Começamos das bases concretas da vida, de seus alicerces no mundo da matéria, de seus aspectos mais realistas, mais acessíveis e de maior compreensibilidade, mas ao mesmo tempo menos adiantados. Conseguiremos desse modo, ascendendo pouco a pouco na escala da evolução, atingir no topo os aspectos mais refinados e espirituais da vida, aqueles a que só os eleitos conseguem chegar. Em geral, os planos orgânicos, segundo os quais se traçam as diretrizes humanas do funcionamento coletivo, são elaboradas à luz de concepções filosóficas, políticas, sociais, todas relativas e artificiosas. Como não se trata de castelos no ar, de fictícias formas, de produtos de cerebralismo ou criações de mundo mentiroso, que esconde realidade totalmente diferente, trata-se então de erigir em sistema o caso particular e relativo do indivíduo que conseguiu sobressair-se ao ponto de tornar-se expoente. Explica-se dessa maneira como tais sistemas muitas vezes não se realizam, historicamente terminem em ilusão, e como ao invés de atingir a meta proposta acabam na contradição e na luta. É lícito nos perguntemos agora: verdadeiramente, o que acontece sob as aparências da História em outro plano, diferente do visto em superfície, atua em profundidade e quais as verdadeiras e efetivas diretrizes do fenômeno social? O homem comum, de vistas curtas, pode a seu talante crer em todas as miragens que quiser, sem que a vida se preocupe com desiludi-lo, exceto diante do fato consumado com que ela termina, não antes. Esse homem pode imaginar ser a criação o caos, à qual só a sua vontade saiba e possa levar ordem, ordem a seu modo e a seu serviço. As forças da vida deixam-no iberalmente acreditar no que quiser, nisto ou naquilo; somente quando se trata de concluir na realidade dos fatos, tiram-lhe tudo das mãos e fazem as coisas a seu modo. Fato é a existência de diretriz dos fenômenos sociais e dos de toda a vida, independentemente do homem, muitas vezes em antítese com a sua vontade, muitas vezes para corrigir e dominar sua intervenção. Na melhor das hipóteses, o homem é intérprete, instrumento cujo trabalho valerá tanto mais quanto mais fiel executor houver sido dessas diretrizes, quanto mais tiver sabido conformar com elas a própria atividade, isto é, quanto mais houver sabido agir como função delas, em concordância e não em choque com o funcionamento universal. A presença de uma Lei, de inteligência superior aos meios de compreensão do homem normal, e que é mais forte, em poder de vontade e de ação, do que os meios postos à sua disposição, é fato que resulta de toda a demonstração de A Grande Síntese e não se precisa neste livro demonstrar desde o começo. Essa lei é lembrada, ilustrada e de funcionamento explicado em quase todas as páginas daquele volume, como deste. Tudo quanto, a todo momento, se maneja e se aplica deve necessariamente existir.

A verdade, a cada passo, não muda no espaço e no tempo; o plano firme, o verdadeiro plano orgânico regulador da História e dos acontecimentos sociais, o real sistema diretor dos fenômenos coletivos humanos, que de fato age contra as aparências e através delas, não reside sempre no que o homem diz, afirma e proclama em altas vozes, mas é estabelecido por essa Lei que, independentemente do homem, conhece e tem nas mãos as diretrizes da vida. Em outras palavras: se queremos entrar a fundo no problema e resolvê-lo seriamente, não se entenda o fenômeno social como fenômeno histórico querido pelo homem, que o dirige e compreende, mas como fenômeno biológico dependente de leis sábias e poderosas; diante delas, o melhor que se faz é procurar não impô-las a si mesmo, mas compreendê-las e a elas obedecer. Os fenômenos sociais e essa série de acontecimentos componentes da História, de fato ligados por íntima lógica, e que desconexamente na História relatamos apenas ligados cronologicamente, serão compreendidos apenas se os reduzirmos ao que efetivamente são, isto é, à substância biológica, a momentos do funcionamento orgânico do universo e ligados a ele. Plano orgânico diretor da sociedade humana, se não quisermos andar às cegas na tentativa e cair na ilusão, só no-lo poderá dar o conhecimento dessa Lei e nossa adesão a ela; as normas diretoras da vida coletiva não podem ser artificiosa criação humana, consequência de premissas abstratas, fora da realidade, mas devem ser as próprias normas de toda a vida aplicada ao caso especial da sociedade humana. Quem no próprio caso se separa do todo, quem concebe os fenômenos isolados, permanece alheio à organicidade do todo, que é conjunto conexo e compacto, unitário e impecável. Era necessária tal premissa, que nos garantisse base de absoluta solidez, premissa indispensável para quem quiser construir seriamente, construir sem espírito de partido, não para uma classe social apenas, de acordo com interesse particular, para vantagem de um só grupo ou povo, mas construir universalmente, com estabilidade, acima da luta e das divisões humanas. As afirmações e conclusões que derivarem dessas premissas, mais do que opinião, teoria, produto pessoal, serão simplesmente o resultado da verificação objetiva do funcionamento das leis da vida, serão a própria expressão delas, assim proclamada pela própria voz dos fenômenos. Procuramos com isso alcançar a imparcialidade e a solidez. De verdade partidária e interessada não saberíamos o que fazer. Nada se cria com isso. A solução do problema já existe; trata-se apenas de sabê-la ver e com simplicidade expô-la. Ligamos, pois, o fenômeno social, com o qual ficamos marcados, ao conceito fundamental de A Grande Síntese, resumido no princípio: “ordem em Deus”.

Os fenômenos humanos, políticos e sociais encontram, pois, sua expressão mais simples na vida animal; nessa, que os encerra em embrião, têm as suas raízes; são os mesmos fenômenos levados a mais alto grau evolutivo. Os problemas sociais, no fundo, são os mesmos fundamentais problemas da vida, isto é, fames e libido, conservação do indivíduo e multiplicação da espécie, comida e sexo. Crescimento demográfico, imigração, guerras, expansão, dominação, vitórias e derrotas, capital e trabalho, propriedade, coordenação de funções, disciplina das relações impostas pela convivência, aí estão problemas que a vida conheceu e resolveu antes de o homem tê-lo feito e, mesmo sem ele, em outros agregados sociais animais; resolveu-os segundo os princípios eternos, participantes do sistema orgânico que em toda parte rege todos os fenômenos. Não poderemos resolver esses problemas, como hoje se nos apresentam, na fase evolutiva ao nível humano atual, senão de acordo com os mesmos princípios por que as leis da vida os resolveram em graus evolutivos mais elementares, seguindo a lógica íntima segundo a qual foram construídos, penetrando-os em profundidade, reduzindo-os à essência. Veremos quanto tudo isto os torna mais claros e simples, lógicos e harmônicos. Sob as mais desvairadas teorias sociais sob as mais complexas superestruturas ideológicas, o homem aplica simples leis biológicas, luta e progride biologicamente segundo os métodos da vida e para atingir-lhe os objetivos, seguindo as estradas já praticadas na vida animal, pois a vida é uma só para todos e guiada por lei única, embora diversamente adequada aos diversos planos evolutivos. Essa unidade de diretrizes é a base da fraternidade de todos os seres, que os mais adiantados sentem e não é utopia; fraternidade não apenas entre todos os seres, mas entre todos os fenômenos. E o homem inclui-se no âmbito da divina lei que, apenas com um princípio unitário, rege todos os seres e todos os fenômenos.

Os especiosos apelativos modernos, os inumeráveis “ismos” com os quais se definem os vários sistemas humanos podem ser entendidos apenas se assim reduzidos a seu denominador comum biológico. Essa substância liga-os e reconduz à única verdade mãe de todas as coisas, a que permanece constante acima de todas as formas, em todos os climas, tempos e povos, à verdade aplicada por todos, embora calada, combatida, negada. Assim, os problemas sociais se reduzem, na base, à luta para obter meios de vida, garantir-lhe a posse, proteger-se e à família e os filhos. Desse modo nascem os problemas do capital e do trabalho, da propriedade, da família e dos institutos jurídicos fundamentais. Se a substância do Direito não muda através dos séculos, devemo-lo ao fato de ela exprimir eternas leis biológicas. O progresso aperfeiçoa as relações, completa-as nas particularidades, melhora-as na substância, fazendo-as progredir, cada vez mais, em direção à justiça; mas a raiz não muda. O Direito só pode ser entendido se o referirmos a sua substância biológica. Tem sentido apenas como ato de coordenação que, cada vez mais harmonicamente, exprime essa substância. Muitas vezes, pois, ao contrário, na base do direito público e privado se colocam abstrações metafísicas, axiomas arbitrários, premissas não enquadradas na fenomenologia universal e não justificadas pela realidade dos fatos. As verdadeiras premissas dos fenômenos sociais, enquanto fenômeno da vida, são biológicas e não filosóficas, metafísicas, políticas.

Isto posto e esclarecido, classificam-se os homens, não teoricamente, com base em premissas artificiais e sistemas arbitrários, mas conforme seu real valor biológico, isto é, o grau de evolução atingido. Essa classificação diz respeito à íntima e real natureza do indivíduo e é a única a levar em consideração a substância. Não é o caso de demonstrar aqui a realidade da evolução, embora no plano das ascensões humanas. A verdade desse fenômeno fica demonstrada em cada página de A Grande Síntese. Resulta da observação que, segundo o próprio grau de evolução, muda a estrutura orgânica; nervosa e psíquica, e o estilo de vida do indivíduo. As classificações sociais, face a essas fundamentais diferenças de peso específico individual, são simples estruturas de todo fictícias, instrumentos de luta, meios de esconder a realidade que permanece debaixo, inviolável, a verdade pronta a revelar-se a qualquer momento. A nossa assim chamada civilização é em grande parte questão de forma, simples verniz; a fase de legalidade jurídica atingida por nós é manto que cobre bem ou mal essa substância biológica; o homem, se graças a ele pode parecer diferente, permanece substancialmente o que é na realidade biológica. Se se trata de ladrão ou delinquente, o ordenamento jurídico poderá impedir que continue a prejudicar, mas ele permanece o mesmo. Interessa conhecer o que não aparece. Posição social, poder econômico, valor aparente não tem importância. E até as classificações sociais, enquanto não corresponderem à classificação biológica, carecem de importância.

Isso nos permite levantar o véu das aparências e penetrar na realidade da substância. Tudo fica mais real, mais simples, mais compreensível. Assim, por exemplo, explica-se o materialismo como fenômeno de involução, fase de descensão evolutiva, antecedente de novo surto evolutivo, e se compreende a psicologia negadora do materialista e do ateu como a de primitivo incapaz de sentir as forças do espírito. Assim, embora mais inferiores, o delinquente, o anarquista, o gatuno são apenas tipos biologicamente baixos, ainda não civilizados na substância, não importa se o sejam na forma. Em nossa sociedade, podem prosperar até mesmo sob as normas da legalidade, mas em civilização verdadeira, que não considerasse apenas a superfície, mas também a substância, isso não deveria ser possível. É evidente que não se pode levar a sério senão uma civilização em que isto não é possível. Todavia, quantos e quantos indivíduos hoje folheiam o código e aprendem a não infringi-lo. Esses aprenderam somente a afiar as armas, a conquistarem astúcia o que perderam em brutalidade, ao invés de transformar-se evoluindo, firmam-se na estrada da involução. Permanecem inadaptados à verdadeira vida coletiva orgânica consciente. Que importa a forma, se na substância continuam agressivos, egoístas, ignaros da sociedade como o homem das cavernas?

Face à propriedade, primeira disciplina na aquisição dos bens, esse tipo biológico revela-se o involuído que é. Está sempre pronto a roubar, apenas a reação protetora e defensiva da lei possa ser evitada, de modo a não produzir-lhe dano. Tal tipo deve ser muito comum, pois a lei e o costume humano foram constrangidos a partir da presunção de má-fé, até prova em contrário. Não tem senso de propriedade senão da própria, e só o temor de uma punição o induz ao respeito alheio. E a ameaça defensiva pode tornar-se até mesmo educativa, enquanto este pouco a pouco aprende, através dos séculos, mais elevadas formas de vida. E, paralelamente, a defesa da propriedade pode assim tornar-se cada vez menos férrea, brutal, material e cada vez mais pacífica, simbólica e imaterial. Essa defesa será cada vez menos feita por muros, por grades, por armas, por sanções materiais e cada vez mais reduzida a simples sinal indicador, a reações menos violentas, a sanções puramente morais; mas embora a defesa se desmaterialize, isto é, tenda à própria anulação no entendimento pacífico, é sempre o temor da pena que inibe esse tipo biológico e isso o revela como involuído. Mas involuído que talvez já tenha o pressentimento de formas sociais mais elevadas, nas quais não domina já a usurpação e a força, mas o direito e a justiça. Tem o senso da superioridade do sistema bem diverso do evoluído e nesse sistema procura mimetizar-se para melhor esconder-se, justificando-se. Por isso, eles gostam tanto de recobrir-se com o manto da justiça e eternizar-se no poder, para fazerem da autoridade, que é dever e missão, base de direitos e arma de ataque e defesa. Como o assalta a preocupação de justificar-se com encenação de legalidade! Com que cuidado procurava o Sinédrio dar forma legal de juízo à supressão de Cristo; com que trabalho procuravam os assassinos de Luiz XVI aparecer como juízes e não como assassinos comuns! E que satisfação para os homens poder, em todas as revoltas, roubar e matar legalmente, isto é, seguramente, sem temor de sanções punitivas, único obstáculo para eles, e fazê-lo como autoridade alta e tranquila e não mais com a incerteza e o peso de ladrões! E se a coisa dá certo, o resultado da força e do furto assim se estabiliza e se regulariza depois sob o manto da legalidade humana que, como se crê gasta para tornar justo o injusto. Pobre autoridade e pobre propriedade! Que triste gênese, que posição ao nível do involuído e que grande caminho para purgar e resgatar aquele pecado original! Mas, apenas em qualquer convulsão social o exercício da sanção jurídica diminua de intensidade, já vemos o involuído, mal possa fazê-lo sem perigo, tirar a máscara e revelar-se o que é, dando-se abertamente ao furto, a forma primitiva de aquisição da posse, forma própria do involuído. Esse é caminho mais breve do que o trabalho, forma própria do evoluído, que o revela e presume estado orgânico coletivo ignorado na fase inferior do outro. Todavia, embora seguro da impunidade, o involuído, em defesa, para justificar-se perante a própria consciência e a consciência alheia e a si mesmo dar, ao menos, a ilusão de ter as mãos limpas, gosta sempre de assumir posição de justiceiro como agressor do rico e protetor do pobre; enfim, de camuflar-se de evoluído para fazer mais bela figura e não passar, coisa que mais o desagrada, pelo ladrão que ele percebe ser; e, afinal, para melhor servir-se, mais cômoda e seguramente, no banquete - seu supremo objetivo, assim vestido de juiz. Por mais astuto, porém, que o involuído possa revelar-se diante de tudo isso, todos compreendem que realidade se esconde debaixo da mentira, reveladora de toda a miséria moral do primitivo. Inútil camuflar-se. Roubando, não se pratica o bem; não tem valor a esmola que se faz com as coisas alheias. Embora se disfarce, o ladrão bem sabe que, enquanto ladrão, não está, não pode estar do lado da justiça. Mesmo que o rico tenha sido ladrão, não é lícito roubar, nem mesmo aos ladrões. É inútil que o ladrão procure tornar justo seu furto, acusando de furto quem roubou antes dele. É vã sua desesperada tentativa; belo e bom pretexto para enriquecer comodamente; simples astúcia que pretende dar a entender se possa roubar honestamente. O involuído chega até à astúcia, mas não pode subir mais, isto é, até à honestidade. O método que ele escolheu, embora camuflado, o revela, em flagrante, tal qual é: involuído, primitivo, ignorante. Não conhece as consequências e ilude-se. Esses justiceiros fingidos, que pululam apenas a ordem social enfraqueça a reação defensiva, não sabem que, embora tenham conseguido, por meio da astúcia, fraudar a lei humana e apareçam cobertos pelo belo manto da justiça, deverão todavia, por lei biológica, mais cedo ou mais tarde, pagar com os próprios bens.

Poder-se-ia, porém, virar a medalha e ver a injustiça oposta, vinda desta vez da parte da classe dominante, que se revela disposta apenas a defender-se a si mesma. É verdade: quem rouba é sempre ladrão; mas, também, muitas vezes é um pobre a quem a lei biológica grita em sua defesa: você tem direito à vida. Esse direito de todos, até mesmo dos deserdados, é espécie de justiça, seja embora na forma primitiva do involuído. O evoluído não recorre a ela, nunca, por nenhuma razão, mesmo à custa da própria morte. Mas o involuído que, falto de outros recursos, deve, todavia, viver, pode ser constrangido a recorrer. O esmagamento do pobre, sua expulsão da ordem dos vencedores, ordem imposta para vantagem exclusiva destes, justifica-lhe a revolta. E, então, a vida social reduz-se a luta de igual para igual, entre igualmente injustos, entre igualmente involuídos.

A rebelião do oprimido, por sua vez, justifica a posição defensiva e opressiva dos ricos dirigentes. Decaídas as aparentes distinções humanas, restam a qualidade comum de involuídos, única distinção interessante, e a característica de injustiça, inerente a seu sistema, que os iguala na mesma culpa e nas mesmas consequências. A vida social é, assim, na realidade, corrente de injustiças, de afrontas e reações; todos têm e, ao mesmo tempo, não têm razão; todos são credores e devedores, com a resultante estável, em que todos se reencontram, de invariável regime de incerteza e de ódio. O tipo biológico evoluído compreendeu, ele somente, a utilidade de diferente sistema de agir, de justiça ordenada; compreendeu, acima de tudo, que isso não se pode inaugurar com a injustiça do lado, exatamente, da parte que reclama justiça apenas para si mesma, mas tão-só com a justiça praticada, antes de tudo, por si própria em relação aos demais, sem nada pedir-lhes à injustiça. Só com tal sistema pode resolver-se o problema. Mas o involuído compreende apenas o sistema primeiro e este não basta para resolver o problema. Contudo, é de lógica elementar a compreensão de que a estabilidade só se obtém com o equilíbrio. Ao invés, o involuído prefere acreditar que se possa obtê-lo com o esmagamento e o engano. Absurdo. Mas, se compreendesse, não seria involuído; apenas chega a compreender, muda de sistema e se torna evoluído. No entanto, hoje de involuídos se formam as massas humanas, que não imaginam serem o poder obtido pela violência e a propriedade obtida pelo furto apenas ilusão e traição e, por isso, prejudicam e não ajudam a quem lhes adquiriu a posse; não imaginam que isso, por inviolável lei da natureza, é verdade igual para todos, como é de justiça. O homem comum, crendo-se árbitro de tudo, nem suspeita mover-se em meio a organismo complexo e perfeito, de forças muito mais inteligentes e poderosas que ele; se, sabiamente, soubesse mover-se de acordo com elas, obteria a felicidade; movendo-se, ao invés, loucamente, em choque, obtém apenas perdas e dores.

Subiremos neste volume, pouco a pouco, até às mais altas formas de vida do evoluído. Mas, na base da humanidade, o involuído, em número predominante, se acha presente; a observação do fenômeno social não nos oferece de importante senão o espetáculo da sua psicologia. Nossa humanidade é primitiva, riquíssima de energia e pobre de sabedoria;  extremamente dinâmica e extremamente ignorante. É fato conhecido. O homem é o que é e está bem onde está. As dores que o gravam lhe são proporcionais à  sensibilidade e à ignorância. As provas que encontra e deve superar são as da sua classe, do seu nível evolutivo, adaptadas a suas capacidades. Para sermos práticos e compreensíveis devemos permanecer ainda nessa atmosfera, com o objetivo preciso,  porém, de levar-lhe a luz  que lhe falta. Insistamos, pois, no fenômeno basilar  da propriedade, iluminando-lhe, porém, o conceito. O conceito jurídico e moral não basta. Nesse campo, estamos cheios de ilusões. O lado imponderável, que afinal pesa tanto ao ponto de revelar-se e impressionar o ponderável, nos foge, quase completamente,  também nesse caso. Os princípios  jurídicos fazem crer ao involuído que, para tornar estável e segura a propriedade, bastam as garantias sociais e jurídicas. Eis, contudo, o que de fato acontece muitas vezes. Procura-se adquirir a propriedade através de qualquer meio, aí compreendido, se necessário, o furto. Será descarado e às claras em períodos de desordem; velado, astuto, nos períodos de ordem,  legalizado na  forma, para poder  evitar a relativa sanção jurídico-social. Debaixo das aparências da legalidade trabalhará, imperturbável, o instinto de ladrão, característico do involuído. Embora atingida a posse,  que é o objeto, através de furto mais ou  menos evidente (não é fácil acumular  riqueza, rapidamente, apenas com o trabalho honesto), o primeiro instinto do ladrão é consolidar a posição, procurando segurança na legalidade que o proteja. Ninguém, mais do que ele, tem necessidade, para esse fim, do instituto da  propriedade,  porque ninguém, mais do que ele, está em posição precária e tem urgência de garanti-la e estabilizá-la. Justamente o filho da desordem tem maior necessidade da ordem, necessária para gozar em paz os frutos da desordem. Assim, ninguém mais do que o revolucionário sente a necessidade de, enquadrando-se na legalidade, justificar essa posição, de, transformando-a em autoridade, garantir a atitude de violência. Atingido o objetivo, o involuído procura tirar vantagem das formas de vida mais evoluídas, das conquistas superiores feitas no ordenamento social, não por tipos do próprio plano, mas por mais adiantados. O ladrão e o violento apressam-se, então, a limpar de novo as mãos e assumir a atitude de pessoas de bem, naturalmente merecedoras do respeito de que necessitam para gozá-la em paz. Com que ânsia procuram, então, esconder as origens obscuras e o passado desonesto, cobrindo-se de títulos, benemerências, relações conspícuas, envernizando-se de incorruptibilidade e senhorilidade! É a sua evolução. Serão, daí por diante, os mais encarniçados conservadores, os homens da ordem, porque só agora dela fazem parte. Mas esqueceram quem ficou para trás e, na miséria, espera a oportunidade, enquanto se civilizam e debilitam no bem-estar, de fazer nas suas costas o mesmo jogo por eles feito contra os que chegaram antes deles. O resultado final é um interminável subir e descer de indivíduos em constante regime de engano e de furto, todos em luta entre si; todos igualmente ladrões e violentos, à caça de conquistas efêmeras, ladrões de miragens. Levando-se-lhe em consideração a psicologia e a ignorância das leis da vida, é natural esse modo de agir. Mas, através de tantas fadigas e astúcias, conseguem eles o objetivo a que se propuseram? A propriedade significa tentativa de estabilização de fase desse ciclo, mas a tentativa falha. O instituto da propriedade se reduz, desse modo, por parte da sociedade, ao reconhecimento oficial do furto consumado, à homenagem que a vida presta ao vencedor só porque é vencedor. A Revolução Francesa, camuflada de justiceira, não acabou em nova aristocracia napoleônica? Vale a pena fazer esse jogo de riqueza a turno? É certo que, com essas alternâncias, a vida atinge uma espécie de justiça distributiva, mas também é fato reduzir-se a propriedade, entendida como instituto jurídico protetor e coordenador, a tentativa falha, porque na realidade não atinge seu objetivo, não constituindo sólida garantia. A construção humana falha, pois. Vistas assim as coisas, além da aparência, na substância, podemos concluir que apenas a lei biológica não falha e atinge seu objetivo, a justiça, seja embora apenas a tornada possível pela ignorância humana. O escopo da vida não é o enriquecimento de ninguém, mas a existência garantida para todos, como meio para atingir fins mais elevados. Ela nos deixa a fadiga da luta, como prova para aprender e evoluir.



Depois dessas reflexões nos damos conta de quão falso e incompleto é nosso conceito de propriedade. Na realidade, não é apenas instituto jurídico que as convenções sociais bastem para regular, mas jogo de forças vivas e inteligentes em movimento no campo da vida de acordo com leis próprias. Daí segue que a estabilidade não pode ser qualidade exterior, com a virtude de modificar-lhe a essência íntima e corrigir-lhe os erros congênitos; mas é qualidade interior, posição só resultante de estado de equilíbrio. Daí, ainda, novo modo de entender as formas de aquisição, modo contrário ao em voga. Em outras palavras, a tão procurada estabilidade não é absolutamente dada pelas exteriores garantias jurídicas, mas por íntimo e substancial estado de equilíbrio dos impulsos constitutivos do fenômeno; ou, então: por muito tempo poderá reger-se estavelmente não só a propriedade juridicamente protegida, condição que se torna de importância secundária e fictícia, como, também, a propriedade constituída de forças equilibradas, ou seja, a propriedade adquirida pelo trabalho e não pelo furto. Face a essa realidade biológica mais profunda, desvanece-se a importância da defesa jurídica do Estado, substituída pela defesa das leis da vida, defesa muito mais segura e profunda. O conceito de proteção por meio de individual e livre cumprimento da Lei de Deus substitui o de proteção por meio de convenções humanas. Qualquer pessoa, então, adaptando-se a ela, pode pôr-se em posição de equilíbrio e, pois, de segurança; qualquer pessoa, rebelando-se, pode pôr-se em posição de desequilíbrio e, portanto, de insegurança. Essa a substância, a vida íntima do fenômeno, sua vontade, esse o jogo de forças que o animam e o levam à conclusão. A legalidade é forma, roupagem qualquer, que nada tira ou acrescenta à substância do fenômeno.

O ditado popular “O crime não compensa” já observou que o mal ganho não frutifica, não nos causa gozo, acaba em ruína, traz mais dano que vantagem. Há, pois, além do elemento jurídico, algum outro, decisivo, invisível, mas de força capaz de desconjuntar os resultados a que a estrutura jurídica se esforça por chegar. Pode existir, pois, propriedade que, embora jurídica e formalmente justa, não o seja, de fato, em substância. Então, essa diversa estrutura íntima anula a forma; e a imperfeição da primeira anula a perfeição da segunda. É necessário, para perdurar, que a propriedade seja sã, íntegra, justa e inteiramente honesta, da cabeça aos pés, em todos os momentos, até mesmo nas origens, nas raízes. De outra forma, por mais que se cubra de justiça formal, é edifício construído na areia. Existe imponderável Lei interior, que tão pouco se leva em conta; lei de funcionamento automático; Lei a que, por ser interior, ninguém escapa, sempre presente, inerente às próprias coisas. O tipo involuído, dominante não compreende esse fato elementar, isto é, que o furto, embora nobilitado na forma, não pode, de fato, apoderar-se de nada e, se o faz, não mantém, o que, para ele mesmo, é o mais importante. Ora, se quisermos subir para formas de vida que, a sério, se possam chamar civilização, é necessário que o tipo comum compreenda não ser a propriedade somente fenômeno biológico natural e indestrutível, comum até mesmo para os animais, que bem o conhecem, mas fenômeno determinado também por outros elementos além dos comumente levados em conta; e, entre todos eles, ter a primazia o mais insuspeitado e descurado: o mérito. É da Lei: se existe mérito, a propriedade perdura e rende; se não existe, dura pouco e não rende. A Lei é justa e impõe que cada ato nosso nos renda de acordo com o que de salutar nele introduzimos de bem ou de mal, proporcionalmente, isto é: tanto gozo quanto a porcentagem de honestidade e de nosso valor intrínseco em nosso ato contido; e tanto veneno quanto de mentira e de traição lhe injetamos. Chegou a hora de o homem compreender: é perigoso manipular as forças do mal porque, embora dirigidas contra os outros, recaem sobre quem as maneja; a mentira é perigosa porque gera o erro em quem a diz. A astúcia, a força, consideradas como armas úteis, tornam-se prejudiciais porque automaticamente se voltam contra quem as emprega.

Poder-se-ia contudo objetar: não faltam exemplos de ladrões que conservam e gozam as suas riquezas. Para responder é preciso dar o significado correto da palavra mérito. Sem dúvida o furto é a forma original de aquisição de bens. Em sociedade ainda não civilizada o problema é tirar do mundo externo tudo o que nos serve, seja qual for o meio. Não se fazem, pois, distinções nos métodos de aquisição; é indiferente atingir o objetivo com o furto ou com o trabalho. Estes, em fase caótica de formação então se confundem. Todo meio é bom desde que atinja o objetivo: viver. Em mundo assim não surgiu ainda a ideia do respeito à propriedade alheia, ideia que é produto de longa elaboração social na convivência. Se com o progresso a coexistência dos impulsos leva pouco a pouco a seu coordenamento, o homem todavia aprende a executar o esforço de aquisição e, aplicando nele múltiplas atividades, forma os instintos que a convivência disciplinará em formas mais evoluídas e pacificas transformando-os em atitudes de produção, em qualidades técnicas, em hábito de trabalho. A fase primitiva de formação é, em seu tempo e lugar, necessária, embora em sociedade civilizada revele o involuído. De fato, é através do furto que se formam as capacidades porque estimula a inteligência e a atividade. Se em fase primitiva as leis da vida premiam, o ladrão com a posse, isso mostra que ao nível dos selvagens o sistema pode ser justo e servir a determinada função. Começa-se assim, por este modo, a formar no indivíduo essas qualidades que mais tarde constituirão o mérito, isto é, o trabalho, habilidade, primeiros dos elementos constitutivos do direito de posse e, de fato, adaptados a manter os bens nas mãos do possuidor protegendo-lhes e mantendo-lhes a posse. O processo evolutivo que parte do furto vai em direção ao instinto e à capacidade de fazer, representativos do método de aquisição em plano mais evoluído. A propriedade não deriva de momento único, mas é formação contínua: é economia de caminho. Não basta conquistá-la; é preciso saber mantê-la. Pode acontecer então ter o desonesto, que conquista a propriedade através do furto, adquirido aquelas qualidades de operosidade e de habilidade que lhe formam a base e lhe permitem a conservação em sociedade civilizada. Sendo sadio e equilibrado, isto é, correspondente ao mérito, este segundo momento do processo pode, segundo o seu valor, sanar e equilibrar o primeiro. Assim, produtos da injustiça podem transformar-se gradativamente em produtos de justiça; e desse modo se explica por que se mantêm eles de pé, quer dizer, como alguns ladrões possam gozar em paz riquezas roubadas. Nestes casos, o pecado original da aquisição ilícita vai pouco a pouco sendo absolvido e neutralizado por aquela dose de trabalho e habilidade que o sujeito possui e desenvolve. Essas qualidades ele as conquistou com suas canseiras; constituem-lhe, pois, o mérito, o direito; representam a porcentagem de justiça com que pode compensar a injustiça. Não podemos parar no momento apenas de aquisição da propriedade, pois nas trocas e na administração ela se reconstitui a cada momento. Pode até acontecer o caso oposto: a honestidade, na aquisição, ser depois corrompida por dose tão grande de preguiça e de inaptidão, isto é, de demérito que fique neutralizada em sentido oposto e se chegue à perda de propriedade honestamente adquirida; isso também é justo. Assim, a posição do justo pode passar a ser a do injusto; e a do injusto, a do justo. Como na fase mais baixa o objetivo era roubar para viver, hoje o objetivo é produzir, e a lei do mérito tende a atribuir a propriedade a quem melhor saiba trabalhá-la e fazê-la dar frutos para o bem de todos. Esta higienizarão retificadora pode funcionar mais ou menos, mas a propriedade permanece sempre na dependência da lei do mérito, isto é, em estrita relação com a porcentagem de mérito contida no fenômeno, porque essa porcentagem é que lhe estabelece o grau de justiça e de equilíbrio. Simples caso de relação. Pode-se assim prolongar a vida de posse viciosa até ao caso-limite do resgate que se verifica quando todo o débito originário esteja pago com trabalho e rendimento sociais, como, de outro lado, se pode perder posse justamente conquistada, usando-a, injustamente. Todo caso depende dos elementos constitutivos particulares e por isso se desenvolve diversamente. Mas o princípio segundo o qual se desenvolve é único e imutável: o da justiça e do mérito.

Muda assim o conceito da vida a partir da mais elementar base da sociedade: a propriedade. Se toda aquisição de bens pode conter dada porcentagem de furto, é em proporção a essa porcentagem que a propriedade será corrompida e, portanto, levada à destruição. A propriedade gerada pelo furto nasce enferma de íntimo desequilíbrio e não pode tornar-se sadia e resistente senão gradativamente se livrando dessa moléstia; isto significa ser ela constituída por sistema de forças em equilíbrio estável. É o mérito, pois, filho da honestidade, da operosidade e do valor individual que vale, pois estabelece o grau de equilíbrio do sistema, o grau de pureza do organismo e, portanto, o seu grau de resistência. Se há mérito, a propriedade embora roubada renasce; se não, automaticamente atrai o furto e por natureza tende a fugir das mãos do possuidor. Assim, a força protetora dos bens, que compreendeu tal mecanismo não busca proteção, na tutela jurídica e nas astúcias administrativas, mas no intrínseco direito representado pelo mérito. Esta é a semente criadora da verdadeira riqueza, a única que a mantém. Só nessa força há segurança, a que em vão pedimos às defesas legais. Eis tudo quanto encontramos nas raízes da vida social. Todo o nosso mundo é falso, baseia-se na ilusão; naturalmente por isso colhe o que vimos. Mas isso é tudo quanto de fato merece. O involuído infelizmente domina; a ilusão constitui sua natural herança. Um dia se compreenderá que vale o que somos, queremos e sabemos fazer e, portanto, merecemos, e não o que possuímos. O objetivo hoje é possuir e o homem é o meio; no entanto, o possuir e meio e o homem, fim. Pode-se perder o que se possui; mas a que somos, isso vale e dá mérito. Quem merece e sabe, tem em si o germe que o fará recuperar, multiplicado por cem, tudo quanto perdeu. Quem, não merece é usurpador em posição de equilíbrio instável, continuamente ameaçado pela tendência da lei à justiça, isto é, ao equilíbrio pelo qual as forças biológicas continuamente o assediam, não se acalmando enquanto não lhe houverem retomado o que foi mal ganho. O efeito é dado pela causa; toda forma de vida tem as características derivadas das de seu germe. Assim, todo fenômeno se plasma e se desenvolve diversamente segundo a natureza das suas forças determinantes. Só quando o homem começar a compreender esses princípios tão elementares poderá começar a chamar-se civilizado. Neste capítulo desenvolvemos, do ponto de vista prático e concreto, começando pelo fundamento da vida em sociedade, os conceitos de A Grande Síntese sobre a propriedade (cap. 93: "A Distribuição da Riqueza").