“Durch Sturm empor”16
BEETHOVEN

Já agora, o nosso personagem tinha diante dos olhos, bem clara, a visão da verdade biológica, como da verdade evangélica e podia dirigir com perfeito conhecimento a continuação do seu caminho. Compreendera que, colocado assim biologicamente, o problema se tornava compreensível e que não a erudição, a abstração, os processos racionais, mas apenas o bom-senso prático e o contato experimental com a vida é que podiam oferecer a solução.

Encontrara, assim, na realidade, uma lógica que não é a dos silogismos e compreendera que a sábia resposta do oráculo especulativo de nada serve para a vida prática onde um homem qualquer sabe mais que um grande filósofo. E é este mínimo e sólido bom-senso do homem comum a pedra de toque dos grandes filósofos, o filtro que controla o seu valor prático, a medida de sua atuação. Se o homem da terceira lei não quer que o seu pensamento seja letra morta, deve estar sempre em contato com os homens da primeira e da segunda lei aos quais aquele pensamento se dirige para sua aplicação. Muitos problemas propusera o nosso personagem a estes homens e obtivera a resposta.

Compreendera que era incompleto qualquer conhecimento que não levasse em conta a realidade biológica, à qual todos devem descer para atuar e onde tantos fenômenos falam, revelando seu pensamento diretor e animador. Aí estavam os pioneiros na vanguarda da evolução, os especializados na obra criadora de novos modelos de vida, as células sociais de função nervosa e cerebral, quais delegados da raça para cumprir o específico trabalho de antecipação evolutiva das futuras formas a serem realizadas pelas massas. Compreendera a razão de seu desequilíbrio e de seu fatal destino de solidão e martírio. Mas compreendera também a sua inderrogável função biológica, tão importante como a conservação individual da espécie; compreendera que, apesar de todos os obstáculos, a sua posição era verdadeira e se mantinha inviolável, acima de todas as condenações. Compreendera toda a lógica do complexo fenômeno da redenção humana e a fatalidade de suas leis; compreendera também a que explorações humanas os ideais se haviam de submeter no ambiente terrestre onde tudo se deve prestar, se deseja sobreviver, a produzir o rendimento útil: condição indispensável de sobrevivência na terra. Compreendera que degradação deviam os ideais suportar para que fosse possível sua assimilação na terra e como o homem normal impõe os seus limites e as sua condições, reduzindo tudo, inexoravelmente, à medida de sua própria compreensão; que aviltamento, que deformações são necessárias para fazer descer o céu aos usos comuns da terra, para que o homem comum possa apossar-se dele e utilizá-lo na sua própria evolução! Que imensa resistência oferece a inércia das grandes massas humanas e que dificuldades para vencê-la.

Mas só assim o ideal germina e frutifica. A visão da fatalidade da traição do mestre por parte de seus companheiros, das explorações e acomodamentos humanos, das distorções de consciência, das adaptações deformadoras mas necessárias à aplicação a uma realidade diversa - eis os maiores tormentos do homem que luta pelo ideal.

Não são os discípulos, geralmente, os maiores deformadores? No entanto, são necessários. Ele sofria com esta fatalidade que assalta a criatura mais querida do homem da terceira lei, golpeando-o justamente no coração de seu trabalho.

Chegado a este ponto, o nosso personagem se impunha algumas graves questões:

O ser evoluído tem realmente, e até que ponto, o dever de se sacrificar pelo involuído? Tem o ser inferior, para sua elevação, o direito de tudo abaixar até si próprio e o ser normal o de trazer até seu próprio nível o supernormal, para ascender à sua custa? Quais são as relações entre o superior e o inferior e ao contrário, na hierarquia dos verdadeiros valores da vida que o homem representa? Tem o gênio o direito de se sacrificar, de descer e aviltar sua superioridade em homenagem ao amor evangélico a serviço do próximo? Por que a um homem que sofre não é uma injustiça que outro homem, embora seja um gênio, tente eximir-se, fugindo ao peso da inferioridade, isolando-se no culto único da elevação individual? Ou o super-homem tem o dever de se salvar primeiro a si mesmo, fugindo, se necessário, à normalidade e, para servir à sua própria elevação, terá o dever de se isolar e voltar as costas impiedosamente aos inferiores, deixando-os entregues ao seu triste destino? Este abandono será um dever ou um crime? Se não se devem dar pérolas aos porcos, dever-se-á deixá-los na pocilga? Ou cada aristocrático refinamento no espírito, seja ciência, arte ou santidade, não é um roubo a vida subterrânea dos primitivos e abandonados que pedem fraternal socorro? Por que um homem irmão sofre, tem-se direito à isenção de sua dor e à tentativa de fuga na alegria do triunfo espiritual do próprio e egoístico superamento? Pode-se, diante de um ser involuído, pensar primeiro e somente na sua própria involução? Deve-se, então, ser impiedoso e deixar para trás os que valem menos, para que estejam à frente os que valem mais? Na luta entre homem e super-homem, quem tem mais direito à vida? Até que ponto a piedade se pode impor à justiça e qual será o limite dos direitos do amor ante os direitos do progresso? Que valerá mais, biologicamente, a evolução ou o altruísmo evangélico? E a qual deles dar a preferência?

Orientemo-nos. Todos os homens se podem individualizar, agrupar e distinguir segundo as três leis biológicas que, como vimos, presidem ao funcionamento da vida. Estas três leis são os três planos ou níveis de altura do edifício da evolução. Destes três planos, os homens que neles estão situados e os representam, mantêm-se em posições diversas pelas quais lutam mesmo sem o perceber. Mas é uma luta de seres que se procuram porque têm necessidade de se unirem, já que não podem existir senão vivendo no mesmo edifício. Cada homem luta para defender e afirmar os valores da própria lei, porque neles está a sua própria função vital. A vida é sempre luta que forma as qualidades, reforça as posições e as defesas, garante os valores reais. Assim os homens de cada uma das leis são rivais entre si, porque cada um vê apenas o seu próprio campo, acredita-se no centro da vida e, no impulso pelo cumprimento do próprio destino vital, é levado a invadir o campo dos outros, chocando-se com eles. Todos se acreditam reciprocamente e cada um não tem valor senão em seu lugar: o normal da 1ª lei pensa na conservação individual com o seu egoísmo, o da 2ª lei pensa na conservação coletiva e na reprodução; ambos, porém, não se preocupam com o progresso social, que é o escopo do homem da 3ª lei.

Mas se o super-homem não se encontra com o normal, representante dos seres humanos mantidos em vida pela proteção necessária e salutar do seu egoísmo, o normal que, com o seu instinto de reprodução, não frustrasse a obra da morte provendo a continuidade da raça - com que material poderia ele trabalhar? Nada teria para plasmar, para fazer progredir, para imprimir sua própria visão de um mais elevado modelo de vida. Sem os menos evoluídos, ele seria um solitário pregador no deserto e não poderia realizar a própria missão. Mas, do lado oposto, se os normais não se encontrassem com o supernormal que conhece, antecipa, guia e, reservando-se a função cerebral e espiritual da vida, o faz progredir - também todo o seu trabalho seria estéril e sem sentido. Tal é o edifício das funções da vida. Coloquemos cada coisa em seu lugar neste edifício e teremos respostas para as perguntas precedentes.

Em primeiro lugar, para cada homem segundo a sua natureza, lei e posição no edifício, é um dever a realização da própria função vital. É um dever para cada um alcançar o máximo rendimento da própria capacidade e para cada um o egoísmo de seu nível leva à defesa do cumprimento deste dever. Se os outros, por inconsciência, tentam invadir o seu campo e prejudicar a sua função, ele tem o dever da defesa, pois que, no pleno respeito de todos os representantes das outras forças da vida, ele tem o direito ao respeito a si mesmo pela força que representa e que, como as outras, se deve conservar e frutificar.

Assim, se o super-homem não é compreendido, tem o dever de expulsar os profanadores inconscientes de sua missão, porque seria crime não a impor para seu bem, ceder aos obstáculos, renunciar à utilidade coletiva que poderiam produzir os recursos de sua personalidade. O super-homem que representa o bem de todos seria um traidor de sua função se permitisse que os que não compreendem fossem obstáculos à sua missão. Seu dever é defender o bem de todos que ele representa. Se isto implica para ele o direito à própria defesa e ao próprio trabalho, implica, também, o dever de se dar até ao extremo, de fazer frutificar sua qualidades para o bem geral, está implícito o direito à proteção e ao reconhecimento necessário para que o fruto possa amadurecer, pois que o seu interesse é o interesse de todos.

Portanto, também o super-homem deve lutar pelo que é, na defesa das coisas superiores que ele representa. O espírito de sacrifício, a piedade, o altruísmo evangélico encontram um limite neste dever. Aquele que têm qualidades não têm o direito de sacrificar seu rendimento para o prazer dos que não merecem tal sacrifício, porque, assim fazendo estariam privando dos resultados aqueles que o merecem. O amor ao próximo se torna defeito quando se desenvolve no sentido destrutivo e não construtivo. É verdade que a dor é a grande mestra da vida, mas não basta sofrer - é preciso sofrer utilmente. A resignação estupidamente passiva, o desperdício das próprias energias na suportação paciente de contrariedades é inútil porque moralmente improdutiva. Não é virtude, mas culpa. Não se tem o direito de se consumir para se suportar um choque, nem se sacrificar um nobre trabalho para se renunciar ao necessário. A vida deseja rendimento e não sufocação das qualidades. A dor deve ser escola e instrumento de ascensão e não suicídio. Não deve ser renúncia senão enquanto esta é dinamismo construtivo para o alto. É luta sem piedade para si mesma, porque somente o ideal triunfa. Mas quando do outro lado está o rendimento espiritual, então é lícito o martírio que maltrata o corpo. Não sendo assim justificado, o martírio se torna suicídio. Ao contrário, seria justificada a renúncia a este rendimento por um errôneo senso de sacrifício votado à comodidade do próximo - o verdadeiro suicídio. É justamente a finalidade do bem, o rendimento da ação o que distingue o suicida que foge inutilmente da vida por vileza, do mártir que, pelo triunfo de um ideal capaz de fazer progredir o mundo, se oferece em holocausto.

Concluindo, a moral biológica não tolera esbanjamentos, dispersão ou desfalecimentos; quer cada um corajosamente colocado em seu posto de combate, como vencedor; quer que cada um faça frutificar utilmente para si e para os outros as qualidades que lhe foram confiadas e que ele representa e personifica. Aos que têm qualidades corre o dever de tudo sacrificar por seu rendimento e de defender esse sacrifício, para que alcancem o seu fim.

Finalmente, admite-se apenas o sacrifício evolutivo que conduz ao alto, apenas a queda que leva à ascensão. As leis da vida não admitem que o egoísmo, agindo na defesa do ser, ceda lugar ao altruísmo que é a sua negação, a menos que, em compensação, se consiga adquirir um rendimento que supere ou ao menos valha aquilo que se perde. Um sacrifício louco, um altruísmo simplesmente destruidor, uma perda de utilidade que não consegue ressurgir em alguma reconstrução, é um erro biológico, um condenável ato antivital.

Colocado diante de tais conclusões, o nosso personagem quer orientar-se em nova posição. Ele era inexoravelmente o homem da 3a lei. Sentia-o claramente e não o podia negar a si mesmo. Tinha, então, o dever de aceitar e proteger a sua missão, de dar rendimento completo de acordo com a natureza e capacidade. Enfileirou-se ao longe, atrás dos grandes idealistas. Considerou a situação reconhecendo, em primeiro lugar, suas próprias limitações. Sabia que era limitado e que não lhe competia reformar o mundo, mas simplesmente dar a sua contribuição, fazendo florescer e frutificar aquele pouco que possuía. Não podia compreender o delito de desperdiçar o que tinha e que devia oferecer e daria até ao limite de sua capacidade e de suas forças. Mais não tinha, nem podia. Entre o limite do que era e o além que não sabia ser, queria agir em plena consciência e a fundo, até à exaustão de todas as possibilidades interiores. Tinha o dever desse rendimento máximo dentro do relativo. Além disso não ia o direito de sua própria realização, nem o seu dever de explicação da própria missão. E aqui ele parou, consciente de sua relatividade e pequenez, confiando o resto a Deus. Os anos seguintes seriam para ele uma lenta realização do bem alheio, o que daria à sua vida o máximo rendimento, e um sacrifício de si mesmo que não era suicídio, mas maceração elaboradora de espírito; não uma aniquilação, porque sua morte lenta dava vida aos outros. Morreria, pois, exausto de fadiga, mas satisfeito em sua paixão de bondade e amor para com o próximo, tendo cumprido o dever de nada esbanjar de si - nem um minuto de tempo, nem um grama de força, dando tudo quanto tinha, fazendo tudo o que sabia e podia, tudo utilizado para o bem dos outros. Dados os limites da sua vida, essa mesma era a medida de sua completa realização na oferta e no sacrifício.

Portanto, sua posição agora era clara. Sendo homem da terceira lei devia, em primeiro lugar, aceitar todos os trabalhos e deveres. Oferenda e sacrifício eram regras para ele. Sentia, de resto, que todos os caminhos de evasão, até agora tentados, não exauriam e não resolviam o problema da sua vida de espírito. Era impossível a fuga da terra através da ascensão mística, impossível a sua anulação na tentativa de se animalizar no plano da realidade humana. Não lhe restava senão o caminho da cruz. Os últimos obstáculos, ofensas e condenações não tinham feito, afinal, senão reforçar nele o sentido de sua missão. Sua queda fora profunda e a reação fora enérgica, mas breve, e se exaurira em doze meses. Isso fora necessário para que pudesse resistir a todos os assaltos. Mas a reação continha um impulso de ressurreição, embora iniciada por baixo, e este impulso não se podia deter. A experiência fora útil e ele trazia consigo agora uma nova sabedoria e nova solidez. E as forças do espírito que se moviam no seu destino agarravam-no pelos cabelos para arrastá-lo novamente ao alto, para que tudo se cumprisse. O homem é indestrutível em sua notas fundamentais e o ataque das forças contrárias jamais tem o poder de desviar um destino fora de seu binário. Neste período de prova, conseguira dominar a onda. Era necessário, agora, tornar a sair, por aquela mesma lei de sua vida que primeiro o derrubara. Os assaltos estavam esgotados. Pagara em moeda de dor, ao mundo inferior, o seu preço pelo progresso conseguido. Agora, podia retomar o seu trabalho. E, admirado, observava como o espírito, em vez de se esgotar, temperava-se no trabalho do superamento das provas. E que novos conhecimentos, que nova síntese experimental trazia consigo ao emergir das profundidades do mundo em que fora atirado! A sua fé superara a prova e fora consolidada. Durante um ano ficara cego, no inferno terrestre, mas agora, o vórtice da paixão santa por Cristo apanhara-o de novo. Retomava o caminho nas pegadas Dele para vencer o mundo não com ódio, mas com amor. Recomeçava a sua missão, corrigida, temperada, purificada. Ninguém a poderia destruir porque isso significaria a possibilidade da anulação de um espírito e de um destino. Bastava uma centelha para reacender o velho incêndio, grande demais para acabar assim. Que misteriosa sabedoria das leis da vida se manifestava nestas provas da alma! O retrocesso não fora senão um meio de tomar impulso em direção a novos superamentos no caminho da evolução, para a própria realização e para o bem de todos. Então, Cristo não o traíra, o Evangelho era verdadeiro, ele é que não tinha aprendido o seu significado mais profundo e agora tudo, em vez de desmentido, ficava reafirmado. Agora que viajara tão tempestuosamente pelo mundo podia retomar, plenamente, no mundo, ante o mundo, em completa consciência, a experiência evangélica. Tudo isso lhe mostrava que a ascensão espiritual nem sempre é retilínea e que muitas vezes ela não se consegue senão por ação e reação, como as oscilações de um pêndulo entre o bem e o mal. Não devemos temer as quedas quando temos a paixão da ascese e uma alma ardente e capaz de se reerguer. O terrível é, ao contrário, possuir uma alma inerte, restrita, formal, incapaz de qualquer oscilação, de grandes quedas e especialmente de grandes impulsos de reação. O rebanho em geral está adormecido; ninguém cai por isso, mas também ninguém ressurge. E com grande virtude do não fazer, julgam, escandalizam-se, e tudo desejando reduzir à sua vida negativa, pesam o homem de Deus.

A última palavra que escrevera fora "Silêncio" e mantivera-a. Decidira quebrar a pena, renunciar e escrever, renunciar a compreender e, afinal, renunciar a pensar. Sua vida estava no pensamento e isso significaria para ele o suicídio espiritual, aceitação pelo senso do respeito e do dever da morte da alma. Oferecera a Deus o sacrifício máximo. Impusera-se, sem indagar, os últimos limites. Mas não compreendera que sua vontade não bastava e que não é possível, mesmo que se queira, sufocar o espírito. Deixara-se precipitar, mas não podia se destruir. Sua mente não podia se fechada e, com o tempo, sem mesmo o saber, pelo simples fato de continuar a existir, ela continuou a funcionar, superando, inevitavelmente, os limites impostos, ultrapassando instintivamente a decisão de não pensar e não compreender, elaborando, inadvertidamente, um novo pensar e um novo compreender. Se bem que estivesse armado de retidão e decisão, a suspensão das funções da alma acabou em alguma coisa superior ao seu próprio poder. Certamente as leis da vida não permitem a consumação destes atentados, embora ditados por nobres e heróicas intenções. Não conseguiria fechar o pensamento, que assaltou os limites impostos, vencendo o abatimento e a crise, ressuscitando mais fortalecido. Não é divina a impossibilidade de uma autodestruição, apesar de todas as dores, de todas as adversidades, de todos os assaltos, da própria fraqueza e abatimento e mesmo a nossa vontade demasiado cansada de sofrer? Não é divina a impossibilidade de se anular? Não é, pois, a vida um irresistível superamento contínuo mais forte que nós mesmos? É impossível inverter a essência das coisas.

Assim ele experimentou o funcionamento da lei do equilíbrio que é justiça para os que estão esgotados, indiretamente destruídos, tanto mais quanto menos reagira. Ele compreendeu então o mecanismo da falsificação evangélica pelas leis do mundo que faz a derrota se transformar em triunfo. Compreendeu que além do simplicismo brutal da lei biológica havia outras forças que, mesmo agindo plenamente num mundo mais alto, irrompem também sobre a terra, impondo-se, invisíveis e imponderáveis. Assim, depois de ter sentido o sabor amargo da injustiça do mundo, pode saborear a justiça do céu e compreender a superior potência e a maior estabilidade do equilíbrio das leis do céu ante as leis do mundo. Para os astutos da terra as leis parecem ingênuas; para os fortes são fraquezas. Alguma coisa, nos mais elevados planos da evolução, sentira e registrara o fato de sua queda. Dir-se-ia que, além das aparências, pesara a substância, tendo encontrado, além da forma condenável, uma realidade de sacrifício, um organismo de forças conscientes - interviera em defesa do inviolável princípio da divina ordem da justiça e agira na terra transformando a derrota, a queda, a mutilação - numa ressurreição.

Tudo isto lhe demonstrava como em sua vida, em todas as coisas, além da injustiça superficial havia a inviolável justiça de substância, ou seja, uma ordem que compreende, domina e absorve os elementos de desordem. E tudo isso lhe dava nova e evidente demonstração da verdade prática daquele Evangelho que a terra considera absurdo.

Observava em si mesmo o fenômeno da ressurreição e admirava a fatalidade da lei do retorno a Deus. Deus é invisível e irreal sobre a terra. Quanto mais se desce para o humano, mais sua imagem se reduz, apagada, antropomorficamente diminuída, mas se tornando compreensível, acessível e confortante. À medida que se avizinha do divino, a imagem mais se assemelha ao Deus verdadeiro, fazendo-se também mais alta, abstrata, longínqua, inabordável, já que o espírito se encontra diante de um abismo tão profundo que Deus se desvanece e se perde no vácuo do inconcebível. E o Deus verdadeiro se coloca tão alto que não se sabe mais invocá-Lo, ama-Lo, como Deus antropomórfico, que se sente que não é Deus. E não obstante a imensa distância que assusta os que desejam medi-la; apesar de sua altura e de Sua profundidade e a abstração em que Deus se oculta a ponto de sugerir o ateísmo aos cegos do mundo - que atração para este centro invisível e inalcançável, que necessidade suprema de subir para se avizinhar Dele, para o retorno a Ele, desde que uma vez O tenhamos conhecido! E que cansaços, sofrimentos e lutas enfrentam as almas para O reencontrar! A marcha do progresso do mundo não é senão uma afanosa busca de Deus, uma insatisfeita tentativa de retorno.

Nosso personagem poderia ficar no mundo em que caíra. Algo, porém, o impedia. Não era um inepto, o teria sabido realizar o ataque para vencer pelo sistema da terra. Por que não o queria? Por que não o podia? A rebelião que ele começara morria-lhe na mão. Por que? E tudo pela utopia terrível do Evangelho, pelo insensato amor a Cristo, pela doida fé em Deus. E ele se sobrecarregava ainda como peso de novos deveres e, destemido, retomava, após tantas desilusões, como se nada tivesse acontecido, o velho e cansativo caminho.

Agora que reencontrara o sentido do Evangelho - a realidade biológica na qual acreditara, colocada diante da consciência evangélica, parecia-lhe uma torpe paródia. Apesar de tudo e de todos, surgia em seu espírito a suprema contradição da cruz repelida e amada, martírio e triunfo, longínqua, inatingível, traída, maldita, mas sempre invencível cruz. Em sua luz, ela o fitava, muda e chamava-o, símbolo do trabalho da redenção humana, síntese da superação biológica que leva da fase evolutiva humana à super-humana. E devia agora retomar a tarefa na qual bem sabia estar o único significado da vida. Se não desejava involuir e destruir-se, seguindo o caminho do animal, não lhe restava senão seguir o caminho da cruz.

Que é que acontecera com ele? Como ocorrem estas estranhas maturações que aparecem subitamente como síntese realizada? Sentia-se ressurgir como um homem diferente, tão diferente do que fora no último ano que nem mesmo se reconhecia. Que misterioso reencontrar-se é a vida, sobretudo a vida do espírito, para os seres amadurecidos! É uma revivescência além de todas as mortes, um renascer de todas as crises, um triunfar de todos os abismos. Os velhos germes, em vez de morrer sob a neve, tinham amadurecido e agora germinavam. Em lugar de ficar abatido, o espírito reforçava-se na tempestade. Tais experiências estampam-se tão profundamente na alma que se tornam inesquecíveis e nenhum assalto, nenhuma vicissitude as poderão destruir. E ele compreendeu então a grandeza da divina lei de justiça pela qual, quando uma vez se conquistou uma realidade, esta jamais se poderá perder, e o caminho percorrido, o cansaço, embora estacionados, não se perdem mais. Compreendeu, então, a impossibilidade, para ele, de se animaliza, de descer, involuir; a impossibilidade de a matéria vencer o espírito; de o mal anular o bem. Compreendeu a indestrutibilidade dos valores morais, das conquistas realizadas. As próprias leis da vida se opunham à sua degradação, que seria injusta.

Uma vez elaborado, o eu cedo ou tarde desperta. E o seu despertar não foi o tatear do novato inexperiente, não a trabalhosa conquista do inexplorado - mas o reencontrar-se rápido de quem reconhece o caminho, por havê-lo percorrido. Despertou nele a velha fome do espírito e ele reencontrou e retomou as velhas experiências que já possuía em síntese, porque cedo se lançara pelos caminhos do espírito.

Não começara pela vida física, que é a fase normal da juventude, mas tinha, desde os verdes anos, alcançado rapidamente a plenitude espiritual à qual chega às vezes a maturidade do velho, que tarde demais adquire o sentido profundo da vida.

Assim voltaram-lhe os grandes silêncios, túrgidos de pensamento; reabriram-se os abismos do céu; reacendeu-se o vórtice de sua paixão; voltou a tempestade de seu destino para que reencontrasse, continuasse e completasse o caminho da ascese.
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  16- “Arrastado para o alto pelo vendaval”. (N. do T.)