Fragmentos de Pensamento e de Paixão

No equilíbrio da vida existem dois aspectos que, por serem complementares, se integram reciprocamente; originam-se de dois extremos, os quais delimitam o âmbito dentro do qual oscila o movimento da vida: espírito e matéria. Eles apresentam-se como poder espiritual e poder temporal, como Igreja e Estado Observamos, em todos os agrupamentos humanos, a existência da casa de Deus e a casa do chefe, a catedral e o paço municipal.

Numa civilização. equilibrada, a dissonância da luta entre os dois princípios deve ser evitada, alcançando-se a harmonia O Estado é o princípio viril, volitivo, que afirma; possui a função concreta da ação, da organização e da guerra. A Igreja é o princípio materno, afetivo, de conservação, de sacrifício; possui a função intuitiva da fé, do esforço espiritual, da luta e de conquistas interiores. Assim como a Igreja, numa civilização completa, não pode viver na terra sem o consentimento do Estado, este não deve viver sem a direção espiritual de uma Igreja.

A religião que rege a civilização européia, há dois milênios, é o Cristianismo. E, como a civilização européia pode ser considerada a alma do mundo, seria absurdo não reconhecer a força daquela instituição.

Entretanto, o Cristianismo se dividiu, por sua vez em dois aspectos, embora complementares. Aparentemente, é uma divisão de almas; substancialmente, apenas uma divisão de trabalho, uma especialização por atitudes diversas, uma separação tendente a reconstruir a unidade.

A Igreja latina, talvez mesmo pela função pedagógica que lhe foi distribuída, assumiu prevalentemente a forma de organismo concreto de homens e normas, teologicamente racionalizante e mundanamente legisladora. O anglo-germânico, ao contrário, aprofundou, preponderantemente, o lado interior, pessoal, intuitivo.

É inútil discutir a realidade. Os povos possuem hábitos diversos e, de acordo com estes, preenchem as suas funções, escolhendo cada um as mais adaptadas ao próprio temperamento. A Europa subdividiu, assim, a sua tarefa religiosa, lançando-a desta forma ao mundo. Os latinos aprenderam da verdade o aspecto transcendente, o conceito, a racionalidade, a objetividade, colocando-se deste modo em condições de continuar e desenvolver o pensamento dos grandes filósofos gregos, assimilando os produtos do pensamento individual e coletivo. Os anglo-saxões extraíram da verdade o aspecto imanente, o senso íntimo da Divindade, a intuição, o subjetivismo. É evidentemente unilateral o insulamento na atitude exclusiva da transcendência ou da imanência. As leis da vida nos mostram contínuos exemplos desta complementariedade. Atravessam fases de contrastes para alcançar a unidade, uma unidade múltipla, complexa, mas completa. Estes dois princípios são de fato necessários: tanto o absoluto, do conceito, como o infinito, da inspiração. É necessário que se compensem; isoladamente chegarão ao extremo do materialismo religioso ou ao outro extremo anarquizante do livre-exame. Dois perigos igualmente graves.
   
Ameaças sutis que certamente não atingem a grande massa que não gosta de pensar, que cede a própria responsabilidade e tudo executa mecanicamente, com o menor esforço. Problemas graves para os espíritos profundos e que pensam. Se o imanentismo encerra o perigo da dispersão, o transcendentalismo conserva o perigo da cristalização. A racionalização da verdade pode matar a vitalidade espiritual interior. A definição de normas concretas se arrisca a expulsar a atividade religiosa e a perder o senso íntimo e profundo da Divindade. Acarreta a diminuição do esforço moral, que é o itinerário único do espírito que deseja chegar a Deus.

Este é o grave perigo que pesa sobre o Cristianismo latino: ausência de espiritualidade, como conseqüência da solidez da organização humana. A necessidade de se impor aos homens, pela coação da lógica, de normas e de sanções, partindo do exterior, foi certamente unia dura necessidade histórica. Não se culpa a ninguém, se a vida ainda rudimentar do homem exige semelhantes processos. Com certeza hoje se lamenta muito o indiferentismo que é, na realidade, a ausência do fator espiritual.

A experiência interior de muitos e a minha própria experiência mística ensinam que não se pode — perdoem-me a frase — encontrar Deus somente porque o procuramos; o trabalho e a responsabilidade da pesquisa da verdade, estão no tormento próprio, na maturação própria, na luz que se deve buscar com a alma inteira e não se realizam senão através da luta e da dor, que nos elevam além do plano das ilusões dos sentidos. Materializamos, antropomorficamente, a Divindade, quando procuramos alcançá-la pelas vias da razão e fora de nós mesmos, no plano sensório, ao invés de buscá-la pelas vias da intuição, dentro de nós, no plano intuitivo. Caminho por certo mais cômodo é aquele, porque foge ao burilamento da alma; mas somente este pode guiar o espírito para Deus.

Vemos, com freqüência que se dá maior importância à discussão do que à fé, aos conceitos que devem habitar a nossa mente do que aos ímpetos que devem explodir em nosso coração. Preferimos a via mais cômoda, mais esplêndida e mais vã — a da erudição — à via mais áspera, silenciosa, porém mais produtiva — a do sacrifício. Desta maneira obtemos uma luz esplendente e fria; ora, sem calor, não se constróem almas. O momento atual tem mais necessidade de homens de paixão, que saibam sofrer, do que de intelectuais que saibam pensar, porque nos falta, não o esforço cerebral, mas o esforço moral. Acima do pensamento esta o espirito, acima da razão está fé. Se no último século a onda materialista, que a igreja também experimentou, conduziu-nos a uma racionalização da religião, a onda atual incipiente, levar-nos-á à  espiritualização. É preciso saber viver ambos os momentos, que são complementares. A simples racionalização disseca todos os sentimentos e promove a discussão, que é sestro de antagonismo e de afirmação não ideal de amor e de abnegação. Por este motivo, alguns espíritos verdadeiramente angélicos, esquivaram-se a priori da via do saber, mesmo teológico.

O     espirito completa assim o seu contínuo trabalho, variando as suas atitudes. “Et multum laboravi quaerens Te extra me, et tu habitas in me9” (Santo Agostinho). Não é este talvez o aspecto mais sublime e mais intenso que teve o Cristianismo nas suas origens? E por que não desejar que o Cristianismo latino se ajude da cisão anglo-saxônica, nascida precisamente de um excesso de transcendentalismo, completando-se com o retorno ao imanentismo inicial? Reentrar em si para Deus; intuição, "intus itio10". "Est Deus superior summo, interior intimo meo11". (Santo Agostinho).

Isto não é acusação, mas voto de nova ascensão — da letra que mata ao espírito que vivifica — para que o Cristianismo possa cumprir plenamente a sua divina missão. Existe uma multidão de almas honestas, ardentes e sinceras, as quais sentem o peso e a ameaça do polvo materialista, que simula uma aparente filosofia, através da ciência destruidora de princípios e dos tentáculos do ateísmo. Tais almas estão prontas a sofrer, numa unidade de fé, para que o espírito ressurja, uma vez que ele, em todos os sentidos, é a única força que rege e que pode salvar a nossa civilização.

Trata-se de salvar e de criar a verdadeira civilização. Há necessidade de homens novos, decididos e convictos, que operem com métodos espirituais, pois é necessário viver na substância do Cristianismo. Isto não se pode realizar acusando os outros, mas ofertando-nos. Portanto, menos trabalho para adaptar o Evangelho às nossas comodidades cotidianas, refugiando-nos atrás das justificações artificiosas e das argumentações de intelectualidade raciocinante, brilhantes e eruditas escapatórias a lei simples e sublime. Oferta real de renúncia e dedicação, por amor ao próximo; tensão interior, luta sem trégua, de conceito e de obra, para a preparação na Terra do Reino dos Céus. Isto está longe do método retórico e das exterioridades, que não penetram nas almas. Não se trata de discursar ou de aparentar. Levemos diariamente estampado em nossa alma o ideal cristão, sem transigências. Releva personificar e testemunhar o sacrifício, como cristão, ainda na presença das incompreensões e das condenações. Cumpre saber trabalhar sem ajuda, sem reconhecimento e sem apoio. Urge sofrer pelo bem e servir, mesmo a quem nos condene. Substitua-se a palavra e a forma pela própria alma e a própria dor. Oferte-se, diante do espetáculo vazio da piedade exterior, a sinceridade e a piedade da alma. À religiosidade rumorosa é preciso contrapor o sacrifício, o Evangelho vivido, que edifica e penetra, sem rumor, sublimando cada ato da vida. Vamos começar por nós mesmos, a fim de barrar realmente as injunções humanas, cômodas, burguesas e utilitárias.

Estamos excessivamente habituados às convenções de um Evangelho transigente, a uma forma de fé segundo a qual nos iludimos de poder alcançar o céu sem demasiado sacrifício. A religião deve consistir numa realização completa, incidindo nos costumes, e não numa série de praticas exteriores que em nada modificam os atos e a vida. Não acuso, choro; porque é triste, porque se vai contra Cristo, quando se faz da cruz uma espada para agredir o próximo e da virtude um pretexto de economia de amor fraterno. Dirijo-me, sobretudo, aos homens de boa vontade e com a finalidade do bem. O inimigo é aguerrido e trabalha com armas de ferro. Não se pode responder com armas de papelão. A Idade Média era feroz na terra, mas julgava conhecer o céu, buscando-o em lances frenéticos de paixão. Hoje nós dormimos; somos utilitários, porque o materialismo nos penetrou Não nos restou senão um céu pintado com esplendores dourados e vôos retóricos de anjos. Enfim, é preciso superar esta fé sorridente, cômoda, dourada do século XVIII. Precisamos do desprendimento, se queremos sobreviver amanhã. A hora é dura e intensa. Sigamos o exemplo de Cristo, no caminho da cruz.

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9 "Muito me esforcei procurando-Te fora de mim e, no entanto, é dentro de mim que Tu vives". (N. do T.)

10 "Intuição, "intus itio". Do latim "intuitio" (Caldas Aulete). De “intus” (adv.): interiormente, no interior. (Saraiva Dicionário); e "itio" (itio, onis, de "ire"): ação de ir, passos (Idem; ibidem). Assim, pois, intuição: ação de ir para o interior, para dentro de si mesmo. (N. do T.)

11 "Exteriormente, Deus está nas Supremas Alturas, mas interiormente está também no meu coração". (N. do T.)

Ao iniciar esta série de artigos, eu me propus abordar pontos mais vitais do problema social de hoje. Portanto, não se estranhe que me ocupe também da agricultura, pelo menos em linhas gerais, uma vez que ela coopera na intensificação do nosso amor à  terra.

Para quem chegou, por caminhos próprios, aquela unidade de concepção sintética, que falta à ciência moderna, é fácil a passagem do problema médico-sanitário, de que falei em artigos precedentes, ao problema agrário, uma vez que ambos se apoiam na mesma base biológica e derivam da mesma raiz, que penetra nas camadas profundas da vida

O problema técnico agrário é, antes de tudo, um problema de orientação geral, sem o que a experimentação não possui principio e nem guia. Também neste campo surpreendemos o materialismo, que chamarei de doença psicológica do século, nas suas últimas conseqüências, e prosseguimos na mesma campanha em prol da obra de ressurreição, desejada sempre no campo especifico de cada problema particular. Por este motivo, cada um destes artigos soa como um toque de alarme que desejaria ver compreendido e escutado. Sabemos que a orientação materialista do último século, cujas últimas conseqüências práticas em todos os campos ainda vivemos, pode constituir, conforme se observa, um perigo para a saúde humana e representar também um atentado para a fecundidade da terra.

Quando a concepção unilateral do materialismo chegou ao campo das realizações (a passagem é fatal e rápida) e com o seu simplicismo mecânico experimental, ignorante dos aspectos mais profundos dos problemas, invadiu o campo biológico, não podia, na sua pretensão de impor-se às leis da vida, senão provocar uma reação, porque elas são invioláveis

Se nas construções é necessário conhecermos a resistência dos materiais a fim de não os submetermos a um esforço superior às suas resistências especificas, da mesma forma, no terreno biológico, o material vivo, se possui um campo de elasticidade, de resistência, que permite momentaneamente suportar um determinado trabalho, tem também um valor-limite, além do qual a elasticidade biológica não chega. Ultrapassados aqueles limites naturais, o ser, seja homem, animal, ou vegetal, adoece. A terra, que é também viva, torna-se estéril e depauperada, como um verdadeiro doente.

Este é o resultado do choque de uma diretiva errada com as leis da vida. Trata-se de uma psicologia de violências, que pretende impor-se e forçar os princípios do funcionamento orgânico do nosso mundo. Se estes sistemas forem mantidos por longo tempo, perguntamos à  ciência, quais serão os resultados em todos os terrenos onde o homem encontra a vida? Os problemas da saúde, como da fertilidade, são problemas lentos, vastos, hereditários, que abraçam várias gerações.

Entremos particularmente no âmbito agrário. Neste campo, aquelas premissas psicológicas instauraram um regime de prepotência por parte do homem e de esforço por parte do subjugado mundo orgânico. Este regime deu lugar, a princípio, a uma superprodução; não deixa agora, como resíduo do seu supertrabalho, senão uma subprodução, filha do depauperamento. Expliquemo-nos.

A orientação científica da agricultura incorreu em três erros que são três perigos; o erro econômico, o erro mecânico e o erro químico.

A industrialização agrária trabalha fazendo prevalecer os critérios econômicos. O proprietário rural já é um contador que calcula a sua renda e deve fazê-lo, instigado por várias causas estranhas a agricultura, tais como o risco na colocação da produção, a concorrência dos mercados mundiais, as oscilações de cambio, a dependência para com os países estrangeiros, a fim de obter matérias primas necessárias a indústria de adubos etc. Estas pressões vêm violar o equilíbrio dos fenômenos naturais. Esquece-se de que, nestes negócios, o processo econômico não se pode isolar, porque se intromete no processo vital, que é fundamental. Se o ignorarmos, se o violentarmos, destruiremos também o resultado econômico. O material é vivo, impondo por este motivo exigências que a industrialização agrária tende a ignorar e a descuidar, arcando com as conseqüências. Trata-se de fenômenos vitais trabalha-se com organismos e todo o solo é um organismo que possui vida. Nesta existe qualquer coisa de imponderável que foge a toda orientação materialista, qualquer coisa que é de origem espiritual. Um trabalho agrícola depende de fenômenos biológicos que vão da unidade coletiva de microorganismos, que é o húmus, até às plantas que vegetam, aos animais que se nutrem, ao homem que vive da terra. Hoje, busca-se transformar em problema aritmético terrenos, plantas, animais e homens. Hoje, desejamos considerar a terra como uma equação química de elementos nutritivos, isto é, terreno subnutrido mais adubos é igual a terreno mais produtivo. Concepção simplista, unilateralidade de visão econômica, negligência de muitos fatores para que a equação corresponda à realidade. Da mesma forma para a pecuária. Uma vaca não é mecanismo para transformação de forragem em leite e carne. Com esse critério, os organismos animais são forçados à produção intensiva, sob a pressão de um regime alimentar intensivo. A natureza suporta pouco o trabalho excessivo. Sobrecarregada, qual máquina, desorganiza-se, assim como “inexplicavelmente” se enfraquece e se torna estéril o animal. A terra perde a sua capacidade produtiva; os animais nascem mal e doentes, organicamente tarados: partos difíceis, tuberculose, aborto epizoótico8, esterilidade. O critério econômico nos fez esquecer o supremo equilíbrio da natureza, as leis profundas que fixam os limites de cada existência. A exploração indevida de uma função somente se pode obter com o preço da depressão de outra função. O animal não é máquina de produção e de renda. Por mais agnóstico que se queira ser, não se podem violar as imprescritíveis finalidades da vida.

Se o erro econômico grava todo o negócio agrário, o erro mecânico e o erro químico gravam, sobretudo, a terra. A máquina, usada para a superprodução e para a obtenção de um custo menor, proporcionou, como veremos, uma vantagem momentânea pela adubação química. Nada se rouba da natureza; somente se antecipa o usufruto mais rápido das reservas naturais. Os resultados na industrialização e da mecanização da agricultura redundaram em ilusão de lucros, altos a princípio, depois estáticos e finalmente decrescentes, a ponto de impor o uso progressivamente maior de adubos químicos e um trabalho sempre mais intenso. Delineia-se, assim, uma nova fase negativa da lei dos lucros: um esforço e uma despesa cada vez maiores, para vencer a tendência da terra a produzir cada vez menos. Aumentam as doenças das plantas, diminuindo, como nos animais superprotegidos, as resistências orgânicas. Repete-se aqui a mesma conseqüência da excessiva proteção bacteriológica usada pelo homem.

Encontramo-nos diante dos últimos resultados das premissas materialistas, unilaterais, e ignorantes dos equilíbrios sábios da vida. O método da agricultura científica, técnica e mecânica, depois de ter oferecido um resultado imediato e efêmero, alcançou um limite além do qual o rendimento se detém e a natureza, mais providencial do que o homem nega-se a trabalhos forçados. Este fenômeno se revelou, com evidência, na adubação química destruidora de bactérias necessárias à vitalidade do terreno. Não propomos que ela deva ser abolida, mas usada com o necessário bom senso para que se evitem graves danos. Cedo a palavra às vozes autorizadas. Que não me acusem também de visão unilateral. Ehrenfried Pfeiffer escreve no seu livro A Fertilidade da Terra: "É notável o efeito imediato da adubação química sobre o crescimento das plantas, aumento de produtos, arbustos túrgidos, particularmente se se empregam adubos artificiais azotados. Tais resultados tornam os adubos químicos preferidos pelos agricultores. Abarrotando os mercados consumidores, a ciência afirma que, com tal prática, se balanceiam os elementos deficientes. Entretanto, duas conclusões vão se impondo com freqüência entre os práticos que vivem e trabalham em contato com a terra: para manter a produção no mesmo nível, é necessário aumentar, de ano para ano a quantidade de adubos químicos; a estrutura do terreno se transforma no sentido já mencionado do endurecimento e da incrustação. Por que motivo as nossas escolas de agricultura e as nossas estações experimentais se calam diante deste fenômeno observado pela maior parte dos práticos? Fala-se tanto do incremento da produção e mui pouco da alteração do terreno. Não possuirão as estações experimentais, para as pesquisas comparativas, áreas de terras em condições que permitam o estudo de trais transformações?"

Para quem só admite uma verdade quando sabe que ela é sustentada por nomes autorizados, citarei Tallarico, Suessenguth, Niklewsky, Ienny Hans, Fippin, Elmer O., Dreidax, Berlese, Bartsch etc. Esboça-se uma visão mais exata do uso dos meios químicos no campo da agricultura.

Os seus perigos são mais três: 1.º — um aumento não proporcional de renda em relação ao custo do adubo. 2.º — Esterilização do terreno. 3.º —  perigo para a saúde dos animais e dos homens que se nutrem daqueles produtos.

Eis o que diz Chimelli a este respeito: "As regiões de nova conquista compreendem geralmente os terrenos ricos de húmus acumulados há séculos pela vegetação espontânea. Se o húmus não foi reintegrado com suficientes adubos orgânicos e com processos de formação natural, ele será destruído em período mais ou menos longo, e então sucedem, inevitavelmente, os fenômenos observados por todos os agricultores que tenham trabalhado com adubos químicos, isto é, a mudança da estrutura normal para o excessivo endurecimento do terreno, a formação de crostas na superfície, o aparecimento de manchas estéreis nos campos, a deficiência de capilaridade, e.. por conseqüência, a diminuição de disponibilidade hídrica e a regressão da fertilidade etc."

"Com os nossos métodos de cultivo intensivo" acrescenta Pfeiffer, "particularmente com o uso abundante de exclusiva adubação química, criamos condições tais que as propriedades físico-químicas do terreno predominam e as atividades orgânico-biológicas caem em depressão. A mineralização da terra, além de ocasionar o desaparecimento das minhocas, acarreta a formação de uma crosta na superfície, durante o período de seca. Este fenômeno deveria ser considerado pelo agricultor como sinal de "tempestade", denunciada pelo barômetro do seu terreno. Uma vez arruinada, a reconstrução da saúde de um terreno é um trabalho lento e laborioso".

Referindo-se à saúde dos animais e dos homens, assim se exprime o célebre fisiologista Abderhalden: "Com muita freqüência e em lugares diversos, determinadas doenças dos animais e dos homens foram atribuídas ao método de adubação das plantas alimentícias. Não se pode ainda afirmar com segurança mas é admissível que importantes substâncias sejam elaboradas pelas bactérias do terreno; devemos refletir bastante se é certo destruir a vida e a atividade sutil dos microorganismos, introduzindo azoto sob a forma de nitrato de potássio, cálcio, ácido fosfórico que perturbam e impedem o desenvolvimento dos organismos vivos e provocam dificuldades futuras".

Assim diz, enfim, o Dr. V. Ratto, no Saneamento Médico: "Os casos sempre mais freqüentes de trombose, câncer, arteriosclerose e diabetes, fazem suspeitar (aos médicos dotados de respeito á biologia em geral — vegetal, animal e humana) que a causa desta série, não totalmente nova, mas de peso crescente de doenças humanas, esteja ligada aos métodos de cultivo adotados, isto é, depende da íntima qualidade minimamente e imperceptivelmente venenosa dos alimentos dos animais e do homem e dos remédios usados contra os parasitos".

Problemas delicados, problemas novos. É necessário, para compreender a agricultura, um senso religioso da natureza, da qual ela faz parte; senti-la na sua realidade palpitante em relação a todo o cosmo. Como coisa viva que é, torna-se absurdo reduzi-la nas abstrações de gabinete, no artifício da experimentação absurda, divorciando-a da harmonia universal. A planta possui vida, sensibilidade, vontade individual, instintos que não se podem contrariar. A terra é uma unidade vital coletiva com as mesmas qualidades, e como tudo, age, reage, escolhe, defende-se e possui uma consciência íntima das coisas que lhe pertencem, podendo recusar ofertas. Não se lhe aplique um sistema mecânico de química orgânica. Quando fornecemos o adubo artificial, a planta o prova e percebe que ele pertence a um ciclo de vida diverso do seu; sente a distância que o separa de si e a falta de afinidade; recusa-o porque se acha impossibilitada de admitir, sem prejuízo, no círculo do seu recâmbio aquilo que, por atávica experiência, lhe é estranho. Somente o adubo natural, por ser vivo, bacteriológica e quimicamente afins, por estar no mesmo plano orgânico, pode ajudar e ser assimilado. Em outros termos, poucos são os pontos de contato entre o mundo orgânico e o inorgânico para que o primeiro possa sempre abrir as portas ao segundo a fim de aceitá-lo no seu metabolismo. A terra, desta maneira, assimila e digere bem somente os produtos orgânicos; e se nós não a nutrimos com um alimento sadio e apropriado, ela adoecerá e com ela tudo quanto nasce dela ou dela dependa.

Chega às minhas mãos, quando estou para terminar, um opúsculo de Gnecco, de Gênova: Exposição de um sistema racional, prático e econômico Para aumentar a fertilidade do solo, onde se comentam os resultados já experimentalmente obtidos com o sistema da Vegetina, com uma orientação muito semelhante à nossa.

Problemas delicados, problemas novos. O estudo profundo destas questões devia levar-nos ao campo técnico, limitado, sem que deixemos de parte a visão global da vida. A visão sintética e unilateral não podia deixar de nos guiar a este renovamento de vistas e de conceitos diretivos, que não permitem mais a insistência numa técnica agrária exclusivamente química, mas impõe-se; acrescentem aquela técnica processos biológicos e dinâmicos, próprios da terra. É necessário, também, neste campo, superar a matéria e recordar que a agricultura se apoia no fenômeno vida. Contém em si algo de espiritual, justamente como parte responsável e diretora. A agricultura implica, também, o senso de amor e da intuição clínica que se exige do médico. Torna indispensável aquele espírito de colaboração, que é fundamental na natureza, perfeita em sua maravilhosa harmonia. Que pareça estranho, mas o fator espiritual é tão vasto e íntimo em todas as coisas que não se pode menosprezar sem prejuízo, nem mesmo no que se refere ao problema da produção, tido e havido como fenômeno exclusivamente econômico, industrial e mecânico. Em que pese aos utilitaristas, outra orientação deve agir qual novo impulso até nos pormenores dos problemas técnicos. Este princípio concebe a sociedade humana como totalidade orgânica e não pode deixar de encarar a natureza senão como totalidade harmônica. Alcançamos, deste modo, interpretação social mais exata da solidariedade de todas as formas da vida.

Amemos a terra conjuntamente com a nossa Pátria e a nossa família; amemos a terra viva como nós, como nós criaturas que adoecem e se cansam. Saibamos conservar-lhe a saúde física para as futuras gerações. Ela é mãe de todas as coisas, sobre ela se reveza o ciclo da vida e da morte. No seu ventre prolífico, no seu húmus, que é campo da morte, renasce a vida vegetal, animal e renasce, também, a nossa vida. Esta terra não é somente um composto químico, mas um organismo vivo, rejuvenescido pelas irradiações cósmicas que a atingem, pelos microorganismos que a purificam, pelos vermes que a fecundam, por todo o trabalho vegetal e animal que lhe povoa as entranhas e a superfície. A terra é útero que recebe, protege, fecunda e restitui. Depositária da vida, conservadora dos germes, princípio feminil de defesa, de espera e de reprodução, eletricamente negativa, armazenadora de vibrações cósmicas, expande-se ao ritmo das irradiações solares, passiva somente para melhor agir no silencioso trabalho interior, a terra contém toda a potência reconstrutiva do amor que perenemente regenera, preenchendo os vazios da morte. Sobre o dorso desta criatura irmã, que não é máquina, soerguem-se todos os fenômenos sociais. Retribuirá o nosso amor dando-nos o fruto do seu seio. Se a maltratarmos, violentando-a, ela se fechará em si mesma, tristemente, negar-nos-á os seus favores, porque sem amor não há criação.
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8 Epizootia:. Doença, contagiosa ou não, que ataca numerosos animais ao mesmo tempo e no mesmo lugar.

Uma boa e despretensiosa conversa. Um retrospecto repousante, numa rara tarde tranqüila, sobre coisas observadas por experiência direta, e sobre conceitos emanantes desta nossa vida de missionários do ensino, conceitos que ressurgem aqui, por um momento, naquele aspecto particular em que se apresentam e como eu os sinto. Conversa rápida, feita laconicamente e com franqueza, toda pessoal, como é do meu feitio, em todas as sensações e interpretações da vida. Isto é devido ao meu instinto irrequieto que deseja caminhar a todo custo fora dos caminhos batidos, numa procura anelante de uma realidade mais profunda do que aparente e, todavia, sempre concreta e imanente de fatos vividos.

Não é verdade que não é tanto em si mesmas que as coisas interessam, quanto pelas vibrações que despertam em nós? Não tanto pelas suas pulsações intrínsecas, quanto pelas sensações que fazem brotar em nossas almas? As coisas do mundo, inertes e iguais para todos, estão em seu lugar. Parece que somente o nosso olhar as anima e seja belo apenas vê-las, não na sua nua realidade objetiva, mas refletidas no tormento de nossa alma viva. Neste espelho parece que se revestem de uma beleza nova. A interpretação de quem as sentiu profundamente nos guia em face das coisas mais simples e comuns, a uma nova interpretação, inesperada, possuída da magia de dar de si uma nota que reconhecemos, mas que, todavia, não sabíamos achar.

Quantas vezes nas breves pausas — e quem ensina sabe muito bem como são breves — transigindo com a áspera tensão nervosa de quem se senta à cátedra, ao perpassar os olhas na pequena multidão de cabeças irrequietas, parei para pensar, o olhar perdido ao longe, em tantos problemas com que nos defrontamos e agitamos na escola! Eles parecem pequenos, reduzidos como estão nas fórmulas de um regulamento ou de um conceito esquemático preposto a uma atividade, às vezes quase mecânica. Entretanto, são os grandes e tremendos problemas da vida e da personalidade, imensos na sua substância exorbitantes do saber humano, insolúveis pela ciência moderna. Naquelas pequenas cabeças travessas pulsam as milenárias leis biológicas, exatas, fatais, absolutas na sua tão vasta elasticidade, entrelaçando-se os mais árduos problemas de psicologia. A alma das crianças, livre ainda, pela graça de Deus, da consciência reflexa que a educação proporciona, esconde sob o belo manto da mentira, a sua inocência, os seus movimentos e ímpetos, todas as flexões de seus raros repousos, a efervescência de sua primeira explosão. Revelam-se-nos, com a rapidez da intuição, aqueles problemas psicológicos, todos tão evidentes e tangíveis para os olhos que sabem ver profundamente até alcançá-los!

Como é feita, então, esta alma humana a ser educada? Por qual caminho o pensamento a penetra? Quais as reações que despertam, como funciona aquele complexo organismo psíquico? Surge diante de mim, mesmo nas simples e pequenas coisas da escola, além de todas as tarefas e dos trabalhos pedagógicos, este formidável problema da personalidade humana, o problema da sociedade porvindoura, na nova e mais elevada ciência do futuro.

Psicologia individual e psicologia coletiva, afeto e disciplina, diferenças de temperamento e de adaptação, ensino em massa e contato individual, misoneísmo escolástico, sobrevivência de critérios superados que, todavia, não podem morrer no meio de tantos duelos e tantas formas! Como tudo agita este conjunto de forças e de correntes que parecem quase irreais, porque não são perceptíveis e que, porém, tudo regem e ressurgem em qualquer parte, em cada momento, com a potência animadora que somente as causas invisíveis parecem poder ter.

Não desejo dizer nada de preciso, não quero conclusões. Desejo nesta conversa agitar, somente um pouco, estes conceitos, na expectativa de que do seu movimento nasça um choque, uma reação, qualquer idéia talvez útil e nova, que selecione outras idéias.

A psicologia coletiva da classe é sempre muito inferior, como acontece em todos os fenômenos dessa espécie, à psicologia individual. Cai nela, de súbito, o nível de educação de cada um: um jovem na massa ousa aquilo que jamais faria sozinho, isolado diante de sua consciência. Esta se abandona na coletividade a uma inconsciência ou consciência mais elementar e mais baixa. É isto o que o professor tem diante de si na sua cátedra, impondo-se-lhe sistemas de domador. Vencida e domada, porém, esta menos evoluída alma coletiva, com os meios menos refinados que ela exige, o professor poderá, depois, fazer ressaltar, pouco a pouco, as superiores personalidades individuais. Aqui se inicia o trabalho de distinção e sobressaem de súbito os diferentes tipos, antes confundidos no conjunto: o tímido, o sensível, o franco, o inteligente, o obtuso, o improvisador, o mentiroso. Quantos matizes! Encontramos aí a sociedade inteira, porque nestes pequenos existe a alma humana que se arroja na vida com todas as suas ilusões, fraquezas e belezas. O espetáculo merece ser visto. Quantas diferenças de estilo e de atitudes apresentam os jovens, quando interrogados um a um! Começa, então, nesta segunda e mais íntima fase do contato psíquico, um trabalho de penetração mais profundo, que conduz o olhar do professor à alma de cada jovem. Da soma e fusão destes olhares individuais surgirá depois um olhar mais profundo de conjunto, que abrangerá toda a classe. Então, e somente então, o professor conhece e possui na realidade, em suas mãos, toda a classe. Somente agora nasce aquela comunhão de espírito a que se pode, verdadeiramente, chamar de obra educativa. Esta posse da alma individual do aluno pode ter uma influência sobre a sua vida; inicia-se aquele trabalho de compreensão que deixa vestígios mais profundos do que a pura erudição. Aquela obra de ascensão da fase de luta que implica o duelo do ponto, faz o jovem mentir, afasta-o do professor que lhe parece um inimigo. Segue-se a fase mais alta na qual a fadiga inútil, o atrito do choque recíproco e contínuo desaparecem e o aluno se torna um filho que trabalha de acordo e com a mesma fé do pai.

Agora o nosso olhar se desvia dos escolares para aquela figura que se move na cátedra, sobre a qual vemos as grandes imagens e os símbolos mais venerandos. O que é que se move naquela figura: alma, corpo, paixão? Se todos os trabalhos humanos pudessem ser reduzidos ao conceito de puro utilitarismo, é certo que o trabalho de ensinar e de educar é o mais inadaptado a esta redução. Se a redução, qualquer que seja, puder ser transformada, por um espírito nobre, em missão, sabendo ver e exaltar o lado moral, nenhuma obra excede em grandeza a esta do educador. Obra superior a toda classificação humana e reconhecimento exterior. Fixa o peso específico da pessoa moral e coloca-a no seu plano, em sua altura, na qual se equilibra, permanece, vive e vence espontaneamente.

Eis o verdadeiro espírito da escola, o conceito vivificador que, no meio das áridas noções, faz nascer um ímpeto de conhecimento e de superamento. Eis a vibração profunda que tudo mantém e vitaliza, sem a qual tudo se torna morto, árido, frio, mecânico, insuportável e inútil. Então a aula, antes fria, se aquece. Aquela atmosfera feita de muralhas, de cátedra, de bancos, tão árida e pesada para os jovens, floresce de um não sei que milagre de emoções, que são talvez as únicas de todo o trabalho de escola que recordamos com alegria e que restam. Infeliz de quem fizer da cátedra um instrumento mecânico sem alma, mesmo sendo perfeita a execução dos regulamentos e das formas burocráticas. Máquina que funciona somente objetivando manter em pé uma posição e um estipêndio! O ideal, se bem que invisível, imponderável, é uma força tão substancial na vida que, sem ele, como acontece a todo como sem alma, tudo se acabrunha e morre. O principio hedonista do "do ut des", base do mundo econômico, não pode, em alguns casos, sobretudo neste, bastar. Em torno a esta base da vida social, qual é a escola, não é suficiente mover-se com a psicologia, mesmo honesta, de trabalho, mas é necessário uma paixão pelo bem. De outra maneira traímos e matamos a alma humana.

Esta paixão de superamentos espirituais pode ter uma outra manifestação irradiante, além do âmbito educativo da escola, num campo ainda mais vasto: aquele no qual o professor se julgue parte integrante e construtiva das forças culturais e espirituais da Nação. Não é esta missão ainda mais alta? A quem será portanto confiado o trabalho das criações do pensamento e das funções intelectuais de um povo, senão a esta elite que justamente se aparta do furor da luta econômica, do comercio e  dos negócios? Que coisa mais bela do que a figura de um professor modesto que, terminado o trabalho de educador de jovens, retempera o seu espírito em missão mais grave de educador de homens? Repousa nesta atmosfera de conceitos e passa as noites insones, pela alegria de se sentir, seja apenas uma gota viva no oceano vivo e construtivo do pensamento da Nação em marcha. Não é talvez a mais nobre alegria humana e a mais evoluída das fases da vida terrestre, esta, na qual o mais alto centro das sensações emotivas e vitais é transportado do nível vegetativo e passional para o pensamento e as criações conceituais?

Desta maneira, a nossa conversa nos leva longe, a outro problema, o de saber, de aprender, para depois criar no pensamento. Qual é a técnica misteriosa disto? Aqui já a turba escolar desapareceu; o problema é mais íntimo e mais elevado, e a mente adulta o observa em si mesmo para depois tirar deduções que iluminem também a comunicação do saber, que é o problema escolástico.

No estudar e no aprender nós nos apegamos às formas mais empíricas. Acreditamos que esta arte consista no ler, repetir e reter, aplicando este sistema de ensino aos jovens. Mas, se consideramos a essência dos fenômenos psíquicos, de que complexo entrelaçamento de vibrações são eles a síntese? Seja no colóquio ou na conferência, nos quais a idéia sobe da palavra à psique, assim como no estudo silencioso e solitário no qual a idéia emerge da leitura, capacitamo-nos de quais interferências de onda, de quais captações subconscientes e, em alguns casos, de quais imersões em correntes psíquicas a nossa mente é susceptível? Ou atiramos à mente, seja ensinando ou estudando, um alimento que ela o assimila por si, quem o sabe como? E se o pensamento não é como se suspeita, se é, como tenho razões paro crer, uma vibração elétrica em ondas ultracurtas, de comprimento da ordem de um mícron? A que revoluções, aplicações, métodos psíquicos, didáticos e escolásticos, poderia tudo isto nos levar! E se a ciência abrir as portas deste mistério que é a psique humana, que coisa será o estudo e a escola no ano 2.000 ou 3.000? Fantasias pueris e distantes? Não creio.

É um fato verificado, para quem possua o hábito da criação intelectual, que esta não resulta absolutamente das vias da consciência normal cotidiana, que nos é tão útil nas necessidades e correlações da vida. Parece que o progresso da racionalidade consciente e reflexa esteja como que suspenso, porque, para as construções superiores, um mecanismo mais íntimo e complexo deva ser posto em movimento, confiado a uma parte mais profunda do nosso eu, onde a consciência e a vontade chegam com luta, ou absolutamente não chegam. Estas coisas não são novíssimas e estranhas, mas velhas como o homem. Somente ainda não foram analisadas cientificamente. Há muito que os poetas possuem as suas musas e os músicos a inspiração. Wagner, no seu diário de vida veneziana, falava de um louco — o seu Tristão: — "Aquele louco surgiu-me claramente; eu o transcrevi rapidamente como se o conhecesse, há muito, de memória". Perosi diz que o compor é para ele uma necessidade impulsiva de temperamento. Chopin compunha numa espécie de êxtase. Não são, talvez, os artistas, antenas sensibilíssimas estendidas no infinito, aptas a registrar vibrações misteriosas? E não são todos assim? Penso em Mussorgsky, em Rimski-Korsakov, Stravinsky, Ibsen, Dostoievski etc.; e não sei por que me vêm á mente justamente nesta hora. É um fato que todas as mentes, sejam de artistas, cientistas ou mesmo santos, cada uma em seu campo, todas as vezes que se projetaram ao alto para arrebatar uma nesga do grande mistério das coisas, verdadeiros tentáculos, que a evolução, em antecipação, atira de encontro ao desconhecido, adotaram qualquer meio que foge á racionalidade comum, que parece coisa pedestre, de uma dimensão inferior, condenada por sua natureza a nunca se elevar acima do plano no qual se move ao infinito o trabalho de análise, sem esperança de síntese.

A minha audácia reside no considerar este método até agora de exceção; deverá ser "normal" por evolução. Não nos provaram e ensinaram cinqüenta anos de materialismo a evolução orgânica darwiniana, e milênios de vida das religiões não nos ensinaram a ascensão espiritual? Unamos estes dois conceitos e teremos uma evolução única, psíquica, como criação biológica. A linha da evolução se delineia, no começo, por tentativas, em casos esporádicos; por acenos embrionários, a princípio supernormais, com uma tendência lenta, gradual e tenaz nas suas normas de exceção. Tratar-se-ia, ao mesmo tempo de um método de indagação radicalmente novo e diferente daquele que o precedeu — dedutivo e indutivo — que tanto criou em toda a ciência moderna; passar-se-ia ao método intuitivo que revolucionaria o pensamento humano. Fantasias, dir-se-á. Se a ciência deseja decisivamente penetrar no íntimo mistério das coisas, é necessário um veículo mais rápido, um instrumento mais agudo que não seja a razão. Por que deveremos crer que a ciência já não saiba dar senão produções mecânicas e nada mais? E porque a inspiração deve limitar-se unicamente às formas artísticas e poéticas? Por que não poderá ser uma nova inspiração filosófica, matemática, social, moral, científica, não excepcional como até agora, mas normal? Por que esta arte de sentir por via imediata não poderá se tornar por evolução o método normal de investigação em todos os campos do saber? Neste psiquismo superior o pensamento é mais potente e nasce espontâneo, sem trabalho e sem fadiga! Que poderá, então, aflorar, do mistério das coisas? É audaciosíssimo, mas não é absurdo pensar na generalização futura do método intuitivo, hoje excepcional.

E quem sabe se, dentro de alguns séculos; não se estude e se aprenda, à custa de métodos de sintonização? A fadiga dos livros seja substituída pelo harmonização vibratória do ambiente? Já possuímos os receptores de radio-televisão. Sabe-se que a matéria é, no fundo, energia e que o pensamento é energia que se transmite por ondas. Não é absurdo quo se possa, sondado o mistério do subconsciente, alcançar a transmissão do pensamento por sintonia.

A sua assimilação dar-se-á, não com fadiga do estudo, mas por recepção de um transmissor funcionando como distribuidor e recompositor do pensamento por via conceptual direta, sem forma de língua ou palavra.

Este método da intuição, pelo testemunho dos que não podiam criar senão pela inspiração, teria a enorme vantagem de suprimir a fadiga. Alguns automatismos do pensamento são já de experiência comum e utilizáveis também como método didático Quem não observou que, aquilo que se leu e estudou à noite, renasce facilmente diante da mente pela manhã? Existe, pois, ao que parece, a possibilidade de confiar ao subconsciente uma tarefa a cumprir independente da vontade, da consciência e, portanto, sem esforço algum. O subconsciente parece ser máquina obediente a que se possa confiar a execução de um mister quando, por um processo auto-sugestivo, lhe tenha sido concedida a ordem. Poder-se-ia desta maneira pensar uma idéia e, depois, abandoná-la porque aquela parte do eu que independe da consciência continua a desenvolvê-la sem fadiga, amadurece-a sem atenção, desenvolve-a e leva-a depois à consciência, mais tarde, completa e adulta. Isto não é absurdo porque, sem dúvida, o eu é muito mais vasto do que a consciência e grande parte dele existe e age além dela. Há, fora do poder desta, um grande reservatório de saber que não aflora senão em casos especiais; há um armazém onde as impressões se elaboram, quem sabe por que processo! Todas as nossas funções orgânicas como a respiração, pulsações cardíacas, movimentos peristálticos e outros, não são confiados ao subconsciente, isto é, a uma consciência que não chamarei inferior, mas pré-formada, na qual os atos, por automatismos, já estão fixados definitivamente?

Isto poderíamos levar ainda mais avante. Admitamos que a consciência não seja consciência, vontade e fadiga enquanto for automatismo em formação e que a tendência da sua evolução, assim como o resultado do seu funcionamento, consistam num estado de estabilização no qual todos os produtos conquistados no trabalho concluído se fixam por automatismo, transformando-se, da tarefa a executar, do obstáculo a superar e da meta a conquistar, em qualidade adquirida, idéia inata, instinto inato na sua personalidade, e nela indestrutível. A que deduções, seja no campo do estudo individual, seja no do ensino, pode conduzir o conceito deste fixar-se por assimilação no subconsciente de todas as experiências, noções e impressões da vida! E o conceito deste processo de estratificação da personalidade em contínuo desenvolvimento e incremento por dilatação da consciência e desta absorção em forma indelével de tudo o que alcança a psique em si mesma como parte de si mesma! Se a ciência soubesse encontrar a via para lançar as impressões no subconsciente, como tenta os meios para penetrar na estrutura atômica, não poderia também, assim como na desintegração do átomo se alcança a energia gratuita — realizar o aprendizado sem fadiga?

Poder-se-ia deduzir uma outra observação: que o estudo não deveria ser somente um processo todo exterior de aquisição de noções. Para acumular noções de fatos, a pura erudição, não bastam os meios de registro mecânico, a começar pelas bibliotecas? Por esta razão, por que perturbar a psique? Isto é tanto mais verdadeiro quanto parece que; da ciência que se aprende na escola, depois que foi toda despejada pelo estômago cheio do aluno, nada é, muitas vezes, levado para a vida. O estudo deveria ser sobretudo a arte de orientação no saber, trabalho de formação da mente e da consciência, matutação substancial de capacidade cultural e não colagem de noções. Em outros termos, deveria ser um exercício tendente à formação do automatismo do pensar; à transformação do ato de pensar, tão exaustivo, incerto e imperfeito nos poucos evoluídos como é a maioria dos homens-crianças, em ato automático, espontâneo, instintivo Tornar-se-ia ato sem fadiga cheio de alegria e irresistível necessidade, como são na sua satisfação todos os instintos, uma vez verdadeiramente fixados na consciência. Explicam-se assim certas paixões raras, mas que existiram e existem, da curiosidade no saber. Casos em que o pensamento representa uma função normal, instintiva, uma necessidade vital, não uma exaustão. Parece, então, que o centro da vida se desloca do nível vegetativo orgânico das paixões, para o nível da concepção e do pensamento. Aí a personalidade vive espontaneamente sem aquele esforço do qual tentam fugir, como diante de um sofrimento, todos os dias com tanta tenacidade, os nossos alunos.

A minha palestra levou-me longe, ao mundo onde os campos mais complexos e novos da ciência convergem e os audazes mais elevados aguardam para investigar, descobrir e concluir. São coisas distantes talvez menos do que se crê, mas coisas do amanhã. Lá se encontra o futuro do pensamento humano e também da escola. A humanidade caminha, entretanto. A psicotécnica, digo-o sem ironia, talvez não seja apenas uma palavra nova, como freqüentemente se usa na ciência, para denominar coisas e velhas noções. São estas expressões necessárias e naturais pois que os movimentos psíquicos, em todos os campos são transformações biológicas. Estes são os fatos. E é uma realidade que este movimento mundial tomou pulso e arrasta o pensamento do mundo com uma força e uma velocidade sem precedente na história.



Um recente volume, Vida de Napoleão, escrita por ele mesmo, tradução italiana da edição inglesa de Murray, de 1817, convida-me a colocar mais exatamente em foco o meu pensamento sobre este grande homem e sobre o seu destino, que é também o destino de um povo e de uma revolução. Isto encerra, em síntese, os acontecimentos de um continente, de um período histórico, de uma idéia social nova e tão vasta que ainda caminha.

Deixo aos historiadores os pormenores dos fatos que não valeriam a pena repetir. Agrada-me, entretanto, investigar por trás deles a fim de descobrir o fio sutil com o qual o destino entretece a vida dos homens e dos povos. Napoleão foi um homem de exceção, por isso nele o destino foi constrangido a falar com mais evidência. Cada vida possui uma lei, mas em tais vidas especialíssimas fala a História.

Não me interessa a pesquisa de estudiosos de coisas napoleônicas, se o livro é de seu punho ou obra de intérpretes. O sabor napoleônico, naquele estilo robusto, nervoso, concreto, existe e isto me basta para sentir-lhe, através da palavra, a figura e o pensamento. Naquele estilo vibra a vontade e a decisão, palpita a potência do homem habituado a ação e a vitória. Por este motivo, li o volume de um fôlego e, apenas concluído, eis que nasce em mim este escrito. Poucos livros sabem excitar em mim reações tais e poucos tenho encontrado assim densos de vida e de conceitos.

*    *    *

Li nas profundezas da vida grande e trágica deste homem os ensinamentos da História! A moleza do reinado enfraquecido de Luís XV, filho degenerado do Rei Sol, perde até a sua última justificação de graça na bondade débil e míope do pobre Luís XVI, vítima da força. A tempestade de sangue se desencadeia, e, do terreno ainda vermelho, nasce uma epopéia heróica e trágica para a qual é chamado como protagonista um desconhecido e humilde corso.

Ele é feito para a guerra; e o destino, que parece sabê-lo, constrange-o a fazê-la e vencê-la. Com a revolução às costas é colocado em situação de não mais poder retroceder. Desta maneira, envolve-se de forças que se somam às forças dos acontecimentos os quais desejam valorizar a sua indiscutível autoridade no meio de uma sociedade que renova a sua construção, as suas condições e os seus quadros. O corpo social que nasce da revolução muda a sua estrutura; abaladas as velhas organizações, há um esforço de reestruturação em procura de novas e estáveis posições, num terreno livre, exigindo homens novos. Sobre o vazio feito pela revolução quanto a cabeças coroadas a História podia escrever: procura-se um chefe. Aguardava-se, todavia, que um chefe se revelasse. Em oportunidades mais naturais do dinamismo social, se as posições fossem bem protegidas e não desmanteladas por revoluções, a História não teria a iniciativa de chamar à  valorização efetiva as qualidades desse homem, fossem elas as mais extraordinárias. Se o terreno não estivesse livre e a História não se encontrasse em expectativa, as leis da vida não concederiam excelsas valorizações ao indivíduo, nem aos puros objetivos de afirmação pessoal.

Sem exagerar em sentido algum, creio que, no duelo entre o homem e a História reina, mais do que na guerra, uma suprema e divina harmonia que os coloca tempestivamente lado a lado para maior rendimento de ambos. A lei universal do menor esforço está presente também no campo social.

No fundo da ferocidade, que havia manchado de sangue o primeiro surto de uma idéia nova, havia alguma coisa de verdadeiro, de justo e de potente. Havia o sentimento de renovação, a explosão primaveril dos renascentes impulsos biológicos, que investiam com decisão e diretamente contra a decrépita forma do velho regime, agora vazio de sua potência substancial e sobrecarregado de incômodas superestruturas seculares.

Evidentemente, a revolução francesa continha princípios; se no início se manifestaram sob a forma mais baixa, isto era porque o objetivo da destruição estava confiado àquele período primordial. Superada a fase necessária da limpeza do terreno pôde Napoleão começar a construir.

No fundo não se trata senão de uma longa e lenta revolução secular, pela qual a organização social se aperfeiçoa continuamente, ascendendo à justiça, conduzindo com os princípios de igualdade sempre mais amplos um maior número de cidadãos com direito à  vida coletiva. Os incidentes de então, as violências e as incompreensões passam, mas o princípio permanece. Resta aquele movimento ascensional, lento mas constante, embora acidentado, das camadas inferiores sociais que sobem, demonstrando conter a mais fecunda reserva de vida que assim aflora a superfície da História sempre renovada nestas obscuras sementeiras.

*    *    *

A História, impregnada das criações graciosas do século XVIII, experimentava um período de guerra e de poderio, exigindo de um Napoleão a força e a vontade para disciplinar a ordem nova que ameaçava naufragar na rivalidade entre as nações, primeira e natural conseqüência do sistema representativo em um povo não antecipadamente preparado. A vida produz em Napoleão a sua nota de força necessária para a sinfonia dos seus desenvolvimentos e utiliza-a no momento oportuno, a fim de completar o seu concerto com as demais.

Delineiam-se aqui os dois momentos da vida de Napoleão: o em que executa a sua missão e esta de pleno acordo com as exigências da História, e aquele no qual surge o reverso. Há lógica na troca de posição da vida de um homem e no desenvolvimento de um fenômeno social. Não se pode discordar de que, enquanto Napoleão sintetizou o esforço de um povo para fixar uma idéia no mundo, as forças da vida não o abandonaram. A idéia revolucionaria voava com as águias contra os velhos sistemas decadentes da Idade Média. Napoleão resume em si o duelo imenso que se travava entre a França e o mundo civil de então. Não havia na realidade senão uma luta universal de idéias, uma tentativa de expansão, como verificamos ainda hoje, em proporções maiores. A coligação da Europa e a França representavam dois princípios em luta. "Napoleão devia completar a revolução, dando-lhe característica legal a fim de torná-la reconhecida e legitimada pelo direito público da Europa". Enquanto batalhou pela aceitação de princípios novos e elevados, o destino lhe foi favorável. É que os chefes, conforme acredito, não são apenas servidores e artífices da evolução, o que já seria grandioso, mas, sobretudo, instrumentos momentâneos e ativos do pensamento de Deus. De acordo com o mesmo princípio, a História afasta os seus grandes homens quando não servem mais aos seus fins. Inutiliza-os quando eles não querem ou não podem mais servi-la. Portanto, ai daquele que atraiçoa a sua própria missão; ver-se-á abandonado pelas mesmas forças que o elevaram a posição de comando.

*    *    *

Aqui se inicia a segunda fase da vida de Napoleão. A força na qual ele havia acreditado, por motivos muito profundos, abandonou-o. A sua vontade movimentara outros impulsos no seu destino, o qual não é fatal, inelutável, mas conseqüência de um feixe de forças sensível ao nosso desejo. Ele havia confundido a sua própria pessoa com a sua missão e a idéia da revolução. O triunfo aparente da força pareceu-lhe a substância, a finalidade do poder; quando era, apenas um recurso precário. Se a França, cansada pelo esforço da revolução, desejava refazer-se sob a proteção da sua espada, após tanta guerra, demasiada guerra, — a guerra pela guerra — acabou por se esgotar. Exaurida a sua função de expandir a idéia, o instinto dos povos negou-lhe cooperação. A semente atirada não exigia, para germinar, tão abundante sacrifício de sangue.

Cristo, que venceu e vence sem a força, em maiores proporções, deve ter sido, com certeza, um enigma para Napoleão. Existe, portanto, uma lei mais geral: um princípio de vida sabe encontrar todos os meios para afirmar-se, quando deve fazê-lo, porque se encontra na estrada da evolução.

Em dado momento, apresentou-se-lhe ao destino uma empresa temerária. Ele, todavia, escolhera a lei da força, que não admite acomodações com os planos da Lei. A força, com a mesma natureza inexorável e desapiedada, agiu contra o próprio Napoleão. Por isto, revivendo o seu caso com maior experiência, nos tempos modernos, sente-se por instinto que o espírito, tanto quanto a força, é elemento necessário de afirmação e de solidez, em todos os empreendimentos humanos.

IMPRESSÕES

Um artigo de Camilo Viglino na “Revista Rosminiana” estimulou-me a expor estas minhas impressões. Elas poderão, talvez, interessar porque partem de um homem que ingressou no magistério no período de sua vida madura e julga com a experiência das coisas humanas; vê e sente o problema da escola através da psicologia com que esta habituado a enfrentar e resolver os mais diversos problemas do pensamento e da vida.

Por escola entendo aqui a escola média, compreendida não como um problema teórico e orgânico, mas como um problema prático. Trava-se a luta do mestre no diuturno contato com a crua matéria cerebral dos jovens. Ele, fadigosamente, ara os campos virgens da inteligência obstinada para atirar no sulco traçado a semente do saber.

Os dois termos da equação pedagógica são: professores e estudantes. Diversos e opostos, com o desígnio de ensino mútuo, porque também os jovens podem ensinar muito ao professor que souber observar, a fim de acumular depois uma preciosa experiência psicológica e conduzir o resultado na pratica do seu apostolado.

Entre os dois extremos deveria, sem dúvida estabelecer-se uma reaproximação psicológica para que vibre a centelha da comunhão espiritual, sem a que a transferencia do saber não é possível. Eis, porém, como me surgiram nas suas diferentes psicologias.

De um lado, o professor. A classe é a sua orquestra, que ele dirige, e a qual transmite não só o impulso cultural que a faz avançar intelectualmente, mas infunde também com o contato contínuo, com exemplo, com método, a própria personalidade, aquela personalidade humana que transparece de tudo e proporciona o seu cunho de ambiente. Na irradiação de sua personalidade as personalidades menores dos alunos, menores porque não estão ainda desenvolvidas e prontas para receber, está o mais alto sentido da escola, está a contínuo, com o exemplo, com método, a própria alma, acima de todas as necessidades formais, como esplendem todas as altas coisas que estão acima das aparências do tempo e da vida Aquela irradiação tende a qualquer coisa de maior, além de elevar as inteligências a um mais alto grau de erudição. Tende a dar aos espíritos o sentido de uma vida mais completa e mais profunda, na qual lampeja um ideal, mesmo que seja expressa na sua mais simples forma de exata observância de dever. Aos olhos do professor o problema do ensino não pode ser tão-somente a mecânica transmissão do saber como o deseja nosso século de eruditos e de especialistas ainda a procura da última síntese, podendo, porém, dilatar-se naquele problema muito mais vasto da compreensão da vida; compreensão que a síntese cultural não pode dar, que nenhum curso ensina e nenhum concurso controla, que não é tanto uma idéia abstrata, uma concepção, quanto um sentido de vida vivida, uma emanação que somente um espírito maduro e profundo pode irradiar, entregando-se totalmente. Abre-se, então, aos olhos do professor, a visão de uma tarefa superescolástica: construção de intelectos e, na transformação da pedra rude em escultura conceituosa e bela, quase a infusão de um hálito da própria alma; construção de homens, um plasmar de personalidade, um criar no espirito com ato superior ao do artista que se exprime na matéria, onde imprime o seu alento humano.

Desçamos agora da cátedra e atravessemos e fosso profundo que a separa dos escolares. Fosso profundo sobre o qual se projetam pontes, como nas antigas fortalezas. Transponhamo-las e observemos o outro extremo da realidade escolástica: os estudantes na sua psicologia oposta.

Enquanto nós, idealistas do ensino, vagamos no céu da religião do espírito, que faz da vida um ato de fé, no campo das belas construções, filhas da nossa maturidade, a maior ou menor turma dos escolares é toda concorde e sempre unida. Mostra-nos que, olhando do outro lado, o nosso conceito pode parecer uma utopia. O ponto de partida do rapaz, como toda a sua psicologia, é completamente diverso. Todos os alunos estão ali com um único instinto, o instinto de suas idades: brincar, divertir-se sem preocupações, alcançar com o menor esforço possível os resultados das notas e promoções para dar o assalto à vida. É a lei do menor esforço. Não tendo sofrido, ainda não compreenderam porque a dor gera a reflexão. A vida, como ingenuamente pensam, está no seu irrefreável impulso para a alegria. Que lhes importa Cícero ou Shakespeare, gramática ou álgebra? Abstrações difíceis, belezas e conceitos para os quais as suas almas ainda não estão e talvez nunca estejam amadurecidas. Que tristeza, que aborrecimento, que coisas indigestas e fastidiosas para serem forçosamente engolidas! Enquanto o professor se arrebata por Goethe ou por Ésquilo, o rapaz se entusiasma pela sua gaiatice, procurando avidamente um momento de refrigério, no que é tão compreendido pelos colegas de sua intimidade! E que peso para o professor dever impor a atenção, falar a quem não o acompanha e que sabe e faz aparentar, por instinto, todos os mais inverossímeis cansaços a fim de fugir à aula. Que sentimento de rebelião, que energia os jovens apresentam para afirmar e impor o seu próprio eu, belo ou bruto, nobre ou baixo, qualquer que o seja! Para tornarmo-nos interessantes, necessitamos descer continuamente aos seus níveis, reduzir o estudo a um jogo, agitado e rumoroso como uma partida de bola, com explosões de sentimentos muitas vezes não elevados e supressão de toda a idéia abstrata. A nobre curiosidade do saber é, todavia, uma exceção, a ponto de vir a ser considerada quase patológica naquela idade.

Para a compreensão perfeita, seria necessário abaixar todas as pontes, encher definitivamente o valado. Do outro lado não existe, todavia, apenas a irreflexão juvenil, mas toda a psicologia diferente da vida, imposição perfeita do instinto. Do outro lado existe a luta pelo ponto, para a promoção, há todo um esgrimir "ad hoc", toda uma realidade diversa, tão férrea a ponto de submergir todas as outras. O escolar ali se encontra a nos lembrar a cada momento a sua maneira de agir. É um implacável “do ut des7” e este é o melhor caso do jovem dito inteligente Ele esta ali a ensinar-nos que o tempo é dinheiro, que a energia psíquica é preciosa, que o melhor é o que chega, de qualquer maneira, primeiro. São as leis da vida, que todo o mundo respira, às quais ninguém sabe se esquivar, nem mesmo de todo, o idealista. Tudo é luta na vida. Com tal psicologia o jovem afronta a escola, com os critérios da vida, mostrando-nos eloqüentemente que não se trata, na verdade, de uma conversa. Através de quão angustiosas dificuldades devemos exaustivamente preparar a estrada para a luz do pensamento!

Concluindo, a minha impressão e que, posto o problema nestes termos, conforme se me apresenta, a habilidade do professor — uma verdadeira arte — consiste no saber abaixar sobre o fosso o maior número possível de pontes, todas, em definitivo, abolindo-o, se possível. Não é, porém, uma arte fácil. Certos estados de calma e de ordem nas salas de aulas são produtos do temor, não da compreensão, mantendo as pontes levantadas. O certo é que, no encontro entre duas tendências opostas, o choque é inevitável e a solução é imposta pela disciplina. É a realidade da vida, que não se pode e não se consegue deixar totalmente fora do limiar sagrado do templo das formações espirituais, que nos acompanha e entra conosco, mesmo onde não desejamos. Esta ali, entretanto, a nossa arte. Saber circunscrever a coação, para afastá-la gradativamente, tendendo para a sua eliminação, de modo a não restar senão a idéia, a imagem do constrangimento ao estudo e ao dever Tornada habitual, depois coisa natural e subentendida, que esvoace, todavia, no ar, invada a atmosfera local, como um pressuposto que não possui mais a necessidade de concretizar-se em fatos. Então, se não a convicção, ao menos a sugestão de ordem e do dever descerá ao espírito do jovem; um novo hálito lhe será fixado para formar o germe de um mais nobre instinto, no adulto. E a nossa arte reside no habituar contemporaneamente os jovens à  compreensão e à comunicação; está no abrir as suas almas à  confiança, despertando-lhes o interesse pelo estudo. Nesta arte está a evolução da educação, que tende das formas antigas de punições materiais às formas de orientação, baseadas na comunhão espiritual. A medida que a sensibilidade se aperfeiçoa, o constrangimento se sutiliza e desaparece, transformando-se no elemento convicção, que suprime o desperdício de energia. É menos oprimente para o aluno, é mais lucrativo para o ensino. O constrangimento não se compatibiliza com o uso do pensamento, de sua natureza livre e espontânea que somente se nutre do contato com outro pensamento livre e espontâneo.

A revolução no mundo é hoje revolução moral. O conceito biológico de vida-luta será substituído por este imensamente mais alto e potente de vida-missão; o conceito de trabalho-vantagem individual será substituído pelo trabalho-função coletiva. O ideal não será mais a palavra abusiva e vazia de outrora, mas a suprema verdade e centelha de ação. Será a potência que fará do mundo vacilante uma civilização nova. Esta idéia introduz na vida dos povos elementos novos e pode ser considerada a base de uma nova fase de evolução biológica. Não é exagero para quem vê com a grandeza da alma as grandes coisas, as coisas imensas do destino e da eternidade, observar nisto a explosão de uma força moral de ordem cósmica. E, se na vida, o ideal devera entrar com o ímpeto de uma avalanche, isto se realizará primeiramente na escola, porque ela é, por sua natureza e tradição, o núcleo e o canal de irrigação, o templo das mais altas missões espirituais.
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7 Do ut des — expressão latina: "dou, para que dês". (N. do T.)