Problemas Atuais

Consideremos, agora, a teoria da reencarnação sob um ponto de vista que coincide com os precedentes, não obstante sua completa diversidade, e nos dá uma confirmação não só dos particulares, mas sobretudo da verdade de todo o sistema. E essa confirmação chega-nos bem de longe, tanto no tempo como no espaço. Trata-se de uma antiga tradição do Tibet, o Livro Tibetano dos Mortos, Bardo Thödol, traduzido para o inglês pelo lama Kazi Dawa Samdup, que, desse modo, transmitiu ao mundo ocidental parte dos ensinamentos dos grandes mestres da sabedoria budista do Tibet, especialmente  no que diz respeito às experiências “post-mortem”, no período da existência como desencarnados, e ao fenômeno da reencarnação. Relembra-nos ele, o Livro Egípcio dos Mortos e representa um dos elos da grande corrente de homens, religiões e povos, unidos através do tempo e do espaço pela mesma fé na reencarnação. Bastaria o fato inegável de sua difusão no mundo, para constituir uma prova da verdade dessa teoria.

 

É interessante o Livro Tibetano dos Mortos, porque nos mostra, de forma científica, poderíamos dizer, o mecanismo da transmigração, de vez que aí encontram aplicação alguns fatos comprovados pela ciência ocidental. Escolhemos esse livro, entre tantos de sua espécie, porque é o único que trata racionalmente do período de existência entre a morte e o renascimento, baseando-se em dados que têm correspondência no terreno fisiológico e psicológico que a experiência humana pode controlar. E isto está conforme aos ensinos de Buddha: que se não aceite como verdadeira nenhuma doutrina, antes de tê-la experimentado e reconhecido como verdadeira, promanasse ela mesma das Escrituras. Assim, a teoria da reencarnação é-nos apresentada nesse livro como uma lei natural, que se harmoniza com todas as outras leis do ser, e o fenômeno como correspondente à grande lei que constitui o próprio princípio da criação, isto é, a potencialidade criadora do pensamento. Com efeito, nós nos construímos a nós mesmos, com os nossos pensamentos, da mesma forma que Deus, com a simples atividade de Seu pensamento, criou o universo. O pensamento é a fonte primeira de tudo. Resulta daí o Karma, pelo qual, o que livremente se semeou, será fatalmente colhido mais tarde.

 

Estabelecido o princípio do poder determinante do pensamento, o resto se desenvolve logicamente. A existência depois da morte é apenas uma continuação da vida, já não mais em condições físicas, mas em condições psicológicas, como consequência do fenômeno psicológico que se iniciou na vida terrena. Este lado, que na Terra constitui apenas uma parte da vida, em função das atividades físicas, passa então a prevalecer e domina todo o campo do ser. Dá-se, assim, uma inversão: a vida não procede mais do exterior para o interior, como percepção por meio dos sentidos, mas procede do interior para o exterior, como projeção das impressões colhidas, armazenadas e assimiladas, pela repetição, em forma de automatismos. Tudo isso se desenvolve canalizado pela lei de causa e efeito, com correspondências específicas e proporcionadas do efeito para a causa.

 

A existência depois da morte é, pois, uma continuação, no plano psíquico, da vida precedente no plano físico, até o momento em que se retoma um corpo, para continuar o caminho da evolução. A natureza dessa existência de desencarnados é a consequência exata, em alegria e em dor, e em qualidades de representações mentais, da existência material precedente, que por sua vez é consequência de todas as anteriores. E no mundo dos desencarnados a representação mental é tudo. Falando psicologicamente, poderíamos chamar a isso um estado de sonho prolongado, cheio de visões vivíssimas, decorrentes diretamente do conteúdo mental do indivíduo que as percebe.

 

Não esqueçamos que o ser decaiu no relativo, e vive na grande Mayâ, ou ilusão, isto é, no irreal, quer esteja encarnado ou desencarnado, dado que o real só pode alcançar-se no fim do caminho evolutivo, quando forem reencontrados a perfeição e o absoluto. Nossas percepções, que chamamos luz, som, calor, tato, olfato etc., são sensações exclusivas da única parte de nosso ser que possui capacidade sensitiva, isto é, do espírito. Objetivamente, de per si, eles não existem, mas unicamente em função dessa capacidade sensitiva apta a percebê-las. Tirai esta e existirão apenas vibrações com determinada frequência e comprimento de onda. Os sentidos são simplesmente meios de transmissão dessas vibrações, que, recebidas, selecionadas e coordenadas nos centros nervosos, são aí percebidas, lidas e registradas, pela central única, que é o espírito, e nele somente é que se tornam luz, som, calor etc., como as chamamos. Esse estado de ilusão é proporcional ao grau de involução do espírito, que corresponde ao grau de materialidade de sua existência, ou seja, inconsciência, ignorância, profunda imersão no irreal. Quanto mais involuído for o espírito, tanto mais adormecido está ele. Mas pode ser desfeita a grande Mayâ  com o evolver, desmaterializando a própria forma de vida, aprendendo a cada vez mais perceber de maneira extra-sensória. Nesse caso, também a vida de além-túmulo se torna mais clara; surge e cada dia mais se firma uma capacidade de orientação e de escolha, na grande corrente dos renascimentos, o espírito sempre mais se aproxima da visão do real e se torna cada vez mais senhor de seu destino.

 

No fundo do ser há esse núcleo central, o ego, centelha divina, que a queda não pôde destruir e, que permanece como um conjunto de potencialidades latentes, comprimidas, adormecidas mas ansiosas para se tornarem ativas, para expandir-se, despertando. Nesse ego, apesar de tudo, Deus permaneceu como centelha animadora. Dele, aí à espera de infinitos desenvolvimentos, nasce o impulso íntimo e instintivo da evolução, que forma, desse modo, o movimento ascensional de todos os seres do universo. Nesse fenômeno da evolução enxerta-se, como necessidade absoluta, o fenômeno da reencarnação, sem o qual não seria possível a reconstrução do Eu. Desse modo, a vida única, pulsando do seu lado material para o seu lado espiritual – dois aspectos inversos e complementares, sem os quais seria incompleto o fenômeno – vai vivendo momentos diferentes, em que prossegue o desenvolvimento das mesmas forças em evolução. No fim de cada ciclo, a alma deposita nos braços do ciclo seguinte, os resultados alcançados, e crava no caminho da evolução o marco de seu percurso. Tudo funciona obedecendo a uma lei de harmonia. Assim como no estado embrional humano, o feto passa por todas as formas de estrutura orgânica, desde a ameba até o homem, da mesma forma, no estado posterior à morte deve a alma retomar, tanto mais conscientemente quanto mais for evoluída, todas as experiências vividas em suas existências passadas, para a elas acrescentar os resultados da última. Na Terra a ciência vê apenas um lado da existência, a metade somente do fenômeno vida. Nosso mundo físico e biológico deve ser completado com o mundo espiritual, que lhe forma o substrato e do qual fornece a explicação, e se isso não for feito, nada se compreenderá.

 

Se em torno de nós olhamos, vemos que tudo é vivo, que tudo é construído pela vida, é regido por esse princípio espiritual que impulsiona tudo a caminhar no sentido evolutivo. Evolução que se revela na forma, apenas num segundo tempo e como consequência, antes de tudo, está no espírito. Quer isto dizer que tudo o que existe, do mineral ao gênio, evolve, alcançando um grau cada vez maior de iluminação. E isto quer dizer despertar de consciência, começando pela capacidade de sentir e reagir, que representa o primeiro e mais rudimentar acordar da alma. Este é o caminho do ego ou centelha divina, alma de toda individuação existente, para remontar às origens.

 

Tudo isso, entretanto, não acontece ao acaso, ou desordenadamente. Todo ser está aderente à sua forma, que é sua expressão, de acordo com o grau que atingiu. Nos planos mais elevados cada indivíduo está ligado ao seu tipo biológico, nele está encerrado e não lhe são permitidas improvisações de qualquer espécie. Todavia, as portas não estão fechadas. A Lei impõe apenas um princípio regulador, que garante a estabilidade da forma e dos tipos, pois sem isto a vida se tornaria um caos. Pode-se sair do recinto fechado que o ser formou para si, e que manifesta o caminho percorrido. A estabilidade lhe garante que esse resultado, conquistado por ele, é seu e, se lhe permite sair, só o faz em continuação, ao longo da linha causa-efeito, lentamente, pelo caminho da transformação evolutiva, de acordo com o conhecido método do registro das experiências e da sua assimilação e transformação em qualidades, por meio dos automatismos.

 

É assim que o biótipo humano, como alma, é espiritualmente o produto hereditário direto dos reinos subumanos. O biótipo que constitui o elo biológico de junção entre uma forma orgânica inferior e a superior – tão procurado pela escola darwiniana e por seus sucessores para demonstrar a teoria da evolução em bases puramente materialistas – é representado antes de tudo por um tipo, que é definido por particularidades psíquicas próprias, ou seja, de desenvolvimento espiritual. A essência da evolução é dessa natureza, sendo a transformação orgânica sua última consequência. É o espírito que forma suas próprias qualidades, que ele depois exterioriza nos órgãos físicos de seu corpo. A continuidade da evolução existe, e deve existir, primeiramente, no lado do desenvolvimento do eu, ainda que isso não apareça externamente, porque suas formas, que aparecem com interrupções, o exprimem apenas de modo descontínuo. É preciso compreender o que Darwin e seus seguidores materialistas não compreenderam e não podiam compreender, isto é, que a evolução é guiada por um fluxo vital e que sua substância é espiritual. A chave do fenômeno da evolução está precisamente nos antípodas da fé materialista, sobre a qual eles se basearam. No centro do fenômeno da evolução está a expansão progressiva do princípio divino aninhado nas profundezas do eu e capaz de desenvolvimentos infinitos. Darwin e seus seguidores não podiam compreender tudo isso. No centro da evolução, existe esse princípio espiritual, capaz de aprender através dos choques da luta pela vida, pois, se assim não fora, esse grande esforço não teria sentido, nem finalidade. O ambiente martela desapiedadamente a bigorna, a fim de despertar uma alma capaz de atingir desse modo a iluminação. O alvo da evolução é algo que Darwin e sua escola não podiam perceber, ou seja, o desenvolvimento espiritual, que é o despertar da consciência até reencontrar Deus.

 

Nada se pode efetivamente compreender do fenômeno da evolução, se não se percebe a semente psíquica que é a causa de toda forma. É essa semente que forma ao seu redor o seu próprio corpo, com os materiais do ambiente. Por isso, só é capaz de produzir um organismo correspondente à sua própria natureza. É assim que o princípio psíquico involuidíssimo do mineral (tão involuído que muitos o negam) não poderá produzir seres mais evolvidos do que os cristais, capazes somente de orientar suas moléculas em formas geométricas. E assim, gradativamente subindo até o homem, nenhum indivíduo pode formar para si uma veste corpórea que seja mais do que ele mesmo. E chegamos assim à reencarnação, que não diz respeito somente ao homem, mas, nesse amplíssimo sentido, a todo ser vivente. Assim, pois, cada ser humano não poderá nascer se não num corpo adequado ao desenvolvimento psíquico do espírito animador. Não poderá nascer num corpo de animal ou vice-versa. Imitir o princípio espiritual de um ser humano na forma física de um animal, de um inseto, seria como querer que o oceano entrasse num rio. Todavia há uma possibilidade teórica de que isto se venha a dar, quando, por involução um oceano se evaporasse até tornar-se um rio. Verifica-se, nesse caso, o processo inverso da evolução, isto é, em lugar do desenvolvimento de consciência, a sua redução e adormecimento. Então as qualidades mais elevadas anteriormente adquiridas, atrofiam-se por falta de exercício, como acontece para o órgão corpóreo que não seja mais utilizado.

 

Neste caso toda reencarnação origina não um desenvolvimento, mas uma perda de consciência, de sensibilidade, de inteligência, isto é, uma descida sempre maior para a inconsciência. Em outros termos, o ser é expulso, cada vez mais, do divino consciente universal que tudo rege, em lugar de ser sempre mais acolhido nele para conhecer e colaborar como obreiro de Deus, como acontece a quem evolve.

 

Tais transformações, em geral, têm lugar somente nos limites de regressos relativos e temporários, seguidos, antes ou depois, por recuperações salutares. Elas tornam-se possíveis pelo fato que existem evidentes semelhanças entre biótipos mais ou menos evoluídos, dado que os planos inferiores contêm os primeiros princípios, os mais elementares, dos planos superiores. É assim que, nós mesmos, atribuímos a animais qualidades humanas, como a fidelidade ao cão, a imundície ao porco, a operosidade à formiga ou à abelha, a traição à cobra venenosa, o assassínio ao tigre, a astúcia à raposa, o instinto do furto e da imitação ao macaco, a miséria vil ao verme, a ligeireza e a graça à borboleta, a força ao boi, a coragem ao leão etc. Todos reconhecem nos animais sentimentos humanos de amor, ódio, vingança, inveja, ciúme, inteligência, estupidez etc. Evoluindo, esses rudimentos de consciência desenvolver-se-ão no homem, mas se este envolve, poderia reduzir-se, da riqueza de seus sentimentos, àqueles rudimentos. Desse modo, involvendo, o assassino poderia chegar a reencarnar-se num animal feroz, o sensual e guloso no suíno etc. Mas isto é demasiado difícil, dado que haveria necessidade de períodos extremamente longos de retrocessos, insistindo num mal que constitui dor também para o sujeito que o pratica, dor de que ele mesmo, instintivamente, procura libertar-se. Períodos longuíssimos de milhares de encarnações são precisos para que se possam verificar essas transformações biológicas, seja em sentido involutivo como no evolutivo, neste segundo caso para desenvolver a consciência subumana latente, na consciência desenvolvida do homem.

 

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As operações da natureza são dirigidas por leis de proporção e harmonia e, por traz da biologia das formas orgânicas, há uma outra biologia de que tudo depende e sem a qual aquelas operações não são compreensíveis. Nenhuma forma aparece por acaso, mas é o resultado de longos processos de amadurecimento de fenômenos espirituais. O gênio e o santo representam o produto destilado de quem sabe quantos milhares de encarnações. Por certo, a evolução é uma força que impele para a frente; é a lei fundamental da vida, mas, como agora temos observado, não se pode excluir a possibilidade teórica do processo inverso, isto é, da involução, porque o homem não é um autômato amarrado à evolução. Antes, a liberdade, é a lei fundamental e inviolável do seu ser. É esta sua liberdade que nos impõe a admissão da possibilidade de que o homem dela faça o uso que melhor entender, também, pois, para retroceder. Se o homem não pudesse também envolver, não seria mais livre. Na prática, entretanto, haverá corretivos que tornarão apenas teórica esta possibilidade de autodestruição por involução. Mas nunca poderemos admitir que a lei seja um sistema escravizante que reduza o ser a um autômato e, portanto, irresponsável.

 

Permanece, pois, livre e pode sempre retroceder. Esse princípio de liberdade não pode permitir a exclusão de uma vontade contínua e tenaz de regresso. Que acontecerá, então? É lógico que se, no Sistema, permanecesse, definitivamente, um simples átomo de mal, o plano de Deus resultaria falido. Não é, pois, concebível que seja deixada à liberdade da criatura a possibilidade de vencer definitivamente contra Deus, arruinando Sua obra. Impõe-se, por isso, a destruição final do mal e, pois, do ser que o personifica. Isto porque junto da lei da liberdade, há aquela que exige, quando o mal queira impor-se definitivamente, sem nunca converter-se no bem que é a lei do sistema, que seja eliminado por aniquilamento.

 

Já desenvolvemos esse tema no volume Deus e Universo, nos caps. 7 e 10. Aqui resumimos e precisamos alguns particulares.

 

Como, pois, se combinam estas duas exigências opostas: a que garante a liberdade do ser e a que exige a destruição final do mal para salvaguardar a incolumidade do sistema? Quais são os corretivos que tornarão somente teórica esta possibilidade de destruição do rebelde? Como pode dar-se tudo isto, que é mesmo necessário para salvar o sistema, e isto sem violação do princípio da liberdade?

 

Todo ser, embora decaído, permanece sempre uma criatura de Deus, em cujo fundo sempre está acesa a Sua divina centelha animadora, cuja natureza é positiva, não negativa, consistente no existir e não no destruir. Por isto não pode, por sua própria natureza, deixar de reagir e rebelar-se contra seu próprio aniquilamento, dado que o princípio fundamental que o rege é o do “eu sou”, a afirmação primeira pela qual Deus “é”. A revolta, a inversão ao negativo pelos caminhos do mal, nunca poderá anular este princípio fundamental do egocentrismo. Eis, pois, inserido no âmago do ser um freio automático à própria liberdade, que a limita a uma possibilidade teórica, porque, quando se trata de ir contra o próprio interesse egoístico, ainda que seja possível a liberdade de fazê-lo, ninguém o quererá fazer. Eis o impulso que corrige a direção errada que a liberdade pode tomar pelas vias do mal; eis o que torna em simples possibilidade teórica, o aniquilamento final do rebelde, possibilidade que, na prática, desse modo, vem a ser irrealizável; eis o que, em todo caso, salva o ser rebelde da anulação final, qualquer seja a sua livre vontade.

 

Há, também, um outro freio ou limitação à liberdade do ser, para estancar o progresso nas vias do mal e impedir-lhe a loucura do suicídio por aniquilação. A liberdade do ser não é tão grande que lhe permita alcançar o ponto em que, sobrevivendo exclusivamente como mal, o Sistema tornar-se-ia poluído e, em que, para eliminar a poluição do Sistema o ser viria a auto eliminar-se. A liberdade é uma qualidade de Deus e do ser não decaído, qualidade do espírito que, através da involução, se inverte cada vez mais no determinismo da matéria. Disto decorre que, quanto mais se insistir na vontade do mal, tanto mais evolui-se e perde-se a liberdade e, com isto, a capacidade de efetivar o mal. Então a vontade mal dirigida paralisa-se e, desse modo, automaticamente, o ser encontra-se impedido de prosseguir, tanto mais, quanto se adiantara no caminho do mal e, portanto, de seu próprio aniquilamento. A liberdade é uma realidade fundamental e inalienável do ser, que a recebeu íntegra, como divina qualidade a que tinha direito como filho de Deus. Mas, com a sua revolta e consequente queda, esta qualidade toldou-se na derrocada, o que vem significar a sua tendência a deslocar-se para sua inversão ao negativo, isto é, para o determinismo. Com a evolução, o ser, elevando-se novamente, reconquista sempre mais a sua liberdade originária. Mas, eis que, quem envolve, cada vez mais a perde e com isto perde a possibilidade de praticar o mal e, portanto, de progredir para seu aniquilamento. Com a involução verifica-se uma espécie de congelamento daquela liberdade no determinismo, que se torna sempre mais rígido quanto mais se descer para os planos inferiores. Então uma outra vontade, a da Lei, substitui-se à sua, porque determinismo quer dizer vontade da Lei. Assim é que o ser é retomado pela Lei, como um destroço incapaz de se dirigir e entregue à corrente, agora dominante em sentido evolutivo, porque agora, a Lei é a evolução, por reação que completa, compensa e reequilibra o processo involutivo precedente. O ser, desse modo, é reconduzido à tona, contra sua própria vontade de mal e de autodestruição.

 

Estes corretivos da liberdade do ser, agindo cada vez mais energicamente, quanto mais ele a utiliza em seu próprio dano e em sentido destrutivo, querendo envolver-se no erro e no mal, tais corretivos acabam por endireitar o caminho do ser na direção evolutiva, isto é, na de construção e salvação. É assim que a Lei, mesmo respeitando a liberdade fundamental do ser, resulta construída tão sabiamente que contém em si os meios automáticos adequados à frear essa liberdade, quando dela se faça mau uso.

 

Assim é que essa Lei chega a impedir aquela auto-destruição, que de outro modo seria necessária pelo fato de que o mal não pode, absolutamente, vencer em forma definitiva, seja mesmo infinitesimal, mas somente pode prevalecer transitoriamente e servindo aos fins do bem. Permanecem, desse modo, satisfeitas as duas exigências opostas: a da absoluta eliminação do mal, como a outra do princípio de liberdade, que não é negado. Assim é que podemos concluir que a possibilidade do aniquilamento do rebelde, contra a Lei, permanece apenas como possibilidade teórica.

 

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Após esta digressão explicativa, útil para uma melhor compreensão do argumento de que estamos tratando, voltemos a examinar o Livro Tibetano dos Mortos. Confirma-nos ele uma ideia aceita pelo Ocidente, ou seja, que o subconsciente mantém em reserva, em estado de latência, a memória de todo o passado biológico do indivíduo e da espécie. Aqui porém, à memória biológica ancestral, que reproduz no plano orgânico as qualidades adquiridas pela raça em suas longas experiências, acrescenta-se uma memória pessoal, que reproduz no plano psíquico as qualidades adquiridas pelo indivíduo, nas experiências de suas múltiplas vidas. O nosso passado foi duro e bestial e, no subconsciente, como nos ensina a psicanálise, estão inscritos tanto o terror da luta, como os instintos mais primitivos e ferozes. Nosso passado recente é a tenebrosa Idade Média, de que somente agora estamos emergindo. Consiste o progresso em nos libertarmos desse amargo lastro psicológico, que ainda persiste em nós; em libertar-nos todos daquelas terrificantes formas de pensamento que oprimiram a humanidade durante séculos, como a perseguição ao próximo em nome da virtude e as vinganças de Deus com as torturas do inferno; em libertar-nos todos das formas de pensamento de agressividade e ferocidade em que a humanidade viveu até hoje, construindo uma ética falseada por ilusões psicológicas, constituídas, por vezes, de desabafos sádicos ou aceitações masoquistas, que nada têm a ver com a verdadeira moral.

 

A parte psicológica, correspondente a conceitos modernos, tem função preponderante naquele Livro Tibetano dos Mortos, em relação à vida depois da morte. A vida do desencarnado, diz este livro, é totalmente produzida pelo conteúdo mental do próprio indivíduo que a percebe. Assim um muçulmano verá o paraíso de Maomé, um indiano verá seu nirvana, o cristão o seu céu de anjos e santos, o materialista, depois da morte, terá somente visões negativas, vazias, tal como imaginava quando vivo. Essas visões mudam de acordo com a erupção das formas-pensamento fixadas no indivíduo que agora as percebe. Isto até que sua força cármica condutora se não haja exaurido por si mesma. Trata-se de formas-pensamento ou criações mentais que, no estado de desencarnado, sem corpo material, adquirem, num ambiente imponderável, a consistência do real, qual nos aparece em nosso mundo sensório, em vida. Essas formas-pensamento são constituídas de matéria sutil, que representa a primeira fase na criação da matéria, a que diretamente deriva do pensamento, que sobre ela tem poder genético e modelador. Assim, essas formas-pensamento derivam diretamente do pensamento, isto é, dos pensamentos que cultivamos ou que nos dominaram em vida, ou seja, de nossa atitude espiritual dominante e habitual, de que derivaram também as atividades mais repetidas, geradoras por isso daqueles automatismos com que se fixam as tendências e instintos futuros. Assim, afirma o livro citado, no estado de desencarnados vivemos no ambiente que nós mesmos formamos com os nossos pensamentos durante a vida. Esgotado o impulso que nós mesmos lhe imprimimos, termina a representação ou projeção e o estado de desencarnado. O espírito sente-se então atraído a dirigir-se para o mundo dos vivos, para nele recomeçar suas experiências.

 

Esta é a doutrina do Livro Tibetano dos Mortos. Quer ele avisar-nos que, no estado de desencarnado, essas visões não são realidade, mas apenas reflexos das próprias formas-pensamento. Os pensamentos são como germens concretos, sementes que podem ser plantadas no terreno de nossa consciência. Se encontram terreno favorável, isto é, afim, de modo a poder sintonizar com ele, lançam raízes, sejam eles bons ou maus, crescem e formam a personalidade, ou natureza espiritual de um homem, da qual, mais tarde, dependerá seu destino e também sua forma física, especialmente a da face. Nessas sementes, imprimem-se os pensamentos dominantes na vida de um homem. Quando olhamos a face de um semelhante nosso, através das formas materiais, vislumbramos sua alma. Esta é que nos interessa acima de tudo, porque ela é tudo. Caso eliminada seja, nós nos distanciamos com repugnância do cadáver, que é somente o despojo morto, sem qualquer valor ulterior. Essa alma que procuramos no rosto alheio é um corpo sutil, uma espécie de organismo dinâmico de determinadas vibrações de natureza específica, cujo conjunto define aquele feixe de formas-pensamento e tendências, que se chama personalidade. Essas formas-pensamento são inseparáveis da alma, representam sua própria natureza, de modo que seguirão o indivíduo em qualquer lugar em que ele se encontre. São forças ativas, cujo movimento fatal não pode ser detido, e que têm que desenvolver-se deterministicamente até o fim, de acordo com a lei cármica de causa e efeito.

 

No estado de desencarnado, o homem encontra-se no mundo dos efeitos, cujas causas foram semeadas na vida por meio de seus pensamentos dominantes e de suas obras. Por isso, paraíso e inferno são estados mentais de alegria ou dor, criados por nós mesmos, existentes cada um na forma por ele próprio gerada, e inexistentes fora de sua mente. São estados ou condições completamente espirituais daquela alma que, tendo perdido os meios sensórios para sentir, permanece sempre o centro de toda a capacidade sensitiva, especialmente agora que está livre do corpo. A crença difundida em todo o mundo, em estado de alegria ou sofrimento depois da morte e isto dependendo da boa ou má conduta precedente do indivíduo, crença que reconhecemos em tantos povos, nos mais diversos lugares e, pode-se dizê-lo, em todos os tempos, demonstra que nos encontramos em face de um fenômeno que não pode ser produto de um só pensador ou de determinada filosofia ou religião, mas que é parte da realidade biológica universal, verdadeira para todos, em todos os tempos. Há conceitos instintivos, comuns a toda a humanidade, como os conceitos de bem e mal, de virtude e vício, de punições pelos atos praticados, que se revelam inerentes à própria natureza humana e que fazem parte de uma ética biológica universal, de que também os animais superiores mais inteligentes, e que de mais perto convivem com o homem, chegam por vezes a participar. Foi assim que pôde nascer, nos lugares e tempos mais remotos, a mesma ideia de inferno e paraíso, ainda que repleta das mais diversas imagens mentais, sugeridas pelo próprio ambiente terrestre particular. Mas o fato de que, em tão diferentes representações, da hindu à maometana, à cristã etc., reencontramos um fundo idêntico e comum, nos assegura que não nos achamos em face do produto particular de uma religião, mas como já o dissemos, diante de um produto biológico universal, que se baseia em fenômenos positivos da vida, independentes de qualquer religião, tanto que todas as religiões, por mais diversas, o repetem, igualmente. Dos egípcios aos cristãos há um julgamento posterior à morte, com as respectivas consequências. Tudo isso não é somente problema religioso. Quando o homem houver aprofundado as ciências biológicas e psicológicas, chegando a compreender a biologia também como fenômeno espiritual, então poderá reconhecer cientificamente a verdade objetiva desses estados espirituais, depois da morte, que se chama inferno e paraíso. Existência objetiva mas só como estado mental exclusivamente pessoal, em íntima relação com a existência terrena precedente e com seu tipo de pensamentos e atividades dominantes.

 

Depois da morte, o que o indivíduo pensou e fez torna-se objetivo. Tudo o que ele viveu, volta a ele na forma de reflexos cármicos. As formas-pensamento visualizadas em sua consciência, que ele deixou enraizar-se, crescer e expandir-se, vivem agora diante dele, tomando forma concreta naquele ambiente mais sutil, em que isto se torna possível. De fato, a tendência de todo pensamento é de atingir a sua manifestação. E isto, repetindo o motivo fundamental da criação, do primeiro ato genético operado por Deus, do qual desceu a construção do universo físico. Aquele é o primeiro grande modelo; esta é a repetição. E o universo funciona através de modelos únicos e de sua repetição em todas as dimensões e graus da evolução. Assim, a vida, encontrado um caminho, tende a passar por ele infinitas vezes, até que encontre uma estrada melhor. Quando a ciência psicológica estiver mais evoluída, esses fenômenos mentais tornar-se-ão claramente compreensíveis, e compreender-se-á como nossos impulsos mentais, em vida, possam, depois, personificar-se em formas, no estado de depois da morte.

 

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Neste ponto ingressamos na parte que mais interessa à teoria da reencarnação. Chega o momento em que o impulso das forças, postas em movimento na vida, se esgota, cessando seus efeitos de alegria ou dor, segundo sua natureza boa ou má. Desperta então o ser, alcançando a compreensão de seu novo estado, isto é, do fato de ter morrido e de encontrar-se sem corpo físico. Então, diz o Livro Tibetano dos Mortos, o ser ingressa no estado transitório da procura do renascimento, fenômeno do qual aquele livro oferece as diretrizes, ensinando as modalidades do processo para reencarnar-se bem. Alcançando a certeza de encontrar-se sem corpo, por ter este morrido, nasce então na alma o desejo de formar novo corpo para si. Procura então o lugar onde reencarnar, para recomeçar uma nova vida.

 

Por que acontece isto? Porque a vida é contínua e não pode parar. Há, entre uma vida e outra, um elo de conexão causal, pelo qual, as causas devem extinguir-se em seus efeitos, e o que foi iniciado num ciclo tem que cumprir-se no seguinte. O impulso irrefreável da vida não pode parar, e forçosamente tem que seguir adiante nessa linha, que lhe foi determinada pela Lei. A vida não pode parar, e deve continuar seu caminho ao longo da trilha cármica. Mas, por que o espírito deve tender a reencarnar-se, isto é, a descer na matéria, nela construindo para si uma forma física? Há um conceito profundo na base dessa necessidade, que não é apenas a tendência que todo pensamento tem, como já vimos, de atingir a sua manifestação, como repetição do motivo fundamental da criação. Já explicamos, no volume Deus e Universo, como o universo físico, que nos circunda, é, não a verdadeira criação de Deus, porque sua criação foi espiritual, mas uma queda, uma descida dela na matéria, como consequência de uma revolta da criatura contra o Criador.

 

Há, pois, também este outro motivo fundamental, como base da gênese do universo físico, o motivo da queda na forma material. Ora, pelo mesmo princípio acima exposto, de que o universo funciona por modelos únicos, e por sua repetição, aquele motivo fundamental, uma vez firmado, tende a repetir-se ao infinito. Por isso, uma vez gravados em si mesma os resultados da vida física, repassando numa visão depois da morte todo o caminho percorrido e estabelecendo desse modo até que ponto da escala evolutiva haja chegado, pelo trabalho da vida, a alma só pode continuar seu caminho, se levar, de novo, aqueles resultados, ao cadinho das lutas da vida física, a fim de novamente elaborá-los, levando-os mais adiante. É por isso que a evolução não pode dar-se de forma ascendente contínua e retilínea, mas unicamente de acordo com o primeiro modelo da queda, isto é, por um caminho interrompido por contínuos retornos ou descidas na matéria, a fim de nela completar um novo trecho de subida, consequência das etapas precedentes. O motivo original da queda faz com que o ser não se possa adiantar senão através do retrocesso de um passo, a cada dois passos à frente. Com efeito, é esse o andamento da trajetória típica dos motos fenomênicos, exposta no começo de A Grande Síntese, trajetória da qual, só assim, podemos explicar essa forma de desenvolvimento. Com a queda, o ser estabeleceu essa lei, e é ela que o impede a retroceder a cada impulso, ao longo do caminho do espírito, que é caminho de libertação e felicidade, recaindo numa nova vida na estrada da matéria, que é o caminho da escravidão e da dor.

 

Por isso o espírito está jungido à roda cármica de suas sucessivas reencarnações, necessárias para completar a evolução e reconquistar o paraíso perdido. Depois de havermos compreendido por que a evolução teve que tomar esse ritmo de impulsos interrompidos por continuadas quedas, procuremos agora compreender quais sejam os princípios que presidem ao fenômeno de escolha do renascimento. Como tudo em nossa vida é um jogo de atrações e repulsões, assim ocorre neste caso, que relembra a escolha sexual. Dizer o que liga uma vida à outra é o anel da conexão causal, significa mais precisamente, que a escolha das formas do renascimento é guiada por uma predileção cármica instintiva, que constitui automaticamente o impulso determinante. Cada ser humano possui afinidades com determinados biótipos e ambientes terrestres, acha-se em sintonia com os mesmos e por eles sente atração e afeição, o que para ele constitui uma chamada irresistível. Com aqueles determinados biótipos e naqueles determinados ambientes, esse ser humano reencontra seus velhos hábitos da vida precedente, sua expansão, suas satisfações, suas ligações de ódio e de amor. Se não for um ser superior, ele permanece apegado a todas estas coisas da Terra, e esse apego o prende, é poderosa força que, mesmo sem que ele o perceba, o atrai, como acontece com a atração sexual. Há semelhança, entre esta e a predileção cármica do renascimento. Os dois fenômenos são tão conexos um ao outro, que parecem um único fenômeno, do qual representam apenas dois momentos sucessivos. Para a grande maioria ignara, tudo isso acontece por instinto, por obediência mecânica às leis de atração e repulsão. Para os seres mais evolvidos, a escolha é livre, consciente, executada em virtude de realizações complexas, em função da organização do universo e do progresso da humanidade, como atividade voluntária para a execução de determinadas obras e de destinos especiais. Mas isto, para nós, constitui a exceção.

 

Da mesma forma que todos chegam à escolha sexual por instinto, sem saber o porquê de certas preferências, ainda que razões profundas existam, assim também quase todos chegam à escolha da reencarnação por instinto, sem saber o motivo, embora existam razões específicas para isso. Não é por acaso que um espírito nasce aqui ou ali; a sabedoria da Lei guia tudo harmonicamente e, por meio dos instintos, sabe conduzir o indivíduo para onde deve ir, aonde a sua ignorância não lhe permitiria chegar. Há equilíbrios de forças que determinam o tempo, a raça, o país, a família, a mulher e, com isto, o ambiente em que o indivíduo deve nascer. Antes de mais nada, tudo isso obedece à natureza do biótipo espiritual, que deve encontrar o terreno apropriado para nele colher os materiais a fim de construir uma forma adequada no plano físico. As atrações e repulsões são forças que constituem liames invisíveis, que mantém coesos os mais distantes elementos constitutivos do universo. Tudo se movimenta ao longo desses fios, que formam uma rede que intimamente une tudo a Tudo. Há trilhos invisíveis, de natureza dinâmica e psíquica, que guiam o caminho das almas para determinados pontos, de preferência a outros. O que as impele a seguir esse trilho é, como na vida, o instinto, o desejo. Essas ansiedades representam o ímã que atrai os seres para certos ambientes. Nascem de um estado de afinidade, de co-vibração, dando lugar a atos inconscientes, instintivos. Mas as maiores atividades da vida, sabemo-las, não são confiadas à sabedoria humana, demasiadamente fraca e pequena, para que se lhe possa confiar algo de importância. Mais do que à consciência do indivíduo, são elas confiadas à sabedoria das leis da vida, a uma maior consciência universal que, sabendo tudo, tudo dirige.

 

 

E, assim, está automaticamente pronto o impulso que conduzirá cada alma inconsciente para o ambiente em que se vai reencontrar a si mesma, e, portanto, também, lá mesmo, as consequências de suas ações no passado. Está assegurada, dessa forma, a continuidade e sucessão lógica das experiências na evolução, tudo harmonicamente, sem interrupções. Assegurada fica, assim, no mecanismo da transmigração, a conexão causal cármica. É desse modo que as almas, inconscientes do grande fenômeno que estão vivendo, vão sendo arrastadas, tudo ignorando – da mesma forma que os elementos componentes do átomo – ao longo das trajetórias da vida, impelidas por essas forças, ora aquém, ora além do limite que separa os dois mundos da vida e da morte, atraídas pelo desejo, obedecendo a leis que não conhecem. Em fileiras, empurradas pelo divino impulso da vida, perseguidas pela dor para apressar o passo da evolução, de ilusão em ilusão, vão indo, errando cegamente e construindo destinos e provas, tudo para aprender. Em fileiras imensas, em massas de humanidades, em falanges cósmicas, de mundo para mundo, vão sofrendo, lutando, aprendendo. Turbilhão tão grande quanto a nuvem da poeira cósmica estelar, até as mais longínquas galáxias, este universo espiritual – em equilíbrio com o universo físico – universo imponderável que a ciência ainda não conhece. E tudo, num harmônico sentido evolutivo, ascende para Deus.

 

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O conceito central, que guia o Livro Tibetano dos Mortos, é o de alcançar a iluminação, única condição que pode permitir ao ser escapar à corrente das mortes e dos renascimentos. Em termos ocidentais, a iluminação é a consciência, e tudo isso quer dizer que a referida corrente não pode ser quebrada, senão alcançando o termo da evolução, isto é, com a subida até Deus, no fim do ciclo. Evidentemente, não estão desenvolvidos naquele volume os conceitos que aqui especificamos, para tornar compreensível seu difícil texto. Mas nele estão presentes, embora escondidos e latentes, fazendo parte de sua filosofia. Ingressamos, agora, aqui, no tema específico do texto tibetano que, acima de tudo, se refere à arte de escolher uma nova reencarnação.

 

Não podemos aceitar a concepção negativa dessa filosofia tibetana, que afirma estar a causa de todos os males no desejo e na sede de sensações, e que diz estar a salvação na supressão de tudo isso, pois é isso que nos amarra às rodas das reencarnações; no entanto, interessa-nos esse livro, porque esclarece diversas particularidades do fenômeno da reencarnação, que estamos estudando, e confirma algumas das asserções feitas em outros volumes da presente Obra. O nosso conceito do significado da reencarnação é diferente. A salvação não consiste em saber escapar-lhe, nem na consequente evasão da vida, mas consiste em saber utilizar tudo isso para evolver, porque a salvação reside apenas em saber remontar o caminho da descida. Concepção ocidental positiva e dinâmica, não perdida no vazio das abstrações para escapar ao irreal, mas apaixonada e criadora também em nosso mundo, que deve ser corrigido e melhorado, e não renegado aprioristicamente, sem remédio. Assim, o mundo moderno pode, com a concepção cristã do amor, completar a concepção budista, menos completa, a da supressão do desejo. Para nós a reencarnação não é apenas uma condenação, mas sobretudo é um meio de redenção, através das provas da vida. A dor não é um castigo, mas um meio de salvação, como no-lo ensinou o Cristo com sua paixão. A finalidade última da vida não é alcançar um nirvana, cuja realidade consista no aniquilamento de todos os recursos do eu, cuja alegria provenha de um repouso contemplativo e de uma felicidade negativa, representada unicamente pela exclusão da dor. Não! Não queremos, nós, do mundo cristão, apenas a paz obtida com a renúncia, retraindo-nos da vida num supremo vácuo da alma destacada de tudo; queremos, isto sim, a felicidade conseguida com um trabalho produtivo de bem, seja na Terra como no céu, afirmando-nos na vida, na suprema plenitude da alma que se enriqueceu com tudo ao reencontrar Deus. O fenômeno doloroso da morte e do renascimento não é vencido, se desaparecermos pela fuga do caminho da evolução, mas se caminharmos para a frente, pois sabemos que o desenvolvimento da consciência, pouco a pouco e automaticamente sutiliza, até anulá-las com a espiritualização, essas formas de vida despedaçadas, próprias do plano da matéria.

 

Falando dos métodos que são aconselháveis ao espírito, para evitar o castigo das reencarnações, o Livro Tibetano dos Mortos, a fim de ensinar-nos a arte profunda por meio da qual escaparemos à volta do espírito ao gérmen vital humano, explica verdades que confirmam asserções nossas, sobre este assunto, neste mesmo volume. Possuindo o espírito a visão da união dos seres humanos, enxerta-se neste terreno no momento em que o espermatozoide se une à célula do óvulo materno. Há, pois, ao lado da fecundação fisiológica, outra fecundação espiritual que naquela se enxerta, sem o que a primeira não poderia tomar diretrizes autônomas no seio materno. A união entre dois seres possui, pois, não só uma significação biológica, como também um conteúdo espiritual. Então, não há apenas a felicidade criadora dos dois cônjuges, mas um terceiro ser também, o nascituro, atraído por idêntica paixão de amor, sensibilíssimo como espírito, alcança em sintonia a mesma felicidade criadora, pelo que se precipita de seu estado de consciência, como que perdendo os sentidos, a um estado de inconsciência. Isto porque então se completou o motivo da queda, e a prisão da carne, embora mínima e embrional, já se fechou em redor dele, e para viver só lhe restará o caminho de desenvolvê-la, utilizando-a para a sua manifestação. O espírito, então, penetrou na forma, e esta será sua moradia, de que não poderá sair senão quando completar sua vida. Desde então até à morte, espírito e corpo permanecerão fundidos num composto único. A formação do feto é confiada ao divino consciente da vida, enquanto o inconsciente humano despertará paulatinamente, fundido em sua nova forma, numa consciência que será função daquela. A consciência irá despertando cada vez mais até a idade madura do corpo, quando o eu tiver conseguido tomar posse totalmente e, por seu intermédio, tiver aprendido a manifestar-se em todas as suas potencialidades.

 

Esta perda de consciência, no ato da descida na forma material, é um eco do primeiro motivo da queda, que volta e se repete a cada reencarnação. Recomeça depois a subida, desde a profunda prisão do feto, no seio do corpo, que é meio de expressão; subida lenta para o alto, em que volta a ecoar, retorna e se repete o motivo contrário ao precedente, ou na retomada ascensional. A vida de cada indivíduo, resume assim em pequena escala o fenômeno maior do universo, o da queda dos espíritos puros - rebeldes, na forma material (primeiro semi-ciclo, chamado involução) e o da retomada ascensional para o estado espiritual originário (segundo semi-ciclo, denominado evolução). Desse modo, com o desenvolvimento de cada vida, vamos reencontrando lentamente e com esforço, a consciência de nós mesmos, assim como a massa dos espíritos decaídos vai, com a evolução, lentamente e com esforço, reencontrando a consciência de si mesma e o conhecimento perdido.

 

O Livro Tibetano dos Mortos não explica tudo isso com clareza, com estes termos e referências próprias de nossa psicologia ocidental, mas se exprime com estranha linguagem simbólica, que, sem o sentido da intuição que nos forneça a chave, em muitos pontos permaneceria obscuro. Continuando em seu ponto de vista, de que a salvação esteja em evitar a reencarnação, aconselha ao espírito diversos modos para fechar, como diz o livro, as portas das matrizes, isto é, para impedir a si mesmo a queda no gérmen embrional do feto. Aconselha, assim, uma espécie de castidade ao espírito, com a qual deveria evitar a conjunção carnal com a primeira semente do corpo. Pode tudo isso ter profunda significação, dando-nos a compreensão do fenômeno da castidade voluntária. Certo é que a união normal entre homem e mulher, corresponde às leis da natureza. Mas sabemos, também, que esta natureza é a lei de um mundo que é resultante da queda, é a disciplina do estado de involução. Se o rebelar-se a esta lei da natureza, desviando de suas normas, constitui erro, todavia é possível sobrepor-se a elas, mas isto tão só quando se seguem, em seu lugar, as normas de uma lei superior àquelas leis da natureza, lei indicada pela evolução e situada num plano mais elevado. A união normal é a regra sadia para os seres que precisam de todas as provas e dores inerentes à vida, necessária para evolver. O caminho da ascensão deve passar por esta rota, e, portanto, é bom que a grande maioria por ela se lance, ainda que esta seja a estrada da dor. Além disso existe, sem dúvida, a ilusão da alegria, convidando-os a realização de um ato de que se retrairiam se pudessem calcular suas dolorosas consequências.

 

Quem compreendeu a lógica do sistema não pode estranhar que tudo em nosso mundo, inclusive o prazer do amor tenha que resultar numa ilusão. É natural que, num mundo originado das ruínas da queda, tudo, no fim, se demonstre como traição. Mas é exatamente evoluindo que podemos sair de tudo isso. Então é possível, subindo, ingressar num mundo sempre menos ilusório, uma vez que a ilusão é a herança da queda. Mas, quanto mais nos elevamos, tanto menos estamos jungidos a formas de vida na matéria, e menor é a necessidade da carne, produto da conjunção sexual que é parte daquele mundo inferior e ilusório. E eis que agora desponta uma lei diversa, a da castidade, lei da natureza também esta, mas da natureza de um plano mais elevado. Explica-se, então, como os santos, seres mais evoluídos, fogem da gênese sexual. Eles já emergem do plano oceânico das grandes massas humanas, para o âmago de outra lei de natureza, que não é mais aquela que exige permaneçamos amarrados ao jogo das reencarnações com a união material. Seu amor espiritualizado proporciona outras soluções menos ilusórias, cujo conteúdo mais puro consegue resultados mais espirituais. Quanto mais nos distanciamos do estado involuído, isto é, da matéria e da forma carnal, tanto mais nos distanciamos de suas dores e ilusões.

 

Em vista de tudo isso, compreende-se porque o Livro Tibetano dos Mortos aconselha ao espírito que resista à volúpia de sua conjunção carnal com o primeiro gérmen do corpo. Ou seja, aconselha esta nova espécie de castidade de desencarnados, concebível como paralela à que os santos costumam manter na carne, e que é considerada uma virtude entre os encarnados. Aquele livro, porém, aconselha essa castidade a todos, sem discriminação, ao passo que só é possível e só se adapta ao biótipo do evoluído. Verifica-se, de fato, que não é possível, por exclusiva vontade própria, evadir-se à lei do próprio plano, mas, ao contrário, só é possível sair dele através de amadurecimentos lentíssimos. Os cônjuges, na Terra, como o espírito, no além, obedecem todos a uma lei de atração fatal, que os impele irresistivelmente a seguir o caminho traçado pelos princípios reguladores de seu plano de vida, ou seja: amor material, encarnação, vida, provas e dores, evolução. O livro, de resto, prevê esta inelutabilidade, e no fim limita-se a fornecer conselhos sobre a escolha da matriz, ou seja, de ambiente melhor para reencarnar.

 

Mas aqui cresce outra circunstância. Há outra fatalidade que prende o ser, o seu Carma. O ser é irresistivelmente dominado pelas forças cármicas. Estas o impelem a tomar um corpo, porque foi no terreno físico que ele semeou (com pensamentos e atos), e nesse terreno deve ele agora colher. Essas forças o impelem a encarnar-se em determinado gérmen, porque esse é o ambiente que lhe é afim, o ambiente de suas afinidades, sintonizações e atrações. A capacidade de escolha está em proporção ao desenvolvimento de consciência, qualidade que o biótipo humano comum está longe de ter adquirido. Também neste campo, temo-lo observado, o ser obedece a impulsos instintivos, é manobrado por princípios diretivos, diante dos quais sua mente é cega. As leis da vida comandam o ser ignorante e o canalizam pelos trilhos obrigatórios, conforme suas qualidades. Nossas obras nos seguem, nosso passado sempre ressurge em nós e em torno de nós. É da Lei que esses impulsos causais não podem aquietar-se até sua exaustão no terreno dos efeitos: desencadeamento de forças, boas ou más, de alegria ou de dor, encerradas no campo de forças da esfera do eu. Aquele livro chama, com expressão imaginosa, de fúrias cármicas tormentosas ou tempestades cármicas, o desencadeamento das formas maléficas. Constituindo o nascimento na Terra, em geral, um impulso, para a expiação, pois que a Terra é lugar de provas e de dor, onde se nasce para aprender e pagar, são as forças trevosas que predominam geralmente. É por isso que as fúrias cármicas perseguem o espírito para forçá-lo a ingressar numa matriz, ainda que o espírito veja que esta é das piores, que não promete senão dores. Essas forças cármicas personificam-se em formas-pensamento, quais demônios ferozes, subversão dos elementos, tempestades terrificantes, perseguições e torturas. Amedrontado, o espírito procurará um refúgio, mas a ventania terrível do Carma, irresistível, tudo arrastando, força pelas costas, com golpes insistentes. O espírito, sobrepujado por visões espantosas, que para ele são realidade, procura esconder-se e joga-se no primeiro gérmen que encontra, o pior, o mais merecido, aquele que as inteligentes e justas forças da vida lhe puseram ao alcance. Assim é que aquele espírito toma um corpo miserável de baixeza e, sofrimento. Aquele ser nasce neste mundo, mas ele nasceu no inferno que traz consigo.

 

Também nasceu aí porque, infelizmente, aí estão suas atrações. Para aí o impeliram não só as horríveis fúrias cármicas, mas também seus pensamentos e obras do passado, afins com aquele ambiente, seus hábitos a ele semelhantes, seus desejos que nele quer satisfazer, seus apegos, suas recordações.

 

Para aí o trouxeram não só as forças que continuam a avançar na direção da trajetória já iniciada, não só essa espécie de constrição dinâmica, mas também uma instintiva atração para o ambiente que se lhe assemelha, onde reencontra a si mesmo e pode continuar a realizar-se, reforçando-se em seu tipo biológico, afirmando sempre mais o seu eu, tal qual é. Há, pois, não apenas, o ataque pelas costas, mas atração pela frente. Tudo isso torna a descida naquele pobre gérmen um fato irresistível. Nasce, desse modo, um delinquente, um assassino, nasce no seu inferno interior, expandindo-se em torno de si o inferno na Terra. Essa alma andará, caminhando no tempo, irá semeando o mal e acreditando, com isto, que fere os outros, mas no entanto fere cada vez mais a si mesmo. E cada vez mais sofrerá nesse caminho contrário à senda da lei, que é a evolução. Desenvolvemos alhures o tema do fim do mal, que se torna fatal pelo fato de que, sendo o mal negativo por sua própria natureza, quanto mais vive, mais se aniquila, isto é, pela simples existência de seu modo de ser, automaticamente tende à autodestruição. O mal não pode ser eterno e não pode vencer.

 

Mas, nem todos os Carmas são assim. Há os inumeráveis medíocres, que não fizeram nem grande bem nem grande mal, formando destinos cinzentos e insignificantes, gente sentada à beira da grande estrada da evolução, à espera – pois a eternidade, sem dúvida, é bastante longa – brincando com puerilidades, passivos, satisfeitos com a inércia: são os adormecidos. Os impulsos cármicos não os perseguem ferozes e terrificantes, mas os impelem igualmente, e eles vão, como as gotas da chuva, como as folhas ao vento, como a água dos rios que corre para o mar. Vão, e pousam naquele gérmen que seu Carma e suas atrações querem; tudo por instinto, mecânica e automaticamente, sem o saber. Estas almas caem, assim, na Terra, no seu purgatório, purgatório que trazem consigo, dado pela sua própria natureza, adaptando-se, vegetando, perdendo tempo na preguiça ou dormindo.

 

Há, enfim, os espíritos superiores. Estes, raramente descem a Terra, que não é o seu mundo. Quem não deve pagar ou não tem que aprender, não pode descer à Terra senão para cumprir uma missão de bem para os outros. Então, ele é um mestre que vem para ensinar, e sofre só por amor à humanidade. Com plena consciência, ele escolhe o tempo, o lugar, a matriz em que nascerá na Terra. Sua encarnação é um ato de sacrifício, sua descida na prisão da carne, apropriada a almas pouco evoluídas como as humanas, é sua paixão mais dolorosa. Por ser ele tão adiantado no caminho da evolução, já está desligado da roda da morte e do renascimento. O plano da vida humana já foi por ele vivido, há muito tempo, e constitui passado remoto. Fruto de inumeráveis existências de vida pura e reta, sua mente é iluminada por clara visão da Lei, da qual se torna obreiro ao serviço de Deus.

 

Eis como se desenvolve toda a mecânica da reencarnação. O Livro Tibetano dos Mortos conclui com uma observação assinalável. O melhor sistema para escolher a melhor matriz, é o de tornar-se livres de toda atração ou repulsão, de todo o desejo de tomar ou de evitar. Esse conceito baseia-se numa verdade mais profunda, pelo que pode afirmar-se que o que nos faz errar mais, é o querermos ser astuciosos demais; o que nos induz em maior erro, é o querermos escolher de conformidade com o nosso prazer; o que nos deixa alcançar menos é o querermos obter demais, à força; o que nos limita a menor êxito, é a imposição de nossa vontade errada. O que possui uma coisa qualquer, pode perdê-la e sofrer; mas quem nada possui, nada poderá perder. Quem se agarra a alguma coisa, para não cair, pode cair se largar a presa; mas quem a nada se agarra, nada pode largar, e não pode cair. Tudo isso quer significar que o segredo para a escolha de uma reencarnação, que nos faça, mais tarde, sofrer o me-nos possível, é o desapego de tudo, é o não se deixar a-trair pelos velhos instintos, que nos reconduzem aos antigos ambientes, é o saber desamarrar-se de tudo o que a eles nos prende, para poder entrar em ambientes melhores, ainda que estes não correspondam a nossos gostos do momento. Tudo isso, porque os hábitos mentais adquiridos na vida precedente tendem a perpetuar-se por inércia, propendendo sempre a reconduzir-nos para as mesmas condições de vida. Em outros termos, no momento decisivo da escolha do gérmen, procurar usar o melhor critério de que pudermos dispor, buscando colocar-nos em condições de poder, depois, subir melhor. O segredo está em não se deixar atrair cegamente por uma matriz, escravos do desejo, mas em saber escolhê-la com inteligência, para obter uma encarnação e uma vida, não de simples satisfação, mas de progresso. Quem não procurar começar a aprender a escolher iluminadamente, permanecerá prisioneiro de seus apegos e vítima do desejo, no jogo das ilusões próprias dos planos inferiores. Aprender a escolher, significa pôrse no caminho de nossa consciência da Lei, não mais suportá-la cegamente, como ocorre com os involuídos que tudo ignoram, mas para saber, ao longo dos canais da Lei, dirigir-se inteligentemente para a meta radiosa do bem, do conhecimento, e da felicidade.

 

Assim termina o Bardo Thödou ou Livro Tibetano dos Mortos. Dele tratamos porque, como já o dissemos, ele confirma muitos conceitos aqui afirmados, antes de tomarmos conhecimento desse livro. No presente volume nos demoramos nas mais diversas ramificações particulares dos princípios gerais do Sistema. Mas o adentrarmo-nos na complexidade dos pormenores, confirmou-nos a verdade destes princípios únicos e simples, que tudo regem. Para confirmação deles, quisemos escutar também esta voz que nos chega do longínquo passado e do remotíssimo Tibet.

 

Com isto, encerramos o estudo do tema da reencarnação, desenvolvido nestes três últimos capítulos. Observamos a teoria sob diversos pontos de vista: da lógica, da ciência, da ética, da psicologia, da biologia etc., até delinear a técnica do funcionamento do fenômeno. Cremos, com isto, haver oferecido elementos suficientes para poder considerar a teoria da reencarnação definitivamente provada, e realmente correspondente à realidade dos fatos. Para chegar a esta conclusão, percorremos as estradas mais diversas. Mas o ponto de chegada foi sempre o mesmo: reencarnação.

 

Procuramos, com isto, acima de tudo, alcançar o seguinte resultado: conduzir definitivamente a teoria da reencarnação, do mundo incerto da fé religiosa e do terreno onde sempre se discute sem resolver, para o plano positivo da lógica e da ciência, cujos resultados as religiões não poderão deixar de aceitar. Outro resultado alcançado, não desprezível, cremos tenha sido o de haver provado, com a reencarnação, que o bem e o mal que fizemos, volta, mais tarde, para nós, inelutavelmente, como destino nosso, de que não se pode fugir. Ter demonstrado que os pensamentos e as ações que se dirigem contra os outros, se inscrevem em nós mesmos, e que tudo isso nós o fazemos a nós mesmos, havê-lo provado como verdade positiva, independente de toda religião, como moral biológica universal; não se pode deixar de reconhecer que tudo isso possua importância, seja do ponto de vista individual, como do social. Para o homem racional de hoje, não é mais lícito recusar o que está demonstrado racionalmente. Nada disso podíamos tê-lo dito antes, mas somente o podemos neste momento, em que estamos mais adiantados em nossa Obra, na hora da madureza dos tempos.

 

FIM

Observemos, agora, a teoria da reencarnação sob outros aspectos. Uma das objeções apresentadas em contrário, baseia-se no fato de que nós não nos lembramos das vidas passadas. A objeção é de um simplismo pueril, pois se existíssemos somente daquilo de que nos recordássemos, muito pouco de nós restaria. Se tivéssemos que nos basear na recordação, não teria existido nossa maturação como feto, nosso nascimento, nem os primeiros anos de nossa vida. Da mesma forma, infinitas particularidades cotidianas, por nós vividas, não teriam acontecido, pois que as não recordamos, nem teriam existido nossos tataravós, que não conhecemos. Se só fosse verdadeiro o que está sob o controle direto de nossa consciência, não existiria a assimilação dos alimentos, a circulação do sangue, a atividade da natureza, curadora nas enfermidades e reparadora no sono. Que grande parte de nós mesmos nos escapa, se realiza sem que o saibamos! Acontece, mas as diretivas estão no inconsciente, que não é falta de consciência, mas só uma consciência diferente, interior, subterrânea, que trabalha sem nada dizer à consciência normal, de vigília; uma consciência profunda, que está em contato com as leis da vida e com o pensamento diretivo dela. É essa outra consciência, muito mais vasta que a cerebral, de superfície, a que dirige a nossa existência cotidiana, à qual estão confiadas as maiores atividades e diretivas da vida. É ela que transmite ao normal consciente, sob forma de julgamentos sintéticos, axiomáticos, de impulsos instintivos, as suas conclusões. Quando devem estas transformar-se em ações, o impulso deve transportar-se do centro espiritual da alma ao centro cerebral do corpo, e só então o eu se torna sabedor, na forma de consciência normal.

 

A consciência profunda aparece como inconsciência para a cotidiana, que pouco lhe nota a presença. Mas é daquela que emergem movimentos instintivos, raios de inspiração, intuições que a razão, depois, procura analisar e compreender. Essa consciência profunda, muito mais vasta que o eu a nós conhecido, contém muitas coisas que escapam à nossa psique normal, feita para uso da vida em nosso mundo relativo. Essa psique normal é como um olho menor, com que a alma percebe as coisas com visão microscópica, é uma função cerebral a serviço do corpo. Mas tudo é um meio ou instrumento, para que o espírito possa vir em contato com o ambiente terrestre, meio que abandonamos com a morte física, porque esse órgão cerebral não serve mais ao espírito, que lhe destilou os valores e absorveu o produto sintético.

 

Ora, esta menor consciência terrena, constituída por um funcionamento sensório periférico e por um funcionamento cerebral central, ligados por meio do sistema nervoso, só pode ser depositária dos resultados das experiências terrenas desta vida, isto é, das mais próximas e imediatas sínteses menores, tudo em função do desenvolvimento dos meios sensórios e cerebrais. Partindo do mundo virgem da realidade material exterior e do infinito pormenor do particular, esta é uma primeira destilação que forma a história da vida atual, a de que nos recordamos. E nesta vida é lógico que nada mais se possa recordar. Esta psique cotidiana é apta a conter sobretudo os produtos racionais da experiência. O espírito sabe muito mais, e por sua vez concentra em síntese maiores as menores sínteses cerebrais de cada vida realizadas pela psique cotidiana, transporta e funde a memória particular de cada vida, na memória de uma vida maior. Ora, esse espírito, na maior parte dos indivíduos do biótipo humano, está ainda adormecido no inconsciente, e portanto incapaz de recordar, especialmente quando está fechado num corpo físico, cujas funções superiores se limitam às atividades sensório-nervoso-cerebrais, sem saber subir evolutivamente mais acima.

 

É assim que cada vida forma, durante sua existência, uma memória sua, separada das precedentes, dando dessa forma a cada vida a sensação de ser a única. Os resultados de todas são registrados no espírito, mas estando este ainda involuído, adormecido no estado de inconsciência, a memória do passado permanece profundamente sepultada no inconsciente, que ainda não despertou e, se pode aparecer em relampejos nos estados hipnóticos ou mediúnicos, nas intuições ou na fase de desencarnação, perde-se essa memória de modo absoluto no período da vida no corpo, quando a vitalidade deste assume a predominância. Somente nos casos de seres muito evolvidos pode o espírito manter-se desperto mesmo no cárcere, debaixo do véu da vida física, com a força de lançar até ao plano cerebral jorros de intuição que revelem, com uma memória diferente da normal, lembranças da vida anterior.

 

Temos, pois, duas memórias, a cerebral, que só abarca a vida atual, e a espiritual, que abarca todas as vidas. O cérebro é um instrumento de registro só de impressões sensórias terrenas, e não vai além de sua coordenação racional. O cérebro, pois, não pode conter outra memória além daquela de sua vida, antes da qual ele não existia e depois da qual se desagrega. Para a grande maioria, a memória espiritual está sepultada no inconsciente, e então não pode oferecer nenhuma recordação, pois não sabe funcionar nesta vida. Esta, desenrolando-se no plano físico, só pode possuir uma memória cerebral, que nada pode saber do que existia antes da formação do cérebro, que é o órgão em que se baseia. Por isso, não se podem recordar em geral as vidas precedentes, e então se diz que elas não existiriam. Trata-se de dois centros, um interior ao outro de natureza e com funções diversas. Um, o menos profundo, é analítico-racional; o outro, mais profundo, é intuitivo-sintético. Representa o primeiro uma série de operações em curso, o segundo uma série de operações já executadas; o primeiro abarca a fase da aquisição experimental das qualidades, mediante o embate contra as resistências do ambiente externo terreno, o segundo abarca a fase do registro executado, e portanto da aquisição definitiva dessas qualidades, agora tornadas próprias da personalidade. As instintivas manifestações atuais do eu, ainda que a consciência central delas não guarde lembrança, são o resultado do passado em que foram preparadas e de que livremente foi lançada a semente.

 

É verdade que a memória cerebral não nos dá a recordação analítica das vidas precedentes. Mas não há esta forma apenas de memória. Permanece em nós uma lembrança sintética, no sentido de que não podemos explicar em nós as ideias inatas, instintos, qualidades, tendências, se não admitindo que a semente, que agora desabrocha, tenha sido por nós plantada em existências pretéritas, que cada marca tenha sido impressa naquela forma específica, porque do nada não nasce nada, mas tudo nasce de um precedente do mesmo tipo e natureza sua. Não podemos compreender nossa atual vida, senão como um desenvolvimento de estados precedentes, correspondentes e proporcionados. Se quisermos limitar-nos apenas à memória cerebral, não conheceremos a causa de muitas coisas que vemos em nós nascer do inconsciente, pois tudo o que somos e fazemos, mesmo no mundo analítico do domínio cerebral, só se explica pesquisando lhe as origens no mundo interior do espírito. Eis pois que, como desenvolvimento e consequência, um passado emerge, ainda que não em forma de memória direta, das profundidades de nosso ser; pode reconstruir-se um passado remontando às avessas o caminho que da causa desce ao efeito. Como do que fazemos hoje poderemos deduzir o que seremos amanhã, assim do que agora somos podemos reconstruir o que ontem fizemos. Mais ainda, na primeira parte da vida até o uso da razão, isto é, até o controle cerebral nas diretivas da ação, age o homem por instinto, sem disso dar-se conta. Esse período também, que parece irresponsável, é responsável pelo fato de que constitui apenas a consequência automática dos impulsos já queridos e postos em movimento na vida precedente; ao passo que na madureza, o controle racional intervém com o poder de corrigir esses impulsos, iniciando novas rotas, com consequências automáticas, ao menos da primeira parte, dita irresponsável, isto não é controlada racionalmente, da vida futura.

 

O fato, pois, da falta de lembrança do passado, não prova nada contra a reencarnação. Uma memória de natureza cerebral não pode abarcar o que foi sentido e pensado com outro cérebro que fazia parte de outro corpo. É verdade que a matéria orgânica que constitui nosso organismo se renova quase toda completamente, mas esta vai sempre substituindo a velha, de que conserva as marcas características. As células de um novo cérebro, numa nova vida, não são, em absoluto, o derivado orgânico das células cerebrais do corpo da existência precedente, e portanto não pode sobreviver a este nenhuma memória cerebral direta, mas só uma diferente memória espiritual, pela qual, ainda que nada recorde, tudo, como destilação de valores, em nós sobrevive e nada se perde.

 

Se observarmos todo o procedimento, de perto, só podemos admirar quanto seja providencial este desembaraço de uma barafunda de particularidades, inerentes ao mundo material, mas inúteis no mundo espiritual, a fim de que permaneça, para a personalidade, apenas o essencial, o que vale mais. Só assim, libertada do peso de escórias supérfluas, pode ela mais rápida continuar seu caminho. Uma lembrança analítica do passado exercitaria enorme pressão sobre o presente. Essa recordação só pode realizar-se à proporção que o espírito, evolvendo, se torna mais sensível, isto é, paralelamente à sua purificação, o que é muito providencial porque isto se dá à medida que se vai tornando mais leve o fardo do passado carregado de erros. Dessa forma, cada um tem a sensação de começar nova vida. Sente-se por isso mais livre e leve, ao passo que se tudo soubesse, ficaria carregado de recordações, de dúvidas e problemas, às vezes de rancores, que estorvariam seus movimentos. Não haveria a feliz ilusão da infância e da juventude, pois parece que na Terra só se pode ser feliz na inconsciência. Podem-se assim gozar aqueles períodos de repouso e, com mais esperança, enfrentar as fadigas de uma nova vida.

 

Como vemos, aqui nos movemos numa psicologia diferente da normal, levada quase a pedir contas a Deus de Seu modo de agir. É justo que a razão procure compreender. Mas também devemos compreender que nosso pensamento não é absolutamente a medida das coisas que parece não necessitarem de forma alguma de nossa compreensão, para funcionarem por si de modo maravilhoso. Há, portanto, quase diria, outro aspecto do conhecimento ou sabedoria, que não consiste em indagar para saber ou dominar, mas no abandonar-se a essa infinita sabedoria que tudo rege. Aonde não chega nossa mente, há o pensamento de Deus onipotente que por si resolve todos os problemas; há a corrente da vida que nos guia e arrasta. A maior parte dos seres humanos e todos os animais vivem, sem nada saber. Apenas obedecem aos impulsos da vida, que para eles tudo sabe. Funciona nosso corpo e se renova sem que nada saibamos, muitas vezes cura-se sozinho, e, colocada a primeira semente, tudo se desenvolve automaticamente. O que a nossa ciência e a nossa vontade podem diante de tais maravilhas? Somos parte da vida, vivemos dela e nela. Não somos nós que vivemos autônomos e separados, mas é a vida que vive em nós. Por vezes atuam em nós tantas maravilhas suas, sem que disso nos apercebamos. Doutras vezes intrometemo-nos com intervenções terapêuticas no trabalho da natureza, só para prejudicar. Nossa vida é anterior ao nosso conhecimento e depende dele muito pouco. Antes que cada um de nós nascesse, já existia o esquema de nossa estrutura orgânica. Existimos antes de nos termos percebido disso. Não resta dúvida de que há uma imensa consciência cósmica, que sabe fazer tudo e faz por nós tudo o que não saberíamos fazer. E nós queremos impor-nos a tudo. Mas aquela consciência cósmica faz-nos saber que ela manda mais que todos. Que pode a razão diante do instinto e do sentimento? O irracional, que no fundo é apenas o supra-racional que tudo domina, ri-se dos cálculos de nosso racional, e lhe transmite suas ordens. Nunca somos nós, com nosso cérebro, que tomamos as maiores decisões de nossa vida. Se assim é, como poderemos admirar-nos porque o mistério de nossas vidas passadas foi todo confiado à sabedoria superior da vida, que já dirige, sem dar-nos conta, tantos de nossos fatos vitais?

 

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Observemos, agora, a teoria da reencarnação em relação à ciência. Pode-se dizer que Freud, sem o querer, haja dirigido seus primeiros passos para levar a pesquisa psicológica positiva ao terreno da reencarnação. Fixando e aplicando o conceito do subconsciente, Freud afirmou e demonstrou a existência de uma atividade espiritual que se não pôde exaurir na vida atual, mesmo se ele não ultrapassou o limiar desta. Chegado a esse ponto em seu caminhar às avessas, ele se embrenha pela hereditariedade fisiológica, mas não nos dá disso as provas, nem podia no-las dar, de que a continuação desse caminho para trás não podia tomar outra direção, diferente da assinalada no cérebro, experiências e personalidades dos pais. De qualquer modo, Freud inaugurou um sistema que, levado apenas um pouco mais para trás, leva-nos à vida precedente. Ora, é um fato que, se com a psicanálise, com a pesquisa para explicação dos traumas psíquicos e depois pelo desmantelo das posições psicológicas erradas, andamos para trás até a meninice e o nascimento, podem ainda existir traumas e posições tão profundamente congênitas que, para conhecê-las e corrigi-las, precisaria remontar até suas raízes, que são tão profundas, que só podem ser chamadas na vida anterior ao nascimento. Trata-se de casos de que, nem mesmo a vida dos pais ou avós nos mostra conter as causas, e que se apresentam como fato pessoal do sujeito, cujas origens não podem, pois, achar-se senão em sua vida individual antes do nascimento, desde que não sejam achadas na atual.

 

Há sinais característicos da personalidade, qualidades específicas inatas, feridas nervosas ou morais, de que a vida presente do sujeito, como a de seus pais ou avós não nos dão explicação. Em tais casos, uma verdadeira psicanálise, para ser completa, deveria remontar mais atrás nessa corrente de vida até aos tempos anteriores ao nascimento do sujeito. Mas que caminho escolher? O da hereditariedade psicológica, ou o da hereditariedade espiritual? A ciência ignora a segunda, mas temos motivos para crer que a personalidade humana seja filha mais do segundo que do primeiro tipo de hereditariedade. A personalidade resiste, em suas notas fundamentais que permanecem constantes, a todas as contínuas mudanças do corpo físico, sujeito a um metabolismo incessante. Uma entidade que, fundamentalmente, fica idêntica a si mesma, não pode derivar de um organismo físico (dos pais), que não conhece essa estabilidade. O corpo se transforma sempre, o tipo do indivíduo permanece; e se este se transforma, suas mudanças são muito menores. O espírito permanece muito mais estável e independente enquanto atravessa a viagem da vida. Ora, Freud dirigiu suas pesquisas no terreno mesmo da personalidade, cujas atitudes não podem explicar-se cabalmente senão remontando a seu passado, segundo a teoria da reencarnação.

 

Poder-se-ia dizer que os pais dão a matéria prima, a carne, o corpo, com algumas de suas características, e que, nesta base material, se inocule a personalidade do filho, como um motorista em seu veículo. Então, à matéria prima, recebida dos pais, o novo eu dá sua marca própria, o dirigente adapta a si o seu veículo. A matéria prima, já elaborada pelos pais para eles mesmos, vem assim elaborada por outro eu para si mesmo. Poderá então ocorrer também que um habilíssimo dirigente (personalidade evoluída) se ache na contingência de ter que guiar um veículo primitivo, como órgãos defeituosos, que impedirá a manifestação dos talentos do sujeito. E também que um motorista sem capacidade se encontre a guiar um belo automóvel, que ele, em sua ignorância, estragará totalmente. Ainda que a carne seja do mesmo biótipo familiar, ela se encontrará desposada com diversos tipos de personalidade, no caso de cada um dos filhos, mas isto sempre com uma base de afinidade, sem a qual, fusão nenhuma pode formar-se. Se o corpo é mais forte que o espírito, vencerá a carne, filha, por herança fisiológica, dos pais, e a personalidade que a veste, será por ela rebocada, isto é, a máquina prevalecerá sobre o dirigente e o indivíduo irá à deriva, à mercê das leis animais. Mas se o espírito é o mais forte, este dominará e plasmará à sua imagem a carne, filha dos pais, imprimindo-lhe as características próprias.

 

Vimos, em A Grande Síntese, o processo da formação dos instintos e novas qualidades, com o método dos automatismos, ou repetição habitudinária. A psicanálise no-lo confirma, ao percorrer o caminho inverso. Evidentemente o espírito não é um edifício imóvel, uma entidade qualitativamente constante. A psicanálise, remontando para trás o caminho da vida, procura individuar os erros cometidos na fase que uma vida pode abranger, erros de desenvolvimento da personalidade, para individuá-los e depois corrigi-los, apresentando-os ao espírito em posição emborcada, para o endireitamento das formas psíquicas contorcidas, que assim se formaram. Em outros tempos, diz Freud: “aqui erramos o caminho. Voltemos atrás e refaçamo-lo com um sentido justo”. Trata-se de desfazer um procedimento errado, forçando a fazê-lo de novo, substituindo a antiga, com outra repetição habitudinária, com sacudidelas equivalentes e reequilibradoras em sentido contrário, recomeçando em outra direção a formação de alguns caracteres da personalidade. Tudo isto é lógico e certo. Mas, na prática, é bem difícil refazer uma vida revivendo-a de novo, corrigir erros devidos a lentas adaptações, alterar qualidades de formação tão longa, que se estende até as vidas precedentes. Freud não se deu conta de que, em alguns casos, se trata de intervir no determinismo de um destino que remonta a semeaduras remotas, das quais não podemos impedir hoje o desenvolvimento. Não se deu conta de que é inelutável a Lei, segundo a qual tudo se paga. Não há psicanálise que possa evitar o aparecimento dos efeitos, quando foram estabelecidas as causas.

 

Se o princípio é justo, na verdade é muito difícil descer e operar no subconsciente e demolir posições que se estabilizaram como qualidades adquiridas. Vemos as religiões terem em vão lutado durante milênios para modificar os instintos animais do homem, sem tê-lo conseguido. Tanto maior será essa dificuldade no caso individual, quanto mais profundamente essas qualidades se imprimiram e se fixaram no espírito do sujeito; – e tanto mais elas aí se fixaram, quanto mais foram repetidas, isto é, confirmadas pela prática da vida, que as aceitou e a elas se adaptou. E no entanto este é o mesmo processo corretivo que usa a Lei, mandando-nos as provas opostas ao erro cometido. O método de endireitamento pelo uso dos contrários é um velho processo biológico que a vida sempre usou para ensinar-nos a não mais errar e a rearmonizar-nos na ordem da Lei. Se, por tudo isso, fica confirmado e justificado o princípio da psicanálise, ela continua, tal como é concebida hoje, impotente diante dos processos psicológicos profundos, que não são exauridos numa só vida, diante das psicoses cujas primeiras raízes se firmam nas vidas precedentes, e que o ambiente da vida atual não basta para explicar. Por vezes, o trauma psíquico não apresenta traços nos pais e se manifesta tão cedo e instintivo no sujeito, sem causas exteriores que o possam justificar, que só pode ser explicado remontando a estados de existência antecedentes ao nascimento, porque só neles pode tudo isso ter-se formado. Concluindo, a psicanálise não será completa e solucionadora senão quando souber estender sua pesquisa até o terreno pré-natal, segundo os princípios da teoria de reencarnação.

 

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Vistas assim as relações entre a psicanálise e a reencarnação, enfrentemos outro aspecto da questão.

 

Observemos a estrutura das células germinais. O óvulo humano não chega ao tamanho de um ponto. Dentro de uma camada de gelatina aquosa há um núcleo central mais espesso e mais escuro, e dentro deste um ponto ainda mais escuro. Dentro dele acham-se 24 cromossomos, filamentos estriados horizontalmente com estrias claras e escuras. Estes cromossomos contém cerca de 3.000 genes. Na cabeça ovóide do espermatozóide, que tem uma cauda como os girinos, há igualmente um núcleo com cromossomos e genes. Essa cabeça é cerca de 40 vezes menor que o óvulo.

 

Cada filamento dos cromossomos é como um fio de pérolas, é uma série longitudinal de genes. São assim duas filas: uma de derivação materna e uma paterna. Um cromossomo é visível ao microscópio. Os genes são ainda menores, de dimensões que escapam à nossa imaginação. Temos, então, uma multidão de genes dispostos aos pares, ao longo de filamentos longitudinais. Esses genes do óvulo se combinam com os do espermatozóide quando esses dois elementos se encontram e se fundem, e é essa combinação que determina os caracteres hereditários do nascituro.

 

O número dos genes já é representado por cifra astronômica. Imagine-se qual não será o de suas possíveis combinações! Pense-se que, para cada óvulo existem de 200 a 500 milhões de espermatozoides, que partem juntos à procura do mesmo. Mas, após poucas horas, permanecem vivos apenas alguns milhares, até que um consegue atingir o óvulo e perfurar-lhe o invólucro. Então o espermatozoide perde a cauda, e a cabeça penetra no óvulo, alterando-lhe a estrutura, com ele fundindo-se e iniciando o crescimento por divisão celular.

 

Ora, cada gene representa um caráter a reproduzir. Dada a disposição em pares dos genes, um materno e um paterno, achamo-nos aqui, como dizíamos, diante da possibilidade de inumerável quantidade de combinações. Pois, se é grande o número de genes, maior ainda é o número de seus possíveis encontros. A cada nascimento, realiza-se uma combinação, diante de um inconcebível número que não chega a realizar-se. Aqui, na reprodução dos caracteres da personalidade, achamo-nos diante de um sistema de probabilidades, que nos recorda o que dirige o mundo da moderna física estatística e quantística. Isto, porque as leis do ser tendem a unificar-se no mesmo princípio, tanto mais, quanto mais descermos em profundidade, isto é, em direção ao centro. Neste caso, encontramos o mesmo sistema probabilístico quando descemos na profundidade do mundo biológico, como do físico-atômico. Diante da reprodução dos caracteres da personalidade, achamos que o fenômeno escapa a uma regulação determinística, para obedecer só a leis estatísticas ou de probabilidade, em que as livres irregularidades de cada caso, por compensação nos grandes números, desaparecem numa regularidade coletiva. Assim a lei se realiza deterministicamente, mesmo deixando livre o indivíduo de mover-se como quiser em seu caso isolado. Isto é possível, porque inumeráveis irregularidades livres individuais compensadas (caso isolado), podem, na massa, resultar numa obrigatória regularidade coletiva (lei da espécie).

 

No caso das combinações dos genes, significa isso possibilidade de inumeráveis encontros livres individuais, mesmo permanecendo determinística a lei geral das distribuições dos biótipos por equilíbrios étnicos, distribuição dos sexos, e qualidades dominantes, de massa. Isto significa, para cada tipo de individualidade espiritual, a possibilidade de achar, à sua disposição, um número enorme de combinações, e de poder escolher, qualquer que seja seu gênero, a combinação a ele semelhante, com a qual possa estabelecer aquela sintonização por afinidade, que é necessária para que o espírito possa, num dado tipo de estrutura orgânica, formar sua veste corpórea. Se a lei biológica é determinística em suas grandes linhas, é no entanto tão vasta, que engloba, deixando-os ao mesmo tempo livres, os movimentos das unidades componentes. Quanto à teoria da reencarnação, tudo isto quer dizer que não é uma alma de tipo genérico, como a que deveria ser criada ao nascimento, sem um passado seu de formação, mas, ao contrário, é só uma alma de tipo específico, resultante do caminho que ela percorreu, a que pode sentir necessidade de achar, entre inumeráveis combinações, aquela que seja de seu tipo, ou seja, o germe do material orgânico afim, com o qual possa estabelecer a sintonia indispensável para fundir-se com ele. Isso tudo careceria de sentido, e de nada disso se teria necessidade, no caso de espíritos que se não definiram em suas qualidades, por uma própria experiência terrestre precedente, os quais, só por isso, podem procurar e achar, nas combinações físicas dos genes, a posição a fim de sintonizar, em relação ao próprio biótipo.

 

Uma alma que naquele momento nascesse de Deus, descendo diretamente dos céus do absoluto, completamente ignara das condições do ambiente terrestre, não teria razão de escolher nas combinações dos genes – porque jamais poderia achar, por mais variadas que fossem – aquela que pudesse sintonizar-se com uma natureza sua sem precedentes terrestres. Para uma alma assim, há impossibilidade de achar, qualquer afinidade no material orgânico humano, para poder fazer com ele uma veste corpórea. Se, ao contrário, vemos que a personalidade espiritual demonstra, desde os primeiros momentos de vida, conhecer o ambiente terrestre, e estar proporcionada a ele, em seus instintos e estrutura; e, dado que as combinações dos genes não podem, por sua natureza, sintonizar-se e fundir-se senão com um princípio espiritual afim a eles; se vemos que a vastíssima amplitude de escolha permite a sintonização e fusão com qualquer tipo de alma, que se defina nesse ambiente terreno, só nos resta, se quisermos explicar tudo isso, admitir que essa alma já conheça a Terra, que aqui tenha sido formada com suas características, que têm um sabor bem terreno e nada celestial, de imperfeição do involuído e não de perfeição divina, como deveria ocorrer se a alma tivesse saído, naquele momento, do seio de Deus. Pois neste caso não se poderiam explicar aquelas imperfeições de involuído, nem uma vida de provações para aperfeiçoar-se. Só nos resta admitir que essa alma aqui volte para desenvolver-se, num terreno adaptado à semente. E dizer isso, é dizer: reencarnação.

 

Mas há ainda outro fato. A possibilidade de um tão grande número de combinações entre genes, poder permitir que qualquer tipo de vivente venha à luz dos mesmos pais, isto é, que um tipo bom possa nascer de maus e ao contrário. E assim se explica como isto às vezes aconteça. Mas se nem sempre acontece assim, antes, se os filhos tendem em geral a assemelhar-se aos pais, isto não pode ser devido às infinitas combinações possíveis dos genes, mas a algum outro fator importante. Isso só pode ser a lei de afinidade, que é a que preside à escolha, feita pelo biótipo que se vem encarnar numa determinada família e ambiente. Se as combinações dos genes não podem absolutamente assegurar, por seu número extraordinário, a semelhança entre pais e filhos, e se essa semelhança tão frequentemente existe, não podemos dar-nos explicação desse fato senão recorrendo à lei de afinidade, base da sintonia necessária à fusão espírito-corpo. Dizer isto, é dizer: reencarnação. É então o princípio de afinidade que regula o que as combinações dos genes não são suficientes para regular. Eles então representam apenas o veículo dos caracteres já preexistentes da personalidade, que é o que escolhe aqueles determinados genes, como seu meio de expressão, e não é escolhida por eles, que são apenas um meio e não a causa determinante.

 

Um corolário pode deduzir-se dessas verificações, ou seja, que é relativa a eugenética que propõe a reprodução apenas dos biótipos escolhidos como sãos. Cada biótipo contém todas as qualidades dos genes, oferecendo assim a possibilidade de se prestarem como veículo de qualquer tipo de caracteres e dar a vida a qualquer gênero de personalidade. Assim, os bons podem produzir também os defeituosos e vice-versa. Nossa eugenética só conhece o caminho da hereditariedade fisiológica. Mas as coisas acontecem de outro modo. A enorme riqueza dos genes tem a função de oferecer a escolha mais ampla com qualquer tipo possível de combinação. Quem faz a escolha, de acordo com o próprio tipo – coisa que a eugenética ignora – é o princípio espiritual; ele que regula todo o fenômeno, proporcionando tudo às exigências da própria natureza, que já se definiu bem no ambiente terrestre, e que a este volta para continuar o trabalho aqui iniciado. E aqui também, se a eugenética observou que a saúde dos filhos depende da dos pais, isto não é proveniente dos genes senão como efeito, ao passo que o que regula tudo é a lei de afinidade, pela qual gente doente atrai como filhos espíritos doentes, e a sã espíritos sãos, que procuram e devem construir-se corpos sãos, como sede proporcionada a eles. Por isso os tarados não deveriam gerar. Mas infelizmente eles, como os involuídos, acham no nosso mundo o ambiente inferior que lhe é mais adequado. A vida regula tudo, com leis segundo as quais a geração é dirigida por princípios de caráter espiritual e moral. Mas, tudo isso, dada sua orientação, a ciência ainda não pode compreender.

 

A nossa tese, de que a escolha dos genes seja feita pelo princípio espiritual, por afinidade, e que eles não são a causa, mas apenas um veículo dos caracteres da personalidade, é sufragada também por outras afirmações. Há, com efeito, alguns fatos biológicos que podem fazer duvidar da validade do asserto, de que as diversas individualidades sejam devidas somente a diferenças nas combinações dos genes. A própria união das duas células germinais pode produzir dois indivíduos perfeitamente diferenciados. Este é o caso dos gêmeos monocoriais. Examinadas objetivamente, suas características originárias são tão semelhantes que podem considerar-se quase idênticas. E no entanto, elas formam depois duas pessoas e individualidades bem distintas, no corpo, nas sensações, como na consciência. A morte de um não é a do outro, a dor de um não é a do outro. Trata-se, para cada um dos dois gêmeos, de um eu separado. Mesmo se os caracteres morfológicos tendem à semelhança, as duas personalidades podem ser diferentíssimas.

 

A isto a biologia não sabe responder. O que é certo é que, no caso dos gêmeos monocoriais, não é a natureza da combinação dos genes a causa determinante. E então, como acontece que uma individualidade particular está unida a uma particular combinação genética? Isto só se pode explicar pela afinidade, base da sintonização necessária à fusão espírito-corpo, como acima foi dito. O que nos leva a concluir que só poderemos compreender o fenômeno, admitindo que a marca individual deriva antes de tudo do princípio espiritual, que é quem estabelece a personalidade. Esta concepção desloca o centro de gravidade da questão, do terreno material ao espiritual. Apenas este ponto de vista é aceitável, porque apenas ele resolve tudo. Então resulta ser a individualidade humana uma entidade que se forma e existe independentemente dos genes e de suas combinações. Independentemente, significa que, se determinado nó, particular da trama, não se realiza, aquela individualidade citada vai identificar-se com outro nó. Então, a relação entre o eu e os genes seria análoga a que existe entre o eu e o ambiente, isto é, a combinação genética ajudaria o eu a determinar os próprios caracteres, mas não seria a determinante exclusiva da personalidade do indivíduo.

 

Permanecendo no âmbito positivo apenas das considerações biológicas, o problema não é solúvel e permanece um enigma, ao passo que tudo se torna claro se aí introduzimos o elemento espiritual. Pode-se, então, como conclusão sustentar o que se segue: a preexistência de um dado número de individualidades espirituais já constituídas com todas as suas características pessoais, prontas a combinar-se com um par de genes. Estas estão ansiosas para fazê-lo e procuram os meios de combinar-se (veja capítulo seguinte). Esses meios são a afinidade, pela sintonização de vibrações. Sendo esta uma qualidade que se encontra na vida física como na espiritual, pode ela funcionar como denominador comum e como ponte de união entre os dois elementos que pertencem a dois planos evolutivos diversos. Nestas bases, pode realizar-se a fusão, mediante a qual o eu espiritual toma a direção do desenvolvimento orgânico, adaptando a si mesmo a matéria prima recebida dos pais. Esta formaria o ambiente que a nova personalidade adapta a si mesma e à qual se adapta, trabalho que é tornado possível pela originária aproximação, por meio da afinidade e da sintonia, e assim se explica por que essas duas condições são necessárias para a fusão.

 

Então, verifique-se ou não uma particular combinação de genes, é mera circunstância que, se faltar não paralisa o fenômeno, pois que não tem valor determinante para a existência da individualidade, que é sua verdadeira causa, mas tem apenas a função de fornecer-lhe uma base, em que possa fixar-se, para formar para si, com o corpo, um instrumento de ação e realização no plano físico do ambiente terrestre. Se agora multiplicarmos o enorme número de combinações possíveis de genes num acasalamento, com o ilimitado número de seres humanos e acasalamentos possíveis na Terra, veremos que cada individualidade espiritual se achará sempre diante de uma tão vasta escolha de elementos, que, para qualquer biótipo humano, será possível estabelecer por afinidade a sintonia e, portanto, fundir-se.

 

Este é o imenso trabalho escondido e silencioso que continuamente se realiza inadvertido, e que preside à formação do feto. Tudo é escolhido segundo as leis de atração. A escolha sexual, que tende à fusão conjugal, precede esta outra escolha por parte do espírito, do ambiente apto à formação de seu corpo. Assim os egoísmos separatistas estão necessariamente ligados por atrações e reorganizações contínuas, que reúnem e fundem juntos os elementos separados, mantendo-os todos ligados juntos na unidade da vida. Por isso, as diretivas do nascimento não são confiadas aos pais, simples instrumento instintivo e mecânico, que nada sabe. Quem dirige o fenômeno é o elemento espiritual, ele, diretamente, se for bastante evoluído e portanto consciente a tal ponto que o possa realizar; ou de outro lado é a sabedoria das leis da vida, quando o indivíduo ainda não tem capacidade de escolha nem autonomia de julgamento. Neste caso, ele é preso automaticamente às correntezas e por elas guiado à posição que lhe compete, porque melhor a ele se adapta. É sempre, portanto, o elemento espiritual que domina o fenômeno físico, e não ao contrário. Verifica-se assim a combinação genética, pela qual a personalidade espiritual se une ao corpo, seu instrumento de trabalho e de expressão, provisoriamente, para realizar o processo inverso da separação do mesmo, quando tiver terminado o ciclo e o trabalho que deve. Eis, então, que também o mundo positivo da biologia não pode ser compreendido se não à luz da teoria reencarnacionista.

 

Certamente não podemos pretender que a ciência positiva da biologia, dada sua orientação, possa sustentar hoje essa doutrina. Logo que subimos às alturas filosóficas das últimas razões, a ciência costuma calar. Mas, admitindo que, ao contrário, nós queremos ter a explicação dos fenômenos; admitindo que a biologia não nos fornece nenhuma doutrina positiva a respeito da relação das individualidades com as combinações dos genes, nada explicando-nos sobre isso; admitindo, enfim, que existe a teoria da reencarnação, já sufragada por tantas provas que a tornam certa e que, neste caso, ela explica tudo, é bem lógico que nós a aceitemos, porque ela é uma solução e é a melhor, e sem ela só nos resta renunciar a compreender, numa triste posição de agnosticismo e de ignorância. Não se pode ter outra atitude, quando é a própria ciência positiva que nos guia até a porta da teoria reencarnacionista.

 

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Os problemas não podem ser esgotados e resolvidos só do ponto de vista positivo científico. Esta técnica, agora examinada, da encarnação do espírito num corpo, no seu tipo específico e adaptado no corpo, corresponde além disso a uma necessidade lógica e filosófica, segundo o plano da criação, exposto em nosso volume: Deus e Universo. Demonstramos aí, que nosso universo físico é o resultado de uma queda do espírito, da qual nasceu a matéria ou forma. A encarnação repete essa queda cada vez que uma alma retoma um corpo; e cada vida representa uma etapa da subida, ao longo do caminho da evolução, e uma porção de fadiga e de dor com que é ele percorrido, assim realizando progressivamente a própria redenção. E assim o homem recairá tantas vezes no corpo e em seus castigos, repetindo o motivo da primeira revolta do ser rebelado, que fez ruir o universo na forma física; e assim permanecerá o homem tanto tempo submetido ao ciclo vida-morte, até que, evolvendo e reespiritualizando-se, tenha queimado, ardendo na chama de sua dor, a forma material que o aprisiona, e tenha voltado à sua primitiva posição de puro espírito. Só assim o ritmo vida-morte, iniciado com a primeira queda, poderá ser lentamente reabsorvido e esgotar-se, até o regresso a Deus, lá onde se extingue a reencarnação.

 

O que nos revela a observação objetiva, isto é, material e sensória, da ciência, é uma pequena parte, uma ilha que emerge de um continente submerso. A ciência positiva move-se no campo dos efeitos, mas escapam-lhe as causas, que estão alhures. Ela não sabe o que é a vida porque não conhece o essencial, que para cada coisa, para todas as formas do ser, é o espírito. A ciência para no corpo, mas como pode compreendê-lo se não conhece o espírito que o anima? Esse corpo, em princípio, é uma célula. Ele cresce. Quem o faz crescer, e por que o faz só até certo ponto? Do primeiro núcleo, desenvolve-se, por contínua subdivisão e multiplicação de células, um aglomerado em contínuo aumento, sem que apareça o motor genético dele. Parece um caos amorfo. Mas eis que, em certo momento, começa a delinear-se uma diferenciação na estrutura das células produzidas, uma disciplina que dirige esta milagrosa multiplicação. Cada célula obedece a diretivas precisas, e pararão em grupos em certas zonas, para começar a construir certos órgãos ou tecidos: o cérebro, o olho, o coração, os ossos etc. Deste maravilhoso e inteligente trabalho nasce o milagre do organismo único, em que, por fim, se coordenam os resultados de todos os trabalhos parciais, em plena eficiência de funcionamento orgânico. Em lugar da primeira desordem, é então entoada uma como orquestração sinfônica, em que cada instrumento executa, em harmonia com todos os outros, a sua parte, segundo a lógica de um plano geral que rege tudo.

 

Ora, um trabalho tão sábio, não pode ser produto do acaso, tanto mais que ele se reproduz exata e regularmente para cada ser que vem nascer na Terra. Quem os dirige, pois? Não é suficiente a ação dos hormônios para explicar tudo isso. Mais do que a causa última das especializações, representam eles antes as alavancas de comando, que fazem disparar um mecanismo já preexistente. Eles não bastam para dar-nos a formação dos órgãos, mas apenas podem acionar alguns mecanismos que levam a esse resultado. Há, portanto, independente deles uma força diretriz inteligente que, segundo um seu plano ou esquema preestabelecido, produz isso tudo. A morfogênese, ou seja, a origem das formas, mediante a qual a vida assume seus modelos predeterminados, depende, pois, de esquemas preexistentes no mundo espiritual, sem o que essa morfogênese não se explica.

 

O problema, agora, é de saber como acontece tudo isso. Damos uma resposta conseguida por via intuitiva e que a ciência poderá considerar como uma hipótese. Quando e como entra a alma no feto? Qual é a técnica fisiológica da reencarnação?

 

Partamos das duas células germinais, o espermatozoide e o óvulo. São dois seres unicelulares, cada um com suas características individuais específicas. Enquanto o óvulo não sabe mover-se por si, o espermatozoide se move com uma rapidez relativamente fantástica, de dois centímetros e meio cada oito minutos. Ele pode continuar a nadar assim por dois dias, realizando um trabalho que não tem paralelo em outros indivíduos monocelulares. Demonstra bem que sabe que o óvulo é seu objetivo, porque executa os movimentos próprios para realizar sua viagem nada fácil, a fim de atingi-lo. Das várias centenas de milhões de espermatozoides que iniciam essa viagem, só alguns milhares se avizinham da meta, e só um, ou pouco mais, a alcançam.

 

Não se pode negar que existe nesse pequeno ser uma vontade precisa e uma inteligência que dirige sua ação. Demonstra ele, no trabalho em que está todo empenhado, que sabe superar não poucas dificuldades que lhe armam ciladas, pondo obstáculos a seu êxito. O espermatozoide que vence várias centenas de milhões de irmãos, deve tê-las superadas todas. Aqui também está em vigor a lei da seleção do mais forte, como nos animais e no homem, demonstrando-nos que esta é uma lei geral. Quando, enfim, o espermatozoide alcança o óvulo, perfura a barreira externa dele para penetrá-lo. Para consegui-lo melhor, trouxe consigo pequena quantidade de uma substância que tem a propriedade de dissolver esse invólucro protetor.

 

Como pode esse ser monocelular ter tal previdência, demonstrando saber tantas coisas? E esta é uma inteligência específica e especializada, própria dele e preexistente à ação. Vemos aqui a execução de uma série de atos coordenados, tendentes a alcançar um escopo preciso. Além disso, não pode negar-se que esse ser esteja vivo; e vida quer dizer vontade e ação dirigida por uma inteligência. Há, pois, neste ser um centro inteligente, seu próprio, que constitui “a vida” dele. Temos, pois, que admitir nele uma pequena alma, ainda que elementar, mas da natureza imaterial de que é feita a vida.

 

Eis-nos agora no ponto crucial: como ocorre a encarnação, isto é, como o princípio superior espiritual do eu humano se funde na primeira célula e nas que dela derivam, para depois formar um corpo humano?

 

Creio que, para responder, mister se torna recorrer à lei das unidades coletivas, que alhures mostramos constituir o meio para a formação unificadora das unidades menores, na construção das unidades orgânicas maiores. Ocorre isto também na sociedade humana, nos sistemas planetários e estelares, assim como nos atômicos, moleculares etc. Então, o eu humano que quer reencarnar-se, avizinha-se gradualmente, não como espaço, mas por afinidade vibratória, isto é, aos poucos se vai sintonizando como princípio espiritual, com o princípio espiritual que rege, organizando o material molecular atômico que as constitui, estas primeiras células do feto em formação, logo que elas começam a construí-lo. Estas representam o terreno que o eu humano utiliza para a sua manifestação futura. As duas primeiras células germinais, a resultante da sua fusão e as outras que dela derivam depois, são os tijolos do edifício que aquele eu vai construir para si, ou os soldados do seu exército. Ele, como o engenheiro construtor, põe em ordem o material da edificação para fazer a sua construção ou, como um general, disciplina seus soldados para deles fazer um todo orgânico. A comparação poderia repetir-se com o caso de um diretor de um negócio, que enquadra os seus trabalhadores etc., isto é, em todos os casos em que um chefe assume a direção, coordenando os elementos de que dispõe, para fins superiores à vida e ao trabalho deles como indivíduos.

 

Há, portanto, vários princípios espirituais que se não destroem mutuamente, mas se coordenam por afinidade (vibração). Na união das duas células germinais e na primeira multiplicação celular, o eu superior não trabalha ainda nem como engenheiro, nem como general ou diretor. O trabalho de organizador de células ainda não é requerido, o edifício ainda é simples e basta o impulso de cada célula e sua pequena inteligência para dirigi-lo. Mas nesse ínterim o espírito humano está cada vez mais avizinhando-se, entendendo-se esta vizinhança como sintonização vibratória, através do comprimento de onda, da frequência e do tipo de individuação cinética. Quanto mais se complica o trabalho construtivo, mais ele necessita da ajuda de um diretor, por parte do eu superior. No câncer, a multiplicação das células é anárquica, porque não existe essa direção.

 

Eis então que este eu superior, tendo em mira fins mais complexos, que não são alcançáveis pelas limitadas inteligências de cada célula (que quando ficam abandonadas a si mesmas, como no câncer, se arruínam), começará a guiá-las, a coordenar seu agrupamento à proporção que elas se produzem, ou organizá-las em tecidos diferenciados destinados a funções específicas. Acontece então que, enquanto o feto cresce e se define em suas várias partes, se é a inteligência celular que provê a multiplicação do material, e se é o incônscio materno que a dirige e que preside ao funcionamento elementar mecânico como um prolongamento do próprio, quem dirige a diferenciação em vários tipos de tecidos e a guia à formação dos vários órgãos, preparando seu funcionamento, independente do da mãe, é unicamente a inteligência do eu humano que se apresta para a nova reencarnação. Assim, a determinação do sexo, é feita pelo espírito, conforme ele, dadas as suas qualidades, ache mais adequado para si viver num corpo masculino ou num feminino.

 

É assim que este se fabrica, sob sua própria direção, como um seu casulo; corpo do qual o espírito vai tomando posse gradativamente, numa espécie de temporária colaboração com a mãe; corpo em que ele descerá definitivamente, tomando posse independente e destacando-se da colaboração materna, quando o feto nascer, completamente constituído, à luz. Então o corpo pertencerá todo e exclusivamente ao novo eu que se encarnou e, como o corpo foi formado à imagem e semelhança daquele eu que o plasmou, assim também continuará a desenvolver-se sob sua contínua influência diretriz, para tornar-se cada vez mais sua própria forma, isto é, sua mais exata manifestação exterior no plano da matéria.

 

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Nesta sua forma física, pois, nosso eu se encontra sem recordar. Tudo se passou na zona dos automatismos conquistados pela repetição muito longa e abandonados ao subconsciente. Acima destes, a grande lei estabelece os ritmos maiores. Segundo esses ritmos, o eu vem depois, no fim da vida, executar o processo inverso, e quando o organismo que se construiu se estraga, o espírito desprende-se dele, desencarnando. Logo que este falta, e cessa a sua ação diretriz, aquele organismo, abandonado a si mesmo, se desagrega. Achamo-nos assim donos de um corpo temporariamente, e no fim despojados dele. Ele é tomado como empréstimo à terra, à qual devemos restituí-lo no fim, constituído de um material comum, que é de todos, e que nós mesmos, amanhã, poderemos tomar de novo por empréstimo, para uma nova reencarnação. Só o espírito é individualmente nosso. A ciência não nos dá nenhuma explicação desse jogo. Só a teoria da reencarnação faz dele um processo lógico, dando-lhe um significado profundo e uma meta final.

 

Podemos todos verificar que a personalidade é algo de muito mais vasto do que as funções racionais e cerebrais, contendo qualidades e elementos que as superam de muito. Dizer que o pensamento é uma secreção do cérebro, é como dizer que a matéria seja a fonte da vida, a máquina elétrica a causa da eletricidade, que o violino crie a música e o relógio construa o tempo. No fundo de cada questão de fisiologia há, ao invés, algo de impalpável que recua à medida que avançamos. Não pode ele reduzir-se aos fenômenos positivos da física e da química. Há um elemento que não é matéria e que se chama vida, há o pensamento que não pode limitar-se a um efeito mecânico. A teoria materialista da biologia não é aceitável, portanto. Não podem ser entendidos os órgãos do corpo senão como instrumentos e condições, organizados por um princípio superior para sua manifestação. No ser humano há um centro e há órgãos periféricos. Estes fazem o trabalho de análise e de transmissão centrípeta. Aquele faz o trabalho de síntese e de emissão centrífuga. Assim o eu que faz o contato com o mundo externo, chega a conhecê-lo e reage sobre ele. Esse eu não é apenas a central de recepção, repartição, controle psíquico e julgamento das mensagens recebidas, mas é também a central diretriz das reações correspondentes a cada estímulo e transmitidas aos órgãos do corpo. Também aqui aparece o dualismo, isto é, mecanismo equilibrado do binômio ação-reação, ou seja, circuito constituído por dois semi- circuitos inversos e complementares: percepção e ação. A central do eu é transmissora e receptora. Sem os sentidos, não poderia o espírito ler as mensagens que através deles lhe manda o mundo externo. Se o espírito não fosse transmissor, não poderia enviar para o exterior, através dos órgãos de seu corpo, as suas reações. À alma desencarnada, faltam os meios para perceber nosso mundo como o percebemos nós, para fazer-se perceber por ele e para agir sobre ele.

 

Tudo isto é tão simples e evidente que a técnica humana reproduziu vários desses instrumentos e deles se serve. Mas não sabe reproduzi-los ainda todos. Reproduzindo ainda outros, poderá fazer descobertas técnicas. E ao contrário, reproduzindo artificialmente os que já sabemos imitar, será possível suprir à falta dos órgãos físicos e assim curar doentes em que esses órgãos se estragaram. Enfim, quando se conhecer toda a técnica da estrutura dos meios sensórios e seu funcionamento até a central espiritual e os meios de conexão com esta, será possível chegar a fornecer os meios de percepção e expressão em nosso mundo sensório às almas desencarnadas. Será então derrubado o muro que nos divide com o além.

 

Por essa estrada poderá chegar à descoberta científica da alma, de uma alma que demonstra saber viver mesmo sem corpo, além de saber viver na forma que todos conhecemos, em sua vida unida ao corpo. Ver-se-á, então, que a alma não é uma abstração filosófica, teológica, metafísica, mas que é uma realidade objetiva com a qual a medicina, à proporção que se aprofunda, terá fatalmente que encontrar-se e que contar com ela. Só sendo assim compreendida, poderá a alma reentrar no âmbito dominado pelos métodos da ciência médica. A observação anatômica dos corpos mortos não é suficiente. Trata-se aqui do fenômeno vida, de que a anatomia é apenas a casca e a consequência. É preciso remontar os caminhos sensoriais até o centro consciência. Sobrepujadas a anatomia e a histologia, o segredo está na cinética atômica dos corpos químicos que compõem as últimas e mais apuradas células do sistema, às nervosas, ou seja, nos equilíbrios que se renovam sempre daquela química instável; e, subindo mais ainda, nas emanações dinâmicas, lançadas no espaço por aquela cinética atômica. Entramos no terreno extra sensório do telepsiquismo. É preciso alcançar essas radiações-pensamento, que estão conexas com aquela cinética atômica. Nesta devem fixar-se movimentos rítmicos ligados a leis cíclicas, em que deve basear-se a memória, o registro das impressões, a formação dos automatismos e a aquisição das qualidades instintivas ou inatas. Deve aqui o médico aliar-se ao rádio técnico para individualizar essas radiações pelas características da onda (ultra-curta) e examinar seu modo de comportar-se. Do estudo analítico desse feixe de ondas, reconstruir analítica e cientificamente a síntese psíquica do eu que, mais acima ainda, escapa no imponderável. Poder-se-á, então, acompanhar o fenômeno com o método da intuição nas dimensões superiores, que estão fora do domínio da ciência positiva. Para os primeiros passos, situa-se o problema das profundidades da química orgânica, da cinética atômica, de que deriva uma diferente orientação das vibrações das correntes noúricas: ou seja, problema de movimentos nas trajetórias internas dos átomos componentes. Essas trajetórias são linhas de força das quais se desenvolvem as emanações noúricas e nas quais se inserem as recepções noúricas, imprimindo-lhes modificações que formarão os novos caracteres adquiridos pela personalidade.

 

Em A Grande Síntese foi sustentada a tese das origens elétricas da vida, pela qual γ (gama), a matéria, evolvendo através das formas dinâmicas, da fase da energia β (beta), ascende, com a vida à fase α (alfa), o espírito. Esta é a atual ascese evolutiva que, como vimos no volume Deus e Universo, implica e pressupõe a inversa descida involutiva da queda e desmoronamento do Sistema, do estado de espírito ao estado de matéria. Então, como a vida, evolvendo, nasce da energia, e neste caso da eletricidade, que continuará na forma de sistema nervoso a dirigir os organismos dessa vida; assim, no processo inverso da queda – que o fenômeno da reencarnação repete em cada caso individual – o cérebro constitui o órgão de inserção do espírito no mundo da matéria, o  que quer dizer que o espírito, ao fazer-se um corpo, se insere primeiramente no organismo elétrico deste. Com efeito, pelo cérebro começa a construção orgânica do feto. A primeira manifestação física do espírito no útero materno começa, pois, na forma dinâmica que, por ser a mais evoluída, lhe é mais afim. Ela, depois, recolhe em torno de si os materiais orgânicos fornecidos pela célula paterna e pelo útero materno. Há, assim, uma lógica construtiva, dada pela própria estrutura do sistema do universo, na operação que o espírito realiza, de revestir-se de uma casca sempre mais densa; isto até que, no nascimento do feto, a forma física da matéria está completa e pode começar a funcionar, como acima vimos, por meio dos sentidos, recebendo e transmitindo. Não há outros meios, e o espírito não pode receber nem transmitir senão o que lhe permitem as possibilidades da máquina física em que ele se consubstanciou. No fim da vida verifica-se o processo inverso, da libertação da casca por parte do espírito, que leva consigo, registrados em seu sistema de forças como trajetórias dinâmicas, os resultados da sua experiência na vida, transformados, dessa forma, em qualidades suas pessoais.

 

Assim, nascer é morrer, e morrer significa nascer. E eis outra prova da reencarnação: porque não pode morrer, nascendo, senão quem já estava vivo; e porque, se morrer significa nascer, quem nasce dessa morte deverá de novo morrer, reencarnando-se novamente. Tudo é rítmico e equilibrado no universo. O motivo da queda se repete em cada reencarnação, porque tudo é regido por um esquema de tipo único que se repete em todas as alturas e em todas as dimensões. Tudo se repete. Assim a ontogênese repete a filogênese. Como no homem, que está no cimo da escala da evolução terrestre, se repete a história da vida no planeta, assim nas vicissitudes de sua vida repete-se o motivo fundamental de sua queda. Ela é como que um regresso à matéria, como uma contração involutiva do Sistema, a que se contrapõe o progresso realizado na vida e que na morte, se fixa na alma, como um novo passo seu para o alto. Assim caminha a vida: 1º) a sua contração à descida do espírito na matéria, numa sua forma dura, em que ele permanece prisioneiro das provações e das dores; 2º) a expansão da vida na libertação do espírito da matéria, enriquecido pelas provações superadas e pela nova experiência adquirida. Assim, a morte não é igual para todos, e pode parecer ao involuído um fim doloroso, e ao evoluído uma alegre libertação. À proporção, pois, que o ser evolve, liberta-se ele da morte, isto é, da consequência da queda, transformando em alegria o sistema emborcado em dor.

 

A teoria do pensamento produzido pelo cérebro baseava-se na localização das várias funções, de acordo com os lobos cerebrais. Mas, se podemos encontrar localizações cerebrais para as funções animais, não há circunvoluções nem centros para todas as funções superiores do espírito, como a inspiração artística, a intuição científica e filosófica, as aspirações místicas e religiosas, a concepção dos ideais e das ideias abstratas. Ao contrário, está provado que, em muitíssimos casos, a destruição de parte das zonas cerebrais não lesou em absoluto, as faculdades intelectuais. Se existe uma possibilidade de localização, refere-se ela às funções inferiores mais elementares, mas se torna cada vez mais problemática quando se passa às funções espirituais superiores. O trabalho criativo, original, não se faz com o cérebro, mas só com o espírito. Com o primeiro só podemos obter resultados de ordem analítico-racional, ou uma erudita repetição de coisas velhas. O cérebro é um órgão de menor potência que o espírito, por este usado para os trabalhos menores.

 

Mas há mais. Lemos no volume O problema da alma e a ciência de hoje, de Picone Chiodo, 1945: “Está demonstrado que, em circunstâncias excepcionais, pode a inteligência conservar-se íntegra apesar da destruição do cérebro. Desse modo cai inexoravelmente a hipótese gratuita explicativa formulada pelos fisiólogos, segundo a qual os lobos cerebrais que permanecem, suprem os destruídos. Sucede que esses casos, sendo literalmente inexplicáveis por qualquer hipótese fisiológica, arrastam ao báratro ingente das teorias erradas também aquela que afirma que o pensamento é função do cérebro. Ao contrário, o órgão cerebral é permeado e dirigido em suas funções por algo qualitativamente diferente, e só assim pode explicar-se como consiga conservar-se a inteligência, apesar da destruição parcial ou total do cérebro”.

 

O espírito extravasa por todos os lados os limites de seu meio, que ele utiliza e dirige. O cérebro é empregado nos usos da vida, no contingente do ambiente animal. O espírito sabe as coisas profundas e distantes, domina um campo muito mais vasto, de dimensões superiores às do espaço e do tempo. Conhece a telepatia e a profecia. As funções cerebrais são de ordem inferior às espirituais. O funcionamento cerebral não cobre absolutamente a totalidade do consciente. Pensar com o cérebro, isto é, racionalmente, significa pensar de forma muito mais limitada, do que pensar com o espírito, ou seja, intuitivamente. E quando se acreditou, por terem sido ofendidos os meios nervosos e cerebrais, que tivesse sido lesado o espírito, porque se viam alteradas as funções espirituais, não se compreendeu que tinham sido ofendidos e estragados apenas os intermediários de sua expressão em nosso mundo. Não é, então, o espírito que fica alterado, mas só as suas vias de comunicação e manifestação, só a mecânica de sua inserção em nosso mundo material. Assim, os materialistas, vendo o órgão do espírito e não o espírito, e vendo na morte a destruição desse órgão cerebral, creem que, com isso, termine também o espírito. Mas a realidade é que este não se desorganiza absolutamente, pelo simples motivo de que seu órgão se perca. Se o espírito tem necessidade dele para manifestar-se, pode, entretanto, existir sem esse meio de expressão, isto é, morre apenas para os nossos sentidos. Sabemos bem como é restrita a gama de vibrações que estes podem perceber. Eles não são, de certo, a medida de todas as coisas. Então, o espírito pode muito bem existir em formas não perceptíveis para os nossos sentidos físicos, e continuar bem vivo, ainda quando a nós possa parecer morto. E que coisa poderá fazer então esse espírito, que se elaborou com a vida no ambiente terrestre, se não continuar depois a sua elaboração aqui regressando?

 

Como vimos, as provas em favor da tese reencarnacionista chegam-nos convergentes e decisivas, dos campos mais disparatados. No capítulo seguinte a examinaremos ainda sob outros pontos de vista.

 

 

Enfrentemos, agora, outras questões de caráter prático-social.

Nenhum problema pode ser verdadeiramente resolvido, se não partirmos de sua orientação cósmica, que o enquadre em relação ao funcionamento orgânico do todo. É necessário, pois, partir do geral, nele depois engastando, no ponto exato, o particular. Tudo é ligado no universo. Portanto não é de estranhar que possamos achar as causas remotas dos estados patológicos em crescimento, nas condições espirituais do mundo de hoje. É natural, por isso, que escape à orientação materialista da ciência e sobretudo da medicina moderna, o significado íntimo da doença, que tende a fixar-se em formas específicas na raça, como última consequência de erradas correntes de pensamento que dominam em nosso tempo. Para manter o estado de saúde, é necessário que todo o mecanismo físico-espiritual de nosso composto humano funcione em harmonia com os princípios das leis que regulam a vida. De acordo com o conceito unitário da vida, a medicina somática e a medicina psíquica deveriam colaborar. Deveria o médico ser também um sacerdote do espírito. No ser humano, que é, como vimos, a fusão de uma alma com um corpo, estão conexos fenômenos de ordem espiritual e material, com consequências físicas de fatos psíquicos, e efeitos psíquicos de causas físicas. Alex Carrel (O Homem, esse desconhecido) afirma que o conjunto formado pelo corpo e pela consciência pode ser modificado, tanto por fatores orgânicos como por fatores mentais.

Tudo o que existe é vivo, e a ciência não sabe o que seja a vida, porque esta é o princípio espiritual que anima tudo e que a ciência ignora. Assim, tudo o que existe é um organismo a funcionar, que traz escrita nele a sua lei. Quem se afasta dessa ordem, a ela volta reconduzido pelo sofrimento. Ninguém nega o valor dos novos meios diagnósticos e terapêuticos. Entretanto, muitos progressos no particular são anulados em parte, pela desorientação no conjunto. Além disso, é errada a psicologia espiritualmente anárquica, de que eles se valem, com a pretensão de tomarem o lugar da ordem natural e de dobrá-la à vontade humana. Vem isto como consequência do princípio tão instintivo e axiomático, da luta pela vida, que a ciência inadvertidamente usa, sem discuti-lo; e, no entanto, quanto mais se eleva alguém em conhecimento, mais deixa ela de ser imposição pelo domínio, e se torna adesão, em obediência a uma sabedoria que já está atuando na vida. Princípio da luta que pertence aos planos mais baixos da vida, onde ecoa ainda mais viva a posição luciferiana da revolta à ordem de Deus, posição psicológica que leva a ciência a tornar-se, não meio de civilização e bem-estar, mas antes de tudo instrumento de destruição bélica.

No campo médico, leva essa psicologia a uma terapêutica repressiva, enquanto a medicina deveria ser somente a arte que imita, secunda e promove os processos curativos da natureza. Esta, no doente, age seguindo um programa próprio, conservativo e compensativo, que o médico deveria respeitar e ajudar. Pena, então, quando a terapia não segue a da natureza ou totalmente a ela se opõe com intervenções tão enérgicas que paralise sua ação. Essa psicologia de luta para dominar e submeter levou a outro perigoso erro: o equívoco microbista, pelo qual toda a medicina se concentrou na luta contra os micróbios. Correspondia perfeitamente à psicologia atávica da luta pela vida, a crença de que a sabedoria humana tivesse finalmente descoberto, com o microscópio, o verdadeiro inimigo oculto, no infinitamente pequeno e, finalmente, nele tendo encontrado a causa das doenças, fácil lhe fosse vencê-las. E o homem, sempre ávido de guerras, iniciou com isto uma nova guerra, e nela acreditaram médicos e doentes, estes últimos sugestionados pela nova ciência que os aterrorizava com o espectro do micróbio. Mas explicaremos melhor, logo abaixo, estes conceitos.

Outra consequência da supra-citada psicologia luciferiana, é o fracionamento a que ela tende por sua natureza, estando situada no pólo oposto ao que representa a unidade em Deus. A especialização, o perder-se, desorientando-se, no dédalo das análises, arruinando assim a virtude da síntese e da unidade, é um dos erros de todo o pensamento científico moderno. Procede-se hoje por análise, subdividindo e seccionando, cada vez mais aprofundando-se o particular. Assim, quanto mais subdividirmos um organismo unitário, tanto mais nos afastaremos da possibilidade de compreendê-lo. E por fim, não nos fica em mão senão um acúmulo de elementos desconexos, dos quais temos que achar os significados reconstruindo-os na unidade, num conjunto que os explique e valorize, e cuja imagem desapareceu de nossa frente. Não é de ordem analítica, mas sintética, o conhecimento do ser humano. Inegavelmente são grandes as descobertas da ciência médica, mas, para compreender, não basta um mosaico de julgamentos separados, pois bem diferente é o desenho geral, o único que valoriza as várias partes numa ordem superior. Não pode ser obtida a compreensão do ser humano, adicionando todos os infinitos conhecimentos analíticos, tirados da observação do particular, mas só vendo-o de outro ponto de vista em seu conjunto. Se o método da observação e experimentação representou grande progresso ao criar a ciência, não  é ele entretanto isento de perigos. Especializar-se quer dizer separar, significa ir de encontro ao princípio fundamental da unidade, que rege todas as formas de vida. O organismo humano é feito por órgãos que se fundem, e não por compartimentos estanques.

O microbismo mencionado acima é um dos efeitos dessa psicologia. É ele o calcanhar de Aquiles da atual medicina, é o locus minoris resistentiae do conceito patogenético. Dá-nos ele, mediante as bactérias, uma explicação que parece fácil e acessível, mas é apenas aparente, como veremos, e não resiste à crítica. Outra consequência e caminho de extravio, é o laboratório. Se é verdade que fornece elementos para o diagnóstico, nem sempre resolve o problema. Indivíduos há que continuam doentes, apesar de serem negativos os exames. Quantas vezes poder-se-á negar uma úlcera porque o radiologista não acha o nicho duodenal; ou então negaremos a qualidade tuberculosa de um depauperamento orgânico, de uma tenaz dor torácica, de uma febre ligeira, porque o escarro não apresenta bacilos e a radiografia é negativa, quando ao contrário a história clínica e o hábito constitucional do enfermo falam claro de uma pré-tuberculose? Assim, quantas outras doenças são excluídas, com base na resposta negativa do laboratório! Não deve ele substituir a nossa síntese pela sua análise. Nosso julgamento deve dominar, e não sujeitar-se a tais respostas, deve iluminá-las com sua luz e completá-las onde elas se calam. Em outros termos, é mister curar o enfermo como unidade orgânica, e não a doença, teoricamente decomposta em seus elementos.

Como se vê, a medicina está enferma de diversas enfermidades. Mas, dado que isto é a consequência da corrente de pensamento hoje em voga, é natural que esteja desviado do bom caminho também o conjunto dos doentes. A massa destes, sendo eles homens de nosso tempo, tem um conceito errado da vida. Esta é um ato de ordem e disciplina, do espírito e do corpo, e não uma corrida ao gozo. Os vícios de todos, ricos e pobres, as condições antinaturais da vida nas grandes cidades, mil hábitos artificiais, transformam a elevação do nível da vida num perigo para a saúde. Esta é dada, antes de tudo, por um regime simples e sóbrio de ordem, porque a doença só entra quando lhe tivermos aberto as portas, enfraquecendo as naturais resistências orgânicas, com um sistema errado de vida. Nisto entram também nossos hábitos psíquicos, nosso modo de conceber e dirigir-nos. Com sua direção materialista, a sociedade moderna elevou, como biótipo modelo, o homem de ação, desvalorizando o homem de pensamento, este é o que mais vale. Conseguiu-se assim eliminar da vida social o sentido de orientação nas infelicidades, a fé que anima no porvir, a consciência das metas remotas para as quais vivemos, o equilíbrio e a calma dos sábios.

Chegar-se-á dessa forma a eliminar o biótipo do homem bom e honesto, e far-se-á sempre mais dura a luta, numa ânsia sem tréguas. Mesmo que o trabalho produza bem-estar, se não for orientado a fins superiores, ele, ficando espiritualmente estéril, nos deixará desiludidos. Caro pagará a sociedade, com sofrimentos nervosos e morais, a carência desses elementos indubitavelmente necessários à vida. Não poderá permanecer impune e sem consequências o erro de ter querido fazer do homem, ser espiritual, apenas uma máquina de produzir dinheiro. O espírito, cloroformizado pela concepção materialista da vida, manifesta-se como pensamento falaz, incerto, agitado, desorientado, que não caminha direto ao alvo, mas perde-se na tentativa de alcançá-lo. Essa ingente corrida ao vazio parece dinamismo, mas é uma corrida para procurar sem encontrar, e que não conclui, como faria o pensamento ponderado que sabe e vai direto ao escopo. A vida moderna, em grande parte, é apenas barulho inútil, uma inquietude que dissipa sem produzir, é dispersão de energias, é inquieto nervosismo debaixo do qual está o vazio. Trabalha-se com forças ilusórias, produzidas por excitantes. Cada desequilíbrio produz novo desequilíbrio e assim cada vez mais rápido gira o turbilhão que tudo arrasta. Não mais se sabe hoje quanto frutifica o saber trabalhar com calma. E por isso trabalha-se para perda, com a máquina inçada de atritos. Com as premissas que o materialismo hoje lhe deu, a vida se torna a fadiga do diabo, desarmônica, dolorosa, que só produz dano. Ao passo que a fadiga de Deus é harmônica, alegre e produz frutos de paz. Nem mesmo sabemos mais repousar e é frequente fazê-lo cansando-nos com inúteis fadigas. O homem moderno tem medo do silêncio, e, para repousar, gosta de aturdir-se com novos rumores.

Vive-se esmagando o próximo. E isto significa a dor de todos, mesmo do vencedor, porque também ele poderá cair amanhã na posição de vencido. É mister compreender que, esmagando o próximo, hoje, que se está formando a unidade social humana, não estamos esmagando um estranho, mas uma parte de nosso próprio organismo ou corpo social, de que somos células. É indispensável a eliminação do ódio que corrói a todos. A ferocidade na luta pela vida imprime traumas na psique, que se fixam na raça, com complexos congênitos de inferioridade. Formam-se assim os pontos fracos que depois investem também contra o terreno orgânico, criando focos de vulnerabilidade que constituem as portas abertas para as doenças. Cada erro se paga: mesmo este da desorientação espiritual. E paga-se com a moeda soante de nossa dor. Cada estado desarmônico ecoa e se repercute de plano em plano, até que fique exaurido seu impulso e não esteja tudo pago por nós mesmos. Para remediar a tudo isso seria necessária não só uma profilaxia e higiene fisiológica, mas sobretudo uma espiritual.

Diante de tal estado de coisas, ao invés de reconhecer essa condição patológica, ao invés de compreender que suas causas estão, antes de tudo no espírito, e que a cura só pode ser obtida refazendo-se tudo desde o início, prefere o homem abandonar-se ao belo sonho de que, com a baqueta mágica do farmacêutico, a medicina opere por si o milagre de curar-nos. Na verdade, sonhar é belo. Mas é lógico que, depois, tudo seja ilusão. Antes, abusa-se de tudo com uma vida desregrada, e depois pretende-se o milagre da cura pela ciência. Com essa psicologia dominante, como impedir que ela influencie o próprio médico, que é assim levado a usar sistemas enérgicos, que dêem o que o cliente quer: o tangível resultado imediato, sem cogitar-se do que poderá custar isso ao organismo, perturbado em seus equilíbrios naturais?

Doutro lado, como impedir, dada a psicologia dominante, que se forme sobre ela uma indústria farmacêutica que satisfaça esse estado de ânimo? É natural que a procura provoque a produção e a oferta. Aparece assim, no mercado, um acervo de produtos já confeccionados para cada tipo de doença. Desse modo, prescindindo das particulares condições do enfermo, acha-se automaticamente pronto o remédio. E porque tudo seja acessível a todos, mesmo às classes menos favorecidas, mecaniza-se a vida em serviços simplificados e administrados em série. Essa industrialização é, na verdade, economicamente rendosa e mais realizável, porque praticamente mais fácil, mas não é, sem dúvida, o meio mais apto à finalidade de curar. Todavia, como se vê, existe uma cadeia de exigências de todo gênero; dessa forma, elas são satisfeitas, e assim se explica tudo. Há somente um pequeno erro. A solução do problema da saúde física e espiritual, problema único, não pode alcançar-se por esse caminho. A saúde não se conquista com o produto farmacêutico, mas com um regime são de vida, fornecido pela compreensão de suas leis e a obediência a elas. A saúde é um estado de equilíbrio que só pode ser conquistado pelo esforço do autodomínio, para manter-nos disciplinados na ordem, tanto espiritual como material. E uma medicina enferma de analitismo, de microbismo, de laboratorismo etc., não poderá de modo algum, por meio da indústria farmacêutica, realizar o milagre absurdo de curar um público de doentes desorientados, ignaros das regras do sadio viver.

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Após esta visão panorâmica, entremos nas minúcias da questão. Procuremos compreender como, não obstante isso, saiba a vida triunfar de tudo. Se assim não fora, já de há muito teria desaparecido a humanidade. Acredita-se, em geral, que as doenças cheguem por acaso, quando o capricho de alguns micróbios patogênicos os faça agredir a instalar-se em nosso organismo. Mas não é assim. Em muitos casos só entram os micróbios quando há uma porta aberta e um convite que os instigue a entrar. Não é só o micróbio então que é o inimigo, mas também o nosso estado orgânico é a causa de nossas doenças. A lei é que cada um traga em si mesmo a causa das próprias enfermidades: é que muitas vezes a doença atrai o micróbio, e não o micróbio forma a doença. Como ocorre isso?

A orientação diagnóstica post-pasteuriana, organística e localista, foi sempre levada a considerar o ponto de chegada, mais do que o ponto de partida da doença. Descoberta a presença de determinado micróbio, a medicina fica satisfeita por poder considerá-lo a causa primeira da doença, tanto mais que a experiência confirmava essa presença. E eis a série dos antibióticos, sulfas, penicilinas, com outros derivados do mofo; estreptomicina, clitocibina, aspergilina, aureomicina, cloromicetina, superpenicilina, subtilina etc. Assim, os antibióticos, palavra que significa contrários à vida, deveriam curá-la.

Passam-se as coisas diferentemente. O micróbio lá está sem dúvida, porque onde existe matéria orgânica desvitalizada e em dissolução, ele não pode faltar. Mas lá não se encontra ele para agredir com seu poder homicida, mas para cumprir sua função benéfica, de ordem, que entra no quadro do desenvolvimento e da solução da doença. Os micróbios são muitas vezes efeito, e não causa da doença, são o ponto de chegada, e não o de partida dela. Há aqui um erro de perspectiva psicológica. Não existem, na natureza, antagonismos, mas integrações. A doença em geral está na constituição do indivíduo, suas raízes mergulham no terreno orgânico do sujeito. O ponto de partida é o acumular-se de substâncias tóxicas, de matérias morbígenas, contra o qual, quando elas atingem o limite de tolerância, reage a natureza orgânica por legítima defesa, e a doença explode, por lei de conservação. Ela é, pois, uma crise protetora, um esforço curativo da natureza, necessário para restabelecer o equilíbrio fisiológico humoral.

Essa reação tem sua razão de ser, sua estrutura, seu ciclo, sua duração, seu individual tempo interior, sua solução. A natureza viva é, sem dúvida, inteligente e fina-lística, tendendo à própria conservação. É natural, então, que em tais processos reativos se realizem operações de acúmulo, de transformação, de eliminação de substâncias tóxicas, de detritos celulares, operações que só os micróbios podem realizar, porque é a eles que, no terreno agrário como no animal, está confiada a função desintegradora das substâncias desvitalizadas. São eles então atraídos como por uma chamada, acorrem e realizam sua função auxiliar e integradora, pela solução do processo morboso. Assim como os micróbios do terreno se lançam sobre as matérias em decomposição, para trans-formá-las e torná-las assimiláveis às plantas, também os micróbios que se acham inócuos, à espera, no ambiente ou em nós, quase que sentindo a presa, se lançam sobre as matérias em decomposição que se acumularam, para transformá-las e eliminá-las.

Então, não é o micróbio que atenta à vida celular, mas é a célula organizada que, desorganizando-se, de-compondo-se e dissolvendo-se, permite ao micróbio viver e cumprir sua função cósmica proteolítica. Nada há de funesto e mortal nas coisas da natureza. A doença muitas vezes é uma experiência de salvação e a morte é a passagem a outra forma de vida. As próprias doenças epidêmicas, como peste e cólera, são consequências da resposta do organismo às causas patogênicas. Assim não fora, numa epidemia deveria perecer a totalidade.

Segue-se daí que o sistema de truncar os sintomas de uma doença aguda, como se fossem eles a causa, é uma repressão perigosa com resultados ilusórios. As doenças agudas são uma concentração de luta, onde esta é necessária. Trata-se de movimentos calculados, que se devem desenvolver segundo um plano preestabelecido. Então, a satisfação de truncar a doença, prepara outra mais grave, porque a natureza não abandona a luta e acende alhures a necessária reação para sua conservação. Isto até que, exauridas as forças disponíveis, ela se relaxa, e permite então o advento da anarquia orgânica do câncer. Se este vai crescendo, deriva isto também do sistema de obstacular o desenvolvimento das salutares reações morbosas. É perigoso atrapalhar os cálculos da natureza que se defende, eliminando os micróbios com os quais ela conta. Paralisando-os, anula-se também um meio de defesa. Mas, além disso, o antibiótico é um tóxico para o organismo, tanto que paralisa todos os elementos: químicos, físicos, histológicos, secretivos, nervosos e magnéticos, que a natureza havia mobilizado para sua defesa. Desaparecem, então, os sintomas. Eis o milagre, que é ilusão. O esforço vital de defesa foi anulado de um golpe. Faz-se o deserto. Os humores tóxicos, de que estava saturada a economia e contra os quais se armara a natureza, continuam a poluí-la e o doente permanecerá doente. Ele, então, ao invés de recobrar-se, fica fraco e cansado. E se a seguir, não obstante tudo, souber a natureza e tiver a força de reacender uma reação de defesa, cairá o organismo num estado progressivamente discrástico, que preparara as mais variadas síndromes degenerativas, até a tragédia do câncer. É por isso que, com tantas descobertas, as estatísticas vão registrando aumento de doentes.

O princípio da caça ao micróbio não resolve. Ob-serve-se apenas o fato de que ele se habitua e, circulando qual patrimônio comum a todos, requer, para ser abrandado e debelado, uma dose, sempre mais forte da substância com que o queríamos eliminar. Seria indispensável maior respeito às leis da natureza, evitando intervenções violentas e diretas. Ela fez a corrente circulatória hermeticamente fechada, a fim de que as substâncias que são absorvidas pelo sangue, sejam antes homogeneizadas pelos complexos fisiológicos do organismo a que pertence o sangue. É perigoso, por isso, o comuníssimo uso de atentar à integridade do sistema circulatório mediante injeções endovenosas.

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Penetremos ainda em maiores particularidades, para nos aproximarmos da compreensão do caso específico do câncer. Esclarecemos acima estes pontos: a natureza possui uma inteligência sua, que usa com finalidades defensivas e conservadoras. A doença, então, é um movimento curador, que faz parte de seus equilíbrios. A doença não é devida só ao micróbio, mas sobretudo ao estado de vulnerabilidade do organismo. Se bem que a nossa seja a era microbiana, em que a medicina se apega ao conceito de infecção, os micróbios não são ferozes homicidas, mas colaboradores dos processos da vida. É a anormalidade do tecido que precede a chegada e a fixação do micróbio, de modo que as formações microbianas se apresentam, quando é necessário desenvolver-se sua função proteolítica de purificação dos focos.

Dito isso, procuremos compreender o mecanismo da patogênese do câncer. Para melhor compreender o fenômeno, reportemo-nos às origens do nosso organismo. Daremos assim um breve passeio pelas íntimas maravilhas da vida, o que nos permitirá observar a sabedoria de seus planos de desenvolvimento e esquemas arquitetônicos e fazer novas observações também em relação à reencarnação.

A entidade psicofísica que constitui o homem, é apenas, em última análise, a vibrante organização de bilhões de células em contínua evolução ou involução, em contínua adaptação ao ambiente externo, assim como o cosmos é apenas um imenso agregado de átomos. Vida orgânica e vida inorgânica, fenômeno biológico e fenômeno fisioquímico, são expressões da mesma matéria que se organiza e se agrega de modo diversíssimo. De tal forma que poderemos dizer que, no mundo biológico, a célula está para o organismo, assim como, no mundo fisioquímico, o átomo está para o microcosmo. Como o átomo inorgânico é constituído por um núcleo central de carga eletropositiva e por um ou mais eléctrons de carga eletronegativa, assim a célula é constituída por um núcleo central e pela substância protoplasmática. Assim, célula e átomo são as unidades constituintes elementares do mundo orgânico e do inorgânico, igualmente cindidas e reunidas, em seus dois elementos componentes, inversos e complementares, sempre positivos e negativos. Assim o átomo é regido e animado pela coesão de duas partes antagônicas que o compõem: a carga eletronegativa ou magnética e a carga eletropositiva ou radioativa. Por sua vez, a célula, outro equilíbrio, por compensação dos contrários – uma espécie de átomo orgânico –, tem, diferente do átomo inorgânico, o núcleo carregado eletronegativamente, e a massa protoplasmática carregada eletropositivamente. Essa inversão de carga elétrica entre o mun-do inorgânico e o orgânico é o ponto nevrálgico da biologia. Paralelismos que relacionam tudo com um princípio unitário. Quando for penetrado o mistério biológico até à profundidade do átomo constituinte, segundo as universais leis da matéria, o fenômeno da vida poderá ser visto em sua unidade com todos os outros fenômenos.

Enquadrado assim, em relação ao fenômeno cósmico, o fenômeno da vida humana, vejamos como se inicia ele em seu lado físico. Deriva nosso organismo vivo de uma primeira semente representada pela esfera de segmentação, que se forma pela fusão das duas células sexuadas, masculina e feminina. Elas são o produto de dois organismos vivos, que se formaram pelo mesmo processo, numa corrente vital única, em que se escreve toda a história vivida e se imprimem todas as qualidades adquiridas no campo orgânico. Tudo é assim transmitido e, com o nascimento, cada indivíduo recebe dessa forma uma sua particular constituição física, com qualidades de resistência e vulnerabilidade congênitas, hereditárias, atávicas. Assim, a substância fisiológica, que fornece a matéria prima para a construção do organismo humano, pode estar, desde o início, sadia ou estragada, conforme a carne transmitida pelos pais.

A primeira célula do novo organismo é constituída, pois, pela fusão dos dois elementos prolígenos, unidos numa simbiose celular, em que são impressos os caracteres das duas células progenitoras, caracteres que continuarão a transmitir-se em toda a multiplicação celular sobre a qual se baseia a formação do organismo físico. Logo que se forma esta primeira célula, inicia-se o processo de construção de uma vida própria autônoma e independente, que faz centro em redor de outro eu ou personalidade, que não é a dos pais, ainda que o material, com que se possa vestir de um corpo, seja tomado do organismo vindo da mãe. Da primeira célula, começa um processo de reprodução e multiplicação por cisões (cariocinese), com ritmo e diferenciações bem disciplinadas: ritmo forte nas primeiras fases embrionais e de crescimento, que em seguida paulatinamente decresce, à proporção que os tecidos se vão diferenciando e se formam os órgãos e os aparelhos orgânicos; até que, quando o organismo adquiriu sua conformação definitiva e adulta, a reprodução celular é tão exatamente disciplinada, que se limita apenas a substituir as células que, na troca vital, se vão gastando. A disciplina é também dada pelos limites dentro dos quais a célula deve reproduzir-se, sem o que o organismo nem atingiria nem manteria a sua configuração.

Leva-nos tudo isto a considerações de caráter filosófico e espiritual, que só podíamos fazer após o presente estudo, de índole técnica, para uso dos médicos. Quem dirige todo o fenômeno? Há nele uma disciplina perfeita, uma coordenação de operações que cooperam para a execução de um exato e preconcebido esquema arquitetônico. Uma disciplina presume um disciplinante, um trabalho inteligente indica um princípio inteligente, um trabalho periférico implica um motor e uma direção central, a construção de uma estrutura orgânica só pode derivar de uma unitária vontade finalística a que obedecem as células. Quem é que dirige todo esse trabalho? Por si, certamente não. Cada uma das células, por mais que seja levada por hábitos e lembranças atávicas, a refazer um caminho já tantas vezes percorrido (a ontogênese repete a filogênese), não pode dirigir um trabalho de conjunto, diferente do de cada uma, não pode possuir um conhecimento que supere as funções da própria vida de cada uma. Então, o que dirige tudo é um genérico consciente cósmico? Mas, neste campo da vida, tudo é individuado, tanto como forma própria exterior, quanto como princípio diretivo; portanto, um genérico consciente cósmico só pode ser concebido como individuado na forma de um “eu” pessoal ou princípio espiritual da personalidade. Será talvez a alma da mãe? Mas o processo continua, mesmo que a mãe morra logo após o parto e, mesmo em seu seio, há diretivas autônomas, independentes da vontade dela.

Só nos resta admitir um princípio espiritual preexistente, que intervenha para realizar esse trabalho. Ini-cia-se a sua ação diretora na primeira reunião dos elementos prolígenos sexuais, no átimo da concepção (em confirmação, veja o cap.: “O Livro Tibetano dos Mortos”). O trabalho que vemos realizar-se, como consequência, demonstra-nos a verdade e necessidade desta afirmação. É o espírito que, nos primeiros tempos, vivendo da vida da mãe, faz para si e por si, o seu invólucro físico, adaptando-se ao terreno paterno-materno de que o deriva, e adaptando a si esse material de construção. Assim o espírito constrói sua casa. Podemos agora, no campo biológico, esclarecer o fenômeno da reencarnação, de que em breve nos ocuparemos. Aqui não se trata só de uma memória atávica celular, que poderemos chamar analítica e periférica, mas de outra memória espiritual, que poderemos denominar sintética e central; para indicar-nos a sua existência, seria suficiente a lei de equilíbrio do dualismo universal. Quando do nascimento do corpo, a alma se dedica ao trabalho de formação de um organismo que corresponda a um esquema preestabelecido, que a alma já conhece por sucessivas encarnações no biótipo humano. Não se lança ela a uma experiência nova, mas apenas repete uma experiência já realizada quem sabe quantas vezes, cujo conhecimento só pode ser adquirido lentamente, por graus. Doutra forma, o espírito não poderia realizar esse trabalho. Tudo converge para demonstrar-nos a verdade da tese reencarnacionista. Material orgânico e espírito já se conhecem bem, e só de longa convivência podia nascer a sintonia fisiopsíquica que permite sua fusão num mesmo composto humano. A vida baseia a sua resistência na adaptação, e assim é ela possível de ambas as partes, do corpo em relação ao espírito e do espírito em relação ao corpo. Por longa repetição, a alma humana habituou-se, homogneizou-se, no ambiente terrestre. É absolutamente impossível que um princípio espiritual, que se destacou do mundo do absoluto, possa, no momento da concepção, enxertar-se de um golpe no mundo da matéria. Como aceitar esse conceito, quando ele contrasta com os hábitos fenomênicos do universo e está em flagrante contradição com o que vemos ser feito pela vida a cada instante? Além disso, com a teoria da criação da alma ao nascimento, cairia toda a teoria da evolução espiritual, que é a contrapartida da queda pela violação da ordem da lei: cairia o sistema que explica tudo, e dever-se-ia concluir pelo desequilíbrio, pelo absurdo, pelo caos.

Cada princípio espiritual (no sentido mais amplo, de princípio que anima qualquer forma de vida), tem seu tipo biológico ao qual ele está proporcionado, em que possa encarnar-se, e no qual acha sua adequada expressão e gênero de experiência adaptada, necessária para sua evolução. Quanto menos evoluído for esse princípio, tanto mais elementar será sua veste corpórea, descendo no mundo animal até ao vegetal, até o mineral (cristais) e atômicos. Mas quanto mais se desenvolver esse princípio, tanto mais tenderá a superar a expressão de forma humana e a emigrar em ambientes onde lhe será possível construir para si uma habitação mais perfeita, adaptada ao seu novo desenvolvimento e ao seu gênero de experiências, necessárias a ele para continuar a evolver. Mas esta é uma ciência que é aprendida gradualmente e que não pode ser usada senão quando conquistada por merecimento. Recordemos que os fatos nos mostram reinar no universo um princípio de ordem, segundo o qual, apesar de todas as revoltas, cada coisa está contida em seu devido posto, nos limites que lhe dizem respeito. Mesmo se, em casos particulares, pode ocorrer o contrário, nos princípios diretivos reina inviolável a disciplina.

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Depois desta moldura introdutória, útil também para a teoria da reencarnação, retomemos agora o caminho para alcançar a compreensão do fenômeno do câncer. Escolhemo-lo entre muitos outros, porque nos permite ele realizar várias observações importantes. Vimos que a primeira célula do novo organismo é uma simbiose celular. Este é o tipo da sadia simbiose fisiológica, de que deriva um desenvolvimento disciplinado de células, que obedecem a um princípio central diretivo. Tudo aqui se desenvolve segundo leis organizadoras, associativas, corporativas, que dominam férrea e totalitariamente as miríades de células que compõem o organismo inteiro. A patológica celulação neoplástica do câncer, ao contrário, tem características opostas. A célula neoplástica não obedece mais à disciplina do poder central e, arrastada pelo próprio prurido genético, reproduz-se louca e anarquicamente. Daí o neoplasma. Acontece assim, que essa célula neoplástica, reproduzindo-se por subdivisão como as outras, não rebeldes, das quais mantém caracteres de semelhança, senão de identidade, torna-se a progenitora de uma colônia celular anárquica que se arraiga no tecido semelhante, constituindo aquela monstruosa massa que se chama câncer. Vive parasitariamente na sociedade policelular orgânica; da qual esgota o sangue e os coeficientes nutritivos, em cuja torrente humoral despeja os produtos de sua especial troca, verdadeiro glúten de morte, de modo que, gradual e irremediavelmente, subverte a admirável e concorde sociedade celular, até destruir todo o organismo. No maravilhoso e harmônico complexo de nossos tecidos, órgãos e aparelhos, que são expressões de ordem e disciplina, essa célula secessionista, subversiva, anárquica e criminosa é, ao contrário, a expressão da desordem e do mal no campo orgânico.

O fato de que o câncer aumenta à proporção que nos afastamos da vida sadia segundo a natureza, numa sociedade também espiritualmente corrompida, o fato de que ele aumenta com a corrupção desta, faz pensar que o câncer seja o resultado de um desconjuntamento dos ritmos vitais e exprima um estado patológico de todo o complexo humano. Seu modo de comportar-se faz pensar, de acordo com a lógica que até aqui desenvolvemos, em um relaxamento do poder diretivo central, que, é espiritual e, por conseguinte, em um regresso involutivo dos elementos que compõem sua veste corpórea. Significa isto que algumas células escapam assim à disciplina que as dirige, e por conseguinte recaem em sua fase involuída e desorganizada de reprodução indisciplinada. A ordem é uma conquista da evolução, como o é o entrosar-se em unidades múltiplas coletivas, que aquela ordem aceita em sua construção. A célula que escapa a um poder central coordenador, só pode ter suas diretivas individuais, uma independente da outra, sem capacidade para formar qualquer estrutura orgânica. No caso do câncer, achamo-nos então, no mesmo indivíduo, diante de duas unidades biológicas diferentes, que convivem nas mesmas bases fundamentais da vida, isto é, a colônia celular anárquica do câncer e a estrutura disciplinada do organismo humano. Explicaremos abaixo por que a célula rebelde neoplástica se comporta assim. Ela é derivada de um micróbio que, após longuíssima estada e adaptação, conseguiu desindividualizar-se e assumir caracteres afins aos das células dos evoluídos organismos policelulares.

Mas, antes de explicar tudo isso, paremos para algumas observações. Parece que, mesmo no campo biológico, as forças do mal assumem as mesmas características que o individuam no campo moral. A desordem e a revolta pertencem aos planos mais involuídos da vida, cujas formas inferiores tentam sempre agredir as formas mais evoluídas, desde que estas relaxem o controle e a defesa, que só pode ser exercitada pela força e inteligência do poder central. Repete-se esse fenômeno no campo social, quando vemos que, logo que se corrompe e enfraquece um governo, imediatamente das camadas inferiores da sociedade emerge a rebelião, para apoderar-se do poder. Leva-nos isto a ver uma relação entre o difundir-se do câncer e o crescente relaxamento moral de nossos tempos. Quando a desordem chega até ao poder central que é o espírito, ele perde os meios diretivos até da disciplina orgânica. O funcionamento e a estrutura das células se ressentem de estados de ânimo prolongados, habitudinários, que tendem a imprimir-se nelas projetando as próprias deformações do plano espiritual até o plano orgânico. É essa transmissão do subconsciente, e daí, por ideoplastia, à estrutura orgânica, que explica a evolução das formas como consequência da evolução do espírito, que é a causa dela. Então é natural que, quando do centro se inicia esse processo de degradação, se verifique um regresso geral involutivo. Compreende-se então como uma célula inferior e degenerada de origem micróbica, possa tentar revoluções no seio de um organismo relaxado pelo poder central. Este, então, não merecendo mais ficar no plano evolutivo atingido, é justo que, de acordo com os equilíbrios da vida, apareça agredido pelos inferiores e que seja eliminado, se não der prova de possuir em si o poder do comando e defesa que lhe dá o direito de viver.

Essa íntima conexão entre o próprio tipo espiritual e a forma orgânica que o reveste, induz-nos a admitir que, na reencarnação, o espírito deva escolher um organismo do seu tipo, que tenha suas qualidades, boas como más, porque de outro modo não pode formar a sintonização necessária para a fusão. Como poderia essa realizar-se sem uma semelhança? Na união da alma com o corpo, é claro que devem funcionar leis de afinidade, que operam por atração e repulsão. Desse modo, para poder conseguir realizar uma vida inteira de tão íntima convivência, devemos admitir identidades fundamentais de qualidades entre espírito e organismo, e que este último represente a verdadeira expressão do primeiro plano físico. Leva-nos isto a admitir outro fato que aperfeiçoa mais ainda a teoria da reencarnação. Quando um espírito vem inserir-se numa célula prolígena hereditariamente tarada, da qual só pode retirar um organismo com certas predisposições patológicas congênitas, não ocorre isto por acaso, mas segundo a lei de justiça que dá a cada um o que lhe cabe por seu merecimento. Será atraído por afinidade, para uma determinada estrutura orgânica, o tipo correspondente de personalidade, e não qualquer outro, ou seja, aquele tipo que tem um comprimento de onda que esteja em sintonia com a onda biológica da célula prolígena. Poderemos então dizer que os pontos vulneráveis, as predisposições a este ou àquele ataque patológico, estão antes de tudo no espírito; para não ser assim, mesmo se verificasse excepcionalmente o ataque contra um espírito são, a própria natureza diversa deste representaria um impulso contrário, tendente à cura. As exigências da lógica, os princípios de ordem e equilíbrio, um instintivo sentido de justiça, confirmam estas conclusões.

Mas, a atividade anárquica e separatista das células do câncer levam-nos ainda a outras considerações. O homem atual pode considerar-se como a célula de um novo grande organismo, a humanidade, hoje em formação. Como tal, acha-se o homem hoje socialmente na fase involuída das células desorganizadas, não ainda disciplinadas por um poder central e a ele obediente. Assemelha-se a nossa sociedade mais à massa desordenada celular do câncer, do que à estrutura ordenada de um organismo policelular. Como no período paleontológico, as novas formas de vida de nosso mundo estão na fase embrional da tentativa. O poder central deve formar-se por seleção, com a destruição das formas fracassadas, imaturas, não bastante sólidas para saberem resistir. E, formado ele, deve impor e manter, com sua real superioridade, a ordem entre os menos evoluídos, porque, ao primeiro sinal de inferioridade ou fraqueza dele, estes se sublevarão para destruir o poder central e tentar uma forma sua diferente. Só assim poderá formar-se o novo organismo social-humanidade, segundo a lei geral das unidades coletivas, com a coordenação e a união de cada uma das individualidades humanas.

Representa assim o homem atual a célula anárquica que, tal qual a do câncer, se reproduz sem disciplina nem freio. Esse é o estado das unidades primitivas, muito mais prolíficas que as evoluídas, a fim de que um grande número possa ser sacrificado, sem dano para a vida, em tentativas à procura de formas melhores. Quantas existências são sacrificadas com essa finalidade, desapiedadamente ceifadas pela seleção! O mais idôneo, só ele, é que sobrevive. Por isso, nesta fase, prolificar é fácil e abundante, proporcionado à inconsciência do homem que não percebe, de acordo com a sabedoria da Lei, que está gerando para a dor e a morte. E isto é um bem, senão que o levaria a procriar para atingir tão duro sacrifício e fadiga, embora tudo isto seja necessário para que se cumpra a evolução? Mas, no futuro, deverá ocorrer no organismo social o que hoje sucede no organismo humano, e mesmo na sociedade de alguns animais (abelhas, formigas), onde os nascimentos são controlados em relação aos meios de subsistência e às possibilidades de educação. A moral evolve com a vida e justifica-se com as exigências supremas desta. Hoje é imoral o controle dos nascimentos, porque contrário aos interesses da vida na fase atual, como vimos agora mesmo. Nem podia isso ser concedido a um homem desprovido de consciência coletiva, de consciência eugenética, cego diante dos remotos fins da vida, um homem que ainda não transformou em automatismos, isto é, em instinto natural, mediante longa repetição, o estado de absoluta adesão à Lei e à obediência a ordem. Só a esse tipo biológico podem conceder-se tais liberdades. Hoje seriam usadas apenas para fins de abuso, para fraudar a natureza, buscar gozos, fugindo aos sagrados deveres impostos pela prole. E hoje, a vida quer que se procrie em abundância, para que haja bastante gente para sacrificar, a fim de resistir às guerras e às suas grandes destruições, à miséria, a tantas doenças novas criadas pela civilização, sobretudo à seleção dos mais débeis e à feroz luta corpo a corpo de todos contra todos, na qual tantos perecem sem derramamento de sangue. Enquanto não se passar desta atual fase caótica a uma fase de ordem, o sistema de colaboração e disciplina que se realiza em nosso organismo não poderá ser alcançado pelo organismo coletivo. Mas, atingida uma fase de ordem, em que a atual dispersão da vida não mais for requisitada pelas formas caóticas de existência, não permitirá mais a natureza um desperdício que então será inútil, e disciplinará o esforço genético em proporção a suas novas condições. O homem evoluído, civilizado e consciente não procriará mais apenas para seu gozo egoístico, para abandonar os filhos à lei feroz da seleção do mais forte; mas procriará apenas quando souber que a vida é garantida e assegurado um mínimo indispensável de bem-estar.

 

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Após estas breves digressões, que nos aconselhou o argumento, retomemos o problema da gênese do câncer. Os saprófitos endorgânicos, em convivência perene, de contraste e adaptação, com a natureza orgânica humana, são quatro: o espiroqueta de Schaudinn e o plasmódio de Laveran, da série acidógena; o bacilo de Koch e o gonococo de Neisser, da série alcalinógena.

O saprófito que, no homem, em geral, produz o câncer é o espiroqueta. Por que isso? Este é o menos exigente, o mais paciente e contemporizador. Fica escondido durante anos, durante gerações inteiras. Sem bulha, adapta-se, e é raro que organize ataques. O organismo que o hospeda não teme a fraude que ele esconde, e portanto não reage como o faz os outros saprófitos, mais vivazes e esfaimados, à espreita entre tecidos mais altamente diferenciados, cujas sentinelas estão continuamente alertas. Mas a vida do espiroqueta, ainda que reduzida, exala, não obstante, produtos tóxicos que lentamente alteram o quimismo celular, a física nuclear, a própria estrutura dos átomos da molécula protoplasmática, e bem assim o potencial, magnético e radio-ativo, negativo e positivo, da célula inteira.

Ora, a célula de um organismo policelular que esteja em perfeita saúde, é como uma cidadela fortificada, cujo muro de cinta não permite invasão de elementos heterogêneos. Mas, quando na luta enervante contra o saprófito, se tenha gasto e relaxado a membrana celular, e quando o próprio saprófito, por força da luta mesma, se tenha gradualmente enfraquecido, até perder suas tendências evolutivas e agressivas, achar-nos-emos diante de duas substâncias prolíficas, já originariamente heterogêneas, as quais, quer por sua constituição quase idêntica, como a experiência o comprova, quer pelo recíproco contraste e adaptação, acabam achando-se em seus agrupamentos atômicos, em estado de equivalência, em relação às leis que dominam os processos de fusão.

Dissemos equivalência e fusão. Mas, a este propósito, há outro fato. O espiroqueta de Schaudinn encerra uma cromatina nuclear idêntica à dos núcleos celulares, especialmente no homem. Há pois, forte afinidade. Diz-nos Pfeiffer que: “a causa da neoplasmogênese é uma cromatina heterogênea trazida de fora por um portador de cromatina, e esta cromatina no homem é exatamente a cromatina nuclear do espiroqueta de Schaudinn”. Esse portador, então, só pode ser o germe que habita permanentemente na economia do organismo humano, no estado saprofitário. É legítimo pensar, então que, em consequência da contínua intoxicação, a cinta celular já bem defendida e fortificada para deixar passar somente as correntes osmóticas nutritivas homogeneizadas, possa relaxar suas malhas tanto que permita o ingresso à cromatina heterogênea, produto do saprofitismo espiroquético, à qual a própria célula se acostumou no prolongado contraste.

Tudo isso tende a um estado de semelhança, pelo qual os dois termos contrários acabarão fundindo-se em simbiose. Temos, com efeito, um contraste contínuo e prolongado, durante o qual tanto o agressor como o agredido, não podendo alcançar uma vitória plena e definitiva, acabarão por adaptar-se, em base à lei da adaptação, atenuando respectivamente sua energia agressiva e reativa. Tudo isto faz-nos pensar que o espiroqueta tenha habitado no terreno orgânico humano desde a noite dos tempos e se tenha aí acomodado a ponto de ter caracteres confundíveis com a substância nuclear do antropoplasma. E faz-nos pensar também que o contraste e a adaptação entre o plasma humano e o plasma espiroquético, prolongando-se por indefinido fluir de gerações, constituam um fator da mais alta importância para atingir semelhante fraternidade de dois plasmas, de tal forma que desarranje a disciplina reprodutiva da célula orgânica.

Que acontece então? Acontece a simbiose célula-micróbica. Teremos simbiose de uma célula que não é mais célula, com um micróbio que não é mais micróbio; isto é, de dois elementos desindividualizados, que fundem suas cromatinas nucleares, até aí vitais, para dar lugar a um conglomerado nuclear que contém em si uma parte da substância nuclear celular, e uma parte da substância nuclear do micróbio. Teremos uma neocélula, que não perdeu em absoluto a virtude reprodutiva, mas, ao contrário, a sente exaltada pela cromatina micróbica. Neocélula “sui generis”, híbrida, subordinada por uma substância que não tem nenhuma intenção de sujeitar sua tendência ultra-reprodutiva às leis do organismo em que penetrou. Neocélula degenerada, que se rebela contra as leis às quais obedecem as células sadias, em perfeita disciplina. Anárquica, no seio da ordem, procurará transformá-la em desordem, para arruinar toda a sociedade policelular à qual se agarrou.

   

Forma-se assim a célula neoplástica, que constitui uma hibridação celular, com caracteres semelhantes mas não idênticos aos das células. Nela estão fixados os caracteres parentais da célula e do vírus, como estão fixados, na esfera de segmentação, os caracteres parentais do espermatozóide e do óvulo. Temos, assim, uma célula simbiótica patológica, com a mesma fusão e permanência dos caracteres parentais, como acontece na célula simbiótica fisiológica. Ou seja, temos na célula neoplástica uma fusão como a que ocorre com as células prolígenas sexuadas, para formar o neoplasma fisiológico, na qual a operação dos elementos genéticos, dada a fusão, se desindividualizam, iniciando uma nova individualidade celular, em que permanecem, em potência, os caracteres dos pais.

Eis como nasce o híbrido neoplástico, contexto celular todo “sui generis”, que obedece a leis suas, não às do organismo em que se abriga, e obedece primeiro àquela imposta pela tendência ultra-reprodutiva do vírus. Por isso ocorre que, enquanto as células dos organismos policelulares se reproduzem em proporção aritmética, as monocélulas micróbicas se reproduzem em proporção geométrica. O prurido reprodutivo das primeiras é contido pelas leis rígidas centrípetas da associação e organização, ao passo que nas segundas ele extravasa sob a elástica lei da reprodução, eminentemente centrífuga. Além disso, a reprodução celular é constrangida dentro dos limites da configuração anatômica dos tecidos e órgãos, ao passo que a reprodução micróbica pode dilatar-se indefinidamente. Assim, enquanto a célula orgânica, por memória ancestral, habituou-se à disciplina, com a qual freia o próprio ímpeto reprodutivo, proporcionando-o às exigências de toda a sociedade das células, sob diretivas unitárias de um eu central, a célula micróbica, ignara de qualquer disciplina finalística coletiva, trata apenas de reproduzir-se loucamente, não sendo nisto vigiada por nenhum poder coordenador. Esta observação confirma tudo quanto dissemos acima, em relação ao controle dos nascimentos, ou seja, explica-nos como, numa humanidade desorganizada e involuída como a atual, deve vigorar o princípio da prolificação livre e incontrolada. E explica-nos como, numa futura humanidade orgânica e evoluída, a vida imporá uma disciplina ao ímpeto reprodutivo, de modo que ele obedeça às exigências de toda a coletividade.

Eis de onde deriva o câncer. Formada a célula simbiótica pela união de dois elementos heterogêneos e antagonistas, ela se torna a cabeça do tronco genealógico de um novo ser dementado que, por sua origem, só obedece à sua lei e finalidade, que não são de maneira nenhuma as do organismo no seio do qual se desenvolve. Assim essa célula, pela desistência do organismo a reagir, gera uma populosa colônia celular, organização histológica disforme, avulsa de unidade orgânica e inimiga dela. Este é o câncer.

Para concluir, tiremos algumas consequências de tudo o que dissemos. Não existe, não pode existir e é inútil procurar, um micróbio no câncer. Nessa forma, ele não é encontrável materialmente, nem individualizável, nem, muito menos, isolável, como não são encontráveis, nem individualizáveis, nem isoláveis, da esfera de segmentação, uma vez feita a fusão, o espermatozóide e o óvulo, e bem assim suas respectivas cromatinas nucleares. Segue-se daí que a doença do câncer não pode considerar-se, em sentido absoluto, nem infecciosa, nem contagiosa, ainda que nisso tome parte a cromatina de um vírus micróbico; mas pode considerar-se doença degenerativa. O vírus jamais será encontradiço no contexto do neoplasma, porque perdeu seus traços fisionômicos, se desindividualizou no longo processo de homogeneização da própria substância nuclear com a da célula. No máximo, poderá achar-se circulando na economia, no estado granular ultramicroscópico, sobretudo durante a fase preneoplástica. É assim que o espiroqueta, uma vez entrado na economia orgânica, não sai mais dela, apesar dos remédios chamados específicos. Cessada a sintomatologia reativa, ele perde o estado figurado toxínico e se transfigura para sempre no estado de ultravírus tóxico, que polui permanentemente a economia do indivíduo e de sua descendência.

Assim, a doença é dada não pelo assalto atual de um micróbio, mas por uma geral incapacidade congênita do organismo de defender-se, incapacidade já revelada, pelo fato de ter o organismo permitido o estabelecimento dele e sua colônia inicial. A tragédia não reside tanto, então, no fato de apresentar-se o tumor, quanto no ter sido permitido o advento dele. Portanto, o problema ci-fra-se todo em saber-se colocar alguém em condições de não permitir esse advento. E vimos de que depende isso. A extirpação do tumor, por qualquer meio que seja, não pode recompor a unidade vital em sua harmônica submissão às leis que presidem ao equilíbrio da economia normal. Nem o cirurgião, nem os raios X, nem o rádio, nem outros medicamentos aparecidos hoje, poderão fazer voltar um poder central decaído e incapaz de governar. Assim acontece com todos os governos fracos e ineptos, que o primeiro sopro de revolução derruba. Este é o triste destino das sociedades civilizadas que se tornaram, como a nossa, insensibilizadas e anérgicas em suas virtudes reativas, discrasizadas pelo materialismo hedonístico e tendente ao paganismo, poluídas em tudo o que surge no espírito por saprofitismos psíquicos, que ecoam no plano orgânico com saprofitismos celulares. É indispensável compreender que, no conceito unitário da natureza, mesmo se a ciência não admite isso, a saúde é dirigida também pelas qualidades de ordem, equilíbrio e sabedoria de um poder central, que em tudo se prende ao princípio orgânico da vida. Isto reconduz-nos aos conceitos, com que iniciamos este capítulo.

Entretanto, não devemos ser pessimistas. Muito já se pode fazer evitando as causas determinantes dos estados orgânicos que predispõem ao desenvolvimento da doença. Isto é, evitar os coeficientes físicos e químicos que deprimem o tônus vital dos tecidos, nos pontos em que agem localmente, como café, álcool, tabaco, muitos medicamentos, substâncias químicas irritantes nos alimentos, traumas etc. Logo que se deprime o tônus vital celular, facilita-se a simbiose célula-micróbica. Um regime de vida simples, são e regrado, previne o câncer. Dissemos, no início, que o câncer aumenta na proporção do afastamento do viver segundo a natureza. Ele parece um produto da vida artificial da Civilização. Nutrir-se de acordo com a natureza e não por gula, com produtos genuínos e não com produtos sintéticos farmacêutico-industriais conservados. Evitar os medicamentos violentos da medicina repressiva que, estrangulando ao nascer os processos morbosos agudos e desviando-os de seu curso natural, deixam o pélago humoral poluído e em tempestade, resultando daí o enfraquecimento da resistência celular. Dessaprofitizar em tempo o terreno orgânico, estimulando o organismo a combater a cilada permanente do saprofitismo endorgânico, de modo que a célula orgânica, no prolongado contraste com o saprófito, seja sempre vitoriosa e não se precipite no estado de involução que, coincidindo com o estado de involução da célula saprofitária, permite o aparecimento da simbiose e portanto a neoplastia. Trata-se de combater a causa primeira do mal, isto é, aquela fragilidade e morbilidade dos tecidos e aquele particular químico-físio-tropismo que lhe preparam o terreno.

Mas há outro fator importante, e é o elemento espiritual. Tudo é conexo, no universo, e também no composto humano, feito de alma e corpo. Chega a admitir nossa ciência materialista que a psique deriva da matéria do corpo, e não vice-versa. Nós, ao contrário, não podemos deixar de admitir o poder da psique, formadora, diretora e conservadora do corpo, tanto no que diz respeito ao aparecimento e ao próprio propagar-se e difundir-se dos estados morbosos, como no que se relaciona ao mais ou menos rápido desaparecimento dos fatos patológicos. Assim, pode-se afirmar que a psique pode fazer adoecer o órgão sadio, como pode curar o órgão doente. Ainda que a biologia queira explicar todos os fenômenos, mesmo espirituais, só com o mundo físico, permanecem demonstradas estas nossas afirmações por todo o sistema desenvolvido em nossa obra. Aquele princípio vital, imaterial e imponderável, que é a alma, é tudo, porque sem ela a matéria seria incapaz de agregar-se em organismos vivos. Para ser positiva, a ciência apega-se à experiência. Mas o que dirige a experiência é a sua razão interna, seu finalismo, que lhe guia o processar-se, é um conceito que pertence ao espírito. Sem esse conceito que o ilumine e que nos revele a alma do fenômeno, este não tem significado. A experiência precisa ser interpretada por meio do engenho, que foi definido: “a faculdade de unir e reduzir à unidade comum, coisas separadas e diferentes” (G. B. Vico).

Em muitos casos, seria necessário começar curando a alma. Por esses caminhos, hoje inusitado, a terapia futura poderá curar muito mais doenças do que hoje se possa imaginar. Mas isto não exclui que, paralelamente, a nova ciência sutil das ondas e radiações, com que ela mesma se vai encaminhando para o reino do espírito, possa achar a estrada que beneficiará e salvará tantos pobres seres sofredores.

Concluindo, depois de haver tratado no presente volume de vários problemas sociais, tanto materiais como espirituais, quisemos tratar neste capítulo de outro assunto que tem grande importância para todos, qual seja, a terapia em geral e, no caso particular, a gênese do tão espalhado câncer, doença da civilização moderna. Os mais diversos temas, todos palpitantes de atualidade, foram aqui tratados com os mesmos princípios do nosso sistema, e assim as questões mais díspares, reconduzidas à unidade, isto é, àquele Monismo que é o conceito central da Obra.

Quisemos assim aplicar à vida prática de cada dia os princípios do sistema, desenvolvido nos volumes precedentes, e agora transportado ao terreno atual das realizações.

 

Seria loucura acreditar que o exame, que neste volume procedemos, das condições atuais do mundo, possa ser suficiente para modificá-lo e salvá-lo. Tão vasto fenômeno não poderá ser feito senão pelas poderosíssimas forças, que só Deus pode dominar. Nós, desprovidos de todo poder, somos apenas simples observadores. Mas conseguimos ascender, por meio da inspiração, a uma torre, de que são vistos os longínquos horizontes. Pudemos assim narrar aos que em baixo haviam permanecido, que aquelas poderosíssimas forças que estão nas mãos de Deus, estão prontas a mover-se, e qual a sua direção; e também as razões e o significado de tudo isso.

 

Se a crítica, por vezes parecer um pouco áspera, não foi para condenar do alto da cátedra, nem tão pouco para ofender, mas apenas para, fraternalmente, explicar que num sistema, guiado pela perfeição e sabedoria de Deus, a causa de tantas dores nossas só pode estar em nós mesmos, e são até poucas, em relação ao que merecemos. Se ao homem, com o seu espírito rebelde, fosse dado o poder, ele tentaria destruir o universo; e sem a providência de Deus que tudo guia, quiçá conseguiria destruir seu planeta. O fato é que estamos ainda em baixo, muito em baixo, na escala evolutiva. E baixo quer dizer, mais próximos do polo negativo, representado por Satanás e pelo caos, do que do polo positivo, constituído por Deus e pela ordem. O fato de que, na Terra, domina a lei da seleção do mais forte, isto é, da ascensão por esmagamento, demonstra quanto ainda estamos vizinhos do polo negativo, ou seja, do princípio satânico da revolta, pela qual só vence quem é mais forte, nesta posição às avessas, da rebelião. É natural que esse mundo, visto dos planos mais altos, como quisemos fazer neste volume, pareça infernal, ou seja, um lugar em que almas baixas sejam condenadas a viver aí por expiação. Não é possível aqui a felicidade senão do modo precário e como uma forma de inconsciência. A felicidade consciente, causada pela chegada do ser à plenitude do conhecimento da própria harmonização na ordem divina, só pode aparecer nos mundos superiores.

 

Se observarmos as características das várias formas de vida, em relação à altitude dos diversos tipos biológicos na escala evolutiva, veremos que o nosso mundo pertence mais aos planos infernais que aos paradisíacos. Poderá haver no além, em outros ambientes, infernos ainda piores. Mas o terrestre é suficiente para nossas forças.  Aqueles que merecem um pior, não tenham pressa, eles o acharão.

 

Que é o inferno e que é o paraíso? Pela queda, de que nasceu nosso universo material, o princípio da unidade que lhe constitui a base podia ser emborcado, mas não destruído. Resta assim por toda a parte um vínculo entre todos os seres. No alto, esse vínculo que os une é o amor, em baixo, permanece ele, mas às avessas, como ódio. Num todo orgânico, nenhum ser pode viver isolado. No paraíso, isto é, nas fases biológicas mais evoluídas, para as quais caminhamos, estão os seres abraçados para amar-se e fazer o bem, que a todos dá alegria. No inferno, ou seja, nas fases biológicas menos evoluídas, de que provimos e em que nos achamos ainda, abraçam-se os seres para se estrangular, para fazer o mal mutuamente, o que é dor para todos. Antítese perfeita, avesso completo, que, com a evolução, se vai endireitando. No paraíso, a vida de um é condição para a vida do outro. No inferno, a morte de um é condição para a vida do outro, e vice-versa. No mundo dos animais, com efeito, a carne de cada ser é alimento para nutrir outro, a derrota de um é a vitória do outro. Princípios estes que todos conhecem bem e que, no mundo humano, só mudam de forma, permanecendo os mesmos na substância. De fato, regulam eles a seleção sexual, a conquista da vida, o êxito em cada coisa; representam o método para chegar às riquezas, aos gozos, à glória, ao poder.

 

Assim, o paraíso é o reino da ordem, da harmonia, da paz. O inferno é o reino do caos, da dissonância, da guerra. Quem vive em estado paradisíaco, ama o próximo. Quem vive em posição de inferno, odeia e mata o próximo. Isto porque, no paraíso, a vida de um aumenta a vida do outro, ao passo que, no inferno, a vida de um sufoca e ameaça a do outro. Por isso o Evangelho, a fim de guiar-nos ao paraíso, diz-nos: “Ama teu próximo”, enquanto no mundo, infelizmente, com frequência, se odeia o próximo, o que significa inferno. E como poderia ser diferente, um lugar em que o próximo é um rival natural, às vezes um perigo e um inimigo a destruir? Como podia ser diferente um mundo em que reina o princípio da luta pela vida e da vitória do mais forte, onde a lei é: devorar ou ser devorado? No paraíso, cada ser é nosso amigo para ajudar-nos, e por isso a vida é fácil. No inferno, cada ser é nosso inimigo para prejudicar-nos, de tal forma que a vida é bem dura. Mas isto é lógico, porque, sendo o inferno uma posição de negação de Deus, não pode isto ser senão a negação da vida e da felicidade que Deus representa.

 

Pouco basta para compreendermos a qual dos reinos pertence nosso mundo. Permanecermos todos amarrados por uma cadeia de rivalidades, luta e terror, é bem infernal. E ninguém poderá negar que isto seja o resultado da lei vigente no mundo animal e humano, a da luta pela vida é da seleção do mais forte, nem que esta seja a lei vivida pelo homem de hoje. O indivíduo, que consiga apenas superar sozinho essa fase animal, fica aterrorizado por tão completa ausência de senso coletivo, necessário para poder compreender e dar valor a utilitarismos mais vastos e de tão grande vantagem; fica aterrorizado pela estupidez deste contínuo agredir-se um a outro; aterrorizado fica também, pela tão grande ignorância das mais elementares leis da vida, razão pela qual se chega a acreditar no absurdo: que seja possível colher flores semeando veneno. As gerações mais civilizadas do futuro compreenderão o significado destas palavras.

 

Os céticos e os práticos poderão rir de nós. No entanto, fizemos neste volume uma vasta resenha de velhacarias humanas, demonstrando conhecê-las, e demonstrando que não somos otimistas por ingenuidade, mas por motivos positivos bem sólidos. O mundo deve caminhar para a colaboração, que é o princípio do futuro: colaboracionismo sempre mais amplo, porque a vida caminha para as grandes unidades. As virtudes atuais do vencedor à custa do próximo derrotado, serão desprezados amanhã, quando, ao contrário, será virtude social a compreensão do próximo. Isto não é fantasia, porque a vida, em alguns pontos já realizou esse processo de unificação por colaboração, tal como nas sociedades celulares dos tecidos orgânicos, como nas sociedades animais – por exemplo, as das abelhas e das formigas – onde a cooperação desinteressada é obtida com a aplicação somente dos mais simples princípios utilitários, de acordo com a lei do mínimo meio. Puderam assim essas colônias conquistar, como rendimento coletivo, resultados que a sociedade humana está ainda longe de conseguir. É claro, é lógico que as leis da vida contêm esse princípio, isto é, a tendência a formar, pela cooperação, novas, maiores e superiores unidades biológicas. E a humanidade será uma delas. Tudo isso é lei de progresso, e ninguém poderá jamais fazê-la parar.

 

O planeta Terra é nosso campo de trabalho. Era caos. Cabe a nós transformar o inferno das feras no paraíso dos anjos. Se soubermos evoluir, esse paraíso será nosso. Se o não soubermos, ficaremos no inferno até que queiramos evolver. Se soubermos realizar o trabalho de transformar o caos em ordem, essa ordem, depois, será nossa. Se soubermos transformar a atual ferocidade em bondade, será para nós, depois, essa bondade. O inferno existe, mas não é uma vingança de um Deus cruel. Esta é uma concepção que o homem criou, porque estava proporcionada e mesmo adaptada à sua mentalidade. Para induzir este tipo de homem a não praticar o mal, ocorria uma ideia de pena eterna, tão aterradora para ser proporcionada à sua pouca sensibilidade: bem aterradora em vez de racional, não importa se absurda, porque no ser aparece o medo antes da razão. O inferno verdadeiro, realidade indiscutível, é o que criamos por nós mesmos, e que temos debaixo dos olhos. Não é, pois, uma verdade de fé, mas uma tremenda verdade cotidiana. E é positivo, pelas leis biológicas que, com um pouco de inteligência e boa vontade, possamos sair desse inferno, isto é, destruí-lo na terra, para substituí-lo por um estado que se avizinhe do paraíso. Um só é o grande problema: evoluir.

 

Por mais que se queira tingi-la de civilização, é certo que a nota fundamental de nosso mundo é o espírito de domínio e de ferocidade, que persiste, por atavismo tenaz, em nossas formas de vida. Essa ferocidade, todavia, tanto mais se torna perceptível e salta aos olhos, quanto mais se vai o homem sensibilizando por evolução. Esse é o inimigo que está em nós e que em nós precisamos vencer. Tal é a lei satânica do caos, lei de luta, desordem e ódio. Mister é acordar de novo nosso eu involuído, até sentirmos como, pelo contrário, a vida vibra de outras forças, que nos parecem não existir, só porque ainda não conseguimos percebê-las. Revelam elas, entre nós, a operante presença de Deus. Verifica-se, então, uma transformação milagrosa, e tudo muda. É isto possível, porque tudo o que conhecemos, se nos revela só em função de nossas capacidades perceptivas. Poderemos então compreender como podem ser verdadeiras palavras tão estranhas como estas: “A privação e a dor não são, em realidade, aquela derrota que parecem ser em nosso mundo de ferocidade. Mas se Deus, presente como bondade e amor, nos tira qualquer coisa e por isso nos deixa sofrer, é só para fazer-nos subir e depois dar-nos mais, em plano mais elevado, em forma de alegria maior. E isto é possível, porque a dor é a experiência que mais amadurece a alma e afina nossa sensibilidade, de forma que possa assim gozar vibrações que antes não podiam ser percebidas. Poderemos assim, pois, imergir-nos conscientes na divina harmonia universal. Entraremos então no reino do paraíso, porque sentiremos o paraíso nascer dentro de nós”.

 

                                                                  *

 

Dir-se-á, entretanto: como poderá dar-se a evolução, transformar-se o inferno em paraíso, como poderemos nós mesmos recolher o fruto de nossas fadigas? Afirma-se que vivemos em nossos filhos. Mas isto é sobreviver de modo genérico, sentimental e poético, ao passo que o homem, justamente utilitário e portanto calculador, quer um resultado concreto, próprio e individual. Um instintivo sentido de justiça exige, mesmo, que a cada particular fadiga corresponda um proporcional resultado particular. O problema do paraíso, isto é, de nossa felicidade, como todos os problemas humanos, é um problema individual, antes que seja um problema coletivo. A solução do segundo só pode ser a consequência da solução de muitos casos do primeiro. Recorre-se em nossos tempos, ao invés, a métodos e sistemas exteriores, que permanecendo no exterior da superfície e da forma, resultam inadequados, porque não penetram na substância. Inadequados, porque a solução da questão econômica, mesmo elevando o nível de vida - que é sem dúvida grande coisa - não é suficiente para resolver o problema da felicidade, em que entram os fatores mais díspares. Podemos ser ricos, e faltarem-nos coisas indispensáveis e preciosas, como a inteligência, a vontade, a saúde, a bondade, os afetos, e assim por diante. O lado econômico é apenas um dos elementos do bem-estar, e a felicidade depende da cooperação de todos. E ninguém poderá, neste nosso planeta, em que não existem duas coisas iguais, impedir que existam diferenças entre um homem e outro. Mesmo se todos estivessem economicamente nivelados, disparidades intrínsecas da natureza de cada um, os colocariam de imediato em posições sociais diversas, segundo suas qualidades! Isto pertence às leis da vida, e ninguém poderá impedi-lo.

 

Então, o problema da felicidade, mais que econômico e social, se nos revela antes como um problema de destino individual. E até a posição econômica, seja herdada ou adquirida com o próprio trabalho, reduz-se então a uma questão de destino, isto é, de qualidades pessoais, conquistadas por nós mesmos no passado, ou seja, de merecimentos ou desmerecimentos próprios. Então, a repartição econômica no mundo aparece-nos, como uma consequência de uma justiça moral, de uma justiça mais alta, de Deus, segundo nossas obras, da qual sobrevêm todas as posições favoráveis ou contrárias, de satisfação ou privação na vida, em todos os campos, seja riqueza, como inteligência, saúde, afetos etc. Problemas que são completamente ignorados nos projetos humanos da justiça econômica, são todavia, problemas reais. Limita-se o homem a ver que há ricos e pobres, e quisera remediar o desnível igualando-os. Mas saberá ele por que se formaram essas diferenças e por que, mal suprimidas tendem logo a formar-se de novo? Por que um indivíduo se acha por determinadas circunstâncias exteriores, em dada posição, e outro em outra?

 

Do problema do destino já escrevemos bastante em outras obras, especialmente no fim do volume: A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Mas isto implica na solução também de outro problema, o da reencarnação. Indiretamente, essa solução foi admitida e suposta em sentido positivo em todo o desenvolvimento da nossa primeira Obra, se bem que não fosse o problema tratado até aqui com explícita referência. Entretanto, iniciando esta nossa segunda Obra, era necessário tratar de propósito e em particular de um assunto de tão grande importância. Fazemo-lo, pois, agora, especialmente, porque, depois de havermos navegado tão longamente pelos mares do conhecimento, só agora podemos dispor, a favor da tese reencarnacionista, de soluções já adquiridas em concomitantes problemas menores, de pontos fixos já demonstrados, ou seja, prontos já para serem utilizados a tal fim. Fazemo-lo agora, já num estágio mais avançado, quando o leitor que percorreu o caminho dos volumes precedentes, pode ter assim alcançado conosco muitas conclusões de problemas mais particulares, que são necessários para atingir esta, maior e mais complexa. Fazemo-lo agora, porque a reencarnação é também um problema eminentemente atual, e nos explica como cada um de nós volta a esta Terra, para colher o fruto, bom ou mau, de quanto precedentemente tenha querido semear de bem ou de mal. Em outros termos, a transformação do inferno em paraíso, na Terra, é tornada possível e compreensível através do fenômeno da reencarnação.

 

Façamos antes algumas observações de caráter geral. Na Europa, a teoria da reencarnação, penetrou vindo da Ásia que a professa, através da Teosofia. Tendo em vista que apenas culta minoria dos estudiosos se interessa por esses problemas, ficando as massas indiferentes, o catolicismo não tomou posição de franco antagonismo contra tal teoria. Afirmam sacerdotes cultos que a questão ainda não foi definida nos concílios, e é portanto opinável, isto é, sujeita a diversas opiniões. Outros pensam diversamente, conforme sejam por temperamento próprio levados a simpatizar ou detestar a teoria. Sendo este um problema de que poucos, relativamente, na Europa, se ocupam, e não sendo doutrina dominante de outra religião, o catolicismo não se preocupa, naquele continente, de condená-la expressamente. No indiferentismo geral em relação aos problemas religiosos, ainda que algum católico nela creia, ninguém com isso se preocupa, uma vez que isto não lesa a ninguém, seus interesses materiais, e que por tanto não são levados a reclamar.

 

Na América do Sul, e sobretudo no Brasil, interessam-se as massas por essa doutrina, dado que faz parte integrante do espiritismo de Allan Kardec aí difundido. A teoria da reencarnação é de clareza tão intuitiva e de logicidade tão evidente, que da mesma forma que o problema da existência de Deus, não sentimos necessidade até agora de ocupar-nos dele diretamente, tanto mais que esta teoria está subentendida em cada página da Obra e implícita na solução de cada problema. A melhor demonstração de uma teoria não é demonstrá-la, mas mostrar-lhe os resultados positivos a cada passo. A melhor demonstração do fato de que temos pernas, será o caminhar, sem recorrer a dissertações comprobatórias sobre a existência e uso das pernas. Alhures 2, prometemos que daríamos provas decisivas desta matéria, e eis-nos a cumprir nossa promessa.

 

A melhor prova que podemos dar da teoria da reencarnação é a seguinte: o sistema de toda a nossa Obra já se pode agora verificar que resolve harmônica e logicamente, fundindo-os num todo orgânico, os maiores problemas do conhecimento. Problemas menores, não diretamente tratados, têm a solução implícita no sistema que lhes dá a chave. Posto isto, estamos autorizados a crer que esse sistema corresponde à realidade dos fatos. Qualquer problema, mesmo os não diretamente tratados, é de possível solução no sistema, com os mesmos princípios e o mesmo procedimento por ele aceitos. Apresenta-se-nos o todo como um edifício completo em cada uma de suas partes, das suas origens no Absoluto até os particulares no contingente; apresenta-se-nos como um organismo em ação, em que cada componente está em seu lugar, bem coordenado com o outro, mediante justa função e meta a atingir. O todo é regido por tão simples e evidente lógica, que instintivamente persuade, tal como os conceitos axiomáticos que aceitamos todos sem discutir. O todo é coligado e fundido num monismo absoluto, ou seja, é estritamente unitário, reduzível a uma fórmula única e constituído por um só organismo em que se coordenam todos os fenômenos mais díspares, desde os do mundo físico aos do mundo moral. Ora, ou esse sistema é verdadeiro, ou o não é. Se é verdadeiro, temos a explicação racional de tudo. Se não é verdadeiro, recai tudo na confusão, na contradição, no mistério. Se não quisermos escolher este segundo caminho, temos que aceitar o primeiro.

 

Posto isto, verificamos que a teoria da reencarnação, se bem que não demonstrada por nós, até agora especificamente, dada sua evidência que fazia parecer supérfluo o trabalho, é o ponto-chave, a pedra angular de todo o edifício, que sem ela cairia. Mesmo se a teoria da reencarnação não ressaltasse por si mesma de lógica evidente, devemos admitir que se não poderia dar a essa incógnita da equação, outro valor que o da reencarnação, pois todos os fenômenos, concordes com a lógica mais cerrada, nos dizem que esse X só pode ter um significado no sentido reencarnacionista. Só esse valor pode colocar-se neste ponto do organismo lógico do todo. Com efeito temos dois casos: ou à incógnita se dá esse valor, e então continua tudo a ser logicamente explicado e resolvido até o fundo, sem resíduos; ou se lhe dá outro valor, e então, qualquer seja ele, tudo permanece insolúvel e incompreensível. Com isto não queremos diminuir a importância daquilo que foi maravilha no seu tempo, a teologia de São Tomás. Mas ele não podia situar os problemas por nós hoje situados e que o mundo moderno resolve com a ciência. Ninguém poderá dizer num universo em marcha, que deva ser aquela a única, última e definitiva teologia de um mundo que, por força das circunstâncias, deve e quer progredir.

 

Vimos que o conceito da evolução é a espinha dorsal de todo o sistema, como segundo tempo da subida, após a queda3. Não podemos parar na simples evolução da forma, no sentido Darwiniano. Pois esta mesma só se explica como evolução do princípio espiritual que rege todas as formas, do qual estas são a expressão. Por aqui se compreende a utilidade da dor ao lado da bondade de Deus, e tantas outras coisas. Suprimamos esses conceitos e cairemos num caos de contradições, em que triunfa não Deus, mas o mal. Ora, evolução espiritual só pode significar reencarnação. Só a eterna existência de um eu pessoal pode permitir o seu progresso, sua responsabilidade e correção pela dor. Fora desse ponto de vista, a estrutura orgânica do todo perde seu significado e a grande marca para a redenção, em que tudo caminha, perde sua meta. A eterna existência de um eu pessoal é imposta ainda por sua intrínseca natureza divina; isto quer dizer reconhecê-la e respeitá-la, porque tudo o que é divino não pode ter princípio nem fim.

 

O eu nascendo na Terra, representa desde os primeiros anos uma personalidade sua, já definida em seus pontos essenciais, que jamais poderão os anos modificar completamente. Se quisermos atribuir uma lógica e justiça ao fato, de que nascemos em posições e com qualidades tão diferentes, temos que admitir que isto é a consequência de um passado próprio e individual que, em virtude do princípio universal de causa e efeito, nos acompanha em suas consequências. Se assim não fora, outra coisa não nos caberia, senão declarar esse fato como injustiça e recair nas trevas do mistério. Mesmo os animais nascem com instintos, como os homens com suas qualidades pessoais. Quem fez isto? Não. A obra de Deus, Criador, não pode ficar à mercê dos atos sexuais de tantos inconscientes, para fornecer almas quando a estes mais agrade.

 

Além disso, deve haver proporção entre causa e efeito. Então, não é possível que uma causa limitada no tempo (uma só vida) possa produzir um efeito de natureza ilimitado (eternidade). Essa causa só poderá produzir um efeito a ela proporcional, da mesma ordem, isto é, limitado por natureza. Ora, um pedaço de tempo e eternidade, ou seja, finito e infinito, são entidades de ordem diversa. A eternidade jamais se poderá conseguir somando números finitos, por maiores que sejam de unidades limitadas de tempo.

 

Ademais, se não quisermos negar a eternidade do espírito após a morte, temos que admitir em paralelo sua eternidade antes do nascimento. O universo é um organismo equilibrado. Não pode haver balança com prato de um só lado. Não pode existir um semicírculo sem um correspondente, inverso e complementar que o complete. Que uma mesma quantidade seja avaliável, de um lado em termos de infinito e de outro em termos de finito, isto é, que possa não ter fim o que não teve princípio, é um desequilíbrio inadmissível, um absurdo lógico e matemático. O universo é todo lógico. Não se pode ser eterno só de um lado, isto é, só no futuro. Se quisermos admitir a sobrevivência da alma, é mister situar a vida humana entre duas entidades da mesma natureza, entre duas entidades equivalentes, uma no passado e outra no futuro. Como uma linha, limitada de um lado e ilimitada de outro, é somente uma parte ou secção da linha que só é completa se concebida como ilimitada e infinita de ambos os lados; assim a existência do espírito no tempo, limitada de um lado (pelo nada do qual teria nascido) e eterna do outro, é apenas uma parte ou secção de toda a vida do espírito, que só é completa, se concebida como eterno dos dois lados (passado e futuro, infinito negativo e infinito positivo). Então, se quisermos dar à vida um princípio com o nascimento, necessidade temos de dar-lhe um fim com a morte, como o fazem os materialistas. O que nasce deve morrer. Somente o que não nasce não deve morrer. Se não quisermos dar à vida um fim com a morte, não lhe podemos dar um princípio com o nascimento. Não há que fugir: se a alma foi criada no momento do nascimento, deve terminar com a morte. Se não termina com a morte, deve preexistir ao nascimento.

 

Mas há outra razão em favor da reencarnação. Em nosso universo, a existência de cada ser toma a forma do tornar-se ou transformismo, de modo que existir só pode significar tornar-se. Ora, fixar o ser num estado definitivo, não mais sujeito ao caminho evolutivo ou involutivo, como é o estado para sempre imutável do paraíso ou do inferno, significa paralisar o “tornar-se”, que quer dizer paralisar a existência, ao menos qual a encontramos em nosso universo em evolução e enquanto ele existir em tal forma. Se o ser quer continuar a existir, deve pois continuar seu transformismo ou caminho evolutivo, mesmo depois da morte, como nos indica a reencarnação. Há um termo ao tornar-se, mas só no fim do processo evolutivo, com a perfeição atingida no regresso a Deus.

 

Os vários grupos humanos poderão sustentar o que quiserem segundo seus interesses. Mas a reencarnação é uma verdade biológica positiva, que hoje pertence já à ciência; é fato objetivo independente das afirmações de qualquer escola ou religião. A essa doutrina se refere o próprio Evangelho, que sem ela seria incompreensível em vários pontos.

 

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Procuremos encarar o problema mais de perto, em seus pormenores. Não basta, às vezes, que verdadeira seja uma teoria para que se possa apresentá-la a todos. Pode-se então assistir, nos países reencarnacionistas ao triste espetáculo da caça ao próprio passado, feita como um jogo, por leviandade e curiosidade vã, só para saber quais foram as próprias encarnações anteriores. Afirmar a teoria como princípio, significa sustentar uma verdade. Abandonar-se a uma pesquisa de advinhos, na qual pode esconder-se o orgulho e dominar a fantasia, é, pelo contrário, mais condizente a desacreditar que a confirmar a teoria da reencarnação. Muitos, com efeito, pretendem rever-se de preferência não nos comuns desconhecidos, mas em personagens históricas, o que é pouco provável, pois estes representam muito poucos lugares vagos em relação ao número de pretendentes. Verifica-se o caso de várias pessoas vivas afirmarem ter sido a mesma personagem do passado. E tudo isso é feito sem possibilidade de controle; mas é elementar e mesmo regra de honestidade, que se não tenha o direito de fazer nenhuma afirmação gratuitamente, isto é, quando se não possam aduzir provas tanto para os outros como para si mesmos. Assim, o povo simples e fantasioso, ainda que sem malícia e certamente de boa fé, pode construir lendas destituídas de qualquer fundamento e só à base de vagos indícios, hipóteses e elementos incontroláveis. A teoria da reencarnação é uma coisa séria e não deve ser usada para satisfazer vã curiosidade. Quem chega a ter intuições a respeito, estude a si mesmo, faça pesquisas íntimas para conhecer-se e reconstruir a história de seu destino, para melhor trabalhar de acordo com a lei de Deus. Mas é bom não divulgar isto, ao menos até achar confirmações em provas positivas, por todos aceitáveis.

 

Assim, igualmente prudente se deveria ser na pesquisa das causas que justifiquem o atual destino e condições de vida de outrem. Aplicando as leis dos opostos, isto é, o princípio geral de que cada abuso gera carências, fácil é imaginar que cada privação e dor presente seja a consequência de um excesso passado em sentido contrário. Mas, se este é o princípio, não nos autoriza a julgar o próximo em casos particulares, pois muitas são as formas de reação da Lei e muitos os elementos que nela concorrem. Nosso julgamento será tanto mais inoportuno, quanto mais tender a transformar-se em fácil condenação e a libertar-nos do dever da piedade e da ajuda. Não aproveitemos desgraças do próximo, só para nelas ver justa punição da Lei, pois assim nós também nos tornaremos culpados. Recordemo-nos ainda de que se trata de afirmações gratuitas que, se são aplicação de princípios gerais correspondentes à verdade, não oferecem em cada caso particular, nenhuma possibilidade de controle, e, portanto, podem ser puro trabalho de fantasia. Ninguém pode dizer com segurança que aquelas culpas com que explicamos as dores de alguém, tenham sido de fato por ele cometidas.

 

Entretanto, não se pode desconhecer o bem que faz essa teoria a qual, de forma mais convincente que a das penas eternas, mostra de modo prático e próximo a nós como tudo se paga neste mesmo mundo, com as dores que conhecemos, explicando-nos a presença dessas dores entre nós, com uma exata proporção ao mal cometido, e com lógico reverso de posições como um instintivo sentido de justiça nos diz que deve ser. Assim, o pagamento do erro se faz de forma tal que todos possam ver em ação, na vida prática, bem como em forma específica e estritamente pessoal. Só assim podem explicar, de acordo com a justiça de Deus, tantas injustiças aparentes; e dessa forma, resulta a dor como guindada à função benigna de escola e de prova imposta por um Deus bom, só para nosso bem. É este o único modo de poder conciliar o fato de tantas vidas desgraçadas, com a bondade e justiça de Deus. Os outros sistemas não resolvem o problema e, deixando-o envolto em mistério, tendem infelizmente a levar a quem queira um pouco indagar e raciocinar, e tristemente concluir com o absurdo da maldade ou, pelo menos, da insapiência do Criador. Ora, não podemos negar que, por mais que se queira fugir da lógica no terreno religioso, esta tenha grande importância, tanto em si mesma como prova, quanto como elemento persuasivo e tranquilizador que permite aceitar os fatos, especialmente os mais duros para nós, com mais clareza e convicção e portanto com maior sentido de obediência. E a teoria da reencarnação, não há que negar, corresponde à lógica perfeita, em que cada elemento é enquadrado na forma mais simples e persuasiva. Deus é lógico, opera logicamente, e o universo é uma construção lógica, um organismo racionalmente funcionando. Tudo o que se coaduna com esta qualidade fundamental do sistema tem, pois, probabilidade imensamente maior de ser verdadeiro, isto é, correspondente à realidade. A teoria do inferno eterno, considerada sem paixão, com a finalidade não de concluir a favor de uma religião ou de outra, mas apenas de conhecer a verdade, não se sustém diante da teoria reencarnacionista, ainda que possa ser explicada como um terrorismo psicológico, produto de tempos ferozes, necessário para gente feroz. O inferno nasceu das trevas da longa noite medieval, bem explicável, dada a dureza dos tempos, como forma de psicose coletiva que invadira todas as manifestações da vida, e portanto também a religião.

 

Mas há outros fatos. A teoria da reencarnação está em harmonia com as leis da natureza que conhecemos, como a indestrutibilidade da substância, pela qual, se as mudanças se operam só na forma, a personalidade humana poderá mudar, mas não ser destruída. Essa teoria é a ampliação, no campo moral, da lei de conservação da energia, estabelecida pelos físicos. Enfim, só essa doutrina se coaduna com o que poderíamos chamar de hábitos fenomênicos do universo. Este costuma funcionar por ciclos e retornos, e nunca por bruscas inovações, muito menos por formação imediata de elementos novos, mas só por lenta transformação dos já existentes. Tudo só ia nascer de uma sua precedente forma diversa, em que do desconhecido já existia. Essa ideia da criação do nada e “ex-novo”, seja para a alma como para qualquer outra individuação do ser, representa tão flagrante contradição com tudo o que normalmente acontece de fato e constituiria, na soberana ordem do universo, uma tão estridente desordem, que, na lógica do sistema, nos apareceria como um absurdo. Se a estrutura do existir, em nosso universo, repete sempre o modelo central ou tipo, dado pela unidade interiormente cindida em dualismo, e portanto o ser não é concebível senão em função de seu contrário, o não-ser; se tudo volta e torna a voltar e nasce dessa sua volta; se tudo é cíclico, como poderia o existir, que é sempre bipolar, mesmo no caso da pessoa humana, ser manco ou falho, só metade, sem a outra metade inversa e complementar, única que a pode tornar completa?

 

Quebra-se assim o equilíbrio e a própria continuidade fenomênica, que é um fato fundamental de nossa cotidiana experiência. Só o fenômeno da vida humana, só esse, iria de encontro à corrente seguida por todos os demais fenômenos, e nos apareceria assim desconexo deles, como desligado do fenômeno semelhante da vida de todos os outros seres que, não se sabe a razão, sendo igualmente vida, seriam regidos por lei diversa. Não haveria neles um princípio espiritual. Mas sem a indestrutibilidade e eternidade deste, para todos, que centro conservaria as experiências da vida, onde se acumularia o patrimônio dos instintos e qualidades adquiridas, como seria possível o aperfeiçoamento longo e lento que constitui a evolução? Como pode um inseto evoluir com uma vida de apenas poucos meses? Que pode ele aprender e registrar? E no entanto, vemo-lo nascer com uma sabedoria sua, que é suficiente para resolver todos os problemas da sua vida. Como pode um homem, numa vida com a máxima média de 80 anos, aprender toda a sabedoria, exaurir todas as experiências, adquirir méritos ou deméritos de tal envergadura e valor, para produzir consequências eternas? Mas o nosso universo é um organismo de impulsos e movimentos proporcionados. Uma causa tão minúscula não pode produzir efeitos tão gigantescos, um átimo de vida vivida, muitas vezes sem compreensão alguma, não pode produzir consequências irreparáveis e definitivas. Em outros termos, não há unidade de medida que, ao mesmo tempo, possa servir para medir o finito e o infinito. Como se vê, se abolirmos a teoria da reencarnação, demoliremos todo o sistema construtivo da evolução, e tudo rui no absurdo, ao invés de formar um organismo lógico.

 

Como Einstein pôde, só com processos de lógica matemática, atingir conclusões que depois a observação e a experiência confirmaram, assim podemos apenas pelos processos da lógica e raciocínio, chegar a demonstrar a verdade da teoria da reencarnação, à espera que a observação e a experiência confirmem nossas conclusões, mesmo se hoje não for isto possível, faltando à ciência meios positivos para dominar e penetrar tais fenômenos. Entretanto, acontece um fato importante: a teoria da reencarnação sai do terreno empírico das religiões e da fé, para entrar no positivo da ciência. A demonstração racional é o primeiro passo, o controle experimental será o segundo. Por controle experimental, entendemos métodos de observação positiva, cientificamente exatos, submetidos a controle severo, apenas possíveis quando as ciências psicológicas e sobretudo das radiações, estiverem mais desenvolvidas. Aqui podemos apenas dar o primeiro passo, mas este é suficiente para indicar em que direção dar-se o segundo. O atual método fideístico é útil e necessário para as massas apenas pelos processos de lógica e raciocínio, merece pois nosso máximo respeito. A fé não é suficiente, porém, para explicar e impor ao mundo essa teoria, o que só pode fazer com a demonstração e a experiência, isto é, com os meios da ciência positiva, aceita por todos.

 

A teoria da evolução, em que se baseia o sistema das duas Obras que estou escrevendo, teoria que o mundo admite, implica a conservação dos valores que o ser adquire, através da experiência da vida. Esta conservação é, no sistema do universo, a coisa mais preciosa, tanto que representa a finalidade da própria vida. Vive-se para aprender e só o aprender valoriza o viver. Ora, diz-nos a lógica que, sem reencarnação, a conservação dos maiores valores da vida é impossível, porque lhes falta o fio condutor da evolução. Então, sem reencarnação, perderia o sistema do universo todo o poder de recuperação, para corrigir sua imperfeição e voltar à perfeição, e a dor seria um tormento sem sentido, nem escopo útil. Ora, não é possível tão flagrante contradição, logo no centro de um sistema, que sabemos ser tão lógico e estritamente utilitário. É absurdo que ele, em seu ponto mais vital, renegue seus princípios fundamentais. Herdar todo o passado, sem que nada se perca de tudo o que se viveu, sem que nada se desperdice desse trabalho fundamental ao qual foi confiada a reconstrução do eu, é essa uma necessidade absoluta e insuprimível, porque sem ela não desaba uma religião, uma filosofia, ou o grupo humano que lhes está conexo, mas desaba a lógica de todo o universo.

 

Estudamos o problema da hereditariedade no fim do volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Vimos (cap. 27 e 28 sobre a “Personalidade humana”) que há dois tipos de registro, o recente e o atávico, o novo e o velho, isto é, o que nós fazemos e o que fizeram nossos ancestrais. Vimos que tudo se transmite, sem o que a evolução não poderia dar-se. Vimos que duas são as forças de hereditariedade que funcionam como canais de transmissão, ou seja, que ao lado da hereditariedade fisiológica (pais-filhos) há uma hereditariedade espiritual própria, individual. Dois são, portanto, os caminhos aptos à transmissão dos resultados das anteriores experiências: um caminho para as do corpo, transmitidas através da carne, e outro para as do espírito, transmitidas através da alma. “O que nasce da carne é carne, mas o que nasce do espírito é espírito” (João, 3:6). Assim, o novo ser que nasce, traz consigo não só uma memória biológica, que guia a reconstrução do organismo, repetindo sua história celular continuada através da hereditariedade fisiológica, mas também um destino, que é consequência do passado pessoal de cada um, por ele semeado antes livremente e que agora o acompanha em forma de determinismo fatal, transmitindo tudo isso através de uma paralela hereditariedade espiritual. Este último conceito está desenvolvido no cap. 24 “nosso destino livre”, do mesmo volume citado: A Nova Civilização do Terceiro Milênio.

 

Então, duas formas de continuidade: a biológica e a espiritual. A primeira para continuar a estrutura atávica, o tipo biológico já construído, ainda que a ele acrescentando contínuos aperfeiçoamentos. A segunda para continuar, não no plano biológico, mas no espiritual e moral, o desenvolvimento do próprio tipo de personalidade, de acordo com as premissas já colocadas, a este trazendo novos aperfeiçoamentos. Achamo-nos sempre, nos dois planos, diante do mesmo fenômeno, pelo qual é sempre o passado que preside ao desenvolvimento presente e futuro (Lei de causalidade). Desse modo, cada novo indivíduo nasce com seu destino biológico, consequência de seu passado biológico vivido na carne dos pais; e com seu destino espiritual, consequência de seu passado espiritual, pessoalmente vivido por sua alma. Dois destinos necessariamente sintonizados pela escolha (consciente ou inconsciente) feita pelo espírito ao reencarnar-se, dois destinos influenciando-se reciprocamente em seu desenvolvimento, harmonizados, que se fundem, enquanto dura a vida na Terra, num só destino. Poder-se-ia chamá-lo um composto, um complexo físico-espiritual, de que depende o período de vida que o ser percorre em nosso mundo.

 

O primeiro germe destes conceitos está em A Grande Síntese (“Instintos e Automatismos”) e, em muitos outros pontos dos volumes que se seguiram, foram controlados e desenvolvidos em harmonia com o sistema. Pode o leitor achá-los por si, quase a cada passo da Obra. Trata-se aqui apenas de restringir as fileiras convergentes para as soluções finais neste capítulo; trata-se de puxar as redes para concluir. Foram esses problemas tratados lá separada e diversamente enquadrados, em relação a outros pontos de referência e para alcançar outras conclusões. Mas os observamos agora, aqui, em Síntese, para deles fazer a plataforma destas conclusões em favor da teoria da reencarnação. Era mister ter concluído esse longo caminho através de tantos meandros da fenomenologia  universal, para ter agora pronta, em mãos, já alcançada, a solução de tantos problemas menores e mais particulares, sobre os quais, nesta fase de Síntese, não é mais possível determo-nos. Só agora, nesta última fase, é possível pôr de acordo as soluções particulares, fazendo-as convergir para uma solução única, que, a uma voz, constituída de muitas vozes diversas e concordantes, de todos os lados nos repete: reencarnação. Para destruir esta teoria, mister seria demolir muitas conclusões já conseguidas, anular muitas soluções que nos satisfizeram e persuadiram. Trabalho longo, mas só assim podemos chegar às afirmações definitivas, bem como couraçadas por observações, experiência, soluções e conclusões, apoiadas em sólidas bases que difícil será abalar, porque seria preciso destruir um sistema completo, que se demonstrou lógico e satisfatório, porque resolve sem deixar resíduos os fundamentais problemas do conhecimento. Aqui, a reencarnação não é apresentada como fenômeno isolado que se propõe e se resolve desligado e independente dos outros. Esta teoria aqui se apresenta, não avulsa, mas em conexão com toda a fenomenologia universal; não como coisa de per si, mas como pedra incrustada no edifício do universo, o qual sem ela ruiria; não como um corpo separado funcionando por si, mas como um órgão tão vital, que sem ele o grande organismo do todo não pode funcionar.

 

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Mas focalizemos de novo, em particular, o problema da reencarnação. Só esta teoria nos deixa aberto o canal da transmissão dos resultados da experiência da vida. Totalmente insuficiente é a hereditariedade fisiológica, para os filhos que nascem, sobretudo quando os pais são ainda jovens, e portanto possuem quantidade mínima de experiência a transmitir. Para que pudesse ser transmitida aos filhos, ao menos a maior parte dela, seria indispensável que os pais os gerassem em avançada idade, quase no fim de suas vidas. Ao contrário, a reprodução é confiada aos jovens, mais aptos materialmente, e menos maduros espiritualmente. A hereditariedade fisiológica não pode, pois, ser o caminho para a transmissão das qualidades intelectuais e morais que são as mais importantes. Deve então haver outro caminho para esse fim, um caminho que não possibilita a perda de nenhuma experiência.

 

Outra objeção surge. Rebela-se nossa mente ao conceito que a personalidade do filho deva estar exclusivamente dependente da personalidade dos pais, sofrendo-lhes as consequências de alegria ou dor, submetidos a causas estranhas a seus próprios atos, e igualmente injustas porque não merecidas. Que um fato de tal monta, com cargo de responsabilidades e consequências como um destino de alegrias e dores, deva depender do capricho de dois seres que geram quando querem; que um fato tão vital e importante tenha que derivar da vontade às vezes de inconscientes; que o próprio Deus deva permanecer à disposição destes para realizar a criação de uma alma adequada, no momento por eles escolhido; tudo isto representa tal contradição e absurdo na ordem do universo, que se torna inconcebível, para quem dele tenha compreendido um pouco o perfeito funcionamento. Rebela-se a mente à ideia de poder alguém pagar por culpas não exclusivamente suas. Revolta-se totalmente o senso instintivo de justiça se tiver que admitir que o nascer em determinado ambiente, receber nele determinada educação, ter de assumir o tipo biológico e a carne, sadia ou enferma dos pais, com os instintos anexos, bons ou maus, o ter que herdar condições de vida em que se baseará o nosso destino, revolta-nos a alma ter que admitir que tudo isso seja devido ao acaso, e esteja na dependência da escolha sexual e do capricho dos pais, isto é, de condições produzidas por outros e não estritamente nossas, pessoais. Não podemos acreditar nisto; o admiti-lo nos choca e ofende, porque de tudo isto pode resultar uma existência de alegria ou de dor, que nos pode tornar satisfeitos ou fazermos odiar a vida até ao desespero. Não se pode ficar agnóstico e indiferente diante da primeira fonte de nosso destino. E não podemos ficar persuadidos dos fatos gravíssimos que disto resultam, e portanto aceitá-los, se não virmos que dessa fonte tudo nasce com lógica e justiça. Não sendo assim, a consciência dará razão ao instinto de revolta, acrescentando às tristes condições de fato, o inferno na alma. Então, nos casos dos filhos destinados apenas aos delitos, às doenças, à dor, eles teriam o direito de amaldiçoar quem lhes deu uma vida triste, não pedida. Então a união para gerar poderia antes aparecer como a associação de dois seres egoístas, que, por seu exclusivo prazer, podem impunemente cometer um delito em dano de um terceiro, o filho, incapaz de defender-se. E a lógica dos fatos autorizaria esta maldição a dirigir-se até a Deus, pois que ninguém saberia justificá-lo pelo fato de uma criação de almas tão diferentes e em tão diversas condições, quando a justiça exigiria que almas novas fossem criadas todas iguais e ao menos assim o fossem ao nascer.

 

No sistema reencarnacionista o eu é uma individuação eterna, personalidade em formação pela evolução, única responsável diante da Lei; personalidade que colhe em bem ou mal, sob a forma de destino, o que ela quis livremente semear. Só assim a ninguém se pode culpar, e em cada caso apenas aceitar e bater no peito, até alegrando-se mesmo, porque corrigido o erro e aprendida a lição com a prova, tudo se restabelece, na ordem que foi violada e na alegria ansiada. Assim a mente compreende, e quem compreendeu pode aceitar melhor e saber sofrer, sem culpar a outros, mas apenas a si mesmo, pode, suportando melhor, adaptar-se à sua dura posição de dor, quando sabe a função corretiva desta. As ideias de punição e vingança excitam à revolta contra Deus, que então aparece egoísta e injusto. Na realidade, todos nós somos filhos apenas de nós mesmos, e nossa posição presente é a consequência fatal de nosso passado livre. Os pais nos dão o corpo físico, da mesma natureza que os seus, mas não a alma. Só nosso corpo de carne é filho de sua carne; nosso espírito, porém, é filho apenas de suas próprias obras. É o nosso eu que escolhe em que ambiente nascer e, se o não sabe ainda fazer, é nisto guiado pelas sábias forças da vida. É evidente a todos que as crianças têm uma personalidade sua própria desde pequenos. Esta, desde o início, é bem definida, de modo que a seguir, mesmo delineando-se melhor nos particulares, continua idêntica e irremovível em suas notas fundamentais. É assim que o gênio não se transmite, porque não é filho dos pais. É assim que entre irmãos, se há semelhanças exteriores, as personalidades são inconfundíveis, e com frequência são diferentíssimas. E se há afinidade entre pais e filhos, esta é dada pelo corpo, resulta do ambiente comum, mas sobretudo da necessidade de que as almas sejam afins, para que uma possa avizinhar-se tanto da outra, que chegue a vestir-se com a mesma carne. Para revestir-se com uma carne da mesma natureza, é necessária uma sintonização espiritual. Assim se explica também, ainda que isto nem sempre se verifique, certa nota espiritual semelhante entre pais e filhos.

 

As observações em favor da tese reencarnacionista são muitas, porque com ela tudo se explica, sem ela se confunde tudo. Se só houvesse o canal da hereditariedade fisiológica, depois de passada a época da reprodução, que significado experimental teria a vida no sentido da evolução? Nenhum. Seria tempo perdido. Aprender-se-ia uma lição toda terrestre, em função da vida física, para usufruir um ócio eterno num mundo espiritual, sem corpo e sem a nossa matéria, num ambiente em que não se compreende como poderiam ser utilizadas essas qualidades. Como pode uma experiência toda material servir de escola a fim de preparar-se para uma vida totalmente espiritual? Quando somos jovens temos força, mas não a experiência. Quando somos velhos, temos a experiência, mas a força e a vida desaparecem. É verdade que os jovens, vivendo, usam a força para transformá-la em experiência. Mas esta experiência não é usada na Terra, porque sobrevém a morte; não se transmite aos filhos porque nascidos há muito tempo; e, nos ambientes não terrestres, é de uso difícil. Para que serviria então este conhecimento terreno específico, se não se regressasse à Terra, onde, somente aí, pode ele ser usado? E com efeito vemos nascerem pessoas com qualidades inatas, atitudes instintivas de caráter nitidamente humano, que só podem explicar-se como resultado de um trabalho terreno precedente de construção. Não há outro modo de explicar-se isto, num universo em que nada se cria e nada se destrói.

 

Mas com isto são explicados também outros fatos. Sem a reencarnação, a vida dos solteiros estaria perdida para a evolução. Se a continuação do processo evolutivo fosse confiada somente à hereditariedade fisiológica, a vontade de qualquer um em permanecer celibatário teria o poder de intervir no coração da Lei e paralisá-la em seu processo mais substancial. A teoria da criação da alma no nascimento é estritamente individualista e ignora o importantíssimo aspecto coletivo da vida, que considera cada um como uma célula de organismos étnicos muito mais vastos. Permaneceria ainda o mistério dos que morrem crianças. Com a teoria reencarnacionista, não representa isto, senão uma tentativa, sem êxito apenas na carne, mas que o espírito pode recomeçar sempre com melhores resultados, para prosseguir sua evolução, e talvez até de modo mais eficiente, após haver superado isto, que pode ter sido uma prova ou nova experiência. Mas, com a teoria da criação no nascimento e da vida única, que significado teria uma vida, sem tempo de fazer experiências, e com que direito pode ela pretender o mesmo paraíso que os outros devem conquistar duramente, com uma vida de renúncias e dores?

 

Se a evolução só atuasse pelo canal da hereditariedade fisiológica, então o gênio, o super-homem, que são valores biológicos maiores, deveriam ser os mais prolíficos. E ao contrário, quanto mais é evoluído o ser, menos tende a reproduzir-se. Quer então a vida perder seus maiores valores? Não. Na realidade esses valores se transmitem por outros canais, os da hereditariedade espiritual. E assim se explica como gênios e super-homens renasçam sem seguir os caminhos da hereditariedade fisiológica. Se não houvesse reencarnação, quanto mais fosse evoluído o indivíduo, mais facilmente se perderia como valor biológico, tendendo a desaparecer da raça humana. Contradições e absurdos, que a lógica da vida não pode em absoluto conter. Ao contrário, quem dá tudo de si, colherá o que semeou e como o tenha semeado e, através de suas experiências, poder enriquecer a si e aos outros. Nosso planeta é o terreno que devemos cultivar, e conforme queiramos fazê-lo um deserto ou um jardim, aqui morreremos dilacerados ou repousaremos felizes, como resultado daquilo que quisemos fazer.

 

A consciência e o conhecimento instintivo com que nascemos, não é uma característica nossa, genérica, igual para todos, mas é um conjunto de qualidades específicas, diferentes de indivíduo, para indivíduo, do qual formam o caráter particular e a personalidade. Essas qualidades, pelo fato de se apresentarem aptas e proporcionadas ao ambiente terrestre, onde deve justamente usá-las o homem, demonstram um conhecimento específico das condições deste ambiente. Daí deduziremos que devem ter sido aí formadas e não alhures, isto é, serem fruto de uma experiência terrestre. Certo, sem dúvida, que não é no céu que essas atitudes de índole prevalentemente material, quase todas em função e dependentes da vida física, se podem haver formado. O espírito que guia os primeiros atos da criança, demonstra saber retomar o caminho da vida material, dando provas de ter um conhecimento já adquirido e possuído, aderente às suas condições físicas terrestres, conhecimento nada metafísico, que possa fazer pensar numa direta e imediata filiação do mundo altíssimo do Absoluto divino. Esta poderá revelar-se mais tarde, mas só em proporção ao grau de evolução atingido, isto é, do caminho já percorrido ou da maturidade elaborada através de longuíssima série de experiências. Poderá revelar-se mais tarde, mas só em proporção ao trecho de subida que o ser soube realizar, para Deus, com o esforço próprio pessoal evolutivo, de redenção. Revelar-se-á, pois, em graus diversos e para os involuídos, não se revelará em absoluto; revelar-se-á como resultado de uma conquista própria e laboriosa, em diferentes proporções de acordo com esta, e não como um dom gratuito de Deus, dom que, então, a justiça quereria que fosse igual e, mesmo que tarde, se manifestasse para todos igual.

 

É evidente que a alma que se encarna na Terra demonstra, por suas atitudes, que provém de uma experiência terrestre e não celeste. Os meninos, guiados por um instinto de luta, são turbulentos, audaciosos, levados a brincar com armas (conquista violenta). As meninas, levadas pelo instinto materno, são tranquilas, afetuosas, inclinadas a brincar com bonecas (cuidado dos filhos). E estas são qualidades da personalidade, não do corpo físico. As almas são diferenciadas segundo tipos diversos, e demonstram conhecer e saber aplicar as fundamentais leis biológicas, isto é, a luta pela seleção do mais forte e a reprodução e defesa da vida. A alma aparece na Terra como uma entidade fundida com a realidade biológica, e não como um produto abstrato metafísico. Dizem que as almas não têm sexo, e isto é verdadeiro no sentido terreno, mas possuem as qualidades que depois se manifestarão, as qualidades que depois, na Terra, formam o substrato próprio ao biótipo de um sexo ou do outro. Assim, no espírito macho dominará o instinto do domínio, a inteligência, a vontade; no espírito feminino a obediência, a intuição, o amor. As qualidades fundamentais que depois formarão o biótipo masculino ou feminino, estão antes de tudo na alma que, embora não tenha sexo, dele possui os elementos basilares. Vemos assim na Terra almas de tipo masculino encarnadas em corpos sexualmente masculinos, da mesma forma que em corpos sexualmente femininos; e ao contrário, almas do tipo feminino, encarnadas em corpos sexualmente femininos, como também em corpos sexualmente masculinos. E tudo isto, permanecendo na normalidade, sem que implique de modo algum inversão sexual; mostra-nos isto que a personalidade espiritual é independente da veste orgânica que vem assumir no corpo. Um espírito dotado de qualidades viris assim permanece, qualquer que seja o tipo de corpo que para si escolha, e assim para um espírito dotado de qualidades femininas, mesmo mantendo-se eles no âmbito da normalidade sexual, de acordo com o tipo masculino ou feminino de seu corpo. Tudo isto é explicável e compreensível, porque a evolução tende à reunificação da unidade quebrada no dualismo universal, e neste caso à formação de um biótipo completo, em que se refundam as duas metades, macho e fêmea. Para atingir essa reunificação, ambos os biótipos espirituais, com qualidades masculinas e femininas, precisam atravessar todas as experiências, tanto do próprio tipo sexual como do oposto, pois só assim, somando-se e completando mutuamente suas complementações, podem fundir-se e assim formar o biótipo completo, em que coexistem todas as qualidades do ser, e daí a cisão, devida à queda do sistema, pode resultar sanada.

 

Não se pode negar, e no-lo mostra a observação, que cada alma, encarnando-se na Terra, traz consigo como um feixe de impulsos seus, que depois obrigarão sua vida terrena a tomar esta ou aquela direção. Quantos acontecimentos em nossa vida tendem a realizar-se como por força própria, impondo-se, à nossa própria vontade; e quantos, por mais que façamos, jamais conseguiremos traduzi-los em realidade! Vemos, pois, que a alma, encarnando-se, traz consigo um destino específico seu particular, que será como o roteiro no qual tenderá a realizar  sua vida. Sem dúvida, se o futuro é sempre livre, o passado nele marcou pontos fixos, de passagem obrigatória, dos quais se não pode fugir. E isto continua verdadeiro, ainda que o cinzento dominante na maior parte dos destinos, constituídos de pequenas coisas, o torne menos visível. Mostra tudo isso que, quando nasce o homem, já foram colocadas diante de sua vida, premissas que depois é difícil abalar. Se isto é um fato de observação, o senso da justiça diz-nos que essas premissas devem ter sido postas por ele mesmo. Essas premissas, partindo de seu primeiro estado espiritual, depois dinâmico, chegam em forma imponderável ao estado de impulso ou força, e materializam-se nas condições concretas de ambiente, constituição física etc., que formarão o tipo de cenário em que a alma viverá sua vida, isto é, o terreno sobre o qual se desenvolverá a vida.

 

Em tais bases se eleva a obra de construção do edifício espiritual, representado pelo desenvolvimento de uma vida. A cada indivíduo está reservado um tipo particular de experiência, cuja explicação e justificação se contém toda nas supracitadas premissas à sua vida. São suas as premissas, suas são as atuais consequências. Cada vida é um anel de longa cadeia de vidas. Estas vidas, reciprocamente, se completam, se explicam e só se justificam, se vistas todas reunidas em conjunto. Isto porque a obra de construção do edifício espiritual, representado pelo desenvolvimento de uma vida, é só um momento da obra de construção de um muito mais vasto edifício espiritual, representado pelo regresso da alma a Deus. É assim que só em sentido evolucionista e reencar-nacionista se pode compreender o significado da vida, de uma de nossas vidas, enquadrada assim no plano do tornar-se universal. Solto da cadeia, cada um dos anéis muito pouco nos diz, permanece um caminho fracionado e manco, de que não podemos ver o desenvolvimento, a providência e a meta na eternidade. Mas, fundido na cadeia, nossa breve vida atual assume insuspeitados significados profundos, expande-se até os mais longínquos horizontes, potencializa-se e se acresce de novos valores, porque essa vida é levada a contato com suas mais longínquas origens e com suas maravilhosas conclusões, origens e conclusões até ao plano altíssimo do Absoluto e da Divindade.

 

Compreende-se, então, a íntima força espiritual que anima o fenômeno da evolução; compreende-se o progressivo revelar-se da divindade sepultada, pela queda, no profundo do ser, e lentamente acordada pelo choque das provas e da dor. Vemos então a substância do fenômeno evolutivo, dentro da forma que ele anima; vemos o princípio espiritual reger essa forma em cada plano do ser, desde a pedra até o super-homem; e compreendemos que nada pode existir, senão enquanto for animado por uma centelha proveniente de Deus. Mais se desça, porém, na escala da evolução, mais este princípio é aprisionado, encapsulado, escondido na materialidade. E quanto mais se sobe nessa escala, mais se liberta esse princípio e se revela na espiritualidade. Nossas crianças têm o sentido do bem e do mal, compreendem no plano ético, conceitos incompreensíveis aos selvagens que, amorais, vão diretamente à satisfação de suas necessidades e desejos, ignaros desse mundo mais alto. Vemos como, com o progresso da civilização, a alma humana vai sempre se enriquecendo de qualidades.

 

De que nasce, pois, o progresso, e como pode explicar-se sua contínua ascensão com o tempo, se não como efeito das experiências da vida e do acumular-se de seus resultados úteis? Temos sob os olhos muitos fatos concomitantes: o desenvolver-se de muitas vidas no tempo, o progresso das civilizações, o desenvolvimento da consciência, o enriquecimento do espírito com tantas novas qualidades. Sem a reencarnação, permanecem desconexos esses fatos, sem significado e sem explicação. Com essa teoria ficam explicados, integram-se e convergem harmonicamente para a própria solução.

 

Só com essa concepção é possível admitir-se a salvação de todos, porque há, com abundância, tempo para realizar experiências de todo o gênero. Ao invés, agora com a teoria do inferno, parte dos seres já teria ido formar definitivamente o núcleo da revolta eterna, isto é, o tumor canceroso que para sempre manchará a obra da criação, tornando assim definitivamente vã e imperfeita a obra de Deus. Não podemos absolutamente admitir o absurdo representado por uma tal falência. Não. Só com a teoria da reencarnação poderemos explicar-nos tudo e tudo aceitar, porque corresponde à justiça, ou seja: as particulares condições de ambiente, de qualidades físicas e espirituais com que vimos ao mundo, o modo particular com que para cada um de nós, a seguir se desenvolve a vida. É inútil negá-lo. Dissemos acima que há acontecimentos, em nossa existência, que querem acontecer, sejam alegres ou dolorosos, e acontecimentos que não querem verificar-se e, se acontecem, é só a seu modo, contra nossa vontade. Há um destino mais forte do que nós. Quem o fez, quem o guia? Colocarmos Deus, caso por caso, ilogicamente, sem finalidade a nós conhecida, amarrando nosso livre arbítrio e assim tornando-nos irresponsáveis? Que nem sempre somos livres, é um fato. E como poderemos ser responsáveis e portanto dever pagar as consequências, se não somos livres? Não podemos admitir que seja Deus que nos amarre, mas somente que fomos nós, com o nosso passado; de forma que, se agora não somos livres, somos igualmente responsáveis, porque fomos nós mesmos que quisemos reduzir-nos à escravidão, amarrando-nos às consequências de nossas ações. Nossas obras nos acompanham. Só assim, quando o destino nos golpeia, não poderemos culpar senão a nós mesmos; ao invés de amaldiçoar, só poderemos agradecer a Deus que nos corrige, pedindo-lhe que nos ajude a corrigir-nos. Só assim não pode a mente lançar a culpa em Deus, pois assim excluímos que Ele opere por arbitrariedade, mas, ao contrário, como o exige Sua perfeição, mediante apenas a lógica, a justiça e a bondade. As consequências morais da reencarnação nos falam de Sua verdade e bondade.

 

Um caso clássico, em que se aplicam os supraditos conceitos, é o de Judas. Como complemento necessário da descida, vida e missão de Cristo, era indispensável Sua paixão, de que dependia a redenção da humanidade. Sua morte na Cruz fazia parte da lógica do seu sistema, baseado no Amor e no Sacrifício. Todos os acontecimentos que condicionaram essa paixão, inclusive a traição de Judas, deviam pois ter um caráter de fatalidade. É bem verdade que a traição podia ter sido cometida por outro, e podiam os sacerdotes achar outro meio para apoderar-se de Cristo. Mas isto não impedia que alguém tivesse que prender, condenar, matar Cristo, sem o que não podia verificar-se a paixão. Em todo o caso, não se pode excluir, pois, que houvesse um predestinado, incumbido de cumprir essa parte necessária no drama, sem a qual a missão não se teria podido realizar. Ora, se ele era predestinado e a sua ação era fatal, ele não era livre; e, se não era livre, como poderia ser responsável, e portanto considerado culpado?

 

Mas ainda há mais. As profecias já tudo haviam predito como deveria isto ocorrer, mesmo em suas modalidades. O Evangelho de São Mateus, explica: “Como pois se cumpririam as Escrituras, que dizem assim dever suceder?”(...). “Mas tudo isso aconteceu, a fim de que as Escrituras dos profetas se cumprissem”. E isto tudo a propósito do beijo de Judas e da prisão de Cristo. Pouco depois acrescenta: “Assim se cumpre o que foi anunciado pelo profeta, que disse: “e apanharam as trinta moedas de prata, preço daquele que foi vendido”. Por sua vez confirma-o São Marcos em seu Evangelho: “Certamente vai embora o Filho do Homem, como Dele foi escrito, mas ai do homem, pelo qual é traído o Filho do Homem! Melhor lhe fora jamais ter nascido”. Em primeiro lugar, não podemos deixar de observar aquele “jamais ter nascido”, que dá a impressão de um ato escolhido e querido pelo próprio sujeito, que o teria podido evitar. Sem a reencarnação, Cristo com essas palavras só poderia ter expresso: seria melhor que Deus não tivesse criado este. Ora, é inconcebível que Deus tenha errado, pensar que teria podido fazer melhor agindo de outra forma, e que Cristo tenha salientado esse erro.

 

As profecias, pois, dizem tudo com precisão. Fica claro, dos textos citados, que qualquer que fosse o homem chamado para entregar o Cristo, já devia existir um predestinado para isso e já sobre a sua cabeça pesava “a priori” essa condenação. Ora, como pode ser considerado responsável, culpável e punível um ser que, sendo criado por Deus, não podia deixar de nascer, um ser cuja ação, de uma ou de outra forma, era indispensável à realização da paixão de Cristo, e cuja traição, já tendo sido profetizada, era um ato inevitável? O verdadeiro culpado, então, teria sido Deus que, mesmo sabendo tudo, e sem deixar-lhe a liberdade alguma, havia criado e feito nascer um predestinado a esse ato.

 

Sem a teoria da reencarnação o emaranhado das contradições permanece inexplicável. Limitamo-nos a explicar este caso, sem citar – o que já foi por outros feito cabalmente – muitos outros pontos em que só se pode compreender o Evangelho no sentido da reencarnação, à qual aí se alude claramente. O problema é este: como conciliar a atual falta de liberdade, fato evidente ao menos naquela vida de Judas, com sua culpabilidade? Como pode julgar-se passível de condenação e portanto de castigo, um ser que não pode escolher? E se a primeira qualidade do espírito é a liberdade, como esta terá sido tirada a Judas? E isto só para que desse fato surgisse sua perdição? Temos aqui um fato indiscutível, ou seja, um traidor inelutavelmente condenado antecipadamente, para ser amaldiçoado pelo mundo e condenado pelo céu. Se esse conceito de culpável por predestinação repugna a todo senso de justiça, é absurdo de outro lado o livre arbítrio num ser como Judas, ou de qualquer outro no mesmo caso, a quem fosse entregue em mãos o poder de, com sua escolha, desmentir as profecias e paralisar o desenvolvimento da paixão de Cristo. Havia, pois, um homem irremediavelmente lançado para a traição e depois para seu desesperado suicídio, sem escapatória para ele. Neste caso então, teria sido ele vítima maior porque inocente, sacrificada até seu último opróbrio, e perdição eterna, para triunfo final de Cristo.

 

Só com a teoria da reencarnação se resolve tudo. Sem dúvida, o ato de traição de Judas foi fatal, e Cristo sabia que podia com certeza com ele contar. Mas a liberdade se coagulou e fixou, ligando-se em forma de fatalidade, só no último momento, isto é, quando essa foi necessária. Derivava ela de todo o seu passado, fora longa e livremente preparada nas vidas precedentes. Nestas, Judas quis espontaneamente constituir-se traidor, isto é, quis escolher, entre as qualidades boas ou más, estas últimas; com repetidos pensamentos e ações, ele as absorvera e fixara em seu biótipo, de modo que não podia mais mudar-se, ao menos no momento. Quando viveu ao lado de Cristo, já se havia ele de tal forma irremediavelmente enredado nesse modo de pensar e viver, que lhe não restava mais possibilidade de escolha. Tudo era fatal, pois, mas só naquele momento. Fora livre, precedentemente, portanto permanecia intacta a responsabilidade e portanto a culpabilidade. Foi assim que Judas pôde tornar-se condenável. Cristo nada mais fez que escolher um homem já pronto para a sua função e admiti-lo entre os apóstolos, para que, no momento propício, ele a realizasse. Mas, apesar de que no fim, lançado no caminho do mal, este não pudesse mais retirar-se, sua responsabilidade, que agora parecia desaparecer no determinismo, permanecia intacta, porquanto remontava a vida anteriores, em que ele mesmo criara em si essa personalidade e livremente se quisera amarrar a este destino. A culpa de Judas não foi tanto o beijo traidor, última consequência de um hábito de traições, quanto o ter querido adquirir esse hábito, que agora tinha no sangue e não se adquire num dia. Uma responsabilidade de tamanha gravidade, exigia uma culpabilidade proporcionada, profunda verdadeiramente merecida em plena consciência e liberdade. Por fim, ao lado de Cristo, já a obra de Judas foi automática. Quem sabe quantas traições já fizera e, com a última, pagou-as todas, como merecia.

 

É assim que a reencarnação nos explica como seja possível permanecer responsáveis e constrangidos a pagar. Isto porque, esta inexorabilidade é uma consequência inelutável do que nos mesmos preparamos no passado. As consequências, não mais podemos então fugir de modo permanecemos responsáveis, sem ser mais livres. O caso de Judas não é o único. O bem e o mal, no passado, amarra-nos a todos no presente. O destino de todos, na fase de efeito, é em certo pontos determinístico. Está assim resolvido o inexplicável o emaranhado das precedentes contradições. Eis como, só com a teoria da reencarnação, podem conciliar-se os dois extremos opostos: liberdade e responsabilidade de uma parte e fatalidade de outra. Assim tudo é simples e claro. Em cada caso, a evidência das soluções só pode confirmar-nos na verdade a teoria da reencarnação.

Os princípios gerais que o leitor conhece – porque já foram desenvolvidos em outros volumes anteriores – apesar de terem as suas origens nos planos da metapsíquica e mesmo na teologia, descem, continuando verdadeiros e eficientes, até ao particular de nosso mundo econômico, e aos problemas técnicos das trocas monetárias. Os sábios princípios e equilíbrios da vida dominam o próprio contingente prático, manifestam-se também neste terreno do particular que parece isolado e destacado deles. A biologia, concebida como guiada pela lei de Deus e como expressão de Sua vontade e pensamento, abraça também todos os fenômenos da vida, desde o moral, intelectual e espiritual, até ao social, histórico e econômico, num monismo absoluto. Assim também o mundo econômico, mesmo no seu caso monetário particular, está ligado ao todo e é reduzível à unidade universal.

 

O primeiro fenômeno que nos aparece na economia política é o da oferta e da procura. É ele regido pela lei do mínimo meio. Assim como, pela lei da gravidade, o que menos pesa sobrenada, e o que pesa mais afunda-se, assim por esta lei, o que escasseia é valorizado, procurado, e sobressai e flutua sobre as outras coisas; ao passo que o abundante e exuberante, é pouco valorizado e afunda-se. Mas o fenômeno é também regido pelo princípio geral, vigente em nosso plano evolutivo, da luta pela seleção do mais forte, o qual assume em seu aspecto demográfico e bélico a forma de luta armada (guerra) pela conquista do espaço vital, e em seu aspecto econômico a forma da oferta e da procura. Mas só em aparência elas se apresentam com roupagem pacífica. Se os economistas no-las representam em equilíbrio, como uma balança, na realidade elas são o resultado de uma luta baseada num egoísmo desencadeado. Na prática, a oferta é o ato com que se busca satisfazer a uma necessidade ou procura, quando, no mundo civilizado, não é mais preciso recorrer à forma primitiva de agressão à mão armada ou ao furto. É forma mais evoluída que as outras, imposta num estado de ordem, para aquisição dos bens, em que somos constrangidos a reconhecer um direito igual em nosso próximo (inimigo, porque rival na procura dos bens). A procura é a busca declarada e direta da satisfação do desejo ou necessidade própria, tentando combinar essa procura com a oferta, mas também tentando aproveitar para vantagem própria todas as fraquezas e necessidades do ofertante.

 

Embora apresentem os economistas o problema em forma de equilíbrio, em que se contrabalancem os dois impulsos, por detrás de suas fórmulas há sempre a mesma realidade biológica que observamos em todos os fenômenos. Revela-nos ela a dura face de luta desapiedada entre egoísmos opostos, na qual cada um deles procura desfrutar, espremer e esmagar o outro para vantagem sua. Permanece a luta no terreno da posse dos bens, a fim de se poder adquirir o máximo em quantidade e qualidade ou valor, dando em troca o mínimo. A balança da procura não é igual à da oferta e vice-versa, mas para cada uma das duas partes, a medida “justa” pretende ser esta: tudo para mim, nada para o outro. Na luta, constrangidas pela necessidade de chegar à troca, a fim de satisfazer às próprias necessidades, devem sem dúvida as duas partes encontrar-se num ponto intermédio; mas este não é o da justiça equitativa, é apenas o resultante do encontro de duas forças opostas, das quais a mais forte vence a outra, fazendo a balança pender para seu lado.

 

Esta é a justiça econômica, que vale tanto quanto a justiça bélica ou a política, assim por diante, em que o mais forte tem razão e estabelece e impõe a justiça para sua vantagem. Assim, a procura põe a mão no prato da balança da oferta e ao contrário. Por isso, quando a oferta abunda em relação à procura, desvaloriza-se o produto oferecido, porque a procura oferece uma compensação sempre menor correspondente ao crescimento da oferta, aproveitando a abundância do produto e a necessidade que tem o inimigo de dar-lhe saída, para obter a mercadoria a um preço de troca sempre menor. Por isso, quando aumenta a procura, a oferta aproveita a necessidade e a carência do requisitante, para pedir um preço mais alto, e então o produto oferecido se valoriza. Por isso, também no caso mais simples de troca direta de mercadorias, sem intermediário da moeda, temos para essa luta uma instabilidade de valores ou preços, isto é, o germe das crises econômicas e monetárias, dependendo tudo da estrutura psicológica do animal humano. É precisamente esse regime de luta, derivada de tal estrutura, a primeira fonte das crises econômicas e da instabilidade monetária. Equilíbrios instáveis. Mas não pode obter-se melhor resultado de uma máquina baseada sobre o egoísmo, e, portanto, sobre o encontro de egoísmo, do qual só pode sair vencedor o mais forte.

 

Baseia-se no nosso atual mundo, na falta de reconhecimento das necessidades e direitos do próximo. Não se apoia a sociedade humana numa colaboração harmônica, como deveria ocorrer entre células de um mesmo organismo, mas fundamenta-se na luta entre células, atentas a suprimir-se, para que a mais forte esmague a mais fraca. Isto ocasiona um atrito que a coletividade deve pagar à sua custa. Assim, querendo cada um vencer para si, age de modo a que todos concordemente percam em parte, ou seja, devam pagar uma taxa comum, uma percentagem de perdas ou consumo para a luta comum de todos contra todos. E isto é absurdo. Mas, no grau atual da evolução, o homem não consegue proceder com mais inteligência.

 

O organismo social só pode achar a linha de maior rendimento na colaboração, baseada na honestidade e na confiança, filhas de um altruísmo não teórico e vão, mais inteligente e utilitário. Ora, neste nosso mundo nada disto se pratica e por isso a máquina social funciona com esforço, sem nenhuma consciência coletiva, nem mesmo as que já alcançaram algumas sociedades de insetos, como as abelhas, as formigas etc. E quando funciona um pouco, é um funcionamento forçado, porque só a imposição de um governo consegue obrigá-la a isso. Está tudo desgastado e esmagado pelo peso da desconfiança e da contínua resistência do indivíduo contra o interesse coletivo. O egoísmo fecha e divide, sufocando a vida, enquanto o mundo necessita sempre mais de estradas abertas por onde circule, já que a troca é de natureza, útil e fecunda. Acontece então que o Estado deve onerar-se com custosa e embaraçosa burocracia, para que tudo seja controlado. Torna-se esta, então, uma odiosa caçadora de transgressores e os governantes inimigos do povo. E surge aquele natural e universal antagonismo entre o Estado e o indivíduo, sempre em luta entre si, como ocorre entre empregados e patrões. Então precisam os governos armar um exército, para manter-se de pé. E assim por diante. E então grande parte da produção, do trabalho, dos bens da nação, precisam ser usados com esse fim, e subtraídos ao gozo de todos.

 

Em cada anel da cadeia das trocas, que vai do produtor ao consumidor, ninguém procura dar frutos para todos, tornando-se útil à função que exerce: antes, procura explorar todos, impondo, a preço de extorsão, a todos os outros, a função, só porque esta serve a ele, embora para a coletividade seja prejuízo. Assim, o que parece uma graciosa oferta do comerciante, nos negócios, às vezes é apenas uma luta para arrancar do cliente a maior quantidade possível de dinheiro, com uma mercadoria tomada ao produtor pelo mínimo preço possível. Nada produzindo de seu, torna-se ele indispensável a ambos, procurando tirar de ambos todas as vantagens. Estas, se aumenta a produção, são primeiro absorvidas pelo comerciante, sem que atinjam o consumidor; e se a procura aumenta, pode fazer subir o preço, sem que o produtor sinta a vantagem.

 

Por sua vez, preocupa-se o produtor em satisfazer às necessidades dos outros, somente enquanto isto corresponde a seu desejo de lucro. Ele então explora os gostos pervertidos e também os vícios (como a imprensa, que divulga fatos criminais e, em alguns Estados onde o governo tem monopólio do fumo, a propaganda, que difunde o hábito de fumar). Estabelecida, portanto, certa produção, atento apenas a satisfazer a seu interesse de vender e embolsar, o produtor é arrastado a conquistar, a qualquer custo, o seu cliente. Nasce então uma propaganda fictícia, dirigida a criar novos gostos, inúteis, com o único fito de dar saída aos produtos, aproveitando-se da sugestionabilidade das massas. É um assalto à boa fé dos simples. E quanto menos vale o produto, maiores despesas de propaganda pode certamente suportar, portanto, mais apto está a invadir o mercado. Mas há ainda pior. A formação de um mercado europeu a favor dos Estados Unidos chegou ao ponto de levá-los à guerra e depois a um bombardeio cerrado de grande parte da Europa. Mas assim ficou assegurado o cliente.

 

Assim, a oferta sabe fabricar a procura, se tem necessidade, e fica assegurada a saída da produção. Tal é a natureza humana, pela qual o médico tende a fabricar os doentes de que precisa, por vezes até aplicando tratamentos e operações cirúrgicas inteiramente desnecessárias e inúteis. Assim, os ministros de qualquer religião são levados a criar para si mesmos o rebanho dos fiéis ou prosélitos, que justifiquem sua posição ou presença. É sempre o mesmo egoísmo e luta para viver que leva o homem, não a oferecer suas capacidades para a utilidade coletiva, mas a impor-lhe a própria utilidade exclusiva individual. Por isso, tudo se torna um perigo nas mãos do homem. No entanto, o erro consiste em acreditar que este seja apenas um dano para o vizinho e não o próprio, quando este é um dano para todos.

 

Tanto nos países livres como nas ditaduras, a realidade biológica, feita de luta desapiedada de todos contra todos, é sempre a mesma. Em qualquer parte o peixe maior come o menor, o mais forte esmaga o mais fraco. A mesma coisa é feita em nome dos princípios e ideais mais diferentes. Por vezes, pode reduzir-se a liberdade para os mais fracos, os vencidos, apenas à liberdade de morrer de fome. São gigantescas e tremendas coligações de interesses que regem o mundo. Acusa-se justamente o comunismo de explorar os instintos rapaces das massas, mas isto prova que as massas já têm esses instintos em sua alma. Eis uma qualidade em que, tanto no alto como em baixo, muitos homens são verdadeiramente iguais. Eis onde está a igualdade humana para todas as raças: a ilimitada cobiça. E no entanto, é possível, no mundo econômico, morrer não de fome, mas também de indigestão. Quando caminhamos com tais métodos, o próprio aumento da produção deveria produzir abundância e bem-estar, oferecendo tudo a menor preço, aumentando o consumo e elevando o nível de vida. Mas então a mercadoria se desvaloriza, valoriza-se e desaparece a moeda, e os produtores, para salvar-se da queda dos preços, não produzem mais. Então, para elevar os preços, eles chegam a queimar a mercadoria. E assim, com o sistema do egoísmo e da avidez, chega-se ao absurdo, isto é, que enriquecer com maiores bens mediante o trabalho não é uma vantagem mas um prejuízo. Não se chega então ao bem-estar, mas à crise. E no entanto, não nos damos conta de quanto isto seja providencial. Se as leis da vida tendem a nivelar o homem mais num plano de miséria que de riquezas, acontece isto como consequência automática da psicologia de abuso que rege o mundo econômico; e é um bem, porque esse homem não deve possuir o poder econômico, dado que só saberia fazer dele péssimo uso, em seu prejuízo.

 

Após estas premissas, entremos no problema particular monetário. Temos que presumir um conhecimento ao menos geral de economia política, agora que nos engolfamos no aspecto técnico da questão.

 

Falamos até aqui de um sistema simples, de troca direta, em que os bens funcionam não só como mercadoria, mas também como moeda, e observamos a forma psicológica que rege o fenômeno econômico basilar da oferta e da procura. Para nos aproximarmos do problema monetário, temos que substituir o sistema originário e primitivo da troca direta, pelo atual sistema de troca entre bens e moeda, em que um dos termos é a mercadoria e o outro é o dinheiro.

 

Nas fases primitivas, a instintiva utilidade da troca limitara-se a fazer nascer uma economia direta, de simples permuta de bens, isto é, de trocas não monetárias, em que a mercadoria é a moeda. Mas a lei utilitária, sempre em vigor, do mínimo meio, levara instintivamente o homem a escolher, entre todas, a mercadoria que mais destacadamente tivesse as qualidades que a tornassem apta à permuta. Devia ser mercadoria de uso e valor sobretudo universais, de modo a servir de denominador comum de troca entre todas as outras, representando seu equivalente em valor. Devia ser então mercadoria de fácil transporte e sobretudo conservável, que permitisse o armazenamento como lastro de todos os outros bens, mais próprios à utilidade direta do consumo do que a essa função de reserva econômica. Indispensável mercadoria não deteriorável, independente de todas as transformações, como nascer, crescer, morrer, a que estão sujeitos todos os produtos da vida.

 

Começou-se com o pecus, a ovelha, unidade genérica de gado pecorino, de que se derivou mais tarde a palavra “pecúnia”. Mas ainda estamos numa forma de troca direta, à base de mercadoria não facilmente amoedável, porque ela mesma, segundo a produção, tinha quantidade variável e portanto valor instável, desde que não permanente em quantidades constantes no mercado. Isto pela lei da oferta e da procura, mediante a qual, aumentando a quantidade de cada mercadoria, seu valor diminui. Além disso, não era mercadoria facilmente transportável nem conservável. Chegou-se por isso pouco a pouco ao ouro e à prata, que correspondiam melhor aos requisitos de amoedamento, não só como aceitação universal, transportabilidade, conservabilidade (isto é, não deteriorável) e estabilidade (ou seja, não sujeita às contínuas transformações da vida), como ainda pela quantidade, e, portanto, valor, relativamente constante. O ouro e a prata são ademais bem definíveis como peso e medida, e representam mercadoria que tem por si, nas joias, valor intrínseco, sempre realizável nos mercados.

 

Até aqui estamos diante de valores reais, ainda que de caráter diverso, desde que não é possível comer ouro, ao invés de grão. Reais, pois haverá sempre quem aceite, nas trocas humanas, ouro em troca de outra mercadoria. Mas o homem não parou aqui. Esses metais preciosos foram transformados em moeda cunhada, em que eles eram unidos a ligas de outros metais de valor menor. Depois, para subtrair essas moedas à deterioração e ao perigo dos desvios, substituiu-se lhes o papel-moeda, ao qual, ao menos em teoria, deveria corresponder uma equivalente reserva de ouro. Assim, tudo se foi transformando, substituindo-se cada vez mais valores fictícios e convencionais ao primitivo, de utilidade imediata. Isto tudo principalmente porque o poder político se apossou deste terreno para seu uso e consumo. Pôde chegar-se assim a valores nominais a que bem pouco corresponde de real. Na luta econômica universal, a intervenção estatal pôde com isso coagir a seu favor os equilíbrios naturais e alterar os valores reais. Desse modo, em pleno regime de tanta liberdade trombeteada, a intervenção estatal paralisou o jogo da oferta e da procura. Por isso, a violação dos equilíbrios, que naturalmente se formam num regime de liberdade econômica, conduz a regimes econômicos falsos, a inflações monetárias, a crises contínuas, delícia de nossos tempos...

 

Nada pode firmar-se sobre a mentira. Em qualquer terreno, a vida, que é honesta, quer que valores reais correspondam aos valores declarados. No mundo econômico isto é tão verdadeiro como no mundo físico ou moral. Emitir papel-moeda sem lastro outro, equivale a pôr em circulação moeda falsa e, comprar com semelhante moeda, isto é, sem dar um equivalente pela mercadoria que com ela se adquire, equivale a um furto. Mas é furto de Estado, e como tal, juridicamente protegido. Esse foi o caso da emissão de papel-moeda pelos aliados que ocupavam a Itália no fim da guerra, forma civil de tomar sem dar nada, ainda que de forma legalmente correta, isto é, pagando regularmente, mas com papel desprovido de qualquer valor real. Mas, guerra é guerra. E invadir sem saquear as casas – como sempre fizeram os exércitos invasores – apresentando-se com as vestes cândidas de libertadores que espalham flores, já é um progresso, ainda que apenas na forma. Assim, as despesas aliadas feitas com papel fictício puderam aumentar a inflação, com que tudo foi graciosamente pago. Permaneceu dessa forma grande quantidade de papel-moeda em circulação com um mínimo de poder aquisitivo, estando os bens e a produção, pela destruição bélica, mais diminuídos que aumentados.

                  

Enfrentemos agora o problema mais particular ainda da estabilidade monetária. É evidente que a primeira qualidade que deve possuir a moeda, como contra-valor de bens, é a confiança, isto é, a moeda deve corresponder a um valor real, e isto em forma estável. Ao invés, uma das características da moeda, hoje especialmente, é a instabilidade de seu valor.

 

Deveria haver equilíbrio e união entre os dois termos: bens e moeda, para que fecundassem em colaboração com a vida humana. Ao invés, eles se combatem e afugentam mutuamente. Deveriam estar abraçados, e ao contrário são rivais. Quando um precisa do outro, este o abandona. Há luta e antítese entre bens e moeda, pelo que, quando os bens abundam no mercado, a moeda desaparece; e vice-versa, esta sai a procurar desesperadamente os bens, quando estes escasseiam, por qualquer motivo. Acontece assim que, quando os armazéns estão cheios, os bolsos aparecem vazios; e quando os armazéns estão desprovidos de mercadoria, então os bolsos mostram-se cheios.

 

Por que acontece isto? A economia é como um organismo vivo, movimentado e regido em seu funcionamento pela psicologia humana. E como pode nascer coisa diferente, de uma psicologia de mesquinho egoísmo individualista? Dado que cada um age apenas em seu exclusivo interesse, há luta entre procura e oferta, procurando uma aproveitar-se da outra, explorando-se reciprocamente, só para trazer a si o lucro maior. Então acontece que, logo que há aumento de oferta, os preços descem, isto é, a mercadoria vale menos e a moeda vale mais; portanto, esta se retira, se esconde, de vez que, aumentando seu poder aquisitivo, ela se torna mais preciosa. Ao contrário, logo que há diminuição de oferta, e as mercadorias escasseiam, aumentam os preços, isto é, a mercadoria vale mais e a moeda vale menos. Além disso, esta é constrangida a aparecer para adquirir os bens que, escasseando, se tornaram mais necessários e procurados. E acontece que a moeda abunda no mercado quando há menos que comprar e escasseia quando há mais que comprar. Sendo o produtor e o consumidor dois inimigos em luta, prontos a explorar qualquer fraqueza do adversário, esse movimento é gerado não só pela esperança de um lucro sempre maior em vantagem própria e com dano do outro, como também pelo medo de uma perda sempre maior, com dano próprio e vantagem do outro. Nasce então o pânico no produtor ou possuidor das mercadorias, ou seja, o medo de que a descida dos preços continue com uma desvalorização sempre crescente dos bens possuídos. Ao contrário, outro pânico se forma no consumidor ou possuidor de moeda, isto é, medo de que o aumento do preço continue, com um encarecimento sempre crescente dos bens.

 

Eis então que o sistema, ao invés de conter forças que tendam a repô-lo em equilíbrio, resulta das forças que tendem a ampliar e agravar sempre mais o desequilíbrio. Em outras palavras: ao verificar-se uma descida de preços, o produtor ou possuidor da mercadoria, temendo sempre maior desvalorização da mesma, ao invés de retirá-la do mercado, principalmente se é deteriorável, é levado a saturá-lo sempre mais, aumentando seu depreciamento e a revalorização e fuga da moeda. De outro lado, no caso oposto de aumento de preços, o consumidor ou possuidor da moeda, temendo sempre maior escassez de mercadoria, pelo medo de ficar desprevenido do necessário, ao invés de retirar o dinheiro do mercado, é levado a lançá-lo aí cada vez mais, aumentando assim seu depreciamento e a valorização ou aumento de preço das mercadorias. Então, a posição de desequilíbrio inicial, em que se baseia e surge o sistema, arruína-o e consume-o todo até o fim. Os impulsos dos dois egoísmos que contrastam, tendendo a sobrepor-se e a eliminar-se, porque um quer vencer esmagando o outro, não podem dar-nos um equilíbrio entre eles como dois pontos equidistantes; mas apenas um constante acavalar-se de desequilíbrios e um agravamento de crise, pelo fato de que eles procuram, ao contrário, resolver seu embate só com a vida de um, pondo como condição a morte do outro. É por isso que, logo que se verifica um desequilíbrio inicial, todo o sistema tende a ampliá-lo e agravá-lo, ao invés de resolvê-lo. Mas, dada a psicologia anticolaboracionista em que se funda a nossa economia, ela só pode ter uma fisiologia cancerosa, só pode ser economia de crise, como o é de fato.

 

Então, quando pela abundância da mercadoria diminui o seu preço, mesmo procurando produzir menos, pois cada nova produção aumentaria o dano do produtor, os compradores prorrogarão as suas aquisições porque cada um é levado a segurar o que vale, isto é, a moeda neste caso; e também porque lhes poderá parecer mais útil prorrogar seu gasto, na esperança de que os preços possam baixar ainda mais. Enquanto acontece isto, os possuidores da mercadoria, temendo ulteriores baixas, lançarão tudo no mercado, para apressar sua venda. Assim ampliar-se-á cada vez mais o desequilíbrio, agravar-se-á o estado de desconfiança, até atingir a queda das crises. Dada a estrutura do sistema, não há outra solução. Tudo age como ampliador dos desequilíbrios. Mas o princípio desagregador da luta só pode levar a esses resultados. Não sendo o fenômeno sujeito à direção e ao controle de uma consciência econômica da coletividade, desenvolve-se tudo de acordo com a lei do precipitar-se descontrolado da avalanche, cujo movimento cresce de per si, e não pode ser parado senão com a queda final ou crise.

 

Neste jogo de egoísmos, sempre os honestos levarão o pior, ao passo que os que procuram seu próprio interesse, não se importando com o interesse coletivo, acumularão riquezas e sairão vencedores. Neste jogo, em que ora se escondem os bens, ora a moeda, o trabalho, que é a coisa mais importante, perde sempre. No período de abundância de bens e escassez de moeda, gozam os que têm dinheiro. Nos momentos de abundância de dinheiro e escassez de bens, gozam os que têm bens para vender. Em meio a este contraste, o trabalho, que é o elemento genético de tudo, aparece como um empecilho, pouco considerado, constrangido a sofrer o dano de ambos os lados. E de fato, quando há abundância de mercadoria, o trabalho é rejeitado, dado que a moeda para pagá-lo está cara e porque não convém produzir mais, a fim de não aumentar a queda dos preços. Teremos então o desemprego. E quando há abundância de moeda, que sai à procura dos poucos bens à venda, então o trabalhador achará ocupação, mas, não tendo acumulado nem bens nem dinheiro, sofrerá os danos da carestia. Assim a economia é atingida em suas raízes, que são representadas pelo trabalho. Esta oscilação contínua de valor da unidade monetária, influi também no crédito, exigindo juros altos, quando a moeda escasseia, com repercussão, portanto, em toda a produção. E assim esses problemas invadem toda a vida dos povos, sendo o fator econômico um dos mais importantes na determinação do curso da história.

 

Observemos mais de perto ainda esse sistema de antítese. Num mundo equilibrado, não deveria haver antagonismo entre interesse coletivo e interesse individual. Deveria um correr paralelo ao outro, e ambos deveriam sobrepor-se e coincidir. Fazendo o interesse próprio, o indivíduo deveria implicitamente fazer também o da coletividade. Ora, na prática, sucede justamente o contrário: quem quiser salvar-se, precisa não pensar de maneira nenhuma nos interesses da coletividade. Vejamos dois exemplos.

 

Num período de descida de preços das mercadorias e valorização da moeda, dever-se-ia, no interesse coletivo, continuar a produzir, a dar trabalho, a manter em pé a própria indústria. Mas quem tivesse para isso, no princípio do ano, tomado uma soma em empréstimo no banco, em virtude da diminuição dos preços teria conseguido muito menos lucro no fim do ano, do que houvesse dispendido e, ainda que tendo aumentado a riqueza real e proporcionado um benefício à sociedade, teria trabalhado com prejuízo e estaria arruinado. No caso contrário, num período de subida de preços e desvalorização da moeda, seria interessante que, no interesse coletivo, todos os que tivessem reservas de mercadorias as vendessem, para satisfazer as necessidades coletivas, esperando para readquiri-las depois, quando a produção recomeçasse. Isto sobretudo para as mercadorias indispensáveis. Pois bem, suponhamos que um vendedor de fazendas ou remédios etc., venda ao preço corrente. Ao fim do ano, achar-se-á ele com o depósito vazio e com necessidade de preenchê-lo, com preços aquisitivos muito superiores aos que ele vendeu. Se recorrer a suas economias, as achará depreciadas, com poder aquisitivo muito inferior. E assim estará arruinado. Quem se salvará, então? Só aqueles que tiverem cuidado exclusivamente de seu próprio interesse pessoal, em prejuízo do interesse coletivo.

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Ao verificarmos isto, uma coisa nos surpreende: ver como, apesar de tudo, o organismo social tenha podido sobreviver. Parece que os recursos primários da vida tenham sido calculados de modo que pudessem resistir a todos os assaltos destruidores. O organismo social sobrevive, mas é mister verificar quantas dores custam à humanidade tais erros. Entretanto, a ignorância e a insensibilidade humanas parecem proporcionadas às dores. E assim, o sofrimento constitui uma das principais ocupações do mundo.

 

Imaginaram-se remédios, mas frequentemente foram piores que o mal. Assim foi a intervenção coativa da autoridade estatal. As crises econômicas fazem com que as nações desejem o médico para curá-las. Por isso, um novo grupo, substituindo-se ao velho, culpado do mal-estar, assumirá o poder, sempre mediante razões de justiça, para restabelecer a ordem, para o bem do povo e até em nome de Deus. Depois, empossados, os patrões e os clientes procurarão seus interesses, até que venha nova crise, sua queda e a substituição por outro grupo, que fará o mesmo.

 

Pelo sobre-exposto sistema dos egoísmos contrastantes, a antítese entre interesse individual e coletivo significa que Estado e indivíduo são inimigos. Então só pode manter ordem econômica um Estado com regime de força, que invada e obrigue toda atividade econômica dos cidadãos. Ocorre então vasta organização burocrática com a qual se manobram todos os mecanismos e organismos da produção, do consumo e das trocas, bancos e fábricas, agricultura e transportes. Vive assim cada cidadão submetido, em sua atividade mais ciosa, ao poder estatal, de que não é, de certo, aliado. Em outros termos, teríamos a ditadura econômica da nação, levada a dirigir, dominar e absorver cada atividade dos indivíduos.

 

Temos dessa forma o Estado burocrático, policial, militar. Assim o navio da economia nacional poderia caminhar mais regularmente, mas é mister considerar quanto custa em trabalho, despesas e sacrifícios, essa disciplina. E além disso, esse navio se transformaria depressa em navio de guerra! Em vista da oposição entre o interesse do cidadão e o do Estado, a fim de obrigar o indivíduo a sacrificar o seu em benefício do bem coletivo, deverá o Estado impor-se com custosa burocracia e também com poderosas forças de polícia e de exército. Diante de uma invasão na esfera ciosa dos interesses privados, todos se rebelam, e a disciplina representa fadiga e gastos pelo atrito. Então a nau do Estado, que poderia ser um navio de passageiros ricos de espaço e conforto, deve tornar-se um navio de guerra, em que tudo é disciplina e limitação, porque as maiores margens de liberdade e riqueza são absorvidas pelas despesas e pelo peso da grande máquina estatal.

 

É sempre o princípio da luta e rivalidade de egoísmos que reclama a necessidade de uma autoridade que termine, no interesse geral, a constante guerrilha. É assim que o contraste entre os interesses dos indivíduos entre si e dos indivíduos com o Estado, abre as portas aos despotismos e às ditaduras, que acham sua justificação no domínio absoluto para manter a ordem. Mas assim chegamos ao arbítrio, que terminará com novas crises econômicas, guerras e revoluções, depois das quais, recomeça-se tudo desde o início, como acima.

 

As nações vizinhas, pelas mesmas razões, transformar-se-ão em outros tantos navios de guerra semelhantes àquele, e todas esperarão uma oportunidade de guerrear-se, pela mesma razão pela qual cada uma se transformou de navio civil em navio de guerra. A ordem entre todos os navios de guerra, ou nações, só podendo obter-se por imposição de uma ditadura superior a todas, não pode alcançar-se; e assim permanece o campo à mercê apenas do livre sistema de ataques e defesas, para a seleção do mais forte. Cada navio ou nação representará apenas uma unidade coletiva, baseada no mesmo princípio de egoísmo, próprio a cada um dos componentes. Cada um deles procurará a sua vantagem exclusiva, e o prejuízo da outra nação, procurando nela exportação, emigração e tudo o que lhe serve. Mas, infelizmente, a outra nação buscará fazer o mesmo, em sua vantagem exclusiva. Assim um dia rebentará a guerra e será destruído todo o superávit de riqueza e bem-estar que conseguira. Isto podia servir-lhe para elevar o nível de vida. Mas, na sabedoria das leis da vida, tudo é merecido; tudo deve ser proporcional ao grau de inteligência e consciência atingido. Assim, tudo torna a nivelar-se mais em baixo, no nível em que o homem automaticamente se encontra por seu peso específico, na escala da evolução. Assim aparecem em rodízio crises, ditaduras, guerras e de novo crises e assim por diante. É triste. Mas o homem atual não consegue fazer coisa melhor.

 

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Como se vê, a intervenção estatal não resolve o problema. Muito menos o resolve porque a moeda deveria representar riqueza real, e não valor fictício de curso legal, mentira imposta pelo Estado, convenção e ilusão, um não- valor que adquire valor só pela vontade de um governo. Também não se pode pretender, para resolver o problema, a transformação em altruísmo, da atual psicologia egoísta do homem. É mister alcançar a solução suprimindo a antítese entre o interesse individual e o coletivo, isto é, fazendo-os coincidir: Só assim, operando em bases utilitárias, será possível a compreensão, e a adesão será livre e espontânea. Indispensável estabelecer um equilíbrio entre mercadorias e moeda e dessa forma resolver o problema da estabilidade monetária. Hoje não há concórdia entre esses dois termos, que se repelem sem saber abraçar-se. Podem aumentar os bens comerciáveis sem que possa nem deva crescer a circulação da moeda. Pode aumentar esta, mesmo que permaneça invariável a quantidade da mercadoria. Como se não se conhecessem, pode aumentar indefinidamente uma, enquanto indefinidamente diminui a outra.

 

Para resolver o problema, temos que achar um sistema de circulação monetária que, qualquer que seja o afluxo de bens ao mercado, deixe inalterável o nível dos preços, isto é, mantenha automaticamente estável o valor da moeda. E tudo isso sem coações estatais, mas só pelo jogo livre da oferta e da procura, sem o alto custo e sem o atrito da máquina burocrática, mas tudo automaticamente regulado com despesa mínima. O indispensável é fazer corresponder a uma abundância de mercadorias, uma abundância de moeda, e não ao contrário; e uma escassez de mercadorias, uma escassez de moeda, e não ao contrário. Então, a abundância de mercadorias, ao invés de desvalorizá-las, valorizando e tornando rara a moeda, limitando a produção dos bens até destruí-los para evitar a queda dos preços, produziria ao contrário uma paralela abundância de moeda. Então os interesses bancários poderiam ser baixos e seriam estimuladas as iniciativas e os investimentos, que absorveriam a parte exuberante, em vez de destruí-la, e o trabalho, ao invés de parar com prejuízo para todos, continuaria a produzir.  E ao contrário, uma escassez de mercadorias, ao invés de valorizá-las, desvalorizando e inflacionando a moeda, arruinando a poupança anterior, produziria uma paralela escassez de moeda. Então os interesses bancários poderiam ser altos, e estimulariam a economia e o trabalho que, não saindo de uma crise de desemprego e tendo acumulado bens e dinheiro, poderia resistir melhor à inflação.

 

O problema que nos propomos é solúvel, mas até hoje não foi resolvido, porque a mercadoria atualmente amoedável no mundo é só o ouro e a prata, o que não é suficiente para reequilibrar as oscilações de todos os outros elementos. Mesmo se fosse possível produzir quantidade infinita desta única mercadoria amoedável, não se atingiria o equilíbrio buscado, mas novo desequilíbrio, porque, com o aumento da quantidade da mercadoria, diminui seu valor. É certo que existe, no atual sistema, o esquema do mecanismo reequilibrador, mas este não pode funcionar bem, porque é insuficiente a massa reequilibradora. Então, se já possuímos a fórmula, bastará para resolver o problema, variar apenas a relação entre bens amoedáveis e bens não amoedáveis; em outros termos, aumentar a quantidade dos bens amoedáveis. A solução está em tornar amoedável uma parte de bens, que hoje não é considerada amoedável.

 

Qualquer mercadoria que não se altere representa valor permanente, pelo que pode tornar-se moeda. Pode-se, assim, escolhendo um tipo de mercadoria adequada e cercando sua conservação da devida cautela, tornar possível que ela se torne moeda, subtraindo-a ao consumo presente, quando faltar moeda e abundar mercadoria, para depois restituí-la ao rol de mercadoria, para uma venda e consumo futuro, quando faltem os bens e abunde a moeda. Teríamos então uma moeda numa base muito mais ampla, tendo como lastro uma quantidade suficiente de mercadorias amoedáveis, ou seja, para reequilibrar o preço e tornar estável o valor da moeda, podem livremente transferir-se da posição de mercadoria à de moeda, e ao contrário, exercendo a função de uma ou de outra, segundo a necessidade.

 

Imaginemos a economia de uma nação representada por um navio, dividido pela metade no sentido do comprimento, por uma linha que chamaremos de trocas, aos lados da qual existam bens em relação de troca direta, duma parte e doutra. Em tal sistema de trocas diretas, sem a intromissão do elemento moeda, sendo a circulação dos bens proporcional à circulação dos meios de troca, o lado direito do navio teria carga igual ao esquerdo. Não havendo antítese entre bens e moeda, não haveria oscilações no navio, nem crises, e isto sem intervenção de regimes autoritários, que regulassem todo o movimento econômico da nação.

 

Mas, quando por essa economia direta substituímos a monetária, teremos de um lado o meio da troca, a moeda, e de outro os bens comerciáveis. Dado que, como vimos, cada desequilíbrio desses dois elementos tende a amplificar-se, não havendo nenhum elemento natural e automático de reequilíbrio entre bens e moeda, entre um e outro lado do navio, a economia da nação só caminharia sob ameaça de constante desequilíbrio, e mesmo de emborcamento (crise).

 

Trata-se, agora, de achar o meio de reequilibrar o navio, compensando o demasiado acúmulo de um lado e o alívio de outro, ao contrário, a favor da moeda ou das mercadorias, segundo os casos. Hoje o sistema já funciona, mas em quantidade insuficiente para reequilibrar o navio. A quantidade de mercadoria amoedável limita-se apenas ao ouro e à prata. Hoje o jogo do reequilíbrio só funciona em mínima parte e o navio não ressente muito seu efeito. Hoje o trabalho de reequilíbrio está confiado a uma quantidade mínima, em relação à grande massa de bens que precisa ser reequilibrada. O reequilíbrio, portanto, no estado atual, funciona com efeitos mínimos, não porque esteja errada a fórmula de equilíbrio, mas por insuficiência da massa reequilibradora. Ainda que perfeito o sistema como princípio, é insuficiente, porque apenas uma mercadoria amoedável constitui uma parte muito pequena de valor em relação ao valor de todas as outras mercadorias.

 

Trata-se aqui, ao invés, de conseguir o amoedamento de um vasto grupo de mercadorias (grão, café, algodão, ferro, gasolina etc., segundo a produção das nações), mercadorias que, acumuladas nos armazéns por parte dos próprios produtores, comerciantes e industriais, ou dos bancos, funcionariam como lastro da moeda legal circulante, a qual teria assim seu correspondente bem determinado e realmente  existente, com plena cobertura, e portanto de inteira confiança, com o papel-moeda a base de ouro. Para ser mais perfeito, o reequilíbrio deveria permitir, quando houvesse equilíbrio entre o valor dos bens amoedáveis e o dos bens não-amoedáveis, que se passasse da produção destes à produção daqueles, e do consumo destes ao consumo daqueles, de acordo com a utilidade dos produtores e consumidores. Toda a economia, mesmo as trocas internacionais, só poderiam ter vantagem com uma moeda, meio de troca, que se baseia em lastros reais e está fora do arbítrio dos governos e das oscilações de valor. E só assim, com o trabalho, base de tudo, se poderia gerar riqueza mesmo sob forma de moeda sólida, independente dos açambarcadores mundiais do ouro.

 

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Resta-nos apenas, para concluir, observar a mecânica do amoedamento e do desamoedamento. Veremos assim como o sistema, ao invés de tender à ampliação do desequilíbrio, tende a reequilibrar-se. Dividiremos o fenômeno em três fases: 1ª – Quando um lado pesa mais do que o outro e o navio pende mais, por exemplo, para a direita. 2ª – Quando os dois lados se equilibram e o navio está a prumo. 3ª – Quando o navio tem maior peso do lado oposto e pende, por exemplo, para a esquerda. Eis como pode operar-se o reequilíbrio.

 

1ª fase – Quando o grupo das mercadorias básicas custa menos que a unidade monetária. Nesta fase os possuidores de mercadorias amoedáveis, ao invés de oferecê-las ao mercado, com tudo o que se segue, as conservam, provocando paralelamente uma emissão de títulos equivalentes a elas, e de que elas representam o lastro. Esses títulos de curso legal como papel-moeda, criam um aumento de circulação e assim se restabelece o equilíbrio. Concomitantemente, o Banco de emissão reduz a taxa de desconto, alarga o crédito, aumentando desse modo a quantidade de moeda circulante. Eis assim restabelecido o equilíbrio.

 

2ª fase – Quando o grupo das mercadorias básicas custa tanto quanto a unidade monetária. Nesta fase nenhuma modificação se opera, estando já tudo em equilíbrio.

 

3ª fase – Quando o grupo das mercadorias básicas custa mais que a unidade monetária. Nesta fase, os possuidores de mercadorias amoedáveis são constrangidos a reembolsar ao Banco de emissão parte dos títulos obtidos como antecipação durante a primeira fase, e para isso devem vender parte de sua mercadoria. Assim é diminuída a quantidade da moeda circulante e se restabelece o equilíbrio. Concomitantemente, o Banco de emissão eleva a taxa de desconto, restringe os créditos, diminuindo desse modo a quantidade da circulação legal. E assim fica restabelecido o equilíbrio.

 

No 1° caso tudo se reequilibra com o amoedamento. No 2° tudo já está em equilíbrio. No 3° caso tudo se reequilibra com o desamoedamento. Assim, os desequilíbrios, ao invés de aumentar, são corrigidos, e as crises não podem desenvolver-se. Assim o interesse do indivíduo e o da coletividade não são mais inimigos em antítese, e podem concordar no princípio utilitário compreendido e aceito por todos, qual é o da sua vantagem. Assim pode resolver-se o problema que atormenta o mundo, da instabilidade monetária. Compreendido o princípio geral, cada técnico de finanças poderá adaptá-lo às condições particulares de seu país e do momento, segundo as modalidades requeridas pelo caso particular, mesmo tendo em conta que, podem ser evitadas assim crises dolorosas, enquanto que a riqueza deriva de recursos naturais, da inteligência e sobretudo do trabalho.

Quisemos entrar mesmo neste problema especial da circulação monetária, por sua imensa importância social, dado que ela é, para o organismo econômico o que é a circulação do sangue no organismo humano. Circulação que, se não for bem regulada, pode ser mortífera, tanto por excesso como por defeito. A circulação monetária deve estar sempre em relação direta com a circulação dos bens, ao passo que, com os sistemas atuais, ela tende à relação inversa. Infelizmente, se é verdade o que diz Filangieri (Leis Econômicas): “os homens seguem o curso do metal como os peixes seguem a corrente das águas”; ou seja, se a circulação da moeda é um fenômeno tão importante, perguntamo-nos quão grande deve ser a lacuna das atuais condições, quando o próprio Francisco Ferrara declara que a teoria da circulação da moeda “é um capítulo das ciências econômicas e é mister refazer de todo”. No prefácio de seu Tratado da Moeda, J. M. Keynes afirma que: “não obstante seja a matéria monetária objeto de ensino em todas as Universidades do mundo, é estranho que não exista um texto que trate sistematicamente e a fundo da teoria e dos fenômenos da moeda, existente hoje, no mundo moderno”.

 

Por isso quisemos demorar-nos sobretudo nesta questão tão viva, e atual, em redor da qual giram tantos outros problemas sociais: Com isto quisemos também desenvolver, alguns aspectos do fenômeno econômico, já delineados nos últimos capítulos de A Grande Síntese. O leitor inteligente acha aqui a chave para resolver por si outros problemas particulares, aplicando, como demonstramos no caso deste capítulo, os princípios gerais do sistema monista de toda a Obra, e o método nela seguido para sua aplicação. Assim poderá ele alcançar a explicação e a orientação nos fenômenos mais díspares.