O nosso personagem voltara-se para as últimas fases de sua vida. O processo de animalização falhara no sentido em que fora tentado e produzira resultados opostos. Desta prova máxima seu espírito saía mais consciente e mais forte. A chama de seu espírito vacilara até quase se apagar sob o sopro gelado; mas o sopro mesmo acabara por reavivá-la. Sentia-se, assim, restituído à fase precedentemente conquistada. Compreendia, no entanto, que não se tratava de uma simples restituição, de um mero retorno.

Uma nova experiência, e bem diferente, passara sobre as anteriores realizações e elaborara algo de novo, uma face inexplorada de si, criando um conhecimento e com ele um novo dever. Escrutava-se para compreender o que significaria, no desenvolvimento de seu destino, o ter superado aquela nova prova a qual poderia ser o seu rendimento. E, no entanto, sentia-se insatisfeito. O passado, embora reconquistado, já não o satisfazia, não lhe bastava. Procurava o que lhe poderia faltar para completá-lo. Havia ali uma lacuna que procurava preencher e tudo isso era a continuação lógica do desenvolvimento de seu destino. A experiência humana dera-lhe nova semente, o germe de um motivo que procurava decifrar e desenvolver.

Começava a distinguir, graças a uma sensibilidade moral mais sutil, como que um sentido de culpa egoísta, em sua mística fuga. E perguntava por que teria sido tão bruscamente truncada sua ascensão mística. Não poderia ela, então, continuar sozinha, ou constituiria de tal forma um perigo, ou teria necessidade de se combinar com algum outro elemento para que não fosse frustrada a sua função evolutiva? Era uma colheita e não é necessário demorar muito sobre os louros. Parar e adormecer é apodrecer. O necessário é atirar-se ao trabalho, começar nova sementeira. Mas como?

Sentia que era restituído às passadas alegrias espirituais, não para continuar no seu plano de fuga e tentativas de evasão da terra. Este fora, afinal, o ponto fraco de sua precedente direção, ou seja, a finalidade, a superação procurada para alcançar, só por si, a própria liberação das dores da terra. Esse era o caminho do Nirvana das filosofias orientais. Mas ele se recordava de que no Evangelho havia algo mais completo e profundo. Que seria? Procurara fugir da terra para o céu. Quase o conseguira e o destino lhe dissera: Não! Procurara, então, livrar-se do céu para se destruir sobre a terra, renunciando à fuga. Mas isto também lhe fora vedado. Para onde dirigir-se então? Certo, muito lhe fora dado, mas em troca de que novos trabalhos? Sentia que não poderia ser mais o homem da fuga. O campo a arar seria, então, a terra? Pesquisou mais profundamente, interrogou o Evangelho e música mais íntima lhe respondeu que mais aceito e completo que o amor que chega a Deus, solitário em sua alegria, é o amor que chega a Deus através de Suas criaturas, através de sacrifício da cruz pela redenção do mundo. Realizara, pois, a prova de cruz pela redenção do mundo, tendo que imergir nele; se queria, agora, reencontrar Deus, teria que passar através do mundo. Já não se tratava de fugir da terra para o céu, como o fizera, ou do céu para a terra, como o tentara, mas tratava-se de assumir uma posição nova e trazer, com seu trabalho e sacrifício, o céu à terra e levar a terra ao céu. É certo que ele já iniciara esta obra, com o abandono da riqueza e a aceitação do trabalho como dever de todos. Mas nisto não vira senão o aperfeiçoamento de si próprio na realização de um ato de justiça. Era preciso ir adiante, saber esquecer-se de si mesmo e, na anulação de todas as metas individuais, ressurgir na vida dos outros. Era preciso abrir os braços aos trabalhos e às dores do mundo, não para ganhar por cálculo egoísta um paraíso particular, mas para auxiliar, em completa ignorância de si mesmo, a todos: amigos e inimigos. Era preciso incendiar-se e arder em amor pelo próximo, às vezes ingrato e repugnante; ter a heróica coragem de cortar as asas anelantes no vôo, para se precipitar abaixo e aí viver até o último alento.

Assim se iniciava para ele uma nova fase ainda mais madura, mais fecunda, uma realização mais completa do verdadeiro espírito do Evangelho. Mas, para cumprir a nova tarefa tivera que, primeiro, conhecer o céu e a terra. A nova fase era a síntese das duas precedentes e nelas se completava, reforçava, ampliava sua missão que os assaltos não tinham podido destruir.

Neste sentido o Evangelho lhe falava e nova ordem lhe vinha de Cristo: era necessário retomar a cruz a carregá-la na terra, seguindo o Seu exemplo, e não por si, mas para o bem dos outros. Esse o grande e novo motivo que ele devia desenvolver: o bem dos outros. Renunciar própria fuga para se deter, agora que havia aprendido a ensinar aos outros. Não fugir só, mas salvar também os outros; não evoluir sozinho, mas com todas as criaturas irmãs. O novo e mais profundo sentido do Evangelho estava neste recuo, sobre os próprios semelhantes, não mais desprezados como inferiores, involuídos, primitivos, mas amados e ajudados como irmãos. Não é, pois, através da fuga da terra, seja em busca de perfeição, mas através do amor ao próximo, que se encontra mais completamente a Deus e se realiza plenamente o Evangelho. O caminho é mais extenso, mas que vastidão de realizações! O antagonismo entre a terra e o céu não existe para que se lute ao infinito, mas é um contraste na mecânica da evolução que se deverá resolver em progresso.

Trata-se de fatos que devem ser compreendidos: o antagonismo acaba por ser reabsorvido pelo progresso - é um meio que se dissolverá quando for atingido o fim.

Ele acreditava que Deus estava no alto, tão longe da miséria humana que para chegar a Ele seria necessário separar-se daquela, esmagando-a, impiedosamente; vira o céu tão longe da terra que acreditara ser necessário abandonar a terra como coisa indigna para poder tocá-lo. Agora via um Deus mais próximo, não já uma negação da vida humana, um poder que julga e condena - mas uma afirmação presente e operante também na terra, uma bondade de pai que sabe descer até aos humildes para amá-los, protegê-los e ajudá-los, a todos chamando para colaborar nesta obra de elevação.

Via, agora, o céu dobrar-se sobre a terra e, enquanto dava de si mesmo o fruto de todas as experiências e os recursos acumulados em meio a tantas provas, corria para colaborar. atirou-se de braços abertos para seus semelhantes e olhou a terra com confiança; céu e terra aparecem-lhe pacificados, unidos numa obra de colaboração. Reapareceu-lhe, então, o Cristo que já vira, um Cristo de mil rostos que, se multiplicava colocando-se ao lado de cada homem e aí permanecendo com aparência diversa, um Cristo muito maior sob o peso desta humanização. Mas só agora compreendia o sentido, antes fugaz, daquela visão que fora como que uma advertência.

Precisava, então, procurar, encontrar, realizar Deus não apenas no céu, mas também no inferno terrestre. Precisava imitar Cristo, fazer com Ele a sua mesma descida. O desafio ao mundo não devia ser mais de desprezo, mas sim de amor. Devia se encaminhar para seus semelhantes não armado como o quer a terra, mas sim como o quer o céu. Da reação que divide, ele devia passar à compreensão que une. A luta deve produzir um resultado benéfico - não guerra pela guerra, pela vitória da terra, mas guerra pelo progresso, pela vitória do céu. Era preciso, com o céu, fecundar a terra, canalizar, numa corrente ordenada, as forças caóticas. A vontade e a força não mais dirigidas à destruição, mas sim à construção. Neste gesto de estender a mão aos seus irmãos sem distinção de inferioridade ou superioridade, podia estar a única conclusão digna da vida de nosso personagem, como também pode ser a única conclusão deste livro.

Nada vale saber vencer por si, se não se sabe vencer pelos outros. Ele devia procurar a sua valorização máxima não mais em si, mas em seus semelhantes. Esta sua nova diretriz correspondia não só à orientação evangélica, mas também à biológica e social. Para ai convergirem todas as vozes, todos os espasmos da humanidade sofredora e todas as ofertas das almas preparadas. Era a síntese da bondade da palavra de Cristo, das necessidades de coordenação social, do anelo evolutivo da raça humana para um mais alto e compacto futuro biológico coletivo. Anular-se para si e reviver nos outros. Esse era, para o nosso personagem, o caminho da maior afirmação de si mesmo nos outros, pois que quanto mais intensamente se viver nos outros, mais se dá e mais possui. Em lugar de exaltar o altruísmo no próximo, o que seria a demolição do seu egoísmo para vantagens próprias, começar a sentir respeito pelo egoísmo alheio, o que seria a demolição do próprio egoísmo para vantagens dos outros.

Fazer, afinal, da virtude algo que começa do próprio dever que dá e não do próprio direito que pede; algo que começa em si mesmo com obrigação e não se dirige aos outros como um pretexto, deles exigindo aplicação para a própria vantagem. Ocupar-se do trabalho positivo de construção do qual tantos fogem e abandonar o trabalho negativo de negação e destruição do qual tantos se ocupam. Se o mundo é mau, ele não devia perder tempo reprovando-lhe essa malvadez, mas devia consumir-se para torná-lo melhor. Tinha que se oferecer em sacrifício para opor um dique à corrente da maioria de egoístas que exigem o altruísmo nos outros para melhor afirmar seu próprio egoísmo. Devia se oferecer para reerguer o exânime estandarte do amor evangélico, o desfigurado princípio do altruísmo; tinha que começar a aplicar o ideal antes de mais nada a si mesmo, como honesto respeito pelo egoísmo alheio, como dever em favor de outrem e não como direito contra alguém. Em vez de pregar o ideal para vantagens próprias, tinha que se dar ao trabalho de conseguir vantagens para o próximo.

O Evangelho pedia-lhe fatos e não palavras. A própria razão lhe dizia que não se pode chegar à atuação do altruísmo através de uma absurda e antivital supressão dos egoísmos necessários à vida, demolindo as necessárias defesas biológicas - mas apenas através da dilatação destes mesmos egoísmos. Realmente, o homem é espontaneamente altruísta naqueles casos em que vê a si mesmo nos seus semelhantes. O ver os outros em si mesmo, em ampliação sempre progressiva, é o verdadeiro caminho biológico e evangélico para chegar ao altruísmo.

O motivo final de sua vida não podia ser senão este: "ama o próximo como a ti mesmo". Já vimos a profunda significação evolutiva desta ordem evangélica. Só assim podia agora sair realizando a aplicação total do Evangelho. Era a sua última fase e a substância de sua ressurreição.

Mas a atuação de tudo isso não era fácil. Ele, que experimentara o mundo, compreendia agora todas as dificuldades de sua nova tarefa. O gesto era lindo e entusiasmava-o, mas a execução era dura, cansativa, esgotante. Agora que ele atravessara a experiência terrestre, compreendia a que homens devia se dirigir e sabia que terríveis experiências continha a realidade biológica. A dedicação altruísta, quando não é falsidade e retórica - é um grande sacrifício e estrada de martírio. E, seguramente, toda a sua extenuante fadiga ficaria confusa e submersa na grande maré da mentira humana; o seu esforço para o bem seria inutilizado pela potência do mal. Por isso, tinha de colocar em segundo plano a divina fuga do místico para mergulhar ainda, depois de ter conhecido toda a sua brutalidade, na infernal experiência humana. Precisava, com ânimo diferente, saber reentrar no impiedoso reino da força e ter a coragem de perdoar, de amar, de compartilhar e atuar. Precisava procurar e saber encontrar Deus, também no lodo. Precisava renunciar ao céu para si, para entrar nele mais tarde, mais forte e com os outros. Precisava abraçar seus irmãos, embora estivessem sujos e repugnantes e nesse abraço reencontrar Deus presente e vivo como em seu céu, ou mais vivo ainda. Heróica renúncia ao Deus dos céus para reencontrá-lo maior no amplexo com a miséria e a dor. Supremo sacrifício da descida para um maior irmanamento. Precisava fazer seus a miséria, o cansaço, a dor do homem irmão - não como o fizera antes, mas como o irmão sobre os ombros, retomar o trabalhoso caminho da ascensão já tentado e facilmente concluído a sós. Precisava deter a própria emersão demasiado rápida, para voltar atrás e fazer sua a grande tragédia da impotência humana para a realização do sonho do ideal, o pressentimento do futuro. Precisava fazer sua a aflição da animalidade que não sabe se superar e oferecer o fruto da própria vida, já agora maduro, para ajudar esta superação e esta libertação. Precisava, livre no espírito, reduzir-se à escravidão na matéria, para oferecer liberdade. Só assim suas anteriores experiências poderiam verdadeiramente dar seus frutos. As forças do seu destino continuam inexoravelmente a arrastá-lo para o seu fatal e lógico desenvolvimento.

Assim, à fuga do mundo, sucedia o sacrifício no mundo e pelo mundo. Era difícil e heróico. Mas se era verdade que ele estava mais no alto, tinha que descer. A superioridade tem os seus deveres terríveis. A vida não pode ter senão este sentido: evoluir e fazer evoluir. O caminho fatal não podia ser senão o da cruz, com o exemplo da paixão de Cristo. Compreendia, agora, claramente a fatalidade da lei biológica da cruz, sem a qual o ideal não vinga. Essa é, já o dissemos, a matemática resultante do encontro das forças do céu e da terra, polarização horizontal da primeira combinada com o dinamismo vertical da ascensão. Compreendia que num só ponto o céu pode tocar a terra esse ponto se chama martírio. Eis a lei e não havia escapatória, se o seu destino era lógico, a sua missão real, a sua superioridade verdadeira. A menos que renegasse a si mesmo, as leis da vida, a palavra e o exemplo de Cristo - o seu caminho era o da cruz.

Era preciso descer, ser novamente incompreendido, ser repudiado. E ele, que já percorrera esse calvário, sabia bem o que isso representava. Precisava ser humano, fundir-se na luta do homem. Mas assim encontrava nova razão de existir, contribuindo para a atividade social. Era preciso anular-se, perder-se no mundo para se reencontrar a si mesmo e a própria missão. Era doloroso. Mas é inegável que no fundo do caminho da cruz haveria a ressurreição. Mas, até lá, quantos deveres, quantos trabalhos! E estes trabalhos e estes deveres de se dar seriam neutralizados pela inércia, se perderiam no mar de indiferença que é o mundo.

Encontrava-se amedrontado ante o instinto dominante de se deixar destruir passivamente por culpa alheia. O ter se abaixado até o indivíduo dava-lhe a sensação de sufocação espiritual. Os inferiores agarram-se desesperadamente, sugam incontidamente o melhor do espírito e o fazem sem remorsos, sem culpa, porque não compreendem e tudo trazem até ao próprio nível, destruindo, demolindo e matando com a inocência da inconsciência. Como alcançar certas distâncias instintivas sem se mutilar a si próprio? Como conseguir se tornar rebanho, mesmo para o bem do rebanho? Como conseguir fazer-se compreender e não ser repudiado, se tudo em si mesmo, o próprio modo de compreender e agir, visto do plano da normalidade aparece tão longínquo e inaceitável? Como resistir com a regra divina, que é dar sempre e pedir nunca, sobre a terra onde a regra é roubar sempre e dar nunca? Como difundir justiça num mundo onde o homem se lembra dela senão quando se trata de satisfazer o próprio egoísmo e as próprias vantagens? Como resistir se, enquanto ele se esgotava de trabalho espiritual, os outros procuravam roubar-lhe todos os recursos materiais, e lhe pediam auxílio, espremendo-o até à exaustão e à miséria? E estavam prontos a tomar-lhe tudo, rindo de seus sonhos e explorando-o em tudo quanto pudesse lhes servir! Como resistir com o método do altruísmo num mundo de egoísmo? Como afirmar onde tudo é negado? Como conseguir viver assim em terra, como uma planta cujas folhas estão soterradas e as raízes fora do solo? Como sobreviver como homem do dever no mundo dos direitos? Sobre a terra exalta-se o dever dos outros porque isso convém à própria vantagem e aos próprios direitos; sustentam-se as virtudes quando praticadas pelos outros; encoraja-se a obediência por ser a primeira condição do comando; invoca-se o altruísmo nos outros, para se servir melhor ao próprio egoísmo. Eis o que, na prática, se faz do ditado "ama o teu próximo".

Era preciso andar por um mundo onde o Evangelho está tão demolido, para reconquistá-lo com o exemplo e com o sacrifício. Era preciso sanas essas híbridas acomodações, essas posições falsas, com as quais a realidade biológica da terra alterou e falseou, para adaptá-la à lei do céu. Tratava-se de enfrentar e dobrar os instintos mais arraigados e resistentes, por serem de mais antiga construção na evolução humana - os instintos fundamentais de ataque e defesa postos pela natureza nas bases da vida.

Como abandonar-se à divina Providência num mundo que diz: "Defende-te ou serás morto"? Como dar garantias sobre os seus lentos equilíbrios tão afastados da realidade da terra, tão pronto a agredir? Como não ficar triturado em tal batalha de egoísmos que não sabem dizer senão isto: "Toleraremos a ti, ao teu ideal e aos teus sacrifícios apenas enquanto eles servirem para tirarmos vantagens de ti. E enquanto tu dás e te matas por um ideal, recorda-te que os outros te louvam apenas para te explorar e com a intenção de transformar o benfeitor em servidor próprio; recorda-te de que os admiradores procuravam tornar regular, normal e estável o teu serviço de concessões altruístas".

Como viver o Evangelho em meio a uma moral que, com os fatos, constantemente e desvirtua? Como resistir com as leis de bondade num mundo onde dia e noite se preocupa explorar os simples e destruir os débeis? E se procuras te libertar para sobreviver e gritas no martírio por não teres mais forças para o suportar, vê que os outros, bem acomodados, não querem renunciar e se escandalizam com a tua fraqueza, com a tua pouca solicitude em servi-los. Com santo zelo, atirem mais lenha ao fogo onde tu te queimas e te consomes; e te animam, para que a tua bela figura moral não se desmereça e continues admirável e edificante para as suas almas. Que magnífico ideal o sacrifício dos outros! Como resistir onde todos te atiram em rosto o egoísmo dos fortes, como a falsa virtude dos fracos, dos ajuizados, onde todos se agrupam em torno daquele que conseguiu, com tanto trabalho, subir um pouco, para agarrá-lo e atirá-lo ao lado de todos.

No entanto, era preciso decidir. Se não queria se tornar um egoísta e um solitário, o contato social com um tal mundo não podia senão assumir a forma de sacrifício. Postas as virtudes em contato com uma realidade invertida, ficam amestradas na arte da astúcia e da mentira. Já não é necessário oprimir e sufocar, mas compreender e educar. Que desastroso resultado chegar, assim, ao oposto do verdadeiro alvo! A realidade não foi dobrada, mas obrigada a deixar-se contorcer. Na verdade, sobre a terra não aparece senão uma triste deformação do céu. A verdade torna-se, então, uma luzinha ainda não descoberta e o ideal, em vez de ser modelo, é apenas uma zombaria. E então os princípios são utilizados como instrumentos de luta, de ataque e defesa, a serviço da realidade biológica.

Surgem então hábeis formas para salvar as aparências! Mas que discurso diferente se faz intimamente, na consciência! Como tudo parece belo para os de fora, ótimo, irrepreensível, honesto! E quanta arte para escapar à ameaça contínua da malignidade do próximo, sempre alerta para surpreender, feliz, quando pode agredir e demolir, especialmente quando o pode fazer sem riso, refugiando-se sob o estandarte da virtude! E assim o ideal, os princípios mais elevados se tornam não só um refúgio dos ineptos, como vemos, mas também um precioso manto de proteção para os parasitas, os ladrões da vitória humana, não lealmente ganha pela força, mas surripiada pela astúcia.

E o respeitável homem deixa o seu castelo bem defendido e fortificado. Ele vem armado de toda a astúcia, sorridentemente, cortês, limpo, impecável, autoritário, fazendo-se idealista e filantropo. Quem acredita nele? Ninguém, porque o jogo é igual para todos. Quem não sabe que a mentira é o método da terra? Todos fingem crer, porque assim está tacitamente convencionado. "Por conveniência", dizem: que deliciosa troca de palavras corteses, de respeitosos obséquios, de altissonantes títulos, de protestos de estima e generosidade fraternal!" Todos exultam em fazer bela figura, enquanto cada um calcula: "Quanto me poderá render este homem?" Porque, de qualquer forma, tudo deve render alguma coisa. E quanto mais importante é o outro ( o resto pouco importa ), mas profundas são as curvaturas, mais apaixonada a simpatia, mais ardente a sinceridade fingida da palavra. E enquanto em público se elevam altares aos políticos e religiosos - em privado se incensa o deus-poder-força-dinheiro. Quem não for vencedor nesta base, não receberá senão escassas palavras de compaixão, devidas por conveniência e será julgado imbecil. Parece que todos sabem quanto a honestidade e os princípios devem ser louvados, contemplados, admirados, invocados e abandonados. Sem dúvida, o homem honesto causa piedade, como se fosse um anormal, e a honestidade é considerada doença da consciência que lhe paralisa os movimentos. O julgamento é este: "Ele não sabe fazer, é honesto". E, depois de ser utilizado e explorado, não tem mais valor. Os círculos sociais se apressam a fechar-se sobre ele, isolando-o. "Grandes filósofos são os homens que suportam e consolam a desgraça alheia".

E se crêem que o ideal os poderá salvar, pior para ele e para todos os ingênuos que tarde se recordam de que Deus está longe e a luta e a necessidade estão próximas; que Deus está no céu sentado no trono de glória do qual a sua divina Providência não se apressa a descer, porque lá em cima tudo é eterno e o tempo nunca falta, enquanto aqui embaixo se pode comodamente morrer.

Em tal mundo era preciso descer, dar-se e sacrificar-se pelo bem de tais seres, porque, apesar de tudo, o inflexível Evangelho repetia: "Ama o teu próximo". Em que medida? "Como a ti mesmo". Medida máxima, cuja unidade é tomada do egoísmo mais limitado que o homem da primeira lei — egoísmo que se transporta inteiro até ao nível da terceira lei, exigindo a mesma potência e valor. Aquela ordem nos diz que o mais completo egoísmo que o homem conhece deve se dilatar e explodir no supremo altruísmo sem nada perder de sua força. Esta foi a última ordem de Cristo depois da última ceia: "Dou-vos um mandamento novo: "amai-vos reciprocamente. Amai-vos uns aos outros. Amai-vos como eu vos amo, é o meu mandamento. Assim todos saberão que vós sois meus discípulos". Portanto, não há outro caminho para os que desejam ser realmente cristãos, para os que não querem renegar e trair o supremo e o mais profundo desejo de Cristo.