Aparece por vezes, na Terra, um tipo biológico de exceção, com índices característicos estranhos, se o considerarmos em relação às leis normais da vida, seguidas pela maioria. Estudamos sua figura e função no capítulo “Os Guias do Mundo”. Vejamos agora como se comporta ele, quando é colocado em contato com a realidade do mundo animal, e como se comporta este em relação àquele tipo biológico. No capítulo citado, vimos como os ideais, sustentados pelas forças do Alto, descem à Terra. Agora troquemos, a perspectiva, ou seja, vejamos como os acolhem, os alteram, os contorcem e sufocam as forças do ambiente terrestre, com as quais eles se encontram para nelas se entrosarem. Trata-se de uma luta entre dois tipos e dois planos biológicos. Observemos como se comportam os representantes de cada um deles, armados de forma tão diferente, e como vencem ou perdem na luta pela vida. Perscrutemos tudo isso com a psicologia positiva, objetiva e desapiedada de Maquiavel, partindo do princípio positivo de que, no mundo, tudo é luta para viver e para subir, e que a vida é sempre utilitária. O problema é ver a forma que essa luta assume, e quais os alvos que o utilitarismo da vida quer atingir nos planos mais altos. Não queremos dizer que esse tipo biológico se nos apresente sempre em seu ponto máximo, o santo. É mais comum ele se apresentar de forma mais ou menos alta, aproximando-se do santo. Apresenta-se como homem simplesmente honesto, moral, evangélico, que procura tender à perfeição da santidade. O problema interessa, portanto, a mais pessoas do que se pensa, e às próprias massas, porque são elas que nele estão envolvidas, o que se pode ver na veneração que tributam ao santo, exprimindo dessa forma, inconscientemente, uma aprovação, o que é uma exigência das leis da vida.

 

Quando vem viver na Terra algum exemplar raro do tipo biológico do santo, ou de alguém que a isso tende, verifica-se um espetáculo que relembra o da descida dos mártires inermes à jaula dos leões. Ele desce no mundo que Maquiavel pôs a nu, com cruel verdade, como vimos nas páginas precedentes. Observemos. Que acontece ao cordeiro quando desce entre os lobos? Estes, naturalmente, começam a rodeá-lo, farejando a presa. Num mundo, cuja maior atividade consiste em viver dilacerando o próximo, porque esse é o trabalho que a seleção impõe no plano animal, a primeira manifestação da vida é representada pela agressão. Em vista dessa psicologia base, começam os lobos a farejar, a fim de conhecer a força do inimigo, para calcular se convém realizar o esforço de agredi-lo, de maneira que seja compensado pela segurança da vitória. Esta é a principal forma de atividade, no plano em que vive hoje o homem, tanto como indivíduo, quanto como povo. Inútil, pois, pensar na abolição da guerra, enquanto a maioria humana continuar a pertencer, prevalentemente, ao mundo animal.

 

Começa então a espoliação do homem evangélico. Aproxima-se o primeiro lobo, dá uma dentada e arranca um pedaço de carne. Visto que a cobiçada festa foi iniciada impunemente, apressa-se um segundo a imitar o primeiro, e com outra dentada abocanha outro naco de carne. E assim por diante. Encorajados pelo êxito dos mais fortes, adiantam-se então os fracos mascarados de fortes e com armas ocultas. E enganam o homem evangélico com suas astúcias e mentiras, todos fascinados pela grande miragem: poder tirar tudo “impunemente” do próximo, ou seja, escapando à sua reação punitiva, única coisa que eles temem e que os pode deter. É por isso que só se pode conseguir ordem num povo pela imposição da lei e a paz entre as nações pela imposição do mais forte. Nessa impunidade reside o sonho e a voluptuosidade do macho: poder, sem esforço nem perigo, superar  o obstáculo que o impede de obter a vitória sobre o próximo. Consiste a satisfação em achar, neste caso, o caminho mais rápido e mais fácil a seu instinto de conquistar e dominar, para evoluir. Mas, para obedecer ao que a vida ordena ao macho, satisfazer a vitória é de pouca valia, porque ela é fruto mais da fraqueza do vencido do que da superioridade do vencedor. As leis sociais, como o equilíbrio dos povos e seu assalto nas guerras, baseiam-se neste princípio: obter o máximo arriscando o mínimo, e apoderar-se de tudo. Se, no plano humano, isto significa vitória, mesmo não o sendo num plano mais alto, explica-se quando se pensa que o espírito de egoísmo e de domínio, que hoje se procura corrigir com as virtudes de altruísmo e obediência, se formou no homem justamente porque só os indivíduos que o possuíam conseguiram sobreviver melhor na luta universal pela vida.

 

Assim, o homem do Evangelho fica reduzido apenas a seus ossos. Estes só lhe são deixados pelo próximo, porque de nada lhe servem. Contenta-se em despojá-lo. Não o mata, só porque isso representa um trabalho que nada lhe rende e por isso o deixa viver. E que faz o homem do Evangelho? Descido ao inferno terrestre, olha sua pátria longínqua e se deixa despojar e matar. Ele conhece outra vida, desconhecida por quem o assalta, de modo que não perde muito, mesmo se lhe tiram a vida terrena, que para os outros é tudo. Ele se deixa despojar na Terra, pois tem pouco a perder, já que seus valores estão noutro lugar. Então, quem o despojou acredita que venceu, ao passo que o homem do Evangelho sabe, ao contrário, que o outro perdeu, pois, ao invés de subir para a libertação, cada vez mais ele se prende a um cárcere infernal. Compadece-se então, e chora sobre a miséria de seu próximo, que é de tal sorte e tanta, que até considera um belo lugar de permanência a estrumeira humana, e julga vencer quando, ao contrário, se amarra sempre mais a seu cárcere. Ora, a traição, para o homem normal consiste justamente na ilusão que o circunda, e que lhe faz crer que venceu, quando perdeu. Entretanto, isto é natural em vista da ignorância, e portanto, a ilusão crescerem à proporção que se desce na escala da involução.

 

Nasce assim um estranho duelo em que as posições, as armas e os alvos são tão diversos, que não se sabe quem vence e quem perde. Permanece o princípio fundamental da vida, que é sempre utilitária, só que os alvos utilitários são diferentes. Como o macho e a fêmea encontram modo de conviver, cada um em seu perfeito egoísmo, só porque seus alvos utilitários são opostos, assim o santo e o homem normal descobrem o modo de viver juntos, porque as metas de suas vidas estão nos antípodas. O tipo normal, rei da espoliação, consegue alegrar-se ao esmagar e vencer. O tipo evangélico atinge sua alegria em outro mundo desconhecido do primeiro, mundo em que a perda das coisas terrenas, que para o outro são tudo, representa quase nada. Sendo eles dois tipos biológicos diferentíssimos e falando duas línguas diversas, é natural que se considerem reciprocamente tolos. Ambos têm razão, mas cada um em seu plano. Mas uma vez colocados nos planos que lhes não pertencem, então estarão ambos errados.

 

Para compreender melhor a posição do evoluído, homem do Evangelho, tipo biológico do futuro, em relação à maioria dos normais, faremos uma comparação. Imaginemos um pássaro, habituado a voar em seu mundo aéreo de liberdade, de luz, de panorama vastíssimo e rápidos movimentos. Esse pássaro desce, um dia, para viver entre os peixes, no fundo do mar, num mundo denso, escuro, com panorama mínimo e movimentos lentíssimos. O primeiro modo de estabelecer conhecimento entre seres que se encontram pela primeira vez, quer entre animais, quer às vezes entre homens, é a agressão e a defesa, isto é, a luta. Essa é a dura apresentação biológica, a que se faz na sala de visitas da vida, baseada num manual de educação bem positivo e objetivo, cuja finalidade é mostrar quais os meios ofensivos de que cada um dispõe e, nessa base, julgá-lo. Isso porque no plano animal-humano o valor é dado pela força e pela capacidade de subjugar. Por isso, os peixes agredirão o pássaro que entre eles desceu e, senhores de seu ambiente, vangloriar-se-ão de sua força e sabedoria, condenando o pássaro que, por estar no meio deles, se encontra fatalmente sem razão. Impor-lhe-ão, assim, um modo de viver, produto de seu cérebro de peixes, mas que será aceitável para o pássaro. E quando este narrar seus rápidos e livres voos nos espaços, nos vastíssimos horizontes cheios de luz, os peixes o chamarão de louco. E se o pássaro convidar os peixes a subir, um pouco que seja, para a superfície, a fim de terem mais luz, narrando as maravilhas do mundo acima das águas, os peixes gritarão que é  utopia, dizendo: peixe sempre foi peixe, o nosso é único mundo verdadeiro. O resto é sonho. E se o pássaro narrar e falar daquilo que ele bem conhece, eles todos negarão e voltarão ao abismo.

 

Então o pobre pássaro exilado chorará sua bela pátria longínqua e dirá que é um crime produzir filhos, porque lhe é duro demais viver assim. No entanto, para os peixes, nascidos em seu ambiente e a ele proporcionados, a vida pode ser a coisa mais adequada e até bela. Assim, para os seres do tipo comum corrente, a vida terrestre, feita de mentira, de luta feroz, de dores contínuas, pode ser o necessário. Poderíamos perguntar, com efeito: se estes homens não tivessem tão desgraçadas ocupações, que saberiam fazer melhor do que isso? E como tirar-lhas se, sem elas, só saberiam morrer de tédio ou destruir-se com toda a espécie de abusos? Se não houvera esse freio de tantas dificuldades na terra, quem moderaria sua insaciável sede de gozos? Se não houvera o recíproco assalto contínuo, quem arrancaria o homem à sua preguiça, para obrigá-lo a evoluir?

 

Para o evoluído, entretanto, a coisa é diferente. Para ele o ambiente terrestre é verdadeiramente um inferno, uma vida inaceitável. Seus instintos são diferentes, suas ideias não são compreendidas, suas mais vivas verdades são utopia. O pobre pássaro, sedento de luz e liberdade bate em vão as asas para voar. Todos os peixes o acham ridículo. E ele assim estragará suas asas gloriosas, conseguindo mover-se com dificuldade, embaraçado no fundo do mar, lá onde os peixes sabem nadar tão bem e viver confortavelmente.

 

Mas ocorre uma circunstância. O pássaro morrerá de padecimentos se os peixes não o matarem logo de vez. Em vida será tomado como louco, e todavia ele contou coisas estranhas e novas, que nenhum peixe jamais soube ou disse, e alguns o ouviram, alguma curiosidade foi suscitada. Assim, também, no homem comum há um desejo indefinido de progresso, dado pelo instinto de evolução que, nesses casos, se desperta porque todos anseiam subir, ainda que muitos parem no primeiro esforço. O pássaro perderá as asas, viverá e morrerá dilacerado, mas sua descida ao mundo inferior era o único meio para fazer chegar um pouco de luz até lá embaixo, luz que, doutra forma, seria ignorada para sempre. Aquela descida do mundo superior dos pássaros, era o único meio para que alguém, do mundo inferior dos peixes, se movesse e tentasse subir um pouco mais para cima. E o pássaro ou o evoluído continua sendo o mensageiro enviado por Deus como vítima, saindo de um mundo superior para iluminar com seu sacrifício um mundo inferior e ajudá-lo a subir. É assim que se pode compreender essa parábola do pássaro e dos peixes. É verdadeira, porque se baseia em três leis fundamentais da vida, às quais correspondem três instintos que são vivos em nós: 1º) a fome, para conservar o indivíduo; 2º) o amor, para conservar a raça; 3º) a evolução, para progredir. Biologicamente, todos os seres, mesmo os inferiores, possuem também esse terceiro instinto. Há, para todos, na vida humana, uma necessidade de subir, que constrange os evoluídos a descer e os involuídos a subir. O encontro é o choque doloroso. Mas é dor genética. A subida só se pode realizar através da dor.

 

Vimos que Maquiavel nos descreve o mundo inferior dos peixes, sem conhecer o dos pássaros. Ele tem razão, entre os peixes. Mas entre os pássaros, erra. Quando nos diz que é mister mostrar-nos externamente virtuosos, mas que é perigoso sê-lo de fato, permanece fechado nos limites de um mundo inferior. É necessária muita ignorância das leis da vida para errar tanto, e muita insensibilidade para suportar as reações da Lei aos erros que são assim perpetrados. Mentir é esforço; é indispensável sermos dotados do instinto de mentira, isto é, sermos ignorantes e involuídos, para suportá-los. Tudo sacrificar em troca das vantagens efêmeras de um mundo inferior é coisa triste, e só almas ignorantes, capazes de se iludirem, podem fazer tão mau negócio. É muito triste viver e agir assim, sem qualquer meta mais alta e mais segura, que nos garanta a conquista de valores que não sejam mentira, como na Terra. Logo que progride um pouco, precisa o homem de um pão mais nutritivo. Chegar a ser exímio na arte de enganar o próximo não pode satisfazer nenhuma consciência bem formada. O homem fica imensamente mais satisfeito e consegue resultados muito maiores, ao contrário, se conseguiu compreender uma lei completamente diversa do princípio de Maquiavel, ou seja: “quem faz o bem aos outros, o faz a si mesmo, e quem faz o mal aos outros, a si mesmo o faz”. Aqui já saímos do mundo dos peixes e entramos no dos pássaros. Mas tudo na Terra quer ficar no primeiro desses dois mundos, e todo o universo é visto, na Terra, desse ponto de vista e reduzido aos termos desse ambiente.

 

Assim, pode haver duas formas de santidade: a íntima, que Deus vê em segredo, reconhece e recompensa; e a exterior, oficialmente declarada diante do mundo, perante o qual a primeira pode escapar sem ser vista. Nem sempre as duas chegam a sobrepor-se e coincidir, porque o julgamento de Deus não pode ser igual ao dos homens. A santidade é antes de tudo um fato privado entre a alma e Deus, único que pode julgar no mérito. A santificação humana é outra coisa. Aqui estamos na Terra e a lei da luta invade tudo. Aqui, enquanto o santo está vivo, muitas vezes o perseguem e até o matam. Só quando foi de todo embora, quando a sepultura está bem fechada, e se está bem seguro de que não fala mais, então nasce o grupo que o santifica. Falamos de santo no sentido amplo, isto é, do homem excepcional, que mais tarde um grupo escolhe como uma bandeira, para que muitos medíocres possam tornar-se um pouco maiores à sua sombra. Assim, cada religião, cada partido político, cada período histórico tem seus eleitos, porque o instinto de deificação é fenômeno biológico desde as fases primitivas da evolução humana. Ele se inclui no instinto de progredir, pelo qual se procura criar, entre os homens de exceção, modelos para imitar, evoluindo com eles. Seja Lenine para os comunistas, como o chefe de uma ordem religiosa para esta, seja um general para o exército, seja um mártir para uma ideia, o princípio utilitário da vida é sempre o mesmo: o grupo escolhe um chefe ideal para sua glória, mas sobretudo para seu poder e defesa. O grupo gosta de criar para si um modelo, mormente para mostrar o que os seguidores pretendem parecer. Que de fato o sejam, isto é outra questão. Numa coisa todos estão de acordo: que o santo escolhido esteja bem morto,  portanto, impossibilitado de voltar a ocupar-se de coisas terrenas, que os seguidores gostam que sejam deixadas exclusivamente em seu poder. Entramos, aqui, no terreno de Maquiavel. Ter que suportar o controle direto por parte de um santo vivo, justamente nesse terreno em que se apaga todo princípio superior, seria um contraste e um empecilho.

 

Os homens da terra, pelo instinto de progredir, têm mais ou menos a intuição de que, nestes casos, existe um ser superior. Mas eles continuam a ser práticos, no terreno positivo: limitam-se a usá-lo. Imitá-lo é muito difícil. Bem sabem eles que assim é, e pouco pensam nisso. A santidade não é comida para todos os dentes. Mas alardeá-la é vantajoso. O homem prega e faz muitas coisas bonitas, mas, se quisermos compreender por que ele as diz e as faz, acharemos que a verdadeira e última razão quase sempre é apenas uma utilidade sua. Só os ingênuos podem acreditar no que dizem os astutos: isto é, que se possa fazer algo sem tirar vantagem. Todos têm um alvo “útil”. E isto não constitui culpa: é lei da vida. É erro pensar que isto, como princípio, seja uma culpa. O defeito reside na baixeza da utilidade que queremos alcançar, e por isso desaparece no ser superior, que põe a sua utilidade no amor ao próximo, no amor de Deus.

 

Não nos escandalizemos desta utilitariedade da vida. Em sua sabedoria, ela consegue extrair utilidade de tudo, até mesmo dos instintos elementares do homem. Explora-se o santo, mas assim se alardeia a virtude, e as massas, que só sabem pensar com a cabeça de quem as guia, aprendem regras melhores de vida, assimilam alguma coisa por sugestão, aplicam também algumas delas, fazendo tudo por imitação. Como ensinar a gente que não sabe e não quer pensar, porque isso cansa, senão com a repetição mecânica de máximas simples, axiomáticas, que não requerem nenhum esforço mental? E no entanto, assim se progride. Deste modo é atingido o alvo da vida, ainda que apenas na forma permitida pelo estado de involução humana. Imitação. Nisto tudo vemos, mais que o defeito do homem, a sabedoria da vida, que sabe tirar partido de tudo, até dos defeitos. Que poderiam as massas assimilar do super-homem, se tivessem contato direto com ele? Quando isso aconteceu, eles perderam a ocasião, por absoluta incapacidade de compreendê-lo. Se não houvesse essa exploração utilitarista por parte dos grupos, quem desempenharia a função de intermediário entre o mais e o menos, para torná-lo acessível a todos? Quem funcionaria como redutor de potencial do gênio que queima, até à tepidez dos cérebros pequenos da maioria? Quem fixaria no concreto prático o relâmpago evanescente de um pensamento que atravessa o mundo como um meteoro? A vida é uma construção orgânica em que cada indivíduo tem sua respectiva função útil. E também os involuídos fazem parte dela e devem executar o seu trabalho. No seio da vida, nada é fátuo, mas tudo é sábio, até mesmo aquelas manifestações mais elementares que podem parecer tolas aos mais orgulhosos.

 

Assim, o instinto do progresso leva os primitivos a imitar os mais evoluídos, porque a lei de evolução é fundamental e impera soberana. Vimos que as necessidades básicas que a vida impõe, são: a fome, para a  conservação individual; o amor, para a coletiva; e a evolução, para que tudo isso não signifique trabalho inútil; mas sirva, ao invés, para progredir. As formas materiais da vida são revestimentos, para fim de aprendizado, de princípios espirituais que nelas decaem, e a meta suprema desses princípios é remontar até Deus. Assim as três supracitadas leis: fome, amor e evolução, são três degraus consecutivos, o primeiro dos quais serve para passar ao segundo, e o segundo para alcançar o terceiro. A fome para conservar o indivíduo, a fim de que este, amando, conserve a raça, para que esta, experimentando por sua conta e aprendendo dos mais evoluídos, progrida. A meta final de tudo é a subida. E na vida, o trabalho é dividido: os involuídos tendem a permanecer servos, porque nada mais sabem, e fazem o trabalho material de conseguir o que serve para satisfazer a fome de todos. A mulher, ao invés, é incumbida do amor. Seu trabalho é, com sua arte, apoderar-se da semente do macho, que lhe pertence e que ela defende como propriedade sua, e assim gerar e depois criar a prole. Os evoluídos são incumbidos da evolução. Seu trabalho é apoderar-se das massas humanas, produto dos dois trabalhos precedentes, a fim de elaborar o fruto de ambos. Trata-se sempre de apoderar-se. O esforço do anjo decaído para reconquistar o paraíso perdido, ou seja, para, do caos criado com sua revolta, reconstruir a ordem, esse esforço compete ao macho. O tipo biológico do evoluído é o que se coloca à frente da marcha ascensional da humanidade. É o pioneiro do porvir, o explorador dos novos continentes do conhecimento, ainda que, nos graus menos evoluídos, ele seja apenas o prepotente, que impõe com a força uma nova ordem. A vida o respeita, e, representando ele um valor biológico, mais cedo ou mais tarde ele impõe respeito ao instinto das massas.

 

Observemos os instintos. Falam-nos claro, revelando-nos o pensamento diretivo e a vontade da vida. Assim, o homem se sente impelido, sem saber por que (e obedece sem discutir), a utilizar o produto da vida alheia, seja planta ou animal, para nutrir-se, e deles se alimenta. Por outro instinto, sem discuti-lo, o homem é impulsionado a utilizar a mulher para reproduzir-se, e então ele ama. Enfim, para satisfazer seu instinto de progresso, é o homem levado a utilizar o super-homem, e por isso o venera, glorifica e imita, embora o tenha antes desprezado e perseguido. São estes os valores da vida, por ela ansiado através dos seres que a representam; estas são as coisas preciosas e defendidas na economia utilitária da natureza, que sabe ser econômica nas coisas de somenos importância e riquíssima onde se acham as de maior importância para seus fins. Por isso ela é avara em fornecer meios para viver, porque quer nosso esforço a fim de procurá-los e depois dessa busca, sabe até ser pródiga. Por isso é exuberante de sementes geradoras mas, a seguir, nos dá uma existência precária, para que se aprenda na luta. Por isso deixa os super-homens em poder dos involuídos, a fim de que, nesse atrito sejam testados, e se revelem e afirmem na luta. Assim, a vida utiliza tudo para seus altos fins: um bom alimento, como uma mulher bela, ou um herói ou gênio ou santo, defendendo seus valores e abandonando o inútil, rica e pródiga onde se encontra a meta a alcançar, pobre e avarenta no que lhe não interessa, demonstrando claramente com esses sinais inequívocos o seu pensamento.

 

Por isso, como o bom alimento ou a mulher bela, o super-homem é ansiosamente desejado. Mas, para utilizá-lo, não o podemos nem devorar, nem fecundá-lo. É mister imitá-lo. E isso é difícil. Ele pensa e age tão diversamente dos outros! E ele é só um modelo, mas o esforço de subir é indispensável que cada um o faça de per si, sozinho. Também os macacos imitam, mas só o lado externo, sem compreender o significado dos atos que repetem. Assim também as massas limitam-se a imitar as atitudes aparentes, e julgam que a santidade consista em jejuar ou dormir no chão, e que ela resida na pobreza, na castidade ou na humildade etc. Não percebem que estes são apenas acessórios exteriores, o lado negativo da renúncia à Terra, e não o lado positivo e verdadeiro da santidade. Mas o homem só vê a Terra e concebe todo o universo em relação a esse seu único ponto de referência. Foi por isso que reduziu a paixão de Cristo particularmente à carnificina de um corpo, já que sua alma se achava longe deste mundo.

 

No entanto, a santidade é algo de positivo, de construtivo no espírito, e não apenas destrutivo no corpo; é feita com a renúncia, só para conquistar mais e em ponto mais alto; é feita com a solidão apenas para abraçar todas as criaturas; é feita com os ócios materiais e aparentes da contemplação, unicamente para dinamizar-se numa atividade espiritual maior. Assim, do santo, o homem imita o que mais compreende, mas que vale menos, mas também o que melhor assimila, porque mais próximo da sua natureza de involuído. Todos temos riquezas imensas a nosso lado, todavia, na sabedoria da natureza, só nos é dado agarrar o que merecemos, compreendemos, o que podemos alcançar e assimilar. Por isso, é natural que o homem comece imitando a exterioridade, enquanto lhe escapa o que vale mais. Mas a vida não pode pedir mais a um ser material, que tende a reduzir a atividade espiritual a movimentos físicos de boca, braços e pernas.

 

De tudo isso nasce novo conceito de virtude. Em outros termos, surge em primeiro plano o conceito de virtude positiva, enquanto passa ao segundo plano de virtude negativa, tal como foi prevalentemente compreendida até hoje, ou seja, virtude que consiste mais em não fazer do que em fazer. Não pode negar-se que uma pedra satisfaça totalmente às virtudes de pobreza, castidade e obediência, pois ninguém é mais pobre, casto e obediente que uma pedra. No entanto, bem longe está uma pedra de ser santa. Dessa forma, encoraja-se a inércia, sufoca-se o eu, oprimindo-o, ao invés de desenvolver-lhe os recursos. Mas isto se explica. O homem está situado na animalidade e, se esse é seu mundo e sua casa, desde que ele não conhece ainda a nova, só lhe resta procurar destruir a velha. Mas claro que isso não é construir. Entretanto, que mais pode fazer, quem sabe construir? Então, esperam-se os construtores, os santos, os heróis, os guias do novo caminho. Explica-se isso, também, como consequência da luta pela vida, em razão da qual cada pregador de virtudes sente necessidade de cercar-se de ovelhinhas obedientes, antes de encontrar diante de si o santo independente. Tudo se explica. Mas desse modo, sobra-nos apenas uma virtude triste, com sabor de punição; no entanto, ainda que tenha que ser assim nos seus primeiros passos penosos, deverá ser alegre e construtiva, na sua parte melhor, numa forma que tem sabor de conquista e de triunfo. Devemos ser virtuosos, porém com mais inteligência. Consiste a virtude em fazer a vida elevar-se, e não em mutilá-la e matá-la. E neste ponto vemos como é útil, mesmo no terreno prático, ter compreendido o fenômeno do universo, já que só desse conhecimento é que se pode deduzir uma moral da qual podem compreender-se todos os postulados de acordo com as leis da vida, e podem ser eles logicamente demonstrados à razão. Elevemo-nos – esta é a regra. É o conceito de evolução que nos indica a escala de valores.

 

Elevemo-nos, ou então cairemos no mundo de Maquiavel, que é um mundo de traições. Ele também nos oferece estima e respeito, mas só invejando-nos e odiando-nos, e enquanto formos fortes. Nesse mundo, o vencido e o fraco nem sequer são odiados, mas lançados fora com o desprezo devido ao vencido. Mundo em que a morte de um é vida do outro; mundo em que o amor luta para procriar e o ódio para matar. Mundo em que cada momento de vida deve ser conquistado contra todos, numa luta sem tréguas, em cada pensamento e ato. Estamos tão permeados de luta, que mesmo quando oramos a Deus, lutamos para cavar favores. A batalha atinge até o terreno moral que é o mais alto e próprio das religiões. Desse modo faz-se a guerra ao próximo até em nome da virtude. Os próprios princípios dos planos superiores mais livres têm que assumir, para substituir na Terra, a forma de imposição moral sustentada por sanções correspondentes. Há luta, não só entre homens, mas entre os planos da vida. E é interessante observar como ocorre o embate entre as forças do Evangelho e as da animalidade humana, e ver que contorções têm que sofrer esses princípios superiores, quando descem em contato com a dura realidade da vida terrena, a fim de conseguir adaptar-se a ela. Maquiavel dá-nos uma ideia disso. E vemos então que o Evangelho, na Terra, toma forma de utopia, e a virtude, de mentira. Desfralda-se então a bandeira do amor fraterno, do altruísmo, do espírito de sacrifício, ocultando por baixo a vantagem material, explorando tudo no interesse próprio. Tudo isso é um fenômeno biológico que pertence a todas as manifestações da vida neste mundo, em qualquer lugar, tempo e religião. Não estamos, pois, julgando ninguém, mas apenas fazemos constatações biológicas objetivas e com absoluta imparcialidade.

 

O primeiro erro é de quem exige a virtude, no próximo, de forma antivital, isto é, pretendendo ter, em nome da virtude, o direito de sufocar a vida nos outros. É natural, então, que esta se rebele, para não deixar-se sufocar. Com efeito, tudo o que atenta à vida, vai contra Deus. Então, a virtude, na Terra, assume a forma de luta para todos se esmagarem mutuamente: de um lado, os moralistas que a impõem, sufocando; de outro, seus discípulos que não se querem deixar sufocar. Mas, de um modo geral, estes sabem defender-se bem por si mesmos, e esta é sua maior sabedoria. No atual estado de involução humana, é tão grande a ignorância, que se torna inútil pretender resolver os problemas com a inteligência e a bondade. Por isso, só existe o caminho longo, duro e doloroso da luta. Assim resolve a vida os seus problemas. Mas bem sabemos com quantas dores. E assim, com estas, o homem paga a sua ignorância.

 

Tudo é justo e se explica. Num plano de vida involuída, a virtude não é sentida, nem espontânea, nem compreendida. Só pode ser imposta pelo mais forte e aceita pelo mais fraco com repugnância, pois a vontade de viver só existe em forma animal. Nesse nível, a virtude é um peso, uma perseguição. E o indivíduo que aceita essas cadeias, sente-se no direito, de acordo com a psicologia de seu plano, de ter ciúmes de quem não está acorrentado, como ele, às mesmas virtudes, e portanto pode gozar de liberdade. Assim, de fato, a liberdade na prática não é mais do que abuso. Ele sente-se autorizado, em nome da própria virtude, a desviar os seus sofrimentos contra os que não estão presos a estes, ou seja, os não virtuosos. Nasce assim o santo zelo agressivo e a procura da satisfação ao próprio rancor – filho do instinto de conservação na luta pela vida – exigindo-se que o próximo fique amarrado à mesma virtude a que ele se encontra ligado. Dizem: “ao menos, já que devo fazer tantos sacrifícios e renúncias, que as faça também o próximo”. E é assim que alguns pregam e impõem a virtude. No plano animal, nada além disso se pode obter. Mas qualquer pessoa vê como tudo isso está longe do princípio do Evangelho, do “ama o teu próximo”.

 

Se na terra são fixadas algumas normas como virtudes e estas são aprovadas e exaltadas, deve-se isto ao fato de que elas podem ser utilizadas pelos involuídos como arma, a fim de lutarem pela própria vida, para combaterem melhor com ela contra o próximo. Se a caridade é proclamada e aplicada em forma de beneficência, pode ser isto devido também ao fato de que, com ela, podem recolher-se, da piedade pública, fundos dos quais mais tarde podem viver os organizadores. Assim, os beneficiados podem ser um pretexto para encobrir interesses materiais, ou seja, a indústria da beneficência ou desejo de glória. Mas, que o homem atual ame e tenha verdadeiramente predileção pelos deserdados, em seu instintivo egoísmo individual, é coisa em que alguns podem não acreditar. Mas pode ser conveniente, aos piores, a bela mentira de uma caridade utilitária. Quantas coisas belas e grandes se fazem pelos pobres! No entanto, o problema é descobrir se, por detrás de tanto barulho, os pobres gozam sempre alguma coisa, ou se apenas para eles sobram as migalhas do repasto. Porém, como pode admitir, quem conhece o homem atual, que ele sempre trabalhe desinteressadamente pelo próximo? Não dizemos que a vantagem seja o furto, o que seria escândalo, mas pode-se conquistar uma posição, o que se admite, ou a glória, o que é tolerado, e assim por diante. O alvo pode ser também o do domínio moral de classe, base do poder. Por que, na Europa, o Clero sempre lutou para manter o monopólio da instrução pública, com as escolas, contra o ensinamento dado pelo Estado, e sempre procurou, ao menos, reservar para si uma cátedra de religião? No entanto, como pode acreditar, quem conhece o homem de hoje, que interessem a alguém os princípios em si, quando não signifiquem interesse de domínio individual ou de casta? Quem é que pode acreditar que o homem, em cada caso, gaste as suas preciosas energias por algo que lhe não renda de forma positiva e imediata? Existem, sem dúvida, muitos casos genuínos de admirável bondade e sacrifício, mas pode-se também pensar que nem tudo o que brilha seja ouro.

 

Esta é a contorção que tem que sofrer o princípio da virtude, para descer à Terra, no campo em que se debate o problema da conservação individual. Nada disso ocorreria se, na aplicação da virtude, o homem amasse o seu próximo, isto é, levasse em conta os direitos que também seu semelhante tem à vida, respeitando-o, ao invés de servir-se da virtude alheia para dominar. Só há uma solução para o problema: a de fazer viver, ou melhor, a de ajudar todos a viver. O homem quer, antes de tudo, viver. Se isso pode desagradar ao inimigo, que então o condena, não é por certo culpa, diante de Deus. Em nosso plano, quando alguém quer sufocar-nos no direito de viver e nos asfixia tirando-nos o ar, o espaço e aquilo que necessitamos, Deus não desce a ajudar-nos diretamente, mas o faz através de nós mesmos e diz-nos: “defende-te, ajuda-te”, porque o esforço de defender a nossa vida deve ser nosso.

 

Então, se por exemplo, de um fraco que não tenha outra defesa senão a mentira, quiséssemos pretender, em nome da virtude, que dissesse sempre a verdade, fazendo-o assim renunciar à única arma que tem para defender sua vida, os culpados seríamos nós que, em nome da virtude, o agredimos. Isto porque, para poder exigir dele uma virtude que o desarma num mundo de armados, temos primeiro o dever de libertá-lo da necessidade de usar esse meio de defesa, e isso garantindo-lhe um mínimo espaço necessário para viver. Garantir isso a todos, eis a grande obra de justiça social a ser realizada. Só desse modo poderão cessar as reações ao esmagamento, que dissemina tantos rancores nos oprimidos. Esta é uma das razões das revoluções. O povo reconhece que os princípios são justos e percebe quando a classe dominante o atraiçoa enganando-o. Exige que também os chefes apliquem esses princípios. A revolução francesa foi baseada no ateísmo, porque o clero francês, em nome de Cristo e pregando o Evangelho, só cuidara de apoderar-se das melhores posições sociais, traindo Cristo e o Evangelho. E ainda agora, se o povo às vezes se revolta, fá-lo em geral contra todos os maus ministros que o mereceram. Apenas fazemos aqui amargas verificações de sentido geral, e tanto mais amargas porque se referem ao mais precioso e delicado terreno, o espiritual e moral, ao passo que Maquiavel o fazia apenas no terreno mais baixo, onde mais fácil era prescindir dos princípios superiores. Na prática, infelizmente, a virtude é muitas vezes propugnada e defendida até porque é um meio de sufocar a expansão vital do próximo, e pode transformar-se numa arma de agressão, num meio útil, na luta pela própria vida. Repitamos que esse princípio da luta invade tudo e nada lhe escapa na Terra. O santo, o homem evangelizado que de verdade a tudo isso renuncia, só pode viver com o auxílio de forças supranormais que descem até ele somente, porque ele faz parte daqueles planos.

 

O amor é o fenômeno que a moral quer disciplinar mais do que todos os outros, e isto é um grande bem. Ele preside à conservação coletiva, pela qual luta a vida com vontade de ferro. Depois da conservação individual, é este o outro centro, em redor do qual ferve a peleja, e naturalmente se verifica a contorção dos princípios, quando, de um mundo superior, são transportados à Terra. Assim, a virtude da castidade, na prática, pode ser enaltecida porque serve para ter, em quem a segue, um rival de menos no terreno do amor; como a virtude da pobreza pode ser exaltada porque serve para ter, em quem a observa, um rival de menos no terreno do bem-estar material. Na realidade biológica positiva, que é a de Maquiavel, parece que essas duas virtudes, a da castidade e pobreza, podem ter também esse sentido. Se aí acrescentarmos também o terceiro voto franciscano, o da obediência, teremos o próximo reduzido a zero, completamente demolido no plano biológico, o que significa poder conquistar-se todo o espaço vital à custa dele e em vantagem própria, ou seja, um atalho fácil para vencer, subjugando, na luta pela vida. Tudo isso é muito triste, mas a vida também pode aparecer assim, do ponto de vista de Maquiavel, de acordo com a realidade biológica. Na Terra, tudo pode ser virado ao contrário e falsificado. E temos que conhecer também este aspecto da vida. Repetimos: tudo isso é muito triste. Mas é assim que aparece o nosso mundo, visto dos planos superiores, dos quais desce este pensamento.

 

Assim, pode sustentar-se a santidade do matrimônio para que o vizinho, cerceado por ela e dentro dela aprisionado com sua mulher, não possa atentar contra a mulher do moralista, enquanto que a este muito agradaria atentar contra a mulher alheia. Assim, toda mulher, tendo em vista que a ela sobretudo pertence a função biológica do amor, é a guardiã natural e desapiedada da virtude em todas as outras mulheres, mas isto só para excluí-las de seu banquete, em que triunfa ou espera poder triunfar. Assim, em nome da virtude, pode justificar- se e tem foros de cidadania, ao lado do amor ao sexo oposto, o ódio e a perseguição contra o próprio amor. Por isso as mais denodadas defensoras da virtude, em matéria de amor, são as mulheres feias, que não encontram quem as satisfaça, as irritadas solteironas, as frígidas, as desiludidas que desafogam na raiva; escondidas sob o manto da virtude, tudo o que não foi possível desafogar no amor. Estamos nos antípodas da bondade evangélica, e desse modo o verdadeiro sentido cristão está invertido. Com efeito, Cristo escolheu Madalena entre as mulheres que mais haviam amado, ainda que carnalmente, mas tinham amado, e não estavam irritadas pela renúncia forçada. Isto porque o Amor é a lei da vida. É triste, quando ele está corrompido, mas qualquer amor é sempre melhor que o azedume, que a vingança, que o ódio.

 

Se esse é o abuso que se pode fazer, das normas que pretendem regular a vida humana, não se pode negar sua utilidade como normas de vida para a maioria, e quão grande conhecimento da natureza humana elas exprimam, em vista dos instintos animais de revolta e luta, de egoísmo e avidez do tipo biológico dominante, qualidades que aquelas normas presumem nele. Elas são feitas para a maioria no nível animal. Para uma minoria mais evoluída, em que os instintos já estão transformados, certas normas podem não ter sentido e, se aplicadas a personalidades fracas, podem até provocar complexos de inferioridade. É um fato positivo que o ambiente terrestre representa uma força, tem suas leis e seus direitos. Quando o céu desce à Terra, para aqui enxertar uma vida nova, tem que levar em conta tudo isso, deve suportar o choque da reação, por parte das forças ativas neste ambiente. Aqui, onde reinam os princípios de vida de um plano inferior, o santo aparece como um intruso e um violador. Só pode ser um mártir destinado à destruição, um utopista tolerado apenas enquanto não agride nem prejudica e, depois da morte, enquanto dele se pode tirar proveito. Se olharmos bem, poderemos ver que a exaltação que se faz a tantos grandes homens, pode às vezes ocorrer também em função de sua capacidade de ser explorados. Seria possível que o tipo biológico involuído, como é, exalte outro homem se isto lhe não servir para qualquer vantagem sua egoística? Não dizemos que tenha que ser o dinheiro. Há tantos desejos e tantas vantagens na Terra! Como poderia ser diferente num mundo em que cada posição, pela necessidade de uma luta universal sem tréguas, há de transformar-se numa trincheira ou refúgio, para ataque e defesa? Então, a própria posição social, qualquer que ela seja, pode representar o castelo do ataque e da defesa, pois o involuído sabe que o animal sem toca, está perdido.

 

Como se vê, não discutimos cada uma das instituições sociais, posições jurídicas, governos ou religiões. Discutimos, sim, os princípios da vida e sua aplicação entre os homens. Procuramos compreender e expor a verdade mais verdadeira, a que é mais difícil de conhecer, a mais escondida, mas a mais escaldante, a que mais se proíbe de dizer. E isto porque, sendo ela a mais verdadeira, é a que mais se mantém escondida na batalha para viver, pois representa a verdadeira face do homem, a medida de suas forças, as qualidades de suas armas, a natureza da sua estratégia, justamente aquilo que o homem precisa deixar o inimigo conhecer menos. Esta verdade é a mais proibida de falar-se, porque descobre o jogo sujo e oculto que revela a animalidade, a vergonha da baixeza dos instintos, métodos e alvos, coisas cujo reconhecimento representa uma degradação que ofende o orgulho humano. Pode parecer que estejamos fazendo aqui maliciosamente a acusação da humanidade. Não. Mesmo sem ofender ninguém em particular e respeitando a todos, é necessário ter a coragem de enfrentar os problemas de face, com sinceridade, para vermos claro e sem mentiras. Ai de quem começa a iludir-se a respeito da natureza real dos fatos! Qualquer construtor, antes de iniciar o trabalho, tem de examinar bem e conhecer a estrutura do terreno em que quer edificar; senão, construirá mal e tudo ruirá. Temos de partir de bases positivas, daquilo que a realidade biológica nos oferece. O otimismo que devemos alcançar deve ser férreo, ou seja, não fácil e simplista, de sonhadores ignaros do mundo, mas um otimismo que arrombou todas as portas e venceu todas as resistências. Não podemos criar o terreno, ele é o que deve ser. Não podemos criá-lo para nós. Compete à habilidade do engenheiro saber construir nele, conhecendo-lhe os defeitos, suprindo as falhas e utilizando o que for aproveitável. Detestamos as ilusões, e a elas preferimos uma realidade horrível, mas verdadeira. E suas bases mais positivas, as temos encontrado nas leis da vida, nas forças em ação no mundo humano, nos instintos do homem e na realidade biológica. Este volume é diferente dos anteriores e, por ocupar-se mais da Terra que do céu, podemos nele dizer o que não foi dito nos outros.

 

Assim surgem à luz fealdades que não deveriam ser expostas. Mas não as dizemos, por certo, para demorar-nos nelas com alegria, antes, experimentando todo o horror, estudando todos os meios que pode oferecer-nos a vida para sair delas, e desesperadamente convidando a todos que as usem, a fim de fugir a elas. Fazemos um trabalho de análise do mal, para curá-lo, fazemos um diagnóstico triste, para libertar-nos de aflições que nos fazem sofrer a todos. Não culpamos ninguém, e o único inferno que prometemos é o de permanecer na estrumeira atual, o que já nos parece bastante horroroso. Ser involuídos não é culpa, mas demonstramos à religião e ao sentimento que isso constitui grave dano, e que conseguir sair daí é enorme vantagem. Se o homem compreender que muitas de suas dores derivam do atrito nascido da luta de todos contra todos, da falta de conhecimento dos próprios deveres e dos direitos alheios, e da reação natural dos oprimidos; se o homem compreender tudo isso e a imensa vantagem de todos com a confraternização, a Terra se transformaria em paraíso. Mas essa compreensão tem que ser conquistada, pois só pode ser atingida com o desenvolvimento da inteligência, que é construída e ganha mediante a nossa experiência penosa. Aqui procuramos abrir as mentes a esta nova forma de vida. As leis biológicas já estão escritas, o caminho está traçado, é necessidade absoluta seguir por ele, mas nós temos de percorrê-lo, transformando-nos aos poucos.

 

O espírito de egoísmo e de revolta, a desordem dominante em seu modo de viver, provam que o homem atual é involuído. Os índices da evolução são o altruísmo, a disciplina, a ordem. Quanto mais se sobe, mais o indivíduo se harmoniza. Quanto mais se desce, mais ele é rebelde, indisciplinado, desarmônico, caótico. Tal é o mundo atual. O homem ainda mata. As próprias religiões que pregam o mandamento não matar admitem e abençoam as guerras, realizaram mesmo as guerras santas; reconhecem, no grupo dominante, o direito de matar em nome da justiça, que, em última análise, é apenas autodefesa. Quanto mais se desce na escala evolutiva, e menos são defendidas a propriedade e a vida, mais áspera é a luta, maiores os perigos e as dores. Quanto mais se desce, mais a morte de um é a vida do outro. Quanto mais se sobe, mais a vida de um é a vida do outro. É assim que se explica, nos involuídos, a alegria de matar. Desse modo, quanto mais se desce, maior é o instinto de agressividade, mais forte o egoísmo, mais caótica e insegura a vida. Mas, é lógico que, quanto mais se desce, maior é o separativismo individualista que ignora o vizinho, maior a mortandade e maior a dor, porque a vida é mais quebrada, por motivo de um rítmo mais acelerado de vida-morte, que exprime o estado de cisão que, como consequência da queda, aumenta com a descida.

 

Num plano mais alto, desaparece tudo isso. Cessa a agressividade e o desejo de matar, tudo se arruma e harmoniza, o indivíduo é protegido na vida e nos haveres, as dores são menores e os direitos maiores, e ele não está mais isolado no caos, mas é uma célula da grande organização social. Isto, porém, pertence ao futuro. Muitos perguntam ingenuamente, porque até hoje esta triste necessidade de fazer guerras. Mas a razão é o estado involuído das maiorias humanas, são os seus instintos. Esse duro destino é causado pela própria natureza do homem atual, por sua psicologia que revela seu plano biológico, em que só o mais forte vale e tem direito à vida. Não são esses princípios aplicados diariamente nas competições de nossa vida chamada civil? Como pode o homem tornar-se outro, logo que entre no campo das competições internacionais?

 

Em vista da forma mental desse biótipo, o embate entre os dois grandes contendores, que hoje ficaram em pé no mundo, é fatal que ocorra, mais cedo ou mais tarde. Tudo isso está já em embrião, e não pode deixar de desenvolver-se. Não pode ocorrer diferentemente num mundo em que vingam esses princípios. A guerra é inevitável, onde é preciso decidir quem é o mais forte, pois só a ele compete viver. A fim de terminar com as guerras, é indispensável uma psicologia completamente diferente e, para que o mundo possa chegar a ela, são necessárias destruições e dores imensas, experiências apocalípticas, proporcionadas à grandeza da transformação que deve realizar-se no homem. Estão abertas as portas do progresso. E quando a gangrena chega ao coração, o cirurgião que quer salvar o doente louco, o arrasta e o amarra à mesa da operação e, para salvá-lo, o esquarteja. Esta é a operação cirúrgica que Deus se prepara para fazer na humanidade, a fim de salvá-la.

 

Esse é o mundo de hoje. Isso não é culpa, é apenas ignorância. Mas isso não impede que se deva pagar da mesma forma. E a humanidade está pagando, e tanto pagará que será obrigada a aprender. A dor é uma grande mestra. A vida hodierna é um erro psicológico, baseia-se em ilusões mentais. Compete ao homem entrar num terreno de utilitarismo superior, substituindo, ao antigo método de seleção do mais forte, isto é, do mais prepotente, o método de seleção do mais inteligente e, por fim, do mais honesto. A solução do problema do bem-estar não se situa só na justiça econômica, mas em se reconhecerem todos os direitos do próximo, e esses são de muitos gêneros, e não apenas econômicos: consiste em deixar espaço vital suficiente para todos, sem sufocar ninguém. Os povos e a humanidade só poderão refazer-se com o progresso do indivíduo, levando primeiro à frente seus componentes, um a um. O progresso coletivo não pode ser alcançado senão com o progresso de cada um. É mister respeitar o princípio utilitário fundamental da vida, pelo qual só se faz algo em vista de uma vantagem a ser obtida. Mas se todos precisam obter algo, não há dúvida também de que todos têm algo a dar; assim, há para todos uma possibilidade de troca. É a lei “do ut des”, do mundo econômico. Ela foi condenada em A Grande Síntese, porque aí foi olhada dum ponto de vista mais elevado. Mas, nos planos inferiores, é preciso reconhecer que cada concessão altruística do egoísmo humano que dá, só é obtida em presença de uma contra-doação da parte do egoísmo oposto do outro, nosso semelhante. Isto é o máximo de justiça que se obtém no plano humano. Esse é o máximo de fraternidade possível neste nível, em que o estado mais involuído implica maior separativismo egoísta. Mas, o “do ut des” já é um equilíbrio e, na troca, uma tomada de contato, o maior abraço que permite o egoísmo dominante nesse nível. Esse já é um primeiro início de ligação entre os indivíduos, na estrada que leva aos grandes organismos das futuras coletividades sociais.

 

A vida não pode oferecer em cada plano uma perfeição maior que aquela que pode suportar naquele plano. É uma mãe que ocultamente e tão misteriosamente nos protege, que por vezes nos parece cruel. Mas, nada faz ela no vácuo, inutilmente, sem finalidade benéfica, mesmo quando nos faz sofrer. Verificando estas lealdades, apenas contemplamos os erros dos planos inferiores, ou seja, os mais afastados de Deus. Mas isto nos leva sempre em direção ao centro, Deus, e faz-nos ver como, com sua sabedoria, Ele permanece sempre presente, mesmo nesses planos. A natureza é justa quando, dando a todos uma arma para defender-se, quer que todos vivam. A quem mais não tem, dá a fuga ou a mentira. Quando nós, escandalizados, quisermos em nome de uma lei mais alta – que é ainda um absurdo nesse plano – tirar ao indivíduo a única arma que ele tem para defender sua vida, podemos perguntar-nos se temos o direito de despojá-lo daquela sua única proteção, impondo-lhe renúncias, sem antes lhe garantir pacificamente o que aquela defesa queria defender. A desobediência a uma verdadeira chamada do Alto para nos elevarmos é, sem dúvida, um erro que se paga. Mas a resistência contra a tentativa de estrangulamento da vida, ainda que feita em nome do ideal, é legítima defesa que a vida impõe ao homem, através do instinto.

 

É difícil dar normas particulares para a aplicação dos princípios em cada caso prático. É necessário ver, caso por caso, levando em conta sobretudo o tipo biológico a que tudo isto se aplica. A maioria involuída precisa da virtude imposta e do terror do inferno, porque, sem o império de uma autoridade, e sem o medo da própria condenação, nada de bom faria. Mas, para os mais evoluídos, esses métodos são inaceitáveis e produzem o afastamento da fé. Tudo o que se faz na Terra, é feito em relação e proporção às qualidades dominantes da maioria. Às minorias compete apenas adaptar-se, num mundo que não é feito para as suas medidas. Ainda aqui é o mais forte que vence, sendo a força, neste caso, representada pelo número.

 

O poder do santo pertence a planos superiores, tanto que, na Terra, parece fraqueza. Sua arma defensiva é tão evoluída que se torna amor. Ele se deixa explorar, e esse é o seu triunfo. Ele personifica a inversão dos valores correntes, por isso, entre ele e o homem normal não podem nascer rivalidades, como não nascem entre pessoas que têm necessidades e metas diferentes, de modo a não terem ponto de contato e portanto de atrito. Não havendo competições, nem rivalidades, não há luta. Tanto menos elas poderão existir, enquanto o evoluído e as massas involuídas desempenham trabalhos complementares, e portanto estão entrosados, um em função do outro. Para o evoluído, o trabalho é civilizar, para as massas, serem civilizadas. Em geral o santo não pode ser, e não é de fato, compreendido pela maioria, e o seu triunfo se fundamenta num mal-entendido. Há, por certo, outras razões biológicas, pelas quais a vida exige a vitória do tipo mais evoluído. Mais próximas, todavia, aparecem as razões da realidade mais perceptível. Como podem esquecer-se e silenciar, diante do santo, os instintos utilitários da vida? Sem dúvida uma intuição confusa faz sentir às massas, através do julgamento dos mais adiantados, que naquele homem há um raro campeão. Mas é suficiente isto para que contra ele se não exercite o egoísmo humano?

 

Ele é sempre um renovador e, quando não é morto por isso, e sua inovação e superioridade atraem prosélitos, forma-se então o grupo em que ele fica sendo o núcleo espiritual, a ideia central, de que aquele grupo, para sua vantagem, inicia a defesa contra todos os outros. Começa então a glorificação do santo, os reconhecimentos oficiais, forma-se a corrente favorável na psicologia coletiva, chegam os meios, constroem-se os grandes templos em sua memória. Se na vida, o santo é um grande independente, dificilmente domesticável, porque foge para outro seu centro de vida, que os normais ignoram, estes esperam que o santo esteja bem morto, porque só então estão bem seguros de que a sua figura não pode nem mudar, nem reagir, e é possível apoderar-se dele. As massas sabem que o santo não é imitável, mas que, no entanto, é utilizável como farol luminoso e remoto, para interceder junto a Deus, para dar glória ao próprio grupo ou cidade de que faz parte, para ganhar o paraíso com as indulgências pedidas pelo santo no céu. Utilizar, é a vontade da vida, que fala através do instinto das massas, às quais não se pode pedir mais, e que exigem isso; tal é a natureza humana em seu plano, e não se pode inculpar ninguém. Este é o único modo em que um pouco de céu pode descer à Terra. Foi assim que se firmou o sistema das indulgências, porque esse é justamente o sistema que satisfaz ao desejo, e corresponde à mentalidade da maioria.

 

Com isto, queremos só explicar, e não acusar. Fugimos da acusação fácil do próximo, qualquer que seja ele. De tantas coisas foram acusados os ministros de todas as religiões e crenças – e isto em nome da virtude – como aliás o fazem todos os acusadores, que se julgam sempre do lado da razão e de Deus, e condenam ao inferno ou a seus equivalentes, todos os que lhes são contrários! Essa é a luta pela vida, igual para todos. Mas os acusadores, quaisquer que sejam, deveriam confessar que em geral, para viver, condenam só enquanto lutam contra um grupo inimigo, tendo os mesmos defeitos que eles, e lutam, para substituí-los com os mesmos métodos, na mesma posição. Acusadores mais leais deveriam reconhecer que são da mesma raça e plano de vida dos acusados. Assim, por exemplo, censurou-se o cristianismo por usar a ameaça do inferno. Mas, sem falar da necessidade dessa pressão, para poder conseguir-se algo dos involuídos, a reação contra esse inferno era justamente só para desarmar um inimigo da única arma, que só podia ser psicológica e espiritual, e assim melhor vencê-lo. Num tal mundo, como podia sobreviver sem armas uma casta, a quem se deve, sem dúvida, o ter podido o cristianismo chegar até nós? E, acusando, não realizam os acusadores o mesmo ato de condenação que a Igreja usa, com a ameaça do inferno?

 

Tudo é luta pela vida, de todos contra todos. Tudo na Terra pode ser transformado de bem em mal. Assim, a defesa de princípios pode, ao invés, constituir de fato uma busca de prosélitos, sobre os quais mais tarde se possa elevar o próprio trono, e transformar-se desse modo na caça aos mais sugestionáveis e fracos. Estes, por sua vez, aceitam os princípios apenas para achar um refúgio, um pão, uma defesa. Quantas vezes uma profissão de fé pode servir para resolver o tão difícil problema da vida! Esse problema é o que todos bem compreendem, e que a realidade impõe que compreendam. Mas ter uma fé, crer, é talvez um ato que poucos estão em grau de compreender totalmente, e que, para eles, tem valor relativo ao passo que aquela realidade tem, para eles, um valor muito mais real e tangível. Tal é a vida, que é uma luta muito dura para todos, para que possam permitir-se o luxo de uma fé que pese. Aceita-se uma fé que ajude, mas não há margem para uma fé que onere. As necessidades materiais são espicaçantes, as grandes verdades estão longe, os céus são difíceis de escalar. Só os fortes, os inteligentes, os bem dotados e afortunados, podem permitir-se ter uma personalidade própria e impô-la. Muitas vezes, à miséria material soma-se a miséria espiritual, incapaz de qualquer coisa.

 

Procuramos observar tudo objetivamente, sem preconceitos nem preferências, para compreender e também para desculpar todos. Para o fraco, a luta pela vida é coisa terrível. Querem-se aplicar grandes princípios a todos, mesmo aos que nada disso compreendem; exigem-se renúncias, virtudes, sacrifícios a quem não tem a força de suportá-los. É preciso nivelar tudo no plano baixo das maiorias. Dos chefes e ministros do espírito pretendem-se qualidades raras, duras em conquistar-se e que eles não têm. Pretende-se uma vida exemplar num mundo corrompido, pede-se o sacrifício, que é um tormento para a vida. E se falta o material humano por toda a parte, como improvisá-lo? Os fracos, que são tantos, procuram defesa. Por isso, lançam-se nos braços do mais forte, do que venceu, para serem defendidos. Em meio a uma luta tão áspera para viver, o desejo de proteção torna-se agudo. Forma-se, assim, entre os chefes fortes e vencedores, e os fracos, em todos os campos, um contrato tácito, pelo qual os primeiros, para obter uma base ao poder, oferecem defesa e vantagens, e os outros, para obter tudo isso adaptam-se e aceitam tudo. Que confiança podem ter tais chefes em tais prosélitos, logo se vê: assim que um chefe cai, quase todos os renegam, desprezando-o e abandonando-o. O próprio S. Pedro não foi induzido a renegar Cristo três vezes, porque temeu por sua vida? Naquele momento, o ataque foi medonhamente concreto, e isso é o que persuade a maioria, que vale menos que S. Pedro.

 

Desse modo de comportar-se não queremos dar uma justificação, mas uma explicação. Não fora o homem colocado em tão duras condições, pelas necessidades da vida, quais a fome, a defesa etc., nada disso aconteceria. E nem sequer aconteceria, se ele tivesse a força que o ideal requer dele, de desafiar as leis da vida que o ameaçam, para vencê-las. Dom Abbondio1 dizia: “mas coragem, ninguém pode dá-la”. E se tanto admiramos Cristo, é também porque Ele foi vencedor, demonstrando ter uma força que nenhum homem possui. Mas, quando Ele pereceu na Cruz como vencido, quase todos o abandonaram. Não é sempre a vitória e o poder o que admiramos? Com isto queremos explicar não só o comportamento humano, mas também o comportamento da vida, que é justa. Ela é utilitária, mas quer que as condições de fato exprimam a realidade e deem, em posições positivas e concretas, a medida exata do valor de cada um. Apesar das defesas do momento, sem dúvida necessárias (é essa a compaixão da natureza), ainda quando prolongam um estado de injustiça ou um erro, tudo tende a exprimir a verdade, ou seja, a verdadeira natureza das condições individuais. Assim o forte e o inteligente é premiado com o triunfo, e o fraco é batido, para que desperte e se fortaleça. Mas a todos dá para a vida um ponto de desforra ou compensação. Para manter seus equilíbrios, a quem ela muito dá de um lado, tira do outro, aos muito dotados de certa qualidade, dá carência ou miséria correspondente. Ao mesmo tempo, aos deserdados dá a habilidade de apoiar-se no séquito dos mais fortes e, dessas diversidades, que procuram a estrutura social. Essa, se existe, é porque também a posição coletiva corresponde ao utilitarismo da vida, produzindo vantagens para todos. Nas velhas cidades medievais, todos eram inimigos entre si, mas todos estavam apertados pelos mesmos muros, para a defesa comum. Só por esse princípio pode nascer a unidade européia. Assim, por mais diversa que seja, cada posição é útil para todos, pois a derrota ensina, o triunfo recompensa, a esperança dele encoraja, as adversidades estimulam a reação, a fraqueza acha apoio dobrando-se diante dos fortes, que dessa forma utilizam os fracos para governar, vencer e progredir.

 

Assim caminha a vida e cada povo aprende. Os velhos povos, como os da Europa, possuem tudo mais precisamente disciplinado em normas exatas. As virtudes religiosas e civis são codificadas e difícil é escapar- lhes, as coisas livres e lícitas são cada vez em menor número. Mas, com todo esse aperfeiçoamento, a luta pela vida é mais dura que nos países novos e jovens, onde, ao menos, não há pressão demográfica. Na Europa o indivíduo está mais encaixado no dever, o que faz brotar os substitutos e requintes na luta, que se torna manhosa. A inteligência é toda mobilizada desesperadamente e assim consegue produzir obras-primas na arte de sobrepujar o próximo, da forma mais elegante e legalmente perfeita. Mas, nos mais fracos, surgem complexos de inferioridade, penosas adaptações, contorções de instinto, aberrações nervosas, formas patológicas que se fixam na raça e de que, mais tarde, se inculpa o indivíduo. São todas reações que a vida tenta para não ficar sufocada na ordem. Se esta ajuda, também oprime, muitos ficam esmagados por ela. Muitos, dotados de paciência, adaptam-se. Assim, a religião da resignação ajuda a viver, pois dá uma esperança no porvir. Não há dúvida de que, nesse ambiente, a inteligência se desenvolve. Mas, infelizmente, nem sempre ela tem força para enfrentar a subida para o alto, e prefere por vezes dobrar-se para os atalhos que levam para baixo. Mas, quando nem assim se consegue vencer, então, diante da derrota e da escravidão, nasce o ódio, pessoal ou de classe, ódio que espera o primeiro afrouxamento do poder da ordem, a fim de desafogar-se na rebelião.

 

Em rápido olhar, quisemos ver e mostrar a verdadeira face ensanguentada do nosso mundo, estendendo a mesma desumana psicologia de Maquiavel a todos os campos; quisemos penetrar até às primeiras raízes de tantos males, de que todos sofremos as consequências, e isto com a coragem de quem sente um mundo desmoronar-se e tem fé em outro que surge. Observamos imparcialmente, sem defender nenhum grupo em particular, com desvantagem para outro. Em geral, procura-se convencer que a virtude está toda no próprio grupo e que vícios e defeitos estão todos no grupo rival. Isso só tem valor de tática de guerra na luta pela vida, mas não é verdadeiro nem honesto. Há bons e maus em todos os grupos humanos, e a distinção é pessoal, e só pode ser feita caso por caso, dentro de qualquer grupo. Por isso não pudemos tomar a defesa de nenhum deles. Aqui, com absoluta imparcialidade, respeitando os bons onde quer que estejam, abraçando todos porque procuramos compreender a todos, quisemos ouvir a voz das leis da vida, convencidos de que só da compreensão do estado real das coisas pode nascer uma tentativa de remédio e uma esperança de um futuro melhor. Através destes volumes, pedimos à própria voz da vida nos expusesse suas leis, ou seja, uma moral biológica que racionalmente mostre sua razão de ser até aos pormenores e até às suas raízes. Honestamente, temos que ser utilitários como é a vida, secundando-a nesta sua característica fundamental. Jamais devemos agredir, nem mesmo em nome da virtude, se não quisermos oprimir e ser causa de revolta. Trata-se de nos tornarmos mais inteligentes. Tanto que chegamos a compreender qual é o nosso interesse, e assim estancar a intensiva produção de tantas dores, que por meio de sua ignorância o homem provoca em seu prejuízo. Quisemos apelar apenas para a razão e a vantagem egoística, evitando qualquer ternura, sentimentalismo de fé, apelos a ideais que podem parecer utopias. Desse modo não se poderá dizer que não conhecemos a vida e que somos sonhadores idealistas. Ao contrário, quisemos ficar desumanamente apegados ao terreno positivo da crua realidade biológica. Ela é dura e assustadora. Mas agora a conhecemos sem ilusões. Pois bem, agora podemos concluir: nessas bases se elevará a civilização futura, como do estrume faz Deus nascer os frutos e, da lama, uma flor. Isto porque o progresso é lei de vida, é isto o que quer a hora que vivemos e é isto que nos diz o estudo positivo que vimos conduzindo até aqui.

 

Nossas verificações precedentes podem parecer bem tristes. Mas, se o mundo, visto de um plano superior, parece uma estrumeira, onde só pode viver os vermes, e vivem felizes, isto não é pessimismo, porque também das estrumeiras a vida sabe fazer nascer as flores. Com um exame mais profundo, as correntes morais, aquelas que são vividas, revelam sua direta filiação à grande lei da luta, e por vezes se reduzem a um mundo fictício, com o qual, em nome de muitas coisas elevadas e belas, se cobrem os vários grupos humanos só para assim, mais bem protegidos, realizarem a luta pela vida. Por isso, na terra, os ideais subsistem enquanto são utilizados nesse sentido. Na realidade biológica, cada grupo aproveitando-se de tudo, constrói uma moral para seu uso e defesa e procura impô-la a todos os outros grupos, que por sua vez fazem o mesmo, retorquindo ao assalto. O grupo mais forte, vencedor de todos os outros, cria a moral dominante que é lei para todos, à qual as minorias têm de submeter-se porque estão em inferioridade numérica e portanto, são mais fracas. Morais humanas, relativas, de combate, com finalidade de ataque e defesa, mutáveis no tempo e de país para país. A moral de Deus não pode ser essa, nem mesmo a moral biológica que a vida nos manifesta em seu funcionamento, e que só pode ser a manifestação do pensamento de Deus em cada determinado plano.

 

Chegou a hora de superar essas morais que se praticam, escondidas debaixo da hipocrisia daquelas que são proclamadas; superar essas morais de grupos, de interesse para ataque e defesa, filhas da luta pela vida e portanto cobertas de mentiras, em que se utilizam as maiores ideias que possui o homem, só para vencer a batalha da existência. Infelizmente, esta é a realidade da vida. Chegou a hora de olhá-la de frente, qualquer que ela seja, sem falsos pudores, a fim de sobrepujá-la. Havemos de ter a coragem de lançar fora a máscara, e será salutar conseguirmos nos envergonhar de nós mesmos. Devemos crer com fé, que Deus está pronto a ajudar nos em nossa miséria, se tivermos, diante d’Ele a coragem da sinceridade. Enquanto nos cobrimos com a mentira, jamais poderá Deus reerguer-nos. Temos que compreender que a maior quantidade de nossos males nós os queremos fazer contra nós mesmos, pela nossa teimosia, filha da nossa ignorância. É a hora de superar tão doloroso estado de imbecilidade e falsidade. As tristes verificações feitas aqui não devem tornar-nos pessimistas nem céticos, nem imorais ou amorais. Animados sempre de fecundo otimismo, temos de descobrir e compreender a mais profunda e universal moral biológica, em que a vida diz honestamente a verdade nua.

 

O passado passou, e temos que olhar o futuro. Devemos superar as morais baseadas na rivalidade e na luta, a fim de atualizar a que está baseada na compreensão e no amor. Ponhamos fim a todos os erros do passado e todas as dores que deles derivaram; ponhamos fim às religiões do ódio, que muita gente pratica em nome do amor e do bem, escondendo-se à sombra da virtude. Nasça a verdadeira religião, a do amor, no seio de todas as religiões humanas. É isto que verdadeiramente importa, só isto poderá salvar o mundo. Nasça a religião da sinceridade, em que se reconhece a todos o direito de viver, sem o que o próximo ficará sempre constrangido, para viver, a mentir e a lutar. Nasça um conceito de virtude que ajude, e não oprima a vida, que discipline a ação, demonstrando racionalmente a sua racionalidade biológica. Basta de condenar os outros para defender o próprio grupo, reconhecendo que a virtude não está apenas neste e as culpas e vícios apenas nos outros, mas que, vício e virtude podem estar em qualquer grupo humano. Enquanto dissermos que a virtude esta apenas conosco e entre nós, e que os defeitos e culpas estão todos no campo contrário, não faremos moral, mas apenas guerra em nossa defesa. Essa não pode ser a moral de Deus, que é universal e abarca a todos.

 

É necessário Amor para todos, isto é, compreensão, e não perseguição. É indispensável iniciarmo-nos nesta nova religião do Amor, tão pregada e tão pouco vivida. É mister abraçar o que cai, para ajudá-lo a subir, e não repeli-lo como leproso. Compaixão para todas as misérias humanas, que todos condenam, reconhecendo que os culpados são, muitas vezes, aqueles que ninguém condena. Batamos todos ao peito, porque de todas as desgraças desta pobre humanidade, todos somos, mais ou menos, responsáveis, por nosso egoísmo que se desinteressa das dores e misérias do próximo. Toda a culpabilidade, que a sociedade pune no desgraçado que caiu em seu laço e nele se deixou prender, é uma culpa da própria sociedade, que não devia permitir que se formassem aquelas tristes condições, em que forçosamente há de nascer a culpa. Quantos delitos se praticam impunemente cada dia, porque feitos com astúcia, e representam um choque que se transmite, caminha repercute, até que atinge as costas de alguém que o encaixa com sua derrota e então é condenado! Nossa vida individual e social está assentada em erros, em mal-entendidos, e mentiras, em violações dos mais elementares direitos da vida, em esmagamentos sob os quais muitas vítimas gemem, porque não sabem nem reagir nem defender-se. A humanidade carrega em seu passivo um fardo de injustiças, que são forças biológicas ativas, que reclamam compensação nos equilíbrios da vida. É preciso decidir-se a retificar tudo isso, a pagar essa dívida humana para com os deserdados, pagá-la mediante o amor, se não quisermos pagar amanhã a força. Não obstante, a justiça está presente e a vontade de Deus é sempre ativa, para realizá-la.

 

Eis o que deve fazer o novo homem, eis como deve conceber a vida. Colocou-nos Deus os olhos à frente para ir adiante e não para retroceder. O problema é refazer o homem, e a hora soou. Não se pode chegar à renovação da sociedade, já o dissemos, senão através da renovação de cada indivíduo. É inútil gritar que é utopia. Os tempos estão maduros. Para quem não queira renovar-se, há a possibilidade de ser definitivamente eliminado da vida. O novo mundo veloz não pode caminhar na estrada dos velhos métodos e conceitos. Quem compreendeu que a lei da luta e da seleção do mais forte impera na terra, sabe que o choque entre as duas grandes potências que hoje sobraram é inevitável, e que, portanto, não se pode escapar a uma destruição gigantesca. Dada a estrutura psicológica humana atual e os meios bélicos hoje já preparados, é uma fatalidade de que se tenha que concluir desse modo. Isto está implícito no sistema social-político hoje vigente no mundo. Este, então, se encaminha para ter que compreender à força e através da dor, que tem que renovar-se. Então, a humanidade melhorará, porque os piores terão se destruído mutuamente, e a dor terá aberto a inteligência dos sobreviventes. Nada desenvolve tanto a inteligência como a dor. Estamos às portas de grandes transformações. Renovam-se os tempos e já passou a hora da aceitação passiva e da cega repetição por inércia, dos tradicionais conceitos do passado. Quem em primeiro lugar se encaminhar para a renovação, quem souber caminhar mais rapidamente pela novas estradas da vida, este é que estará mais pronto para entrar no novo mundo que nos espera, esse é que terá mais probabilidades de ser salvo, porque ele representará o novo tipo biológico selecionado pela vida, com o qual esta, por lei de evolução, quererá construir a mais adiantada humanidade do porvir.