A moral da narrativa feita no capítulo anterior tem alcance universal e representa modificação completa da psicologia corrente, quando afirma serem todas as situações de nossa vida, boas ou más, consequências de nossa conduta. Pode ser que não nos recordemos de quando e onde semeamos na plantação de nosso destino, mas, sem dúvida alguma, semeamos. Sempre procuramos nos outros as causas de nosso infortúnio; elas, porém, residem em nós, dentro de nós. Procuramos sempre inculpar os demais, pois queremos encontrar um Cirineu a carregar a cruz. No entanto, nós devemos carregá-la sobre os ombros. Isso tudo satisfaz a lógica, a lei de causalidade, a justiça e a liberdade humana. Os acontecimentos não nascem fora de nós, mas dentro; se algo nos golpeia, não é por motivo de alguém no-lo ter querido infligir e, sim, porque nossa maneira de ver, esse feixe de forças atuantes, o atrai ou, pelo menos, por ser aí vulnerável, lhe garante livre acesso, verdadeira porta aberta. Nas infecções microbianas, não é a esterilização do ambiente, impossível de conseguir, que decide de nossa saúde, mas, acima de tudo, a resistência orgânica do indivíduo. Assim também, quanto às adversidades morais e materiais; não nos é possível viver em um mundo inócuo e, ao mesmo tempo, esperar continuamente sua não-agressão; devemos, ao contrário, confiar apenas nas qualidades individuais de resistência, de reação defensiva, de recuperação, isto é, naquelas forças por todos nós possuídas porque as conquistamos e as incorporamos ao dinamismo de nosso próprio destino. Esta é a moral da precedente narrativa: nós mesmos devemos construir-nos, cada qual por si e para si, e toda alegria ou dor, vitória ou derrota, constituem experimento que se registra indelevelmente no livro de nossa vida, representam prova de que nos interessa sabermos sair mais esclarecidos. Ou nos construímos e robustecemos ou nos demolimos e enfraquecemos. Se, como tantos fazem, procurarmos a vida apenas fora de nós, nas outras pessoas e nas coisas, seremos escravos, seus escravos. Só seremos livres, se procurarmos a vida dentro de nós. Moralmente, podemos ser senhores de nosso destino, mas se torna necessário querê-lo e sabê-lo. É preciso, porém, viver em profundidade, viver uma vida consciente. Não é a riqueza ou o poder, mas a vida interior, que nos dá a independência e o domínio. Podemos viver no meio da guerra e, no entanto, ter a paz no coração. A maior conquista consiste em chegarmos a ser, e conservarmo-nos donos de nossa casa interior. Essa é a única direção útil do expansionismo, o do novo homem, expansionismo que não acaba em carnificina. Em relação à nossa alegria e à nossa força, vale nossa casa interior muito mais que a exterior; podemos fazê-la ampla e sólida e conservá-la a nosso modo, em completa independência, em plena autarquia do espírito. Essa casa, porém, não a recebemos por herança; cada um de nós tem de construí-la com as próprias mãos, pois é de fato nossa. Mas essa posse deve ser plenamente justa, isto é, constituir fruto de nosso trabalho. Essa casa é o verdadeiro refúgio na adversidade, o ninho de nossas alegrias, o cofre de nossos tesouros; mas é construção feita de forças, edifício entretecido de invisíveis fios em movimento e que necessita nutrir-se diariamente de nosso trabalho porque marcham para o futuro e são vivos e se desfazem, se não forem alimentados. Há homens que por fora vivem em palácios luxuosos e por dentro definham em casebres miseráveis, desleixados, tristes, em ruínas. Nos momentos de desventura, seu mesquinho eu não encontra refúgio, pois as grandezas terrestres não podem oferecê-lo. Percebem a miséria da casa interior de sua personalidade e, por isso, lhe fogem, temem a introspecção e, como percebem estarem nus, procuram avidamente cobrir-se com seus ouropéis. Mas os valores e as defesas estão dentro e não fora. Tudo quanto é externo se despedaça ao primeiro sopro da tempestade. Assim é a vida.
Por isso, podemos dizer com o Evangelho: “Ai dos ricos, ai dos vencedores, ai dos que gozam. Amanhã chorarão”. São coisas ditas e reditas pelos sábios; todavia, nesta vida turbilhonante, não passa pela cabeça de ninguém que devam ser levadas a sério. No entanto, constituem a realidade mais profunda da vida. O encontradiço tipo involuído não sabe compreender como, para quem evolui, em dado momento a ilusão desapareça sem causar mágoa e como, sob o nome de ilusão, devamos entender exatamente as coisas que a maioria das pessoas considera mais preciosas. De fato, o caminho evolutivo do sábio é juncado de descobertas muito mais maravilhosas do que as científicas, proclamadas aos quatro ventos. Trata-se de descobertas verdadeiramente utilitárias e substanciais, completas e decisivas. Eis o verdadeiro sentido da vida, sentido que escapa ao entendimento das massas estúpidas e escravas, abandonadas à deriva, desejosas apenas de vegetar. Contudo, a realidade material e exterior, que todos alimenta, tem as raízes mergulhadas nessa realidade interior e dela não pode separar-se. E pretendemos dominar os efeitos, combatendo-os quando já plenamente desenvolvidos, ao invés de extirpá-los no nascedouro. Todavia, o sucesso material, tão ansiosamente desejado por nós, não podemos obtê-lo sem o concurso da força moral, que não levamos em conta e, no entanto, liga-se-lhe estreitamente. O imponderável, embora incompreendido e maltratado, permanece indestrutível entre nós; não se deixa dominar e reage maleficamente, pois o nosso mau tratamento para isso quis pô-lo em ação. Se as forças da Lei, agindo sabiamente, não nos reeducassem por meio da dor, nossa civilização não saberia fazer outra coisa senão conduzir-nos, por meio do bem-estar e do abuso, à decadência física e moral.
Procuramos neste livro observar essas verdades sob todos os pontos de vista, conforme as várias formas mentais, servindo-nos da lógica, narrando os resultados da experiência, apoiando-nos na analogia e em relações com fenômenos de outro tipo. O problema que estamos enfrentando é o do melhoramento humano e este coincide com o aperfeiçoamento do indivíduo. Podemos, para isso, utilizar as grandes vias das reformas sociais e dos sistemas orgânicos de massa. Se aqui, porém, a ação é muito extensa, é necessariamente pouco profunda. De modo que, se quisermos fazer a evolução humana avançar muito, temos de encaminhá-la pelo estreito caminho individual. Trata-se de mudar o sentido da vida. É preferível, pois, trabalhar no lado de dentro a trabalhar no lado de fora do indivíduo, mais por livre convencimento do que por imposição, mais por maturidade do que por organização. São múltiplas as estradas do progresso. Essa maturação deve ter o caráter de espontaneidade. Por isso, apela-se para mais perfeito entrosamento da vida humana com as leis biológicas. Da conquista de novo modo de conceber a vida, mais lógico e mais elevado, derivaria mudança no comportamento individual e nas relações entre as pessoas e as coisas, o que traria grande vantagem para todos. Procuramos, aqui, fazer com que o homem moderno compreenda a enorme vantagem de ser honesto. A humanidade de hoje crê ter-se de súbito civilizado apenas porque descobriu alguma lei exterior da vida, permitindo-lhe mais cômodo desfrutamento dos recursos naturais. Trata-se de domínio alcançado sobre algumas forças tornadas, em parte, obedientes, para atingir o bem-estar de que nos pomos a gozar, ignorando-lhe as consequências. Esse domínio também poderá servir para causar-nos a morte cientificamente, em larga escala, porém não nos torna mais adiantados. Isso não pode chamar-se civilização. De mudanças profundas de orientação, que interessem à motivação da atividade humana, nem se fala. Hoje em dia a vida se apresenta feroz e desapiedada como nos tempos pré-históricos. Não estar armado de pedras lascadas, mas de metralhadoras; não estrangular o seu semelhante com as mãos, e sim com os Bancos, representa apenas progresso formal, substancialmente fictício. Civilização que deixa intactos os instintos bestiais do homem e, além disso, oferece-lhe meios mais poderosos de satisfazê-los, não merece o nome da civilização. Hoje, ao invés de havermos progredido, descemos a tal ponto que perdemos o sentido do que seja civilização e mudamos o significado dessa e de outras palavras sublimes. A verdadeira civilização está mais dentro do que fora de nós; é mais um poder das qualidades da personalidade que um poder originado nos meios exteriores e no domínio material; é progresso no espírito, implica em mudança do comportamento humano em profundidade e não apenas em superfície. Em meio dessa nossa barbárie, os raríssimos sábios caminham em silêncio, beneficiando e perdoando. O mundo ri-se deles. Mas neles apenas reside o futuro do mundo, o único futuro sem sangue.
As ações e as relações humanas podem ser estudadas como jogo de forças e, assim, descobrir-lhe-emos as leis. Aí está o miolo da questão. Acreditamos que a lei do perdão significa pôr-se em situação de fraqueza e que o sistema de vingança e aniquilamento significa posição de força. Não compreendemos como na realidade se dá o contrário, isto é, como o perdão nos liberta da reação e a vingança nos liga ao inimigo. Quando dois indivíduos estão em paz entre si, representam sistema de forças em equilíbrio. Mas, apenas um dos dois tenta superar o outro, procurando invadir e dominar, não só o legítimo campo de sua liberdade como o campo dos demais, esse sistema de forças não se mantém mais na posição natural e estável de justiça, mas se transforma em sistema desequilibrado que tende espontaneamente a voltar à primitiva posição de equilíbrio. Temos, agora, de um lado rarefação e vácuo, de outro, concentração e pressão; de um lado derrota e danos, de outro vitória e vantagens. Tudo poderia processar-se de acordo com a vontade do homem, que gostaria estivessem a seu favor essas mudanças, se não existisse uma vontade superior, a dirigir e equilibrar, a vontade da Lei que guia todos os fenômenos de acordo com equânime princípio de justiça. De fato, essa lei existe e um princípio impõe o equilíbrio. Acontece, automática e irresistivelmente, de um lado atração exercida pelo vácuo e de outro a força de pressão tendendo a estabelecer esse movimento de reação chamado vingança. Esse movimento, se possui um fundo de justiça, pois tende a reequilibrar o sistema, lança-o em novo desequilíbrio constituído pela posição inversa, de que nasce nova reação, a contra- vingança e assim por diante. Estabelece-se, desse modo, cadeia de vinganças, interminável porque através delas o desequilíbrio se mantém, permanece sempre a provocação originária que não tem remédio. Assim acontece: quando dois indivíduos pela prática de algum abuso se ligam a tal sistema de forças, este não sabe mais como resolver-se e os indivíduos permanecem, mesmo através de seus descendentes, indefinidamente emaranhados, até a consumação dos séculos. O fratricida Caim revive no homem.
Continuemos a observar. Por um lado, a concentração constitui riqueza, superabundância de bem-estar, euforia biológica causadora de engorda enervante, que desabitua da luta, diminui as capacidades, aniquila as defesas. De outro lado, a rarefação é pobreza, incômodo, tormento originador de excitamento que anima ao combate, apura as capacidades, prepara e apresta o ataque. De fora, a pressão tende naturalmente a diminuir, dentro a tensão tende a aumentar. Assim, as duas forças do sistema, já ligadas, tendem a combinar-se de novo, mas em posição inversa. E assim por diante. Tais são as vicissitudes de toda luta, de dois homens, famílias, facções ou povos. Existe, pois, enxertada no próprio, sistema, uma tendência a compensar, corrigir e eliminar os abusos iniciais. Essa tendência à inversão das posições exprime tendência ainda mais profunda, isto é, a que leva ao restabelecimento do equilíbrio rompido. Ela se deve à presença de uma terceira vontade, que nada tem de comum com as verdades particularistas e relativas dos dois contendores, isto é, a vontade imparcial e justa da Lei, cuja tendência constante consiste em corrigir e reabsorver o erro humano.
Perguntamo-nos, agora: como se torna possível reequilibrar esse binário que, tendo perdido o equilíbrio, não sabe recompô-lo? O maior sonho do lutador consiste na vitória e consequente aniquilamento do inimigo. Na verdade, porém, não passa de ilusão, pois o inimigo que representa uma força, é substancialmente um imponderável, e participa de um organismo universal em que, como já dissemos, nada se pode destruir e onde se torna impossível abrir-se o vácuo de sua destruição; representando, pelo contrário, tendência a preenchê-lo, irresistível vontade de compensação. O homem não pode de modo nenhum neutralizar essa tendência, paralisar essa vontade superior. Possui apenas este recurso: a sua força e nela agarra-se, para vencer, de unhas e dentes. Mas a manutenção de artificial estado de equilíbrio, como o de seu domínio sobre o próximo, requer esforço contínuo, que se resolve, já o dissemos, em desgaste e, mais tarde, em inevitável cansaço. Desse modo, além de pelas razões precedentemente expostas, também por esta, o sistema tende a inverter-se. A Lei fundamental de justiça tende incansável e tenazmente à compensação, exerce insistente pressão nesse sentido e só encontrará paz quando completamente corrigido o precedente desequilíbrio. Impossível, pois, resistir indefinidamente; de fato, para conservar de pé um sistema desequilibrado, seria necessário ampará-lo continuamente por meio de incessante dispêndio de energia. De um lado, temos o principio-lei, que é vontade inteligente armada de energia, calma, paciência, mas constante e inexaurível; de outro, o homem armado de energia violenta, mas inconstante e pouco duradoura, colocado perante lei de vontade diferente da sua e que não se deixa violar senão temporária e excepcionalmente e à custa de esforço persistente e cansativo. O indivíduo poderá resistir e, até mesmo, resistir vencendo por alguns momentos, mas cedo ou tarde chegará o momento de se inverterem as posições. Portanto, é fatal, como de fato se verifica, que cedo ou tarde o sistema se decomponha e o vencedor passe à condição de vencido e ao contrário. No reino da força, vitória significa vitória. Mas, perante lei equânime, imparcial, desejosa de que todos vivam, vitória significa débito do vencedor para com o vencido, débito a ser pago de qualquer modo um dia. Então, que adianta vencer? Se não nos contentamos com resultados efêmeros nem damos crédito à ilusão, não é verdade que vitória e derrota representam o mesmo fenômeno? Trata-se de posições instáveis, solapadas pelo tempo, de vantagens momentâneas, trabalhosas e arrancadas violentamente aos naturais e inexoráveis equilíbrios da Lei. E assim, em última análise, a vitória não passa de prelúdio da derrota e a derrota significa o prelúdio da vitória.
Se, pois, a vitória não resolve definitivamente o problema, porque não reequilibra o sistema das duas forças; se posição de estabilidade apenas pode ser garantida por espontâneo equilíbrio dos dois impulsos opostos; a que devemos recorrer, então? O sistema humano da vingança não atinge o objetivo previsto. Sem dúvida. Não se trata aqui de agravar, mas de reabsorver o desequilíbrio originário e isso apenas pode ser conseguido pelo perdão. Vimos a primeira usurpação causar um primeiro desajustamento, que o sistema ativo-reativo em cadeia das vinganças não conseguiu eliminar. Para consegui-lo, torna-se necessário um ato igual e contrário, porque só um ato assim pode neutralizar o primeiro. É preciso, portanto, movimentar-se em sentido contrário; e só o perdão pode fazê-lo.
Dirão, agora: para que serve essa luta e, se constitui erro, por que as leis da vida a permitem? Serve para aprendermos o modo de não cometer mais erros e percorrermos o caminho da vingança a fim de aprendermos a lei do perdão. O homem necessita aprender; por isso, Deus deixou-o livre. Não se trata, pois de liberdade desenfreada e louca, mas de liberdade limitada e protegida. A Lei cede no limite do necessário ao aprendizado do homem. Deixa-o errar e, depois, sofrer as dolorosas consequências do erro. Age, porém, paternalmente; de fato, ao mesmo tempo que parece abandoná-lo, a lei se mostra sabiamente previdente, provida e protetora e, por meio de lenta, mas constante e tenaz pressão, se compromete antecipadamente a recolocar tudo em seu devido lugar; e, na realidade, vemos, apesar de todas as desordens humanas, a Lei alcançar seu objetivo. Desse modo, todo erro contém em si o germe de sua correção, a imperfeição se reduz a motivo de perfectibilidade contínua. O mundo constitui, assim, perene injustiça, que representa poderosíssima aspiração à justiça; a vida é desequilíbrio constantemente à procura de equilíbrio; é vingança avidamente desejosa de alcançar a fase superior de perdão; é ânsia de ódio que não sossegará enquanto não reencontrar o amor. A Lei existe, sem dúvida, porque nossa consciência sabe exatamente como as coisas deveriam ser, perfeitas, embora não o sejam ainda, e um abismo de dificuldades as impeçam de o serem. De fato, o mundo apresenta-se como oceano de desequilíbrios e por essa razão sofre, exatamente porque não consegue atingir o estado de equilíbrio, único, conforme o mundo mesmo percebe, em que encontraria a paz. Torna-se evidente que apenas o reequilíbrio poderá dar-nos a felicidade, mas esse reequilíbrio está bem longe de nós. O sofrimento do mundo não se deve a erros recentes, e sim milenários, a pavoroso amontoado de erros, acumulados através dos séculos, difícil de eliminar e impossível de reabsorver assim de um golpe. Hoje, tudo está impregnado de erros, o ar saturado de mentiras, o mal que semeamos se transformou em nossa atmosfera. É preciso pôr-se a caminhar, lenta e tenazmente, pelo áspero caminho da regeneração. Os resultados do abuso não podem ser corrigidos senão movendo-nos em direção contrária, subindo de novo pelo caminho que havíamos descido. Na prática, o simples caso de duas forças contrárias, há pouco examinado, complica-se num interminável entrelaçamento de desequilíbrios, que nos submete ao jugo de nosso destino de indivíduos e de povos, pobres auto-condenados, exatamente por ignorância ou má- vontade. Quanto mais perseverarmos no caminho da força e da vingança, tanto mais pioraremos nossas condições, agravando o desequilíbrio. A única saída é esta: o caminho do perdão, o caminho do amor, o caminho do Evangelho. Quando encontrarmos um homem que emprega a violência e se vinga, diremos: este é um indivíduo que está começando o longo aprendizado da vida. Quando virmos um homem que repele a violência e perdoa, diremos: este é um evoluído que já viveu bastante e aprendeu a lição da vida. A tendência da evolução consiste em substituir a vontade ignara, egoísta, desagregante e usurpadora do indivíduo pela vontade consciente, altruísta, orgânica e pacífica do homem da lei.
Eis em que consiste e para que serve o civilizar-se. Não se trata apenas de idealismo ou de sentimento ou de bondade. Trata-se de atingir a fase do homem que já compreendeu. Este diz: “Perdôo-te, ó inimigo, porque só assim me livro do mal que quiseste lançar sobre mim. Não; conheço a Lei e não faço como muitos iludidos que caem na armadilha. Sei que sou livre. Não aceito ligar-me a ti por laços de ódio ou de vingança; não aceito, porque sou livre, o mal que quiseste inflingir-me. Perdôo-te. Esse mal te pertence; tu o geraste, não eu. Perdoando-te, deixo-o recair sobre ti, não sobre mim. Se eu caísse na corriqueira ilusão do mais forte e reagisse, ofendendo-te também, e te causasse um mal que em mim se gerara contra ti, tornar-me-ia devedor e não mais credor teu e terias o direito de reter-me como escravo enquanto eu não te pagasse meu débito, de acordo com a divina lei de justiça. Com o meu perdão, tu continuas nessa triste posição, tu, pobre iludido que te ries de mim porque pensas ter-me vencido. Muitos preferem comprometer-se cada vez, disputam corrida em direção ao aumento da dívida. Quanto a mim, prefiro libertar-me por meio do perdão. Liga-te, isso sim, com quem responder aos teus ataques. Eu por meio do perdão me liberto. Nada podes contra mim, sem que eu o queira. Não tens o poder de inflingir-me a dor que quiseres. Isso depende apenas de mim e de minhas culpas: E se eu tiver de sofrê-la, não a aceito de ti, que ignoras o porquê das coisas e ages como cego; aceito-a apenas das mãos de Deus, a título de expiação merecida, de salutar purificação e, por isso, de benefício para minha redenção. Não és mais do que instrumento inconsciente, guiado pela Lei, ser ignorante do que faz, merecedor de piedade e por quem devo orar. És pobre irmão ainda ignaro, que devo esclarecer e ajudar, irmão que está ferindo a sua própria vida e ligando-se, sem sabê-lo, a nova dor, porque, acreditando golpear-me, está golpeando a si mesmo. Irmão! Devo socorrer-te no perigo por que estás passando. Mais tarde, depois de espontaneamente teres querido ligar-te, por mais que eu sofra e te perdoe, nada poderei fazer por ti contra as consequências fatais de tua conduta; assim, deverás pagar inexoravelmente e na proporção de teu erro. Tu, não eu, rompeste o equilíbrio. Tu, não eu, deverás, penando, reconstruí-lo. A redenção é demorada, complexa e se processa átomo por átomo. Meu perdão me interessa mais do que a ti. Cairás debaixo da força que tu mesmo libertaste. Ai de ti, se venceres. Tanto mais pagarás quanto mais injustamente houveres vencido. Acreditas trabalhar fora de ti, em mim, e, no entanto, trabalhas dentro de ti mesmo, em ti, para teu benefício. Tudo quanto fizeres recairá sobre ti, porque tu o fizeste; não recairá sobre mim, senão na proporção em que eu o houver feito”.
A terra é morada infernal, de débito e de expiação, lugar em que os homens gostam de endividar-se até o pescoço, vivendo debaixo de chuva de fogo aceso por suas próprias mãos. Todavia, como a Lei de Deus se mantém justa e boa! Somos livres, mas responsáveis. E, quando lhe compreendemos o significado, que poder regenerador o sofrimento adquire! Todos nós temos de responder apenas por nossas ações e não, também, pelas ações alheias; cabe-nos responsabilidade pelo esforço feito, não pelos resultados ob-tidos. A força máxima consiste em ser inocente. O ponto vulnerável à dor é apontado pela própria culpabilidade, quer dizer, não é a dor em si mesma que o determina, mas a própria debilidade, que oferece o peito aos golpes da lei da justiça. Tudo quanto fazemos perdura e quem deve não encontra salvação. Logo, nós mesmos criamos nossa vulnerabilidade, espontaneamente, por meio de nossas próprias ações, de acordo com nossa vontade mesma. A casa interior do culpado é indefesa, tem as portas escancaradas. Por qualquer lado a dor pode entrar nela. Cabe culpa às portas abertas e a quem as abriu. Então, as forças do nosso destino atraem as investidas dos malvados, que nas mãos de Deus se transformaram em instrumentos de justiça, embora, considerados em si mesmos, sejam injustos e incapazes de compreendê-lo. Os meios punitivos estão à solta, o mal conseguiu libertar-se das algemas e pode, porque Deus o permite, agir com plena liberdade. Na Lei, o mal é escravo do bem, tem limites que não pode ultrapassar senão a serviço do bem. Esses instrumentos não são constrangidos, mas utilizados. São, por isso, responsáveis na medida de sua compreensão e liberdade de agir e nessa medida, quando lhes couber a vez, hão de pagar pelo que fizerem. Mas, se sou inocente, que podem eles perante mim senão oferecer-me novas oportunidades de expiação e ascese? Meu inimigo pode atirar-me às costas todo mal que quiser; apenas o que eu merecer me atingirá. Não responderei por ele, mas por mim. E, se não respondo às ofensas, toda a culpa recairá apenas sobre o ofensor, A medida de nossa dor no-la dá nossa culpabilidade. Fato importante como o desenvolvimento de nosso destino; fato grave como o peso de nossa dor não pode ficar à mercê da vontade de um estranho, que muitas vezes nada sabe a nosso respeito. Sem nosso consentimento, não obstante os permanentes contatos humanos, entre destino e destino não se podem efetuar trocas de valores ou de forças. Nós fazemos nosso destino; este não passa de campo de forças cerrado e protegido, em cujo centro está o eu, dirigindo e controlando tudo. Um estranho poderá introduzir nesse campo apenas as forças que quisermos. As responsabilidades são graves; as sanções, inexoráveis. Nada mais justo do que liberdade completa e responsabilidades bem definidas. Nada mais justo do que cada um responsabilizar-se apenas por aquilo que livremente fez.
Já vimos alhures, a propósito da lei do merecimento e da Divina Providência, quem na luta pela vida defenderá o homem que confiou sua defesa à Lei, às mãos de Deus. Não acreditem vá esse homem, segundo muita gente pensa, deixar de ser vingado. Renunciando a fazer justiça pelas próprias mãos, ele se confia a juiz muito mais poderoso; quem perdoa entrega o culpado à Lei de Deus, invisível e paciente, também inflexível e inviolável, muito mais temível do que as sanções humanas. Os resultados do jogo da força, embora efêmeros, iludem porque são imediatos. Esse jogo não se realiza a longo prazo. Com o andar do tempo o justo se revela o mais forte e é quem vence por último. Há, sem dúvida, conveniência imediata na exploração rápida das posições cuja honestidade lhes conquistou confiança. Quanto mais a retidão de uma verdade ou de uma instituição lhe houver conquistado a estima pública, tanto maior atração exerce sobre homens inescrupulosos que procuram apropriar-se dela em busca de vantagens pessoais. Quem mais fama tem de honesto esse é o ladrão. Mas a posição é instável e não se mantém. Cedo ou tarde tudo desaba. Para civilizar-se a sério o homem do futuro teria apenas de fazer este pequeno esforço de inteligência: compreender a vantagem utilitária de ser honesto, vantagem considerada apenas do ponto de vista do egoísmo (nem pretendemos mais do que isso); compreender que tudo quanto podemos obter, empregando a astúcia ou a violência, não passa de adiantamento, que mais tarde devemos devolver, e pagando muito caro; pretender fraudar lei invisível e onipresente é ilusão própria de ignorantes; entender que o mais forte não é o prepotente, mas o mais justo e que o caminho do sucesso verdadeiro, permanente e durável não é o dos arrivismos tão admirados e seguidos, mas o do próprio dever. Evoluindo, o homem atravessou, na arte de conquistar os bens necessários à vida, a fase representada pelo método da força e, em seguida, a fase do método da astúcia. Agora, se não quiser, com grande desvantagem para si, continuar na situação de involuído, deverá entrar na fase representada pelo método da honestidade. Sem essa premissa, todos os sistemas coletivos que buscam justiça social mais completa contêm apenas ilusão, mentira e pretexto para injustiças cada vez maiores. Sem esse fundamental progresso individual, é inútil acreditarem qualquer tentativa de progresso coletivo.