Um dia, enquanto ele se encontrava neste estado, uma classe de homens julgou oportuno condenar o mais significativo de seus livros. Seu pensamento via-se, assim, rechaçado naquele meio. A notícia colheu-o de surpresa em sua laboriosa solidão, numa triste tarde de novembro. E então renovou o cotidiano exame de consciência e não encontrou no fundo de si senão a sua habitual harmonia com Deus. Sua alma sentiu que nada tinha a se reprovar - e permaneceu em paz.

No fundo, era lógico que, entre tantos pontos de vista, alguns deviam existir que não podiam ter sido previstos. Não lhe fora possível tomar conta de tudo, tão solicitado estava por suas metas e métodos. Não se admirava senão de que a aplicação ao seu pensamento de uma unidade de medida não prevista, tivesse dado aquele resultado. Num exame formal (baseado em que premissas!), que ele não pudera perceber, pois estava inteiramente tomado pela grande voz dos fenômenos, preso à sua terminologia e a uma orientação individual, era natural que concluíssem que ele, feito de substância e não de forma, retinha um mal entendido. "A letra mata, o espírito vivifica." Procurou, por todos os meios, esclarecer; mas o juízo permaneceu agarrado à letra.

Procurou esclarecer, especialmente pela imprensa, que não tinha intenção de se fazer rebelde. Por princípio de ordem, daquela ordem universal em que vivia, respeitava a autoridade, sem indagar, deixando-lhe toda a responsabilidade dos próprios atos. Obedecia à autoridade, dando a César o que era de César e ficando livre, na inviolável liberdade do espírito, para dar a Deus o que é de Deus. A autoridade, seja quem for que a personifique, é um princípio de alto valor, por ser um ponto sólido na organização da ordem cujo fim é a ascensão humana. Demolir esse princípio é atentar contra a evolução. Aqueles que compreendem têm, para com os rebeldes e ignorantes, o dever de dar o exemplo e a obediência. "A autoridade - dizia ele - respeita-se. Se se deve temer e se não se pode obedecer, esquiva-se; mas sempre se respeita." Ele procurou esclarecer em particular; não era possível o entendimento através do espaço e de forma mental, por entre a burocracia intermediária. A sua complexa questão de pensamento e de consciência não se podia resolver formalmente como fora exposta, mas apenas por íntima comunhão de espíritos, em presença de Deus. Ficou esmagado, vendo o seu caso, tão importante para ele, no qual estava o significado da mais intensa paixão de sua vida, tão denso de sacrifício - tratado e resolvido friamente, de acordo com os manuais em vez de o ser com a consciência. Foi-lhe exigida uma clara retratação. Já fizera, voluntariamente, o seu ato de obediência à autoridade, mas a sua consciência lhe proibia isto, que seria, para ele, um suicídio espiritual. Se tinha podido e espontaneamente querido humilhar a sua pessoa, à qual não dava nenhum valor e de quem era dono - não podia abjurar a verdade que valia mais que sua vida e da qual não podia dispor. Compreendeu que, não sendo possível compreenderem-se as duas linguagens diferentes, ele não tinha, também, direito de se autodestruir. Refletia a frase do IV Concílio Laterano: "Quidquid fit contra conscientiam, aedificat ad gehennam"11.

Pela imprensa, não procurou discutir; queria esclarecer. Mas também aqui a compreensão e o esclarecimento lhe foram negados. Não obstante todos os sinceros esforços, o mal entendido se agravou. Os jornais fecharam-lhe as portas. Não teve outro remédio senão calar-se. Um último artigo, no qual voltava à questão para concluí-la foi suprimido por mão oculta do campo oposto. Ele, que conseguira pelo menos ser coerente, sentiu-se abatido com o triste prova de falta de lealdade justamente por parte das pessoas de quem tinha motivos para esperar caridade cristã. Esta verificação foi para ele o último e irremediável golpe. Aceitou sem reagir, mas ficou profundamente abalado. A impressão permaneceu indelevelmente estampada em sua alma. Tudo foi sufocado no silêncio. E silêncio foi a sua última palavra. Renunciou, então, tristemente, a fazer-se compreender, e calou. Perdoou com o Evangelho. Mas que ruína fora feita naquela alma! Acreditara ser seu dever explicar-se sinceramente. Nas suas boas intenções, na sua ingenuidade evangélica, em vez de unificar as almas elevando-as, ele não produzira senão perturbações. E esses fatos atiravam ao seu espírito a semente da dúvida. Sacudiu-o aquela diversa realidade da vida na qual o homem é quem manda. E também aqui o mundo era inimigo.

As apreciações do mundo, diante do fato novo de sua condenação, foram diversas. Qualquer um teria visto aí uma oportuna publicidade para melhor lançar os seus livros. Mas ele não se interessava por tais questões econômicas, que não tinham sentido diante do seu trabalho espiritual. A sua moral lhe impunha fugir de qualquer compensação pelas atividades deste gênero. Ter-lhe-ia parecido uma horrenda profanação mercadejar e vender o fruto sagrado da inefável alegria de poder elevar-se até Deus. Os meios para viver deviam vir-lhe de outras ocupações. Não trabalhava com o espírito para ganhar, mas para realizar seu próprio destino. Por isso, tinha necessidade de o conhecer a fundo. Exigia em pagamento muito mais do que a conquista da riqueza - exigia a conquista das almas. Mas, nada podia fazer senão observar a crescente divulgação de suas obras que, como sempre acontece, foram depois condenadas e nisto viu ele a ação da Providência, que auxiliava a sua difusão. Confortou-se com isto. Se não os homens, Deus, pelo menos, parecia estar com ele e sua missão, não obstante tudo, continuava a se cumprir.

No entanto, aqueles livros iam sendo lidos e estudados e seu pensamento se difundia, sobretudo no campo de onde lhe viera a condenação e isto era importantíssimo para o bem das almas. Não são justamente as batalhas que mais difundem as idéias? A semente fora lançada naquele campo e lá poderia germinar nas almas, pois que não obstante as desconfianças e os preconceitos, a convicção se adquire do modo mais inesperado. Quando se trata de uma verdade, a consciência, que a recebe por intuição, apossa-se dela, mau grado a vontade e a razão, porque já a incorporou, antes que aquelas intervenham. Abaixam-se as barreiras das resistências negativas, que se surpreendem penetradas, antes que o próprio homem se aperceba, sem que se tenha pedido permissão ao acordo das convenções humanas. A consciência, que tem espontâneo o sentimento e o desejo da verdade, incoercivelmente sente, reconhece, julga e irresistivelmente atrai e obriga, por esta atração, a aceitar as coisas que vêm de Deus. É este íntimo e secreto método de funcionamento do espírito, por si mesmo dirigido à verdade e construído para alcançá-la, que explica como a verdade funde automaticamente todas as coerções racionais feitas mais para ocultá-la do que para revelá-la. A verdade penetra, convence e conquista a consciência, não por constrangimento de lógica, ou de luta, mas por atração espontânea e juízo intuitivo da alma. Os processos de raciocínio se reduzem a excitar, na rixa, as razões defensivas da consciência e não podem, por isto, descer em profundidade. Assim, o método racional, por um simples erro psicológico, fica na superfície e jamais persuadiu realmente a ninguém. Deus armou a substância da verdade e protegeu-a do assalto e das armadilhas de todos os sistemas humanos, comunicando-a diretamente ao espírito ao qual fala e que o ouve e compreende muito bem, sem intermediários.

Outros viram, na condenação, uma ocasião para assoprar o fogo, turbar as almas com a semente da rebelião e ficarem de lado. Aqui também o mundo lhe era contrário e ele se rebelou por todos os meios contra esta intervenção. Não lhe agradava aquele sistema das verdades particulares e antagônicas, rivais e agressivas. Não queria se tronar instrumento da psicologia do mundo. Também na defesa e na reação perturbavam-no aquelas realidades tão diversas da vida na qual manda o homem.

Sem distinguir de que ponto particular da psicologia humana, nem de qual das muitas divisões do pensamento humano lhe vinham os ataques, o fato era que a batalha estava travada, era contínua; o mundo se tronava seu inimigo e o assaltava cada vez mais profundamente. E desta vez os assaltos vinham dirigidos justamente contra os centros mais vitais do seu destino, ou seja, a explicação de sua missão. Era esta repudiada, negada totalmente. Nós, que havíamos seguido o desenvolvimento lógico do seu destino, podiam agora compreender que aquela negação significava paralisar cada valor o escopo de sua vida, dar-lhe a morte espiritual. A retratação significaria, para ele, aceitar a morte e ser cúmplice do próprio suicídio moral. A condenação era formal e ignorava estas coisas, que, no entanto, permaneciam. Ela se dirigia contra a sua fé, para a destruir, para atirar ao chão o produto de tanto trabalho e tanto sacrifício, para lhe tolher toda a esperança e subverter a significação de sua vida. Talvez tudo isto não tivesse nas intenções da condenação, mas estava, com certeza, nas suas conseqüências. Tinha o dever do respeito e aceitava a imposição do silêncio. Tudo estava tranqüilo na superfície, mas a preço de que destruições nas profundezas! Não lhe restava senão o recurso de se aturdir, já que não se podia anular.

Acreditara sincera e profundamente e estes resultados lhe demonstravam agora o absurdo de sua fé. Sentia-se traído em suas mais elevadas aspirações. O ataque do mundo conseguira destruí-lo. Para não ver sua fé vacilar e desmoronar, procurava aturdir-se, começando por quebrar a sua pena e renunciar a escrever, a compreender e a pensar. Não querendo se rebelar nem podendo se justificar, não lhe restava senão o caminho da própria destruição espiritual. Saberia ressurgir de tamanho desespero? Acreditara com tamanha força que caminhava em direção a Cristo pela estrada do bem; e agora recebia este golpe dos homens com os quais devia estar em perfeito acordo sobre o caminho da ascensão espiritual! E este ataque chegava, agora que ele fora sacudido por tantas outras coisas, somando-se às suas já graves atribulações. Poderia a sua fé resistir a tanto? E ele invocava: "Meu Deus, por que me abandonaste?"

Que distância da filosofia fácil e feliz dos que tão facilmente se atiram à solução de seus problemas, afogando-os em qualquer gozo material! Diante do mundo unicamente ávido de prazeres, até parecia que ter uma alma, um ideal, era uma anormalidade. A sinceridade, a fé no superamento de todas as misérias terrestres - uma anomalia patológica! Rebelde à vida animal da terra, fora inexoravelmente isolado. As leis biológicas impeliam o homem ignorante à destruição da exceção, da emersão do pântano da mediocridade. O encontro era sempre entre ele e o homem, entre o espírito e a matéria. Sempre o mesmo desafio dele contra o mundo, não importa sob qual aspecto isso se apresentasse. Ele perdoava. Repetia aquele sublime, mas tremendo: "Perdoa-lhes, que eles não sabem o que fazem". Olhava os homens e perguntava: "Serão eles realmente culpáveis de não saberem emergir do plano animal, de que saberem superar as leis da realidade biológica?" E de sua parte, da parte do espírito, encontrava Cristo e a Cristo, desesperadamente, se agarrava. Esta união era toda a sua razão, justificativa e força. O mundo, imerso na luta pela vida, atentava também contra seu refúgio vital. Ele não condenava o homem, cego executor, através dos instintos, das leis da sua vida. Observava a batalha apocalíptica, que se travava entre o bem e o mal, como se fosse não espectador, mas ator. E perguntava a si mesmo: "Por que o encarniçamento da matéria contra o espírito? E por que tem de sofrer a sua hora de trevas e sentir o peso da derrota? Por que aqueles que se elevam mais alto devem atravessar a prova de ser atirados à lama como Cristo sob a cruz; devem ser expostos, inermes, ao assalto do que existe de mais baixo e devem saber resistir às mais ferozes tentativas da demolição? Por que Deus os permite, que significam na sua harmonia os atentados e este dever de resistência dos que estão mais avançados no caminho que vai até Ele? Por que o bem, em vez de ser encorajado, é perseguido? Por que o tormento do justo; por que a condenação justamente de quem é reconhecido entre todos o melhor; por que a impotência da bondade diante da força, a debilidade do evoluído diante da bestialidade do involuído; por que a luta de todos contra todos? Por que a falência do ideal, a rebelião contra ele da parte do mundo que justamente o proclama e venera; por que o terrível trabalho do homem para subir, a luta dentro dele próprio para fugir do inferno e a necessidade de ficar e demorar? Por que o instinto do homem de fazer-se teoricamente um modelo superior para si mesmo e por que a sua impotência prática de realizá-lo?"

Ele se sobrepunha aos atores humanos do drama. Procurava a substância, a significação de tudo. Recordava o drama de Cristo sobre a cruz. Havia, então, uma lei de rebelião pela qual o inferior fareja o superamento que o ofende, que o castiga por sua incapacidade de subir, que o condena como uma derrota no seu dever de se elevar? E isso não lhe deixará outro desejo senão o de se revoltar contra o exemplo de seu maior dever, que ele não soube cumprir. Ou talvez seja o temor do inexplorado, o terror da dilaceração na certeza das velhas estradas; a resistência à vertigem avassaladora do ignoto e do novo; o ódio ao trabalho exaustivo; o instinto de conservação; o horror do vazio; o pavor da descontinuidade da certeza transformada em dúvida, que implica o tormento de encontrar uma nova certeza à custa do próprio risco e do próprio trabalho? É a rebelião das trevas contra a luz. É a luta que, contra o cérebro, está no ventre do mundo. Por que este drama? Por que a verdadeira bondade, a verdadeira superioridade intelectual e moral ofendem tão imperdoavelmente aqueles que a olham de baixo, por não sabê-la atingir? Por que a animalidade humana está tão convencida da própria importância, a ponto de não tolerar superamentos? Ah! Que luta! Que cansaço por haver ousado avançar! Ele sentia-se aterrorizado e desejava a morte. De que servia lutar? Não era contra os homens que lutava, mas contra as inexoráveis leis biológicas de que eles eram o inconsciente instrumento de execução. E como vencer as leis biológicas?

Por mais que se esquivasse aos aplausos do mundo, quem fosse além dos seus íntimos superamentos era acoimado de soberba. Tudo isto lhe era doloroso. A inevitável atitude de solitário não era perdoada. Difícil vencer a repugnância pela descida até o nível da multidão e conseguir desembaraçar-se da posição especial que os outros definiam como soberba. Sentia a injustiça e o peso deste juízo e a tristeza do isolamento conseqüente. E não lhe vinha nenhum auxílio para encorajá-lo a suportar o árduo trabalho. Em meio ao terrível desbaratamento que o constrangia à solidão dos incompreendidos, atentava-se também contra a última alegria que lhe restara - a consciência de sua posição, o íntimo sentido de sua função e missão.

E então, apresentou-se-lhe a nova posição em toda a sua crua nudez. Extinguiu-se-lhe nos olhos a doce miragem evangélica; caiu a venda do seu fascínio e percebeu em que infernal realidade de vida estava jogando. Compreendeu que nova e terrível experiência o esperava. Vivia no mundo; este era quem mandava e o seu reino vencia. Não mais a fuga. Tinha que viver no mundo, pertencer ao mundo, debater-se sob a sua inexorável lei. Tinha que descer ao inferno terrestre. Tratava-se de experiência inteiramente diferente da anterior, complementar e indispensável. Tratava-se de recomeçar e exame, sob nova luz, de todos os valores já conquistados e joeirá-los agora nesta prova de fogo. Estava demasiado exausto para resistir ainda a tudo e a todos. A maioria submergia-o. Ele estava só. Tudo o impelia para baixo: seu cansaço, o abandono do céu, os assaltos da terra. Luta, luta e um dia as forças do espírito abandonaram-no. De qualquer modo, não importava a que preço e com que meios - precisava sobreviver. O barco afundava. Era preciso aliviá-lo de tudo o que fosse dispensável. Quando a vida está em perigo, a natureza se apressa, para salvá-la, a demolir mesmo superestruturas. O edifício, com tanta dificuldade construído, desagregava-se. Era a hora das trevas. Para não morrer fisicamente tinha que reagir a todos os assaltos, com reação puramente humana necessária para sobreviver. As forças do destino chegavam agora em ondas violentas. Era preciso sofre-las atravessá-las, superá-las antes de poder livrar-se delas. Lutar, rebelar-se era a lei do mundo e ele tinha que a aceitar. Precipitando-se do céu luminoso ao palude tétrico, viu-se submergido até ao pescoço. Um feroz riso de escárnio o recebera. Aos seus olhos assombrados a vida aparecia no seu aspecto bestial e ele retomou o caminho com a coragem do desespero. Tornou-se normal. Então compreendeu e foi compreendido. Abandonou a convicção de superioridade, de exceção, de missão; meteu-se na fila, na multidão, lado a lado com os outros e viveu a lei de todos. Sua vida degradou-se até ao plano animal comum e o espírito emudeceu. Por agora, o mundo o vencera-o.
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11 - Quem age contra a consciência, prepara o seu sofrimento espiritual. (N. do T.)