Deus e Universo

Levados por outros fios condutores, não foi possível, nos capítulos precedentes, abordar, senão em relação com outros problemas, o da imanência e transcendência. Cuidamos agora de retomá-lo para encará-lo diretamente, aclarando-o com mais exatidão. Antes, porém, de entrarmos em suas particularidades, quisemos aplicar as concepções precedentes, orientando-as também, como experiência, na vida espiritual de cada um.

Voltemos às primeiras origens, que já esfloramos no início do Cap. XV: "À Procura de Deus".

Como já dissemos, antes de criar, Deus era o Uno-Todo, Que ainda tudo devia tirar de si. Não havendo ainda a criação, não nascera nem o sistema, nem o anti-Sistema, isto é, não havia dualismo de aspectos, mas somente o Uno. Com a criação, o Uno se distinguiu em Criador e criatura, então puramente espiritual, e nasceu o sistema. Mas com a queda ele se dividiu em dois: sistema e anti-Sistema, em que a criatura espiritual caiu na prisão da forma, ou corpo. Ora, acima de tudo isto, permanecerá o Uno no seu aspecto absoluto, que e, além de qualquer criação ou manifestação. Este é o Deus no seu aspecto transcendente, sem dualismo, acima dele, invulnerável e perfeito. Deus, no seu aspecto imanente, não poderia existir a não ser em algo que não constituísse Ele mesmo, porque é óbvio ser imanente em Si mesmo. E Deus imanente se encontra na criação, quer no sistema conservado íntegro, onde Ele está em Sua perfeição, quer no anti-Sistema desmoronado, onde Ele, por Amor, desceu à imperfeição, para reconduzi-la à perfeição originária. Mais exatamente, a imanência e o dualismo transcendência - imanência nasceram no ato da criação. Somente se costuma chamar imanência à presença de Deus no nosso universo decaído, porque somente este percebemos, ao passo que a imanência abrange também o universo feito de puros espíritos, conservado perfeito. Em outras palavras, a imanência não é senão a permanência do Criador na Sua criação, pelo que Deus permaneceu presente, quer no sistema, quer no anti-Sistema.

A coordenação destes conceitos, observando-os agora frontalmente e não, como nos capítulos anteriores, em perspectivas obliquas, em função de outras visualizações, aclarará melhor o nosso pensamento.

A transcendência é, pois, o princípio de natureza abstrata, que no aspecto imanência descerá às formas para animá-las, mas que, como aspecto transcendência permanece inalterado, acima de qualquer criação. O fato de que nesta criação não pode existir forma, nem qualquer fenômeno, senão em consonância com um princípio que lhe oriente o transformismo, demonstra a existência de Deus transcendente. E o fato de que o princípio transcendente não pode atuar a não ser assumindo forma em qualquer ser ou processo fenomênico, revela a existência de Deus imanente. É que o transcendente dirige o imanente. É o perfeito que guia o imperfeito, para levá-lo à perfeição. Eis a razão e o íntimo significado do fato que verificamos em nosso universo, isto é, que ele está em evolução, ou seja, é uma imperfeição que caminha para a perfeição. Assim se explica como o universo se mantém e não pode, em razão de sua estrutura, manter-se, a não ser pela presença nele de um contínuo impulso criador. Assim se explica também a individualização do ser em infinitas formas, preestabelecidas segundo esquemas abstratos, que não existem no contingente, a não ser na última fase da sua expressão material. Onde estarão elas antes de manifestar-se, senão no transcendente, que com elas se põe em contato através do imanente? Quem estabelece no tempo os ritmos de adolescência e velhice, a duração da vida de cada tipo, o seu limite de desenvolvimento orgânico?

Deus, pois, não apenas no princípio criou o Seu universo de um estado de nada "relativamente" ao novo estado, não somente com o Seu primeiro impulso de origem à gênese, mas permaneceu depois nesse universo, não exteriormente, mas intimamente, continuando incessantemente a criá-lo com a Sua presença. Esclarecemos, no fim do Cap. XIII: "In principio erat Verbum”, as razões e as origens dessa imanência. Ela é devida ao princípio fundamental da criação - o Amor, pelo qual um verdadeiro Pai não abandona jamais o filho, faça ele o que quiser, e, justamente para salvá-lo, segue-o em qualquer desventura em que ele tenha recaído, livremente, porque assim o exige o Amor. Essa imanência, ou presença de Deus, é o que se chama vida, mas em senso latíssimo, vida que anima igualmente a orientação das moléculas nos cristais, como o funcionamento atômico da matéria. Tirai de tudo o que existe essa vida, que representa a imanência de Deus, e o universo recairá no nada, isto é, em um estado de não-ser "relativamente" ao atual. Deus não criou, pois, como o faz o homem, mas de uma forma muito mais profunda, isto é, não lavrou a Sua obra de fora, para depois destacar-se dela, mas de dentro, para nela permanecer indestacavelmente. As obras do homem são, efetivamente, mortas e têm necessidade sempre de novas intervenções, que constituem a manutenção somente as obras de Deus são vivas, e, se parecem andar por si, é porque dentro delas está o Deus imanente, que, como vida, age continuamente. Se deixarmos uma casa, com tudo o que possui entregue a si mesmo, após muitos anos, encontraremos tudo em decadência. Se deixarmos plantas, encontraremos um bosque; se animais, um rebanho. De onde vem essa capacidade de multiplicação, senão de Deus imanente? De onde promana a vida, a não ser dessa fonte que alimenta todo o criado? Que imperfeita imitação da obra de Deus são as obras do homem! Mas mesmo estas, para conservar-se, reclamam aquela assistência que se chama de manutenção, que constitui uma espécie de imanência do homem nelas.

Podemos agora melhor compreender tudo isto, confrontando com o que foi dito no Cap. XIII: "In principio erat Verbum". Deus, no Seu aspecto transcendente, é o Espírito, o primeiro momento da Trindade do Uno, o puro pensamento, a ideia ainda não em ação, anterior e acima de qualquer criação e suas vicissitudes. Deus, no Seu aspecto imanente, é o segundo momento da Trindade do Uno, aquele em que a ideia entra em ação e o Espírito se fez Verbo gerador, o Pai. Do Pai deriva o terceiro momento, a criação, quer a que permaneceu perfeita nos espíritos puros, o sistema, quer a desmoronada na imperfeição da forma material, o anti-Sistema. A imanência, surgida no segundo momento com o ato criador, que o conduz ao terceiro, à obra realizada, revela-se nesta. E nela vemos que o aspecto de imanência existe e tudo rege. A forma concreta de tudo o que existe em nosso universo, não é mais do que a expressão de tal imanência. Em outras palavras, o Filho é a expressão do Pai. Não que o nosso universo físico seja o Filho, mas como forma material ele é a expressão e a manifestação da atividade genética do Pai aí imanente, a qual é um momento derivado da Idéia situada no Espírito. Eis o Todo coligado em estreito monismo, desde o Espírito, origem de todas as coisas, a todas as coisas Dele originadas.

Tais conceitos não podem ser entregues às mãos do involuído que, julgando tudo sensoriamente, é capaz de dizer que o Filho é a matéria. As mais recentes concepções da ciência que, da última substância do mundo físico fizeram uma fórmula abstrata, nos ajudam a compreender tudo isso. Foi assim que, quando se quis ver a essência, a matéria foi reconduzida ao Espírito. É necessário recordar que ela é uma pura ilusão dos nossos sentidos.

Por mais que possa parecer audaciosa semelhante concepção, os fatos depõem em seu favor. A vida, expressão de Deus imanente, tem um caráter inteiramente interior. Ela germina incessantemente e, só graças a essa imanência, é que o ser pode viver, vencendo o desgaste imposto pelo ambiente. A medicina não examina senão as manifestações desse Deus imanente e estuda as formas construídas pela Sua inteligência. No cadáver, a medicina estuda os restos de uma vida que se retira de sua manifestação. A vida lhe escapa, porque é de natureza espiritual, campo que ela ignora.

Toda forma provém do interior, de um germe e se desenvolve em torno dele, por crescimento. Todo germe é filho de outro germe e assim por diante. O ato originário da primeira gênese se repete no mesmo modelo, em continuação. O fato de que tudo não pode existir, a não ser por filiação, nos diz que o nosso universo é regido pelo princípio do Filho. Todo esse processo genético permanece, porém, um enigma indecifrável, se não nos reportarmos ao primeiro ato genético executado pelo Pai. A vida é atributo da alma, que é interior ao ser. Aí está o centro e a síntese de todas as sensações. Tudo caminha do ambiente para o espírito e do espírito para o ambiente, e esta é a base da experiência pela qual o "eu" pode crescer e evolver E no interior da matéria que se encontram os velocíssimos circuitos atômicos que lhe emprestam a solidez. O crescimento por multiplicação celular, como a cicatrização das feridas por reconstrução dos tecidos lacerados, provém do interior. A "vis sanatrix naturae "22, que preside à conservação de nosso organismo, e todas as sábias diretivas de nosso funcionamento orgânico, tão automático, que o desconhecemos, tudo provém do interior, dessa presença de Deus imanente. Esse pensamento diretor está tão bem oculto nas profundezas, que a ciência não soube ainda encontrá-lo. Embora tendo sob as vistas a expressão, só lhe encontra os efeitos. Ele está tão oculto que se lhe ignora a presença, apenas porque se furta à análise sensória, dita objetiva, ao passo que nada é tão pouco objetivo quanto ela. E desta forma se chega até ao ateísmo, enquanto se mergulha nessa atmosfera divina, na qual se respira e se vive.

Esta interioridade do Deus imanente em Seu universo que, embora sendo imanente, nós concebemos como material, porque a materialidade é uma ilusão, nos leva a considerar as relações entre a alma e o corpo, no homem. Também este é a expressão de um espírito animador, que se reveste de forma física. Que assim seja, é lógico pelo princípio dos esquemas de tipo único. Da mesma forma se poderia conceber Deus no Seu aspecto imanente como a. alma do nosso universo. Em ambos os casos a forma - matéria está na periferia, no. exterior, alimentada do interior, em que se encontra o princípio: vida. Em ambos os casos tudo é inteligentemente orientado e guiado do interior, a forma é gerada pelo espírito, isto. é, o corpo humano é constituído pela alma, seu princípio vital, como o universo físico foi formado pelo Verbo, o Pai. A alma humana, como o Deus imanente estariam tão entranhadas na forma, que o fato de a primeira não poder viver senão em um corpo, não representa nada mais do que um caso particular da universal imanência de Deus, que ela representa e constitui no seu caso particularizado. E que é essa substância pensante, matéria prima de nosso universo, senão o espírito?

Prossigamos na observação do paralelismo. Suprimamos a alma no homem e teremos um cadáver. E que poderia restar do universo se dele desaparecesse a projeção da inteligência diretora (o Espírito) e cessasse a presença do princípio vital (o Pai)? E semelhantemente, ao fim da existência na forma, a alma humana se retrai para o interior da sua manifestação, como o Deus imanente, ao término da vida do cosmo, retrair-se-á para o íntimo dessa Sua manifestação, para coincidir no fim do ciclo, como já dissemos, com o ponto de partida; o Deus no aspecto transcendente. E assim como todo o universo, evolvendo, exprime o gradual retorno da imanência à transcendência, assim também em cada morte, se a alma evolui, ela cada vez mais se avizinhará do Deus transcendente, o perfeito do qual se avizinha gradativamente a imperfeição, para alcançar, na fonte primeira, nova energia para uma nova vida. Isto porque, com a queda, os espíritos precipitaram-se na periferia e não lhes é possível senão uma vida fragmentada, pelo que, a cada morte, inevitável nesse plano, é necessário voltar ao centro para conseguir um novo impulso dinâmico, sem o qual não se suporta uma outra vida. Como já vimos a razão pela qual o desenvolvimento  jamais ultrapassa as dimensões estabelecidas no esquema de um dado tipo de ser; também agora podemos compreender porque a carga vital recebida, que o espermatozoide e o óvulo contêm, mas que não geram, porque a recebem do espírito para desenvolver-se. é de uma duração limitada que depois se exaure na morte.

Esses paralelismos nos permitem compreender também o porquê deste cíclico retorno da juventude e velhice, em todas as formas da vida, seja no indivíduo, seja na família, nas nações, nos impérios, nas civilizações, na humanidade. Não se trata senão de repetições em dimensões menores do ciclo máximo do aspecto imanência de Deus, que torna a coincidir com o Seu aspecto transcendência. Quanto menor a unidade da individualização tomada para exame, tanto menor também o seu ciclo e mais rápida a sucessão deles. Mas, em cada caso, do homem às nações, à civilização, à humanidade, ao universo, o esquema é sempre o mesmo. Temos, assim, dois momentos: no primeiro é o espírito que trabalha por fazer para si uma forma, por organizar uma sua expressão no plano exterior (o homem organiza um corpo, as nações um governo, as civilizações uma ordem, as humanidades uma sede planetária, o universo um organismo cósmico); no segundo momento, inversamente, é a forma física que se consome em favor do espírito, enriquecendo-o de todas as gastas experiências da vida. Assim como na juventude do indivíduo temos um período de construção física, assim também no universo temos a formação de um substrato feito de matéria; e como no indivíduo temos depois com a velhice o declínio da forma em benefício do desenvolvimento de consciência, igualmente no universo verificamos um período de destruição física e de paralela expansão vital sempre maior no plano espiritual.

Isto confirma o que já dissemos algures, a respeito de que o universo físico acabará por desintegração atômica (γ →β) e o universo biológico (vida) findará com a espiritualização da forma física (β→α). Essa espiritualização pode parecer um fim para o ser situado na matéria, mas tudo é relativo ao ponto em que se coloca o observador. Nós chamamos existir o viver na matéria, porque a nossa vida se desenvolve na periferia. Assim também chamamos de criação, isto é, passagem do nada ao ser, à transformação que se opera em nosso tipo de existência. Mas, se estivéssemos situados no centro, no absoluto, no espírito, ao invés de nos encontrarmos na periferia, no relativo, na matéria, então conceberíamos o viver na matéria como um não-existir. A atual criação nos pareceria, nestas condições, a passagem do ser para o nada, porque não seria a transformação que se opera no sentido de nosso tipo de existência, mas algo que caminha para a sua negação. Se superarmos, porém, a relatividade destes pontos de vista, veremos que o referido término do universo físico e biológico não passa de uma mudança de forma para retornar ao originário estado espiritual, ponto de partida do atual universo desmoronado. Em conclusão, só em nosso plano relativo é que se pode ser ou não ser, isto é, relativamente a uma dada forma assumida naquele momento pelo ser. Mas o Todo - Deus - jamais pode não-ser na Sua substância. Somente no relativo poderá ocorrer o não-ser, isto é, um não-existir parcial em relação a outras formas de existir. Mas, no absoluto, que é tudo, tudo não pode deixar de eternamente ser.

O paralelismo entre a unidade alma-corpo e a unidade Deus-imanente-universo, ajuda-nos a compreender as relações entre Deus transcendente, origem primeira de tudo, e essa Sua incomensurável criatura coletiva, que é o universo. Embora neste Seu último aspecto Ele seja invulnerável, acima de qualquer criação Sua e de suas alternativas, é também através desse aspecto de imanência que Ele pode permanecer presente, agir, guiar e assim tudo reconduzir do imperfeito, em que o sistema desmoronou, para o perfeito em que Ele "é". Torna-se-nos também assim compreensível, a ação à distância, inimaginável de outro modo e que nos poderá mesmo induzir a pensar em um Deus ausente, desinteressado da sorte de uma criação abandonada a si mesma. Desta maneira explica-se também a imperfeição, o estado de contínua formação, o fenômeno da evolução, que reinam em nosso universo. E compreende-se, então, que esse transformismo é um estado transitório, decaído, impróprio do ser perfeito e se entrevê a meta que nos espera a todos, o ponto de chegada de tanto trabalho.

Pode-se agora alcançar a definição de uma importante questão, qual seja: se Deus é pessoal ou impessoal. O aspecto transcendente leva à primeira concepção; o imanente, à segunda. No primeiro Deus é centro, um ponto, um "Eu sou", o Todo-Uno, possuindo todas as características da personalidade, as que encontramos no menor "eu" humano. No segundo, Deus é periferia5 imerso na Sua manifestação, pulverizada em infinitos “eu sou” menores, havendo o Todo-Uno se fracionado no desmoronamento do sistema. Ele possui, pois, todas as características do impessoal, as que encontramos na massa de células componentes do corpo humano. Tudo isto corresponde exatamente à universal lei do dualismo, pela qual toda unidade é constituída de duas partes inversas e complementares. E assim seria por toda parte, desde Deus-Universo até à alma-corpo.

A esta altura, poder-se-ia, contudo, objetar: existem, então, dois Deuses? Respondemos: existirão, talvez, duas Terras, porque a nossa tem dois polos? Existirão, porventura, dois seres em um homem porque é feito de alma e corpo? E se assim é a constituição do esquema do ser, não nos é dado mudá-lo. Devemos limitar-nos a comprovar que assim é. Caberia, contudo, ainda objetar: mas então o universo físico é o corpo de Deus? De novo respondemos E que é o corpo para a alma, senão o seu veículo e meio de expressão? Impõe-se, ao certo, conferir então à palavra corpo um sentido tão mais amplo, que nem ao menos poderíamos concebê-lo. E esta foi exatamente uma das erradas consequências do imanentismo: perder de vista o Deus-Uno e vê-lo definitivamente fragmentado no panteísmo, como se do "Eu sou" central não tivesse restado mais do que uma poeira de Divindade, pela qual ela estaria dispersa em infinitos "eu sou" menores, sem possibilidade de reconquista do Uno e de conexão com Ele. Mas o leitor já viu quão longe estamos de semelhantes concepções (Vide o fim do cap. XV: "À procura de Deus").

Trata-se, pois, apenas de duas posições diversas da Divindade. No polo transcendência temos de Deus o aspecto unitário e estritamente pessoal. No polo imanência temos Dele o aspecto multíplice, um pan-psiquismo uma presença dada por uma pulverização no particular, até ao panteísmo, concepção que é a natural resultante da cisão no desmoronamento. Panteísmo de fato significa presença de Deus na multiplicidade, ou seja, na imanência. O erro está em ter-se querido contrapor, ao invés de conjungir, estas duas verdades complementares, feitas para completar-se reciprocamente, único modo de reconstruir completamente o conceito de Deus. Resultou daí uma unilateralidade de visão, fonte de polêmicas destituídas de outro sentido que não seja o de alcançar, através da luta entre opostos, a compreensão da relatividade das nossas concepções. É certo que Deus transcendente, situado acima de qualquer criação, representa a centralização máxima no "eu" pessoal. Mas é também certo que o desmoronamento do sistema, arrastando consigo Deus transcendente na imanência, necessária para manter e salvar o anti-Sistema, explica e justifica o panteísmo. Este é verdadeiro, mas apenas no polo imanência, ao passo que é erro quando admitido no polo transcendência, como também é verdadeiro o oposto princípio da personalidade, se admitido apenas no polo transcendência, constituindo erro quando concebido no polo imanência. Afinal, o ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus e Seu universo, reflete bem estes conceitos, mostrando-nos o "eu" espiritual, pessoal e central, e o corpo físico, onde, em cada célula, esse “eu”, está imanente, como a origem das sensações e da vida. E tudo, do caso máximo ao mínimo, corresponde à lei universal das unidades coletivas, lei pela qual todos os elementos componentes do sistema hierarquicamente convergem para um único vértice, estritamente individualizado. Trata-se, pois, apenas de dois aspectos, como sempre dissemos: o transcendente ou inexpressado, e o imanente ou expresso na criação, o qual naturalmente deve conter Deus, pois que é Dele a expressão. Temos um caso semelhante no homem que pode ter uma ideia, sem expressá-la, ou então projetá-la fora de si, na ação e depois na forma, podendo, assim, essa ideia coexistir ao mesmo tempo no aspecto inexpresso e expresso. Podemos muito bem conceber Deus não imerso na concatenação causal, na sucessão dos atos no tempo, como é o homem antes de traduzir em ato a sua ação. Os dois aspectos são conexos por toda parte. Assim é construído o Todo. Eles efetivamente assemelham-se a dois amantes separados, uma unidade dividida, desesperadamente desejosos ambos de um recíproco amplexo, para reconstituir a unidade. Parece que o imanente persegue o transcendente, cuja imobilidade atingirá após uma ilimitada corrida. Ele parece uma imensa carência que só findará quando se completar na transcendência. É o vazio que está faminto do pleno, é o pleno que tem necessidade de encher o vazio. É a universal complementariedade dos dois opostos do dualismo, sobre o qual se eleva a unidade. Como o macho e a fêmea, imanente corre e o transcendente aguarda. Aí está Õ princípio das trajetórias espiralóides, que continuamente se reduzem, até que, como se passa no correspondente esquema do plano físico, o imanente se precipitará no transcendente, anulando-se na identificação com ele. Então, o Deus transcendente terá reabsorvido em Si a Sua manifestação, a universal reespiritualização, terá retornado ao seio do Uno, do qual nascera, desaparecendo a distinção entre os dois aspectos.

Nada mais nos resta, para concluir a argumentação do que ouvir a confirmação de tudo isto numa voz inteiramente ortodoxa, que reproduzimos de uma página da obra de Paulo de Jaegher S.J. - Confidência (Meditações), tradução do francês vol. I, Ed. Marietti, tipografia pontifícia, da S. C. dos Ritos, 1934 (o escrito é de 1929, com Imprimatur).

O Cap. XIV, pág. 273 e seguintes, diz:

"Deus cria a cada instante o mundo apenas com o pensamento (. . .). O pensamento da criação nos é familiar, mas o que nos é menos familiar é o pensamento da criação contínua, que é a conservação do mundo. Pensamos demasiado frequentemente que Deus criou este magnífico universo no princípio dos tempos, limitando-se em seguida a dirigi-lo e governá-lo, como se ele pudesse subsistir por si, de modo mais ou menos independente de Deus. Ao contrário, a conservação do mundo é uma criação contínua, que a cada instante pressupõe uma potência igual à que originariamente criou todas as coisas (. . .). Medimos Deus pelo nosso gabarito (. . .).

"Quer executemos uma obra de arte, quer construamos uma edificação, uma vez completadas, estas coisas subsistem independentemente de nós. No máximo, velamos pela sua conservação e manutenção. Da mesma forma, para muitos homens, o mundo existe por si, uma vez criado, não cabendo a Deus senão conservá-lo e defendê-lo. Na realidade Deus faz o mundo a cada instante: cria sem cessar (. . .). Que ideia tão mais exata e benéfica teríamos da Potência infinita, se considerássemos o mundo sob este aspecto! Como sentiríamos melhor a nossa independência de Deus e a nossa necessidade de gratidão, se tivéssemos maior consciência dessa ação continuamente criadora de Deus sobre tudo o que nos rodeia, como sobre nós mesmos (...)

"Deus fez e faz sem cessar todas essas maravilhas apenas com o Seu pensamento repleto de amor. Deus pensa e ama todas essas coisas com um amor que cria. Pelo próprio fato Dele pensá-las e amá-las, elas recebem o ser (. . .). Deus pensa todas essas coisas, cria com o só pensamento este mundo imenso (. . .). Todo o universo é o Seu pensamento (. . .).

"Vós somente, meu Deus, produzis, criais, fazeis existir com o Vosso pensamento apenas (. . .). O mundo inteiro é um poema magnífico animado pelo Vosso pensamento (. . .).

"Ele está presente em cada criatura (. . . .), e para conservá-la no ser (. . . .). Mas há uma coisa mais surpreendente ainda e bem pouco conhecida. O Espírito infinito, o Ser sem limites que cria todas as coisas com o pensamento (. . . .), não se separa da Sua criatura, que, sem o Seu auxílio, cessaria de existir. A Infinita Inteligência está e permanece no fundo de toda criatura, no fundo de cada Seu pensamento. Vem a ela, circula nela, embebe-a e a inunda de Si mesma a cada instante, mas Deus imanente e transcendente ao mesmo tempo, está na Sua criatura (. . . .). Todo ser é como um tabernáculo de Deus (. . . .). Quantos poucos, ó meu Deus, são aqueles que têm consciência disso! (. . . .). A criação inteira é como um templo do Altíssimo, três vezes santa. Tudo está repleto de Deus, tudo está impregnado Dele (. . . .). Deus inunda cada coisa. Como uma esponja imersa no oceano, o universo inteiro está envolto na imensidão do Pensamento de Deus.

(. . . .)  "Cada coisa é a obra-prima de Deus! (. . . .), nada de imperfeito (. . . .). O Deus, que não posso ver daqui de baixo (. . . .), está, todavia, em toda parte. Ele me circunda, no mundo (. . . .). Eu estou imerso Nele, o grande oculto e o grande presente". Não se poderia descrever melhor o que é o nosso monismo e o nosso imanentismo, que foi confundido com panteísmo. O nosso conceito, acima exposto, de um universo-manifestação é mantido pelo Cardeal Nicola Cusano Venerável nestas suas palavras: "Quid est mundus nisi invisible Dei apparitio, quid est Deos nisi visibilium invisibilitas? " E poderemos repetir várias citações já transcritas no Cap. XV "À procura de Deus".

Não faltam, pois, mesmo no campo ortodoxo, confirmações de nosso ponto de vista. Sem este conceito da imanência de Deus, se entendido sem as aberrações do panteísmo, não se explica o amor de São Francisco de Assis por todas as criaturas, nem que Cristo pudesse repetir dos livros sagrados que nós somos Deuses. É toda a lógica do sistema que, pois, prova a imanência. Ela aí está escrita e não se pode deixar de lê-la. Tanto mais que a criação contínua, quer dizer manutenção da própria obra, não exclui, de modo algum, uma criação originária e que, no sentido relativo acima exposto, se pode admiti-la também do nada, sem lesar com isso o princípio da indestrutibilidade da Substância. E também dissemos porque a alguns espíritos repugna admitir a imanência. Mas assim como se observam os olhos de uma pessoa para prescrutar-lhe a alma, assim como cada ser possui um semblante que exprime o espírito animador de sua forma e nos diz da vida que o anima, assim também, olhando o rosto e os olhos deste nosso universo ilimitado, perceberemos o seu princípio animador, que tudo move: Deus.