no sentido que agora expusemos, caminha para a vida.
Conclui-se de tudo isto que, se a renúncia não for condição de conquistas espirituais, se não for usada em função destas, ela perde sua razão de ser e permanece injustificável. Isto porque destruir por destruir sem reconstruir, é imoral, como o é tudo o que permanece estéril em relação aos supremos fins da vida. É por isso que todas as virtudes que se detém apenas em seu lado negativo, sem produzir nenhum fruto vital, que contraem o eu sem fazê-lo crescer nem desenvolvê-lo, em direção a Deus, como dita a lei da evolução, são, senão prejudiciais, pelo menos inúteis a vida: são mais imorais que morais. A verdadeira virtude não se afoga no paul do "não fazer", mas se dirige sempre a um "fazer", embora as vezes tenha de escolher o caminho inverso do "não fazer
Com isto não quisemos desvalorizar nem condenar a renúncia, mas apenas definir seu significado e valor, em função da Lei e dos supremos fins da vida. Esta tem de evoluir, e portanto não pode admitir nenhuma compressão, senão em vista de uma correspondente expansão; nenhuma renúncia ao amor material, senão como condição de uma conquista maior como amor espiritual. A castidade é útil quando serve para criar um amor maior, e não quando serve para mata-lo, atrofiando na frieza e na indiferença os nobres impulsos do coração.
3) As exigências fundamentais da vida não se esgotam apenas com a conservação, seja do indivíduo seja da espécie, mas consistem também numa terceira, a evolução, sem a qual as duas primeiras não teriam nem objetivo. Tanto trabalho para conservar em pé a vida não pode explicar-se, de fato, como um fenômeno fechado que eternamente gira sobre si mesmo, sem desembocar numa finalidade que o justifique e um dia o resolva. E eis que, para dar-nos a chave de todo o jogo, aparece o conceito de evolução. A maioria, formada pelas grandes massas, e a que — movida pelos dois instintos da fome e do amor — está encarregada pela vida de prover o cumprimento das duas primeiras exigências — da conservação do indivíduo como da espécie. A tarefa de fazer evoluir essa massa é, porém, confiada a poucos indivíduos, biologicamente fora da série, especializados nesse trabalho de exceção, que os isola, embora por cima, mas fora da média, como expulsos dela, a qual tudo estabelece e faz para próprio uso e costume, segundo as medidas de sua forma mental.
Qual é a sorte desses indivíduos? Naturalmente eles não estão totalmente presos neste trabalho, que representa sua principal função biológica e o objetivo de sua vida. Mas isto não modifica absolutamente as condições do ambiente em que devem operar, nem impede que a luta de ataque e defesa — que constitui a lei principal dos seres entre os quais eles têm de viver — os acometa com sua agressividade, enquanto eles estão absorvidos num trabalho totalmente diverso, e no qual estão especializados1 tanto quanto, ao contrário, o tipo comum está especializado na luta. Se o evoluído não sabe e não pode lutar, nem por isso os outros cessam de agredi-lo, tanto mais que eles se sentem mais fortes nesse terreno, e nada os atrai tanto quanto a facilidade da vitória. Parece assim que o habitual destino do gênio na terra é o de ficar abandonado e despojado, ao passo que a riqueza tende a superabundar nas mãos dos especializados, em sabê-la acumular. O ser encarregado da função biológica superior de fazer evoluir é um pioneiro, lançado para o futuro, provido das qualidades próprias ao plano superior que deverá ser atingido, mais do que daquelas que tem a maioria que vive na terra. Condenado a viver neste ambiente, que não é o seu, enquanto esta atento a realizar sua missão de ensinar formas superiores de vida, facilmente é superado pelos que, sabendo lutar, podem explora-lo, roubando tudo o que é dele. Para vergonha da humanidade, a história esta cheia de casos de grandes músicos, artistas, pensadores, cientistas etc. — em todos os sentidos, grandes benfeitores — que viveram e morreram na miséria, enquanto a riqueza se esbanja por inúteis luxos e se gastam somas fabulosas para matar o próximo na guerra e para, na paz, aperfeiçoar a arte de matar. Isto demonstra em que estado de involução se acha ainda o homem e como a vida do evoluído, na terra, para fazê-la progredir só pode ser uma vida de martírio. Dizê-lo, pode parecer ofensivo para as grandes almas. Mas o certo é que uma humanidade que não sabe defender o mais alto produto da raça, incumbido da função de fazê-la evoluir, não pode considerar-se civilizada.
O telefinalismo da evolução. Não mais materialismo evolucionista, mas evolucionismo espiritualista. Da matéria à vida. A técnica construtiva da evolução. Uma inteligência dirige o fenômeno, que é regresso à perfeição perdida, meta preestabelecida e fatal. Objeções. A técnica da tentativa prova e não desmente o telefinalismo. A entropia. Dinamismo cósmico e dinamismo biológico. A vida na conquista do movimento para domínio da dimensão espaço.
Até aqui estudamos, a propósito de um caso vivido, o fenômeno do choque entre involuído e evoluído, explicando seu significado com teorias gerais. Observamos, depois o mesmo fenômeno, mas em dimensões maiores, na luta entre o Cristianismo como representante do Evangelho, e o mundo, e ao contrário. Até agora permanecemos num terreno prático, como a realidade da vida se nos apresenta na terra. Nesta última parte do presente volume, dilataremos ainda mais os nossos horizontes, ampliando a nossa visão para considerar outro aspecto diferente de A Grande Batalha.
Revelar-nos-á ele o vasto e profundo significado biológico do fenômeno dessa batalha, sua importância para o desenvolvimento da vida, e a que resultados maravilhosos tende o fenômeno, levando com ele o ser. Isto nos erguerá acima deste mundo, do qual tivemos que ocupar-nos até agora, colocando-nos em contato com os princípios universais, que estão nas raiz mais profunda desse fenômeno, do qual traçam o caminho e impõe as conclusões. Esses princípios são os teológicos, demonstrados nos dois volumes: Deus e Universo e O Sistema, princípios que aqui voltam, aplicados e confirmados em contato coma realidade da vida, onde são observadas onde são observadas as suas conseqüências práticas. Essa subida permitir-nos-á unir a realidade do relativo aos princípios que o dirigem, no plano das causas primeiras, e isto com absoluto sentido unitário que liga tudo, e tudo funde monisticamente, fazendo achar a causa no efeito e o efeito na causa.
Poderemos justificar assim, racionalmente a concepção de involuído e evoluído em que se baseia este tratado, dando a esta concepção fundamento cientificamente positivo, de acordo com o que a biologia admite. Poderemos explicar e provar nossa afirmação de que o Evangelho representa a lei da humanidade futura. Mesmo pela teorias da ciência, poderemos sustentar que a evolução leva o homem à sua própria espiritualização, pois é esta direção em que a vida progride, e é no espiritualizar-se que verdadeiramente consiste o telefinalismo da evolução. Assim, por outros caminhos positivos, poderemos dar plena confirmação às afirmativas em que nos baseamos no desenvolvimento desta obra, uma confirmação lógica, enquadrada no seio da lei, ou seja, no seio do plano que dirige o funcionamento e a evolução do universo.
Que haja um telefinalismo na evolução e que ele seja representado pela espiritualização, já o afirmamos várias vezes neste volume, em rápidas referências. Desenvolvamos agora esses pontos, explicando-nos o que isto significa e analisando o fenômeno e as razões pelas quais isto acontece. Reside a explicação lógica desse fato numa razão profunda.
No volume O Sistema, foi demonstrado que a evolução representa o trabalho de reconstrução do sistema, a partir das ruínas do anti-sistema em que aquele caíra. Trata-se de uma experiência do fenômeno da evolução que são mais exaustivas e profundas do que as oferecidas pela ciência que, segundo a concepção materialista de Darwin e Haeckel, sem penetrar no mundo das causas, se detém na superfície dos efeitos, onde aparece apenas o desenvolvimento morfológico dos órgãos. A este, que é um materialismo evolucionista, podemos agora substituir um evolucionismo espiritualista.
Podemos assim penetrar o significado íntimo do fenômeno da evolução, ou seja, o de ser um processo de reconstrução de um sistema destruído. Impõe-nos este fato conseqüências importantes. Com efeito, o modelo a reconstruir preexiste ao processo evolutivo e estabelece a sua meta que constitui justamente o telefinalismo. Esse modelo já existe e, se o atual estágio de evolução ainda está distante, ele já possui um objetivo determinado, que deverá atingir ao identificar-se com o modelo. As fases sucessivas do progredir e aperfeiçoar-se da vida são gradativas aproximações a este estado final. Este é estabelecido pelo sistema perfeito, não decaído, que representa a primeira criação operada por Deus. Eis então que a evolução não caminha ao acaso, abandonada a si mesma, mas é guiada pela atração para a meta longínqua, para a qual tende a marcha, como sobre um binário marcado por um raio de luz.
Há mais, porém. Se conhecemos o ponto de chegada sabemos também qual é o ponto de partida da nossa evolução: a matéria. Em A Grande Síntese traçamos todo o caminho a que a evolução submete o ser, da matéria ao espírito. Chegamos a saber, assim, mais do que pode dizer-nos a ciência, porque, conhecidos o ponto de partida e o ponto de chegada da evolução, pode estabelecer-se também todo o traçado do seu caminho. É verdade que, no relativo, as estradas pela quais se pode evoluir são muitas; mas se são diferentes na forma, são iguais na substância, porque todas levam ao mesmo objetivo, e partindo da matéria vão ao espírito, ou seja, ao sistema e a Deus, que é o seu centro. Tudo parte de um pólo onde tudo se encontra no negativo (mal, trevas, dor, morte etc.), e caminha para um pólo em que tudo se encontra no positivo (bem, luz, alegria, vida etc.).
Eis então que a evolução se nos revela em seus mais profundos significados, como um fenômeno não casual e isolado, mas como um processo fundamental, enquadrado na ordem universal, como parte integrante do sistema, em função do objetivo supremo desta; um fenômeno guiado por uma inteligência e poder que o disciplinam, determinado por Deus e sujeito à Sua Lei, que permaneceu de pé mesmo depois da queda, para dirigir e salvar tudo. Os primeiros biólogos que descobriram a evolução nem sequer sonhavam com tudo isto. O conceito de telefinalismo está implícito nessa concepção. Ainda que o particular seja deixado ao livre-arbítrio individual, à mercê das tentativas e do erro, em suas grandes linhas o fenômeno da evolução é fatal e amarrado a um caminho próprio preestabelecido. Pode-se evoluir de várias maneiras, mas somente caminhando para Deus.
Já está, portanto, estabelecida a forma que deverá assumir no futuro da evolução humana, ou seja, que ela só pode consistir no espiritualizar-se. Seu profundo trabalho criador faz-se no terreno das causas primeiras, que está no íntimo do ser, mesmo que se trate, como no passado, de construções morfológicas, que explicamos como produto ideoplástico. O regresso a Deus só pode significar o despertar, no ser, de todas as qualidades espirituais que aproximam de Deus. Assim se explica por que a evolução, quanto mais se sobe, mais se deve verificar no íntimo, no profundo, onde Deus está em nós. Assim se explica por que o caminho da evolução, para a raça humana que já se tornou madura, só pode continuar na forma de sua espiritualização. Significa isto o despertar do ser por conquista do conhecimento e consciência; significa desenvolver a vida interior; compreender e viver o espírito do Evangelho, e com isto realizar na terra o reino de Deus: espiritualização, porque a evolução vai da matéria para Deus, que é o espírito; desenvolvimento da vida interior, porque Deus é interior e não exterior ao ser e ao universo.
Aqui se vão delineando os argumentos racionais, positivos e científicos, que demonstram a exatidão de nossa precedente colocação do problema de A Grande Batalha, provando-nos que nosso ponto de vista não foi criação arbitrária de teorias, apenas para nos dar razão, mas que elas justificam e confirmam verdadeiramente a nossa interpretação dos fatos que narramos e dos fenômenos trazidos a exame.
Assim também obteremos confirmação da ciência, para a nossa tese do valor universal do Evangelho como fator biológico de evolução. O Evangelho insere-se na evolução, acompanhando o seu telefinalismo, com o qual coincide, porquanto é espiritualização. Que mais podemos fazer? Mais não podemos dar, porque mais não temos. Em nossos livros oferecemos todos os meios que o sentimento, o pensamento e a palavra podem oferecer para orientar, e também os dados positivos da ciência. Fazemos isso para cumprir nosso sagrado dever. Aproveite quem quiser, como um salva-vidas, na hora do “salve-se quem puder”. É ordem da Lei, que é vontade de Deus, que se tenha de fazer este passo à frente na realização do Evangelho, o que quer dizer, na evolução da vida. A hora está madura, porque o mundo de hoje está espiritualmente em diluição, como no tempo do imperador Constantino estava o mundo romano, e de suas ruínas nascia o Cristianismo. Repitamo-lo para o Evangelho: “In hoc signo vinces” , para que do desfazimento do mundo de hoje nasça o novo cristianismo do Evangelho, vencendo a Grande Batalha.
Estes livros querem salvar o que pode ser salvo. Mas que podemos oferecer senão conceitos e avisos? Sozinhos, estes não podem ter poder decisivo para refazer o mundo. Seria loucura imaginá-lo. Então, a sua maior força não reside apenas nos argumentos escritos, porque o mundo está habituado a zombar dos sermões há muito tempo, como zomba de todas as religiões, do Evangelho e de Deus. A força destes livros, então, baseia-se nos acontecimentos que Deus prepara, aos quais o homem não poderá resistir e dos quais não poderá escapar, acontecimentos históricos que liquidarão o nosso mundo apodrecido, como foi liquidado o império romano. Quando isto tiver ocorrido, os elementos negativos da humanidade, contraproducentes para a evolução, terão sido todos afastados, assim como, pela mesma lei, ocorreu no pequeno episódio narrado. E então estes escritos adquirirão um valor que o homem de hoje (que os aceita ou condena conforme sirvam ou não para o seu partido religioso) não pode, com tal forma mental, compreender, e que de fato, com tudo isso, demonstra não ter compreendido ainda. Se eles fossem apenas obra humana, não se explicaria a sua linguagem. Mas paralelamente a eles estão amadurecendo grandes acontecimentos históricos (V. volume: Profecias) e a mão de Deus é tremenda, quando é necessária a destruição, que executa sem piedade, e quando a operação do corte cirúrgico é necessária para o bem do enfermo a quem se precisa salvar a vida.
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À sua velha concepção mecanicista do mundo, segundo a física clássica, a ciência substitui hoje a de uma física quantística e estatística, em que não mais dominam leis dinâmicas, mas leis estatísticas ou de probabilidade, não mais reguladoras de um caso singular, mas de inumeráveis processos individuais; leis que governam uma multidão de acontecimentos, nos quais o indivíduo desaparece (V. Problemas do Futuro, cap. XVII, “As ultimas orientações da ciência”). Eis o que nos diz a estrutura atômica da matéria, hoje, que a velha visão do conjunto-observação que poderia chamar-se macroscópica ou de síntese — se substitui uma visão analítica da matéria, da qual se penetrou a estrutura, com uma observação submicroscópica e intuitivo-matemática. Compreendeu-se então que a concepção estática da matéria, como um sólido imutável, era devida apenas à escala de observação usada pelo homem no passado. Verificou-se que, mudando as dimensões da escala de observação, o fenômeno se revela constituído segundo uma natureza diversa. Assim a física se baseia hoje em resultados gerais de massa, segundo os quais de uma desordem básica pode derivar, todavia, uma ordem de conjunto, que nos revela a escala normal de observação, obtida com os meios de nossos sentidos limitados. E é assim que, no grande número, desaparecem as irregularidades individuais em uma regularidade coletiva de conjunto, nas quais se fundamentam as leis vistas pela física clássica. Mas eis que a ciência admite hoje, para a matéria, leis que se baseiam no acaso e na desordem. Mesmo que depois haja compensação, para revelar as características dominantes de massa, é um fato que, na dimensão submicroscópica da escala de observação, se verifica a irregularidade de inumeráveis liberdades individuais.
Ora, em nosso grande mundo vemos as formas de existência escalonadas segundo vários planos de desenvolvimento, unidas por um contínuo transformismo no mesmo caminho traçado pelo processo evolutivo que estabelece sua parentela e lhe mantém a unidade. Assim, partindo do mundo inorgânico da matéria, através do dinâmico da energia, chega-se ao mundo orgânico da vida, vegetal e animal, no cume da qual se desponta com o homem, o mundo imaterial das idéias e do espírito. Cada um desses mundos se transforma, evoluindo, por imperceptíveis gradações, infiltrando-se no seguinte. Achamo-nos como que diante da construção de um grande edifício, cujas qualidades e complexidade de estrutura, revelam uma sabedoria que aumenta a cada plano. Se a evolução fosse um processo isolado, abandonado a si mesmo, sem grandes bastidores de forças e de inteligência que a guiam, não se poderia explicar como da pedra se chegaria ao gênio. E que o pensamento faça parte de nosso universo, tanto quanto a matéria e a energia, é um fato que não se pode negar e que a ciência não pode deixar de reconhecer cada dia mais.
Não basta comprovar o fenômeno da evolução. É indispensável explicar-se as forças determinantes e a sabedoria que a dirige. Aqui está a incógnita que escapa à ciência e que é necessário conhecer, porque ela é a causa de tudo, é a chave do fenômeno da evolução. Matéria e energia sozinhas não são suficientes para explicar a derivação da vida, pois não possuem diante desta o poder de causa determinante. O complexo não pode ser gerado pelo simples, nem o mais pelo menos. Onde estão as causas determinantes de maravilhoso florescimento produzido pela evolução? Olhando desde a matéria inorgânica até o homem que pensa, podemos compreender o tremendo trabalho criador que a evolução deu provas de saber realizar.
Para fazer compreender melhor, quisemos aqui recordar qual é a estrutura intima da matéria. Agora perguntamos: como pode, de um mundo dirigido pelo acaso, derivar, sem a intervenção de qualquer outro fator, o mundo biológico em que uma série imensa de fatores aparece não só disciplinada: segundo um funcionamento próprio, bem diferente do estado orgânico, mas orientada segundo um transformismo que arrasta tudo na direção evolutiva, capaz de levar a vida da primeira célula até à complexidade do organismo humano, no qual o cérebro atua em ordem ainda mais complexa, a do mundo psíquico e espiritual? As causas desses efeitos não as achamos na matéria. Ela é insuficiente para determiná-los. Onde estão, pois, essas causas? Como pode, de um sistema constituído por movimentos livres dos indivíduos componentes, baseados em leis estatísticas ou de probabilidades, desenvolver-se aquele maravilhoso edifício biológico, em que vemos, no fim, aparecer o pensamento e o espírito?
Dado o ponto de partida estatisticamente falando, o fenômeno do surgir da vida é estranhamente improvável, e o seu desenvolvimento até ao homem é inexplicável. Usando o cálculo das probabilidades pode demonstrar-se matematicamente a impossibilidade de explicar, apenas com o acaso, o aparecimento espontâneo da vida na terra. As primeiras células não podiam nascer de uma desordem caótica por uma combinação fortuita de elementos atômicos, mesmo que, dispondo de um tempo ilimitado, fosse possível teoricamente qualquer combinação. Antes de tudo, para a terra, há limites de tempo, imensamente inferior ao necessário para que tal combinação tenha podido verificar-se em larga escala. Além disso, as propriedades da célula implicam, não uma simples combinação de elementos, mas pressupõem uma coordenação de complexidade que jamais poderá resultar do acaso, mas apenas de uma direção inteligente. Sem dúvida foi utilizada matéria prima menos evoluída. Mas não significa absolutamente que isto seja a causa do fenômeno. Devemos admitir, ao invés, que a vida não é uma criação da matéria, mas apenas uma manifestação e revelação através da matéria. Igualmente temos de aceitar que o espírito não ó uma criação da vida, mas somente uma manifestação e revelação através dela. É inevitável, então, concluir admitindo que o mundo biológico não ó o produto gerado pelo mundo físico e dinâmico; que o mundo psíquico espiritual não é um efeito determinado pelo mundo biológico, mas que todos eles são a expressão de um princípio superior que utiliza as construções precedentes para delas realizar outras cada vez mais complexas e perfeitas coordenando seus elementos em combinações cada vez mais sábias. Se nada se cria, e nada se destrói, e se do nada, nada se produz, não nos resta senão buscar naquele princípio superior uma causa, para esses efeitos.
Passando, ao evoluir, do mundo físico ao dinâmico, ao biológico, ao psíquico e espiritual, assistimos, em cada degrau, a uma inovação radical, como se fora uma revolução em que se manifestam efeitos que as causas existentes nos planos inferiores não contêm e não explicam. A cada salto para frente nasce um mundo novo, dirigido por novos princípios, que são muito mais do que simples conseqüência dos precedentes. Nada se destrói, o velho continua a existir no novo, mas apenas em posição subordinada, como meio e suporte de algo que ele não conhece.
Além disso, podemos observar um fato estranho. O plano da vida e do pensamento constituem um mundo físico e energeticamente de grandeza desprezível, diante daquela grandeza imensa dos astros e planetas, e da quantidade e potência das energias cósmicas. Trata-se de um mundo quantitativamente menor, mas qualitativamente superior. A que causa atribuir essa superação qualitativa? Não, de certo, aos planos inferiores, dos quais é, justamente, uma superação. Nenhuma entidade sozinha pode conter os elementos aptos a produzir a própria superação, que lhe permitam sair das próprias dimensões elevando-se acima delas. È verdade que, nos planos inferiores, encontramos maior riqueza de quantidade. Mas poderá a quantidade sozinha produzir a qualidade?
A evolução parece proceder construindo em forma de pirâmide, selecionando cada vez mais, quanto mais sobe, os seus elementos e mandando para a frente apenas os mais escolhidos. E assim que a evolução consegue fazer qualidades com a quantidade, extraindo-a da massa. Mas para que isto seja possível, seria necessário que a quantidade contivesse, embora em medida reduzida, a qualidade. Ora, como pode um plano inferior conter as características complemente diferentes que individualizam um plano superior?
Eis que quanto mais observamos e raciocinamos mais somos arrastados para o mesmo ponto. Os fatos e a lógica nos constrangem a aceitar, como explicação de tudo isto, a presença de uma inteligência e poder diretores, preexistentes ao fenômeno da evolução, à qual impõe determinado caminho e telefinalismo. Torna-se então explicável essa transformação de potência criadora, compreendendo-a não como uma absurda derivação do menos no mais, mas como uma destilação progressiva de valores substanciais, já contidos em potência, como numa semente, que depois gera a árvore, contidos numa coisa que não é menor, mas apenas aparece assim, porque ainda não se desenvolveu. Mas donde derivam, então, esses valores substanciais, e como podem existir no estado latente, não-expresso, à espera de desenvolvimento, mesmo nos mais baixos planos da evolução? Para responder, é indispensável ter compreendido a teoria da queda, explicada em nossos dois volumes Deus e Universo e O Sistema, e o desenvolvimento evolutivo traçado em A Grande Síntese, que se pode definir: a teoria do reerguimento. Nesses livros está explicada a origem da matéria, pela queda, corrupção ou involução do espírito, e o regresso, pelo caminho da evolução, àquele perfeito estado originário, o que é um estado de reerguimento ou reconstrução do sistema, a partir do anti-sistema, sob a guia daquele mesmo Deus que, tirando-o de si, tinha criado tudo.
O fenômeno da evolução torna-se, então, bem compreensível, como um caminho de volta, paralelo e inverso ao de ida; compreensível, porque toda a trajetória do projeto se toma visível, equilibrada em suas duas fases opostas de descida e subida, do ponto de partida até ao pólo oposto, e, deste, recuperando tudo o que perdeu, novamente até ao ponto de partida. Explica-se, assim, esse estranho fenômeno do "mais" que nasce do "menos", pelo qual a qualidade emerge da quantidade, o complexo, do mais simples, porque esse mais não é gerado do menos assim como a qualidade não o é da quantidade, nem o complexo do simples. A posição precedente, de menos, de quantidade, de simplicidade, não representa a causa do "mais", da qualidade, do complexo, mas apenas uma fase de diverso grau de desenvolvimento de um mesmo processo, que consiste na restituição ao estado atual daquilo que se reduzira ao estado latente. Restituição, isto é, regresso e reerguimento, porque a involução é uma queda do espírito na matéria, da substância na forma; ao passo que, com a evolução, da matéria reaparece o espírito, da forma emerge e revela-se a substância. Com eleito, esse é o processo evolutivo, que significa tornar a subir a Deus, que é, ao mesmo tempo, ponto de partida e de chegada.
Leva-nos tudo isto, fatalmente, ao conceito telefinalístico, que agora nos parece indispensável, para poder compreender e explicar-nos o processo evolutivo que, não podemos deixar de admitir, é presidido por esse guia que fixa a meta preestabelecida e fatal. Assim, podemos agora explicar-nos, finalmente, o significado e as causas da distinção entre involuído e evoluído em que se baseia este volume. Sabemos agora qual é o poder que faz nascer, num plano inferior, os primeiros exemplares de um superior. Agora vemos qual a força que preside ao fenômeno, que defende e salva, num ambiente ciumento e inimigo, esses tipos biológicos fora da série, como todas as exceções isoladas e contrastadas pela massa diferente dos menos evoluídos, que é contrária a elas. Explica-se dessa maneira como o mais adiantado, que é mais difícil e complexo para sobreviver, pode vencer a batalha da vida, e fixar-se como novo tipo biológico, fazendo desse moda progredir; a evolução. Tudo se explica, mas por obra de um conceito metafísico, que já agora se torna indispensável até à ciência; pois enquanto esta não descobrir o lado imponderável do fenômeno, só poderá atingir uma visão parcial, insuficiente para compreender o processo evolutivo, que permanecerá um mistério cheio de incógnitas. Conceito metafísico, o no entanto, tão íntimo aos seres, inclusive a nós, humanos, e que em todos grita e sabe realmente fazer-se compreender e obedecer muito bem, por meio de um instinto irrefreável de melhoria e ascensão, em que se exprime a grande chamada de Deus a todas as criaturas.
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Não faltam, todavia, as objeções a essa concepção telefinalística. Mas o fato é que, mesmo parecendo que elas a possam abalar nos pormenores, elas a confirmam nas linhas gerais. Observa-se que, na evolução da vida, a natureza procede por tentativas, e não com a segurança de um plano pré-organizado. A técnica da tentativa contrasta completamente com o conceito de telefinalismo e o desmente. Se fosse verdadeiro aquele conceito, a evolução deveria caminhar retilínea e segura. Ao invés, ela avança incerta, como quem não conhece absolutamente o caminho a seguir; sua tendência a progredir é falaz, como de quem não sabe aonde quer chegar Ela tende a subir, mas erra, corrige-se, pára, toma outra estrada, retrocede, depois recomeça e continua a subir. Muitas formas, inúteis como resultado final, permanecem abandonadas, mortas, nas margens do grande caminho. Por que esses erros, essas tentativas sem êxito? Naufraga com isto o poder do telefinalismo? E, vindo ele de Deus, como pode falir em tantos pontos? Vemos que sua sabedoria não está absolutamente presente na evolução, que não conhece nenhum telefinalismo.
Ao invés de uma consciência organizadora, dá-nos tudo isto a sensação de um cego à procura de luz, apalpando as paredes de sua prisão para achar a porta de saída para formas de vida menos duras e mais livres. Por que esse esforço de evoluir, com risco próprio, expondo-nos a todos os perigos? E o poder diretivo dirige o quê, se fica impassível a olhar? Parece ser fraco, incerto, quase ausente, ou, no máximo, presente apenas como um vago e longínquo chamamento que o ser sente como uma ânsia confusa, que só pode realizar-se através de seu esforço mais árduo.
E no entanto, podemos responder, quantas coisas conseguiu a evolução construir com essa sua enganadora técnica da tentativa Em última análise, com suas maravilhosas construções, a vida demonstrou que sabe responder a esse íntimo chamamento telefinalístico. O esforço árduo nos levou até aqui, onde nos achamos hoje no caminho da evolução, as dificuldades foram superadas, a vida triunfou sobre todos os erros e obstáculos, seus objetivos foram atingidos Pelo nosso comodismo, somos levados a conceber a presença de Deus fazendo tudo com seu infinito poder (aliás, isto nada lhe custa), poupando?nos um cansaço que nos custa muito. Mas, ao contrário, a presença de Deus em nós é uma conquista que temos de fazer com esforço próprio, merecendo-a pelo fato de saber subir até Ele. Então, esse imperativo telefinalístico não é um elevador, dentro do qual nos sentamos para sermos levados para o alto, mas é uma escada que precisamos subir com as próprias pernas. Não se trata de fazer-nos arrastar preguiçosamente pela vontade de Deus, mas de reconstruir por meio de nosso trabalho, de acordo com a vontade de Deus, uma perfeição perdida, que permaneceu como recordação e nostalgia de reconquista, impressa na profundidade do ser.
Há tanta miséria de fraqueza e ignorância nessa cegueira da tentativa, e no entanto aí vemos também a mais profunda sabedoria, que sabe erguer-se e ressurgir de todas as quedas, transformando cada erro e falência num aprendizado para aprender a subir. Na evolução, vemos agir as suas forças opostas, a do anti-sistema e a do sistema, que disputam o campo. A primeira, negativa, para corromper e paralisar a subida; a segunda, positiva, para curar e fazer progredir. A miséria da fraqueza e da ignorância pertence ao ser que deve subir, desde o fundo. A riqueza de poder e sabedoria pertence a Deus que o chama e ajuda a subir. Explica-se assim como a técnica da tentativa não destrói absolutamente a presença do telefinalismo na evolução.
Se tentativa significa incerteza, também quer dizer tendência para uma finalidade. A presença dessa técnica poderá indicar-nos a imperfeição do método, mas não a ausência de um fim; poderá ligar-se a um telefinalismo difícil de realizar-se, porque cheio de obstáculos, mas não uma falta de meta. Se caminhamos até aqui, isto significa que existe uma estrada na qual se caminha. A tentativa exprime, justamente, o esforço para alcançar qualquer coisa. O acaso não tende a nenhum ponto particular, nem faz esforços para atingi-lo. Ele não tem finalidades não luta por alguma coisa, é imparcial e indiferente. Ao contrário, a evolução manifesta-se — além das paradas e desvios — como o efeito de uma atração lenta e sistemática, que faz movimentar-se em determinada direção. Apesar da técnica da tentativa, o fenômeno está intimamente auto-orientado por um impulso seu animador que tenazmente o solicita sempre na mesma direção. E eis que as objeções contra a concepção telefinalística, ao invés de destruí-la, a reforçam, obrigando-nos a observar com exatidão cada vez maior. Continuemos a observar esse grande fenômeno da evolução, para compreender-lhe cada vez mais o significado profundo.
Já notamos que seu ponto de partida é um mundo de inumeráveis irregularidades individuais, que desaparecem numa regularidade coletiva de conjunto, que se revela por leis estatísticas ou de probalidade. Ora, essa ordem de massa, que deriva de uma desordem de base, só pode levá-la sozinha ao nivelamento das diferenças individuais, eliminando o individualismo. A evolução, ao contrário, tende à diferenciação, ao assimétrico, à distinção por formas definidas, e à coordenação dos elementos componentes. Eis que o princípio de base é invertido. Ora, o cálculo das probabilidades prova a impossibilidade prática de atingir, com aquele sistema de desordem básica, e de ordem de massa, uma sucessão de fatos cada vez mais assimétricos e irregulares. E na biologia os tipos conservados são exatamente aqueles constituídos pela maior complexidade e assimetria, justamente os que são mais improváveis estatisticamente, mas que em contrapartida são os mais avançados em direção à meta.
É verdade que, nas sociedades de unidades biológicas, as leis estatísticas tornam a regular os maiores acontecimentos da coletividade. Mas isto é um expoente, efeito de outros impulsos determinantes, a serviço da evolução, e não uma causa suficiente que possa explicar-nos e ter determinado desde o início sua constante direção progressiva, tão tenazmente orientada que, apesar de todas as falências, chega ao homem e ao mundo do espírito. Do ponto de partida ao de chegada, da monera ao homem, existe um crescimento sistemático de complexidade e uma contínua conquista de qualidades superiores. Se isto acontece por tentativas, não se pode negar que estas se movimentaram sempre em uma direção determinada, para um objetivo certo, sem o que não se explicam os resultados finais, obtidos com a formação do homem pensante. Se aceitarmos como procedente o principio do acaso, ou seja, aquele da ação dos fatores da adaptação e seleção, jamais poderemos explicar-nos como esses fatores se orientaram, em média, para a construção de uma forma que é a mais improvável estatisticamente.
O que não se pode negar, é que deve ter havido uma tendência prévia a evoluir em dado sentido, em obediência a forte chamamento. Evidentemente era necessária a ação de um poder bem grande, embora escondido e latente, para conduzir a nossa existência, das estradas do mundo inorgânico da matéria às tão diferentes do mundo orgânico da vida. O primeiro não possuía os elementos que o tornassem capaz de fazer, sozinho, um salto tão grande. Havia uma revolução grande demais para realizar; uma ponte muito longa, para atravessar o abismo e uma encosta muito íngreme para subir, para que o milagre pudesse ocorrer apenas com as leis e os recursos do mundo inorgânico.
Mas outros fatos existem ainda. Em A Grande Síntese já falamos (cap. XLVIII, Série evolutiva das espécies dinâmicas), e também no volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio (Cap. XXV, "O dualismo universal fenomênico"), do fenômeno da entropia, pelo qual se verifica, no universo dinâmico, a tendência à quietude final do nivelamento. A entropia manifesta-se como um fenômeno de cansaço no dinamismo universal, que culmina na uniformidade, pela completa exaustão atingida por todas as diferenças. Este deveria ser o fim natural do universo inorgânico, segundo suas leis, se ele fosse somente isso. Com a entropia, ele tende a nivelar as desigualdades, a cancelar os valores; tende a caminhar para uma distribuição cada vez mais simétrica da energia, ou seja, para a diminuição e a supressão das dissimetrias.
E no entanto, eis que aparece, neste ponto da evolução, um mundo novo, o orgânico da vida vegetal e animal, a caminho para outras direções, regido por outras leis e por um dinamismo de outro tipo. Este é dado por um princípio diferente do da entropia, pelo qual, no fenômeno vida, verificamos não uma diminuição, mas um incremento das dissimetrias; ao invés de uma tendência a nivelar as desigualdades e a cancelar valores, uma tendência a acentuar as desigualdades, a criar valores, diferenças, complicações. E eis que a evolução se coloca numa estrada diversa que leva não ao nivelamento dinâmico, mas ao surgimento de individuações autônomas que se tornam senhoras do movimento e o utilizam livremente para as próprias finalidades
Assistimos, assim, a um fato rico de profunda significação. Acima do universo físico, tendente à sua liquidação, aparece, quase numa compensação, e tendente ao seu desenvolvimento, em direção e forma diversa, o universo da vida. Os dois fenômenos parecem ligados por complementaridade, além de sê-lo por continuação. Se a vida, como dizíamos acima, pode parecer um acontecimento quantitativamente secundário, desprezível, pela pequena quantidade de matéria e energia que usa, entretanto a vida se nos apresenta como a herdeira da degradação do mundo físico e dinâmico, que ela vence por uma superioridade qualitativa. Paralelamente ao seu desaparecimento nos planos inferiores, parece que o universo quer reconstruir-se em outra forma, mais acima. Então, cada plano de existência seria antes utilizado para dele se derivar, por evolução, o plano superior; e depois como suporte deste, para fazê-lo desenvolver-se; seria depois abandonado e eliminado, logo que o ser, mais avançado, se tenha tomado independente. E assim que todo o anti-sistema acaba transformando-se em sistema.
É assim que o dinamismo, partindo de sua imensa massa de energias cósmicas, se torna mais exíguo, embora de qualidade superior; pois que ele — nesse ponto da evolução — não regula mais os astros, mas sim a vida, que é fenômeno muito mais evoluído pela complexidade de movimentos, por um dinamismo agora dirigido pela inteligência, coordenado aos objetivos desta e por ela dominado, e que, assim se libertou do determinismo que lhe era próprio nos planos inferiores. Conquista de autonomia de movimento, que se liberta cada vez mais da escravidão daquele determinismo, tornando-se cada vez mais livre e conscientemente apto ao trabalho — agora bem diferente — de construir a vida.
A matéria como a energia, os átomos como os astros, representam movimentos poderosos e velozes. Mas átomos e astros não os dirigem, e sim os sofrem. Manifesta-se a evolução como uma conquista de individual independência de movimento, como uma libertação do determinismo das leis dinâmicas e daquilo que aparece como estaticidade da matéria.
Na passagem da matéria à energia, assistimos a uma primeira libertação do movimento fechado nas trajetórias circulares do átomo, que assim se expandem por transmissão ondulatória. Neste ponto de evolução, o mundo inorgânico da matéria, chegado à fase energia, impelido pelo íntimo impulso ascensional, quebrou e abriu os sistemas atômicos fechados em si mesmos, e deles lançou o dinamismo nos espaços, em forma livre, de onda. Libertação apenas de trajetória, para projetar-se para todos os lados, mas ainda nenhuma superação do determinismo das leis da matéria, porque a energia não conquistou nenhum domínio sobre o próprio movimento nem possui liberdade para dirigi-lo. Como a matéria, a energia deve obedecer cegamente à sua lei, mesmo que isto se passe de forma diversa, já que o movimento não esta‘ mais fechado em si mesmo.
E nessa altura da subida que intervém o impulso telefinalístico. Abandonado a si mesmo, já o dissemos, seguindo o seu caminho, o mundo dinâmico chegaria a uma ordem final sua, em que, atingido o completo nivelamento das diferenças energéticas, se alcança o zero absoluto dinâmico, que é a anulação do movimento numa estase final, em que, no equilíbrio atingido pela entropia, cessam todas as manifestações energéticas de nosso universo. Mas a evolução não se deixa arrastar por essa estrada, que seria a conseqüência lógica das causas presentes no fenômeno. Ao contrário, introduz nele outras novas, inéditas, desviando-o para seus fins que são completamente diferentes. Assim a vida se inicia e a subida toma outra direção. Aquele movimento que tende a anular-se de um lado, reaparece sob forma diversa do outro.
Na irritabilidade da célula, primeira forma de vida, aparece um início de conquista do movimento de forma autônoma: movimentos mínimos e lentos, (que são eles diante dos de um meteorito), mas dependentes da vontade do sujeito. Os movimentos precedentes continuam a girar cegos no íntimo dos átomos componentes, mas são tomados numa escala maior, em movimentos de que o ser não é efeito, como na matéria, mas é causa, como na vida. Começa, então, com a evolução, uma espécie de luta na libertação contra as leis físicas. As árvores se erguem, vencendo as leis da gravidade; os animais conquistam por terra, por água, pelo ar, seus meios independentes de locomoção, adaptando à sua vontade, as leis físicas para utilidade própria. Assim, como antes se pensava na descoberta das Américas, agora se pensa nas viagens interplanetárias. Assim se manifesta, em realizações cada vez mais poderosas, aquele impulso de libertação que leva o ser a apoderar-se do movimento para a conquista do espaço. Este é assim cada vez mais dominado, até que, chegando a evolução à fase pensamento e espírito, essa dimensão espacial será superada definitivamente com a do tempo, atingindo, para além delas, outras superiores. Então, o espírito, livre da matéria, poderá gozar, sem esforço, de um movimento próprio gratuito e ilimitado, como é o dos corpos celestes. Com a diferença de que o espírito não é um escravo cego do movimento, como aqueles corpos, mas senhor consciente.
Assim, continuamente regenerado por novos impulsos evolutivos, nada se submete ao natural cansar?se e envelhecer do fenômeno, e tudo sobrevive, mas de forma qualitativamente destilada, em que se manifesta a evolução. O velho é superado, só para dar lugar a um novo melhor. Com isto, é vencida não só a inferioridade do passado, mas se fortifica cada vez mais sua fraqueza, garantindo a sobrevivência do ser ao defendê-lo, e tornando-o mais poderoso, em vista da caducidade, tanto maior quanto mais se retrocede na escala da evolução. Poder-se-á assim chegar a um estado em que, — por ter o caminho evolutivo de desmaterialização levado o ser até ao plano espiritual, a vida, para existir não terá mais necessidade do suporte físico. Ela perderá, então faltas e imperfeições devidas ao seu estado involuído; libertar-se-á dos males inerentes à matéria — inclusive a morte — e o ser poderá continuar a existir, sem mais necessidade do sustento dos corpos planetários em que se apoia, tornando-se assim independente das sortes do mundo físico, mesmo se essa forma da substância não tiver sido ainda eliminada de todo pela evolução.
Eis que, então, a entropia, que parece nutrir-se com um parasita do esgotamento do universo, só destrói deste, em realidade, um modo de existir, e não a substância, que continua indestrutível para evoluir em outras formas. Em outros termos, com a entropia tende a extinguir-se o movimento em sua forma inferior, passiva e determinística, em que ele é fatalmente aceito e inconscientemente seguido, para transformar-se num movimento de forma superior, ativa e livre, em que ele é querido e guiado pelo ser. É bem evidente a imensa distância que corre entre os dois fenômenos. O primeiro tipo de movimento pode ser representado por um meteorito ou planeta ou astro lançado no espaço, cegamente submetido às leis determinísticas do mundo físico e dinâmico; enquanto o segundo tipo de movimento pode ser o de um disco voador, dirigido pela vontade de um ser inteligente. Quanto dinamismo existe também no primeiro caso, muito mais poderoso quantitativamente, mas quanto é ele inferior em qualidade! Pode compreender-se, assim, por que os modernos progressos científicos e técnicos, têm um significado biológico. Com o domínio do movimento, levam a vida à superação das dimensões de espaço e tempo, próprias do mundo físico, liberando a vida dessas dimensões, quando o levam a transpor os limites daquele estágio evolutivo, permitindo que a vida possa entrar numa fase mais adiantada, a do espírito.