Aquele era o mundo a que cumpria descer; aqueles os trabalhos que o esperavam. Já não se tratava de colocar, mas sim de resolver a questão do Evangelho antibiológico, de conciliá-lo praticamente com a vida. Mas havia também o reverso da medalha, um outro lado onde conseguir ajuda. Todo este sistema pesa como uma condenação; o mundo está cansado de mentir, de suportar o peso desta desconfiança; procura compreender e luta por libertar-se dela, afrontando fadigas, riscos e revoluções. Já começa a pesar demais o jogo da astúcia e, se fosse possível jogar as cartas da vida a jogo descoberto, mais fraternalmente, mais evangelicamente - que grande alívio seria para todos!

Apesar de tudo, o mundo possui o vago e incerto instinto das coisas superiores; nascido no fundo da alma, há o sentido do bem. Isso sugere uma íntima insatisfação, um desajuste espiritual que o estimula a melhorar-se. O mundo nada mais pode obter da mentira, da luta, da força, da destruição, de tão fatigante sistema de vida sem repouso, de engrenagem tão pouco ágil que, para funcionar, exige o consumo de tamanhas quantidades de energia. No fundo, o mundo detesta a horrenda realidade biológica em que vive, a realidade do "Homo homini lupus17". Tem necessidade e ânsia de bondade e de justiça entre tanta malvadez e injustiça! É como se não se conseguisse nada de belo senão no sonho do ideal, irrealizável, mas ao menos não tão sufocante. A onda do mal que se submerge gera em nós uma reação desesperada para o bem. Há no mundo tal miséria gerada pelo abuso, pela traição, pela injustiça, que a fuga para o ideal é irresistível, embora se saiba que ele é impossível aqui. Proclama-se o seu absurdo e a sua inconsciência com fatos, repetindo-se: "Sede fortes, para vencer". E já não há mais repouso. Invoca-se e procura-se algo diferente deste inferno humano, mesmo que seja o impossível, qualquer coisa a qualquer preço por uma hora de paz. Há um processo de saturação no qual até a terra se cansa de sua própria lei e se rebela, ousando arriscar-se em formas de vida mais evoluídas. E então, a terra odeia o seu ódio, revolta-se contra a sua rebelião, renega-se a si mesma e decide-se a enfrentar o esforço necessário para mudar e obedecer o instinto de subir. Então, o homem da terceira lei é chamado a cumprir a sua missão, já que a lei da vida não é ódio, mas amor, não mentira, mas verdade, não o mal, mas o bem.

É necessário que o homem se canse de sua animalidade, considere insuportável o peso das leis biológicas e que se recuse a obedecer-lhe iniciando, em massa, a obra de elevação dos pioneiros. A lei ascensional da vida é uma, igual para todos e fatalmente, uns após outros, todos sofrerão o seu impacto. A experiência espiritual exposta neste livro, cedo ou tarde, em formas várias, serão sentidas por todos. E isso não pode ser um anacronismo senão relativamente.

Muitos, muitos outros, deverão passar por essas náuseas e por essas reações. Dia virá em que a mentira, levada às suas últimas conseqüências, colocadas diante de uma sensibilidade nervosa e normal sempre mais aguda, tornará insuportável e impossível a convivência social.

A solução não estará na volta ao passado, porque é mais difícil involuir que evoluir. Será preciso enfrentar problemas novos com nova consciência e nova responsabilidade, e será preciso desejar que o desentendimento aumente, para que o homem tenha a coragem de enfrentar o esforço mental e de ação indispensável, para progredir. É necessário que o homem chegue ao mais completo desprezo pelo seu modo de viver, embora sufocado pela náusea de sua própria baixeza. É necessário que o atrito entre as duas vidas contrárias, a interna e a externa - entre o que é e o que deveria ser - leve a um tal cansaço de viver, a um tal desprezo por nós mesmos que fiquemos reduzidos à última miséria espiritual.

É verdade que à vacuidade das teorias que não dão solução completa, o homem tem respondido com a indiferença. Mas já vimos que o suicídio espiritual não é tolerado pelas leis da vida que contra isso se revoltam mais energicamente que contra o suicídio físico. O mundo reagirá como tem reagido o nosso personagem. Pois que o espírito existe mesmo nos que o negam e não se vive de nada, no vácuo, na animalidade. Um dia compreenderão que o mundo é verdadeiramente o que foi chamado ( embora hoje pareça estranho ), o inferno terrestre.

Sem dúvida o mundo está sempre amadurecendo. A maioria, se não conquistou ainda a plena madureza do adulto, certo já perdeu a ingenuidade da criança. Mas hoje há necessidade de substância, de verdade sincera. Os velhos truques já não produzem efeito. O homem sabe o que há atrás dos velhos cenários. É necessário uma verdade clara, honesta, vivida. O homem quer compreender a fundo antes de aderir; sabe que seu espírito é livre e nenhuma vontade poderá dobrá-lo. Já não estamos nos tempos em que se aceitava de olhos fechados o narcótico do ideal administrado para tranqüilizar os espíritos, e os pobres, os vencidos, os deserdados se contentavam com essas consolações destinadas a disfarçar o desespero da pobreza e da renúncia com sonhos místicos de longínqua e hipotética realização. O homem de hoje conquistou uma forma mental crítica e positiva, não aceita as verdades do céu se não estiverem claramente ambientadas e justificadas ante as verdades da terra. Não se trata de mudar a verdade, mas a forma mental. Não basta mudar as roupagens, é preciso mudar de vida. Este livro é universal; não está fechado dentro de um determinado recinto humano. Não se dirige a nenhuma categoria humana em particular, mas a todos os que se sentem em contato com estes assuntos. Já dissemos que as formais categorias humanas não têm aqui nenhuma importância. Este livro não julga em particular, mas deixa a cada um o julgamento de si próprio.

É um fato que as verdades humanas são divididas e rivais, mas trata-se de uma questão de forma. É preciso superá-la e ir direito à substância. Há sempre no fundo da alma humana um instintivo e sincero sentido do verdadeiro em que Deus fala e que ninguém jamais poderá fazer calar. Mesmo contra a nossa vontade é um julgamento espontâneo e divino, irresistível e insuprimível, com o qual a consciência humana exprime o pensamento de Deus.

É preciso apelar para o sentido com que as almas se vêem mutuamente, se compreendem, se julgam, é preciso apelar para esta simples e sadia intuição que é a mais honesta e convincente medida das coisas, sabedoria natural e divina que todos trazemos em nós sem complicações eruditas de estudo. A consciência compreende e se deixa persuadir sem difíceis palavras, por meio das mais simples expressões quando atrás destas há a convicção de quem prega e quando há, ao lado disso, o fato real e concreto do exemplo, porque este sim, realmente, persuade a todos, mesmo sem saber falar. Os recursos de oratória dos grandes oradores são vaidade do mundo, são ofensa ao sentido do bem e do verdadeiro; a pretensão de convencer apenas pela força da lógica é uma tentativa vã, porque o espírito é livre. Impor-se pela força ou por via racional é tentativa de violentar a consciência; é um atentado ao qual ela tem o dever de resistir como realmente resiste por imposição do instinto, para se auscultar a si mesma entre a prepotente palavra do homem e a espontânea palavra de Deus.

Se queremos que o céu desça à terra, que o Evangelho não permaneça um absurdo antibiológico; se desejamos que o progresso se cumpra e a evolução amadureça os povos ( não importa a terminologia com que se exprime o fenômeno ), é necessário seguir a lei sob a qual estava agora o nosso personagem, cuja história não foi narrada aqui para a vã curiosidade dos leitores ou para alegria literária do escritor.

Enquanto sobre a terra se continuar a agir segundo as leis da terra – não importa que ideais se professem, com que luxo de erudição se defendam, e com que coação de raciocínio se imponham – enquanto não se começar a viver, aqui, segundo as leis do céu, este não poderá jamais descer à terra; e o reino dos céus, de que se deu notícia e exemplo, mas que deverá ser construído pelo homem, não virá nunca.

A esmola piedosa que deixa um rico a grande distância do pobre não resolve nenhum problema, não anula nenhuma distância. Os que sabem e podem não esperam reformas, exemplos, julgamentos e deveres dos outros, mas começam por si e se põem a caminho fazendo em silêncio a pregação do exemplo.

Doutos e ignorantes – todos compreendem a realidade vivida, a muda eloqüência do exemplo, a força persuasiva dos fatos. A verdadeira verdade parece que refuga a sapiência erudita e prefere se revelar, sem complicações supérfluas, às almas virgens e simples. Há no homem comum, freqüentemente, um sentido instintivo profundo que parece atingir, quem sabe como, as eternas fontes da vida, um sentido que conhece por intuição e por síntese e sabe julgar sobretudo quando ele se encontra ante a habitual realidade que é feita de ação.

O futuro está no povo, nesse grande reservatório de germes dos quais tudo emerge. Se o povo é o receptáculo de todas as misérias é também a reserva de todas as ascensões. Se é o fundo ao qual tudo desce, é também o "húmus" em que tudo se elabora, onde tudo germina e revive. A evolução é uma lei fatal, em constante pressão – é pensamento, é vontade, é ação. Quer realizar-se e a humanidade hoje está numa grande curva de sua história e todos os homens da terceira lei estão mobilizados, porque representam o princípio ativo do espírito, para fornecer a semente e fecundar o "húmus" do povo. As células nervosas e cerebrais do organismo humanidade devem funcionar plenamente. Não é lícito permanecer adormecido nas velhas fórmulas, seja qual for o campo. Refregas violentas convulsionam o exterior sem alcançar o fervor das maturações interiores. O mundo tem que chegar à fase do espírito. A sociedade caminha sempre do primitivo estado caótico para o estado orgânico e isto impõem a necessidade de confraternização, o que significa o início da aplicação do Evangelho. A luta não pode cessar, mas a sociedade encaminha-se para a organização e a elevação qualitativa da luta, que será conduzida mais organicamente e inteligentemente para finalidades mais elevadas.

Esta organização transforma em parte a lei da luta em lei de solidariedade. A estrutura celular dos organismos prepara-se tanto tempo antes e nos oferece o exemplo que encontramos em forma já completa. Também isto é um início de fraternidade, um pouco de céu que força a terra, aqui descendo e se fixando. O espírito humano se encontra sempre mais a contragosto na ferocidade de formas da vida remanescente do passado e a casca, sob a pressão interior, terá que rebentar. É claro que a velha realidade biológica é resistente; aquele desajuste faz nascer as tentativas destinadas a desenvolver-se e fixar-se na raça. No fundo, o homem é sempre uma fera, mas tem tanta sede de progresso!

A atual crise do mundo deve-se ao contraste entre um passado que não quer morrer e um futuro que não tem ainda força para nascer. Mas a humanidade habitua-se cada vez mais à marcha que leva da desordem para a ordem e se preocupa com a realização da justiça social, como já o predissera o Evangelho. A lei do progresso impõe fatalmente, apesar de todas as resistências, o caminho que vai do egoísmo ao altruísmo, do separatismo á solidariedade, da rivalidade á fraternidade, da mentira à verdade, da barbárie à civilização.

Esta é a lei divina. Ao esforço do homem está confiada a sua realização sobre a terra para chegar ao reino do céu. No plano da criação, Deus quase deu ao homem esse particular encargo. Entre os limites, o homem é o operário, o executor dos planos divinos. A criação é contínua, no futuro como no passado, criação que é evolução ou seja, manifestação progressiva da divindade. Assim, o homem é o verdadeiro filho do Pai, colaborador divino plano da criação. O esforço é grande, mas também o resultado será grande. É como se Deus tivesse dito ao homem: " Vai e trabalha este campo do Universo. Ele já contém tudo: força, sementes, leis, pensamento e energia. Entrego-te. Transforma o caos em ordem – isto significa reencontrar Deus. Provê para ti mesmo; multiplica-te, transforma essa desordem de elementos desencadeados num mundo civil onde tu sejas o chefe. O mundo será como tu o quiseres fazer, como quiseres ser. Serás livre. Quem semear, colherá. Assim realizarás, com a tua obra, a manifestação de Deus, conquistarás o caminho da redenção e reencontrarás Deus. Reconstrói. Esta será a tua redenção. Redime-te através de teu trabalho e da tua dor. Constrói o teu reino e ele será teu e serás rei".

A visão radiosa de um futuro longínquo e melhor apareceu, então, aos olhos do nosso personagem, depois de tantos trabalhos, ao fim do longo caminho. Era o prêmio depois do trabalho, a alegria depois da dor, o reino dos céus depois da cruz. E ele compreendeu que o mundo não era mais um inferno de onde se deve fugir, mas um lugar de criação, onde cada rastro fica impresso e cada esforço frutifica levando a Deus. A nossa construção não pertence ao passado, mas ao futuro e é coisa que temos de realizar sem adormecer sobre as recordações, esperando o sinal e o auxílio do alto. Só os que subiram na escada da evolução e ajudaram os outros a subir não terão vivido em vão. Nenhum pensamento, nenhum ato nosso se perde. Feliz quem semeia o bem e desgraçado quem semeia o mal. E os que não tiverem semeado não colherão. O jogo curto da terra logo termina e resta o jogo a longo prazo do céu. Cada semente, segundo a sua natureza, dará o seu fruto para o bem ou para o mal. Será o nosso fruto, o fruto de nossos irmãos. Só o míope, o que vê a pequena distância da sua pequena vida, pode rir dos modelos ideais com que o mundo antecipa e idealiza suas realizações futuras. Mas esta solidariedade entre as gerações, esta necessidade de coordenação e organização indispensável para a realização da grande obra coletiva, a utilidade da cooperação entre os especializados, segundo suas capacidades – em suma, uma concepção anti-egoísta e anti-separatista, mais fraterna da vida, se impõe também como problema utilitário ao homem de bom-senso e a todos como coisa mais elevada, mas profícua, mais digna.

Dentro de prazos mais longos, uma humanidade mais orgânica, capaz de compreendê-lo e realizá-lo, o ideal se valoriza, perde o caráter utópico e se torna útil, prático, necessário. É fatal que o homem, evoluindo, alcance a consciência, que hoje nem sempre tem, desta mais vasta utilidade. Então ele trabalhará, lutará e se sacrificará por isso como o fazia antes por um pequeno egoísmo pessoal. O homem do ideal, hoje deslocado no mundo, injuriado e condenado, será cada vez mais normal e um povo composto de homens conscientes poderá realizar obra de gigantes. Eles formarão um grupo orgânico que se imporá ao mundo como força diretriz, pelo direito que dá a maturidade e a capacidade de saber cumprir a missão de civilidade. Aos outros, indivíduos ou povos, que continuam raciocinando na medida do jogo curto do egoísmo e da mentira e que tenham gozado depressa a pobre colheita imediata, desprezando e condenando os semeadores dos ideais como utopistas, a estes não poderá restar senão a condição de servos aos quais caberá o prêmio ou a punição com os quais termina a lei de seleção.

O nosso personagem concebera o idílico ideal do céu, mas não o havia colocado "depois" ante a férrea realidade da vida humana. Sua concepção era, agora, completa.

O leitor, embora céptico, que decerto riu primeiro, encontra-se agora diante de uma solidez toda biológica, de que lhe será difícil fugir, pois que nela está a sua própria realidade, como a realidade de todos, o seu caminho, como o caminho de todos. E terá que admitir que não se vive só de pão, que a vida coletiva tem gravíssimos interesses que não se exaurem no campo material e que ninguém está mais insatisfeito que os homens ricos e os povos ricos. Terá que admitir que a progressiva complexidade da vida coletiva precisa, ao lado das massas de nível medíocre, de elementos superiores que não se possam aviltar na normalidade e enquadrar no rebanho sem paralisar as funções fundamentais da própria vida, com danos para a vida de todos. Isso seria para eles o mesmo que paralisar, para a maioria, as possibilidades de nutrição e reprodução. Não compreender, importunar, condenar, explorar aqueles seres é violar e mutilar as leis da natureza que fornecem a cada organismo individual ou coletivo suas células nervosas e cerebrais sem as quais não há diretriz nem evolução no indivíduo como nos povos. Enquanto se condena o tipo superior, a seu tempo todos os alcançarão. Uma sociedade consciente deverá, antes de mais nada, ser capaz de reconhecer estes seres em meio à multidão e deverá ajudá-los, tanto mais que eles não desejam senão poder dar os frutos que valorizam toda a sua vida.

E se a atual sociedade não é capaz de fazer isto, porque as vantagens são para os mais espertos e rapaces, que as sabem conquistar – tenha ao menos o pudor de se calar quando se lembra tarde demais do erro cometido e o queria reparar; tenha a coerência de deixar em silêncio, até depois da morte, que sempre foi desprezado em vida.
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  17- “O homem é o lobo do próprio homem”. (N. do T.)