(Videntes, Filósofos, Cientistas)

Da revista Gerarchia - fevereiro de 1939.

R. C. Adhikary, da Universidade de Calcutá, escreveu, para Scientia (1939) um quadro da filosofia indiana, donde extraiu algumas afirmações: "Eles (os autores dos Upanishad) tinham chegado a esta explicação do mundo (como derivado de Deus); em parte, como conseqüência de observações empíricas, conduzidas durante muitos séculos, e em parte como resultado de iluminações intuitivas, fruto também de um modo santo de vida". Depois, enumerados os principais sistemas, diz do 2º, ou seja, do Yoga: "Ele é, do princípio ao fim, um sistema prático de disciplina mental, com uma metafísica reduzida ao mínimo. Objetiva a disciplinar o corpo, o espírito e a alma, controlando a dieta, o regime do pensamento e o modo de meditar, com o que se cria a atmosfera mais apta, para que o espírito finito possa complementar o Infinito, o Eterno, o Divino. Embora o sistema Yoga se ocupe essencialmente de disciplina, esta é aplicada como elemento comum (note-se bem) em todos os sistemas ortodoxos de pensamento entre os indianos. Isto distingue a índia do Ocidente. No Ocidente a filosofia é um gênero acadêmico de especulação. Na índia é uma questão de vida e de morte, pelo que são tomados em consideração os meios práticos de ensinar aos homens, a evasão das escravidões materiais, das ilusões dos sentidos, da obscuridade, das incertezas, da dúvida".

Se Adhikary quer referir-se ao ocidente moderno, tem razão. De outra forma, não. Na antigüidade, Pitágoras e Platão, os Estóicos, os Cínicos e os próprios Epicuristas, sobretudo os Neoplatônicos, com Plotino à frente, não fizeram especulações acadêmicas, e, portanto, não fecharam os olhos aos problemas práticos; éticos, pedagógicos, políticos. Enfrentaram também o aspecto prático deles.

Torna-se mais decisiva minha reserva quanto aos filósofos cristãos, a partir de Orígenes e Justino; aliás, desde São Paulo, que a seu tempo e lugar enfrentou e resolveu problemas especulativos altíssimos, sem jamais separá-los da vida vivida.

Subestimaria os meus leitores se me pusesse a expor as qualidades do filosofar de santo Agostinho, platônico, mas ainda mais cristão. Este nada recebeu dos Pais orientais (os dois Gregórios, Basilio etc.) já tão elevados, mas também práticos. E objetivou, não menos que estes, uma sabedoria inteira e coerente.

Depois, nos primeiros albores da Europa civilizada, nosso Anselmo de Aosta (1033 - 1109) acendeu a primeira chama do pensamento refletido no Monastério de Bec, na França, e mais tarde na Inglaterra, com a autoridade que lhe vinha da santidade, da inteligência, da posição elevadíssima de Primaz, na sede de Cantuária. Seguiram-no os Vitorinos, na França (ao tempo de Pedro Lombardo, arcebispo de Paris), os seguidores de São Francisco, especialmente na Inglaterra (R. Bacon, Duns Scott etc.) e na Itália (São Boaventura); Todos estes foram filósofos e místicos, para os quais o "affectus era mais importante do que a "cognitio". Este era apenas o primeiro dos três graus: "cogitatio, meditatio, contemplatio", que tinham por objeto a matéria, a alma, e Deus (Fiorentino). Mas até na Alemanha, aquele misticismo especulativo não se fechou numa torre de marfim; objetivou, ao contrário, assiduamente a própria elevação e a melhoria do povo (Eccard, Tauler, Suso, foram eminentes e incansáveis pregadores).

Entre os Dominicanos, tal como os últimos citados, Alberto Magno e Tomás de Aquino foram sumos pensadores e ao mesmo tempo dedicados ao ministério sagrado. Nem ocorreu isto só com os homens, pois algumas mulheres, eleitas do século XII ao XVI cultivaram um misticismo elevado, rico de calor e também de graça, muitas vezes viril: Gertrudes e Matilde, Angela de Foligno e Margarida de Cortona, Catarina de Sena e Teresa de Ávila.

Pode dizer-se, em geral, que semelhantes testemunhas jamais decaíram, especialmente entre os católicos. Malebranche e Fenelon, Gratry e Newman, que floresceram nos últimos séculos, têm fama mundial. De outra escola, mas respeitáveis e igualmente conhecidos, foram Boehme e Swedenborg, Law e Buniam, Hamann e Saint Martin, Emerson e Carlyle. Nem deve ser esquecido o grande poeta católico F. Thompson, mais sublime que R. Browning e mais cálido que Shelley. O misticismo de Verlaine, Schuré, Meterlink e dos Russos, dá lugar a não poucas reservas.

Entretanto, se nos referirmos aos filósofos de profissão, e a partir do século XV, depois da morte de Nicolau Cusano e com raras exceções, (Campanella em sua outra fase e Malebranche), Adhikary tem toda a razão. E assinala uma lacuna que deveria fazer pensar a nós europeus, pois as consequências da incúria das coisas espirituais são desastrosas.

A censura não se dirige, felizmente, a Pietro Ubaldi, que retoma de sua Úmbria, a luminosa tradição interrompida por cinco séculos. E aqui me convém novamente falar dele, em vista de sua publicação, por estes dias, da Ascese Mística (edição, Hoepli): um volume não muito grande, mas de imensa significação. Esquivo e familiarizado consigo mesmo, de leitura fácil. Indiferente àquelas coisas de pouco ou nenhum valor que costumam excitar sem tréguas os homens de sua condição social, ele, há cerca de oito anos, dá ouvidos às suas "vozes" ou, se preferirem, ao seu "gênio", do qual espera revelações verídicas.

Em A Grande Síntese, que já apreciamos, confiando justamente em seu enorme poder intuitivo, traçou um quadro de filosofia científica e de antropologia ético-social, que deixa para trás as tentativas semelhantes experimentadas no último século pela amplidão da trama e pela singular novidade do método que seguiu, a intuição, como já disse. Esta não veio ao mundo com ele, tendo agido ab immemorabili entre artistas, sábios e videntes; mas jamais foi empregada com técnica tão rigorosa, clara e consciente Ele a descreveu com análise precisa, objetiva, indubitavelmente cientifica, no outro volume, as Noúres.

Para fazer cessar as usuais caretas das pessoas sabidas, Ubaldi faz suas as palavras de Goethe: "Nenhuma produção de ordem superior, nenhuma invenção, foi jamais devida ao homem, mas todas provieram de fonte ultraterrena. O homem, portanto, deveria olhá-la como um dom inesperado do Alto e deveria aceitá-la com gratidão e veneração. Nestas circunstâncias o homem é apenas o instrumento de uma potência superior, como um vaso, que foi achado digno de receber um conteúdo divino". (Conversa com Eckermann).

É o pensamento dos Profetas, dito quase com as mesmas palavras. Entretanto, se para Goethe a inspiração (artística, científica, filosófica) era um lampejo improviso que o homem sofre passivamente, sem poder preveni-lo nem solicitá-lo de modo algum, para Ubaldi, ao invés, há uma disciplina superior, uma verdadeira ars regia, que, mediante prévio conhecimento das leis cósmicas e da estrutura do espírito humano, ajuda a sintonizar este com as primeiras, para alcançar e exprimir muitas verdades inauditas; ou então, se se tratasse de verdades conhecidas, circundá-las de deslumbrante luz, geradora de evidência e inefável consolo.

Aqui reproduzo, uma relação graduada, em forma algébrica, dos modos sucessivos de conhecimento, que bem interpretam sua Gnoseologia nas várias articulações:

x² = plano de consciência sensória

x³ = plano de consciência racional-analítica

x4 = plano de consciência intuitivo-sintética

x5 = plano de consciência místico-unitária

x6  = plano inexplorado etc.

O plano x² pertence à humanidade global, que ainda não saiu da fase animal; ao passo que x³, que é a fase da ciência atual — empírica, hipotética, analítica — é puramente racional, exterior, de superfície.

Entre este e o plano sucessivo da tabela, não poucos filósofos achariam um hiato, pois para eles o plano racional implica síntese. Ao passo que para Ubaldi a razão limita-se a traçar esquemas, desenhos lineares, diagramas. É uma geometria plana. A síntese, ao invés, é (para ele) ato vital, cálido e palpitante. É obra de arte pessoal, ainda que não seja arbitrária nem individualista. Desenvolve-se em determinada linha, para objetivos que são comuns a todos os espíritos, de acordo com normas gerais e leis cósmicas.

O plano x4 é uma zona evolutiva já supranormal e excepcional para a média humana de hoje, que ainda se acha na fase x³. Neste ponto e em dadas condições, o espírito emancipado da animalidade torna-se apto a "perceber, por ressonância, as emanações de zonas de consciência ou planos psíquicos evolutivamente mais altos". Aqui, por introspecção, atinge-se a verdade por dentro, fora das ilusões: toca-se a realidade. Com este uso da "intuição" surgiu A Grande Síntese, que é "verificação (note-se bem) por visão interior e sintonização (como acima) da realidade ultra-sensória da verdade fenomênica".

Experiências e tentativas ulteriores levaram Ubaldi ainda mais acima: onde o mundo cognoscitivo passa para segunda linha, para ceder lugar à penetração, à posse íntima, por comunhão profunda e inefável com a realidade, — unificando-se com ela por meio do amor: um amor super-sensível, transcendental, mas de uma transcendência que assalta, conquista e possui os recursos inexprimíveis da Imanência.

O plano do conhecimento foi superado: não o conhecimento em si mesmo, que, pelo contrário, na esfera mais alta — verdadeiramente empírea — a que subiu, se transforma em chama luminosíssima.

Assim, Ubaldi, "ainda que arrastado como por um turbilhão", mostra que "sabe dominar e descrever analiticamente" com precisão técnica e linguagem comum os fatos extraordinários que se desenrolam em sua alma.

O conhecimento — sabemo-lo — pretende introduzir-nos tanto quanto é humanamente possível na essência, na realidade da coisa conhecida, mais do que nos caracteres. Explica-nos este anelo o mito platônico das ideias eternas, o racionalismo aristotélico retomado pelos Escolásticos, as  disputas medievais acerca das "species rerum" e a engenhosa "haecceitas" de "Duns Scott"; a dúvida de Descartes e Hume, que desemboca numa superação subjetiva, do primeiro, e na mais subjetiva e coerente síntese a priori de Kant, para o segundo. Finalmente, a eliminação hegeliana da coisa e a reabsorção do número, por parte do ser pensante. Mais atilados e profundos, os Místicos — e agora Ubaldi com mais consciência científica — firmados na intuição (excepcional) — de uma Realidade-Amor, Transcendente e Imanente, não se limitaram a explorar à distância a chamada essência das coisas, do não-eu. Com ímpeto corajoso e sublime, arrojaram-se ao "Sancta Sanctorum", ajoelharam-se, e depois, levantando-se abraçaram o divino simulacro, apertaram-no ao coração, fundiram-no com o calor íntimo e o tornaram translúcido. Operada assim a admirável compenetração e transmutação, o eu tornou-se tu, eu — como dizia Angela de Foligno, repetindo, sem sabê-lo, a mais alta expressão da sabedoria indiana.

As páginas que refletem as efusões da Extática de Foligno e de Rysbrock, o Admirável, são o que de mais excelso produziu talvez a mística medieval. E não temem comparação com as mais luminosas páginas do Upanishad, de Platão, dos "sufis" e dos maiores poetas modernos (veja Le Trésor des Humbles, de M. Meterlink).

Dante está separado pela amplitude do conteúdo humano e divino, que os literatos recusam reconhecer, talvez pelo medo legítimo de ficarem ofuscados.

Mas, que ensinaram aos homens os antigos videntes?

Nada aos materialistas, aos hedonistas. Mas tudo, ou quase, aos homens desejosos de lançar o olhar, o coração e a vontade para fora da caverna platônica. (República, I. VII).

Visões ofuscadoras de verdades eternas para uns; sonhos de enfermo, quimeras, para outros.

Ubaldi renovou em parte as afirmações dos Testemunhos que citei no curso deste artigo, mas de modo original e pessoal. Aproximou-se deles, muito pouco e tarde, de maneira a não comprometer sua espontaneidade; mas até (o que mais importa) acrescentou novo peso às antigas testemunhas, que concordavam, ou quase, no essencial metafísico, e independentes, o mais das vezes, um do outro.

Muito acrescentou ele de seu.

Recolho o ensinamento de Ubaldi de alguns capítulos, onde existe a novidade, nem sempre nas partes, mas nos motivos, nas concordâncias, e na estrutura geral:

a) o Universo, como o concebemos, tem uma constituição trifásica, que se desenvolve em três planos de existência: Matéria (g), Energia (b), Espírito (a). O infinito ascendendo ao médio e este ao supremo pelo intensificar-se da ação conservadora divina, que é uma criação incessante.

Portanto, o perene suceder-se da vida que se transforma da primordial cegueira rude e passiva em consciência e liberdade, fazendo seus e traduzindo-os em norma espontânea, porque consciente e aceita, os motivos do desenvolvimento, que é ritmicamente encaminhando para a unitotalidade.

b) o seguro avançar dos seres para a unidade, por meio de encontros, contatos, comunicações e comunhões crescentes em intensidade e constituindo harmonias cada vez mais vastas, musicais, etéreas, pois se libertam aos poucos das prisões do espaço e do tempo. A lei moral coincide, como os Gregos haviam adivinhado, com a elevação, o aperfeiçoamento e a felicidade pessoal (o Paraíso terrestre nos últimos cantos do Purgatório).

c) segue-se daí que o conhecimento da grande lei cósmica se converte em moralidade, comando que se aceita sem hesitar, com alegria; porque é interiorizado e ditado pela própria consciência. A consequência disso é uma tarefa excelsa confiada ao saber científico e filosófico.

d) o bem privado e o bem público coincidem. Esclarece-se aqui: 1) a natureza do dever em quem manda e em quem obedece; 2) a gênese do Poder nos Chefes e nas Aristocracias.

e) a psicologia da introspecção convenientemente treinada (Índia antiga, Europa medieval, Tibete) descobre não apenas abismos medonhos (no subconsciente) mas rotas excelsas e luminosíssimas (superconsciente); ou seja, aqueles mundos que trazemos em nós mesmos, ignorando-os: a consciência subliminal e a superliminal. Mas além disso revela contatos e interferências com correntes arcanas, que formam uma espécie de troposfera espiritual, que nos circunda de todos os lados, que nos exalta e deprime; que perturba e arrasta os imprevidentes, mas traz auxílio de primeira ordem aos que o querem, para acelerar as ascensões que lhe são destinadas ou permitidas (Noúres).

f) o último degrau que Ubaldi atingiu é a experiência mística, à qual está dedicado mais especialmente o volume que estou examinando. Aqui se cala a astrofísica do macrocosmo e a química do átomo, pois o espaço e o tempo foram transcendidos. Fala e canta, exulta e se perde, no "miro gurge", o espírito recebido, por graça, temporariamente, na Esfera que só tem por limite Amor e Luz.

Aqui a experiência dos sentidos, do intelecto raciocinante (discursivo) e da própria intuição, deixou apenas traços na linguagem, que adquire graça de arte e vigor dialético, que pertence a forma. A substância de tão rara experiência está no dinamismo incendiário e vulcânico do espírito que, chamado à reunião seus poderes e apertando-os num feixe, os dirige com orgulhosa alegria para a Realidade eterna, para que os acenda e quase os destrua, a fim de que renasçam mais puros, belos de fulgurante beleza, tal como o Poeta os viu em Matilde e Beatriz:

Não se poderia dizer com palavras a transumanização

Pietro Ubaldi empenha-se com frequência numa luta titânica para superar esse limite fatal. Deve reconhecer-se que não é raro que vença. A prosa deste volume é mais colorida, se não mais cálida, mais variada de tonalidades e matizes, que não se encontram nas páginas às vezes ofuscantes, mas um pouco monótonas e monocrômicas dos maiores místicos medievais. Essa vantagem é devida à maior messe de experiência que Ubaldi pôde recolher nas viagens, em sua vida civil e doméstica, em campos variadíssimos de observação, que faltaram àqueles antigos Reclusos.

*   *   *

Demonstrar a utilidade excepcional de publicações como esta a pessoas inteligentes e cultas, não perdidas na noite dos sentidos, é ingênuo, mais do que supérfluo.

Faço apenas uma observação.

Quem é iniciado na filosofia da história, que A. Comte teve a sorte de deduzir de Vico, e observa atentamente (o que não faz Roosevelt) os fatos que se desenrolam sob seus olhos, não duvida que tenhamos entrado num período orgânico. Uma lei superior — de que a insipiência de quase todos os intelectuais acelerou o ritmo — está concluindo o período da crítica. Esta, útil e mesmo necessária, quando surgiu, terminou por desencadear-se estultamente sobre os mais preciosos bens que a humanidade recolhera, entesourara com mil esforços e heroísmos.

Pois bem, a concepção biológica, e, portanto, orgânica, de Pietro Ubaldi, vem ao encontro da comprovada exigência do tempo que ocorre. E demonstra até à evidência, as razões do comando e as razões da obediência, ambas subordinadas à visão das unidades parciais que se reagrupam harmonicamente na estrada da Unidade definitiva, meta gloriosa de nossa viagem.

Os que verdadeiramente compreenderam esta verdade, esses, e mais ninguém, serão dignos de constituir as Aristocracias de amanhã. Ao lado dos autênticos Dirigentes, afastados e quase invisíveis, mas inspiradores seguros, serão os outros Nobres, para os quais são escritas obras semelhantes à Ascese Mística.

(a) FERMI