Abandonemos os cegos negativistas. já é tempo que eu prossiga, embora sozinho, na minha experiência do fenômeno. Expus os fundamentos e agora podemos avançar. Inicialmente, enquadrei o fenômeno místico no mundo dos conceitos modernos; depois expus, no estudo do diagrama da ascensão espiritual, o aspecto teórico e científico, a técnica funcional, e dei a demonstração lógica do fenômeno, nos seus vários momentos e nuanças, para que a razão ficasse satisfeita; em seguida explorei o seu aspecto prático, como realização espiritual na metodologia mística e dele ofereci a descrição genérica como uma sensação, referindo-me, especialmente, às experiências dos místicos. Aqui termina minha tarefa de estudioso, de observador racional distinto do fenômeno.

Tudo isto, porém, não é o bastante. Entro no fenômeno, vivo-o e descrevo minha experiência. O que o fenômeno perde, limitando-se como extensão de casos observados, conquista em profundidade de sensação, em vivacidade de expressão, em solidez de experiência. Esta segunda parte é para os que amadureceram. Para aqueles que sentem e podem, por isso, compreender. Esses descobrirão um mundo; os outros não poderão entrar. Alcançamos um campo de misticismo que viverá nestas paginas; um misticismo experimental. Para me ater ao caso visado, deverei assumir a forma pessoal e dizer muitas vezes eu: deselegante, mas necessário, embora me desagrade. Perdoarão, quando virem que estes eus são para os outros.

Temos, assim, uma progressão de realidade, de precisão interpretativa, de. profundidade de sensação: restringir e concentrar-se para ir ao fundo e emergir. Reviverei, nestas paginas, o tormento e a conquista. Ver-se-á numa série contínua de quadros, todo o desencadear da tempestade interior; ver-se-á que tais afirmações não são gratuitas. Ver-me-ão na hora terrível da derrota e do abatimento em que a idéia nos precipita e na hora em que a alma, transposto o limite, consegue ouvir a música divina e canta a glória de Deus. Partirei da minha debilidade e miséria humana, o que me fará mais compreensível. Aparecerá a dolorosa negativa humana antes que apareça a deslumbrante afirmativa divina, a sombra cansada da cruz do caminho que se projeta sobre a terra antes de sua vitoriosa aparição no céu. Veremos, vivida, a realidade das afirmações racionais até agora expostas. Porque esses fenômenos, que muitos negam, ou falsificam, ou condenam, são feitos de asperezas insuspeitadas, de vida humana desiludida, só mais tarde reabsorvidas no êxtase místico. Esses fenômenos exigem constante fadiga da mente e do coração; nunca se conseguem com facilidade; só se desenvolvem na luta de cada momento, com a alma nua no meio da estrada onde se debate a vida. Alimentam-se com a dor própria e alheia, que se torna comum. É necessária a comunhão de sofrimento com os humildes para se obter a comunhão de sentimentos, para sintonizar com o Alto e obter resposta. É preciso empobrecer e descer para se iniciar a marcha. Só por esse meio desusado, incompreendido e não admitido, se alcança o êxtase no grande amor que é a harmonização suprema do espírito nas palpitações cósmicas.

A consciência dos lineamentos e da orientação do fenômeno é aqui, afinal, conseguida. É resultado da parte científica e técnica, como da parte espiritual e descritiva. Minha poesia poderá, enfim, avançar tranqüila sobre esses duplos trilhos solidamente assentados.

Pelas várias sondagens que realizei para estabelecer as relações entre o fenômeno místico e a psicologia normal; para situá-lo nela e torná-lo compreensível e não apenas admissível — ver-se-á com quanta prudência vou avançando nessa psicologia supernormal. Era necessário fazer ver claramente que a mesma pessoa que aqui possa parecer quase louca, sabe, no entanto, raciocinar friamente e domina todo o fenômeno como domina a psicologia normal de que se faz juiz. Compreendo perfeitamente a enorme dificuldade dos problemas abordados, do risco de tão novas afirmações, da minha responsabilidade moral ante a ciência e a fé. No entanto, num e noutro sentido já falei claro e falarei ainda mais claro. Certas afirmativas enérgicas foram e serão feitas em plena razão e lucidez, com a consciência da responsabilidade e das conseqüências. Minha alma esta amplamente aberta a todos os olhares, nestes meus trabalhos, que têm finalidades bem mais altas que culturais e pessoais; e se ela grita é porque tem coisas graves a dizer.

É indispensável extrema prudência quando nos aventuramos a tais campos inexplorados, sobretudo quando isso é feito em forma tão pessoal. Aqui não afirmo e defendo a mim mesmo, mas afirmo e defendo um princípio. E desta idéia podem nascer, no pensamento humano, muitas outras de repercussão grave. Em certos momentos, estas minhas elucubrações assumem importância universal, abrangendo as religiões, a filosofia, a ética, além da ciência. Em certos momentos o seu desenvolvimento excede os limites da exigência editorial, que jamais poderá ser elemento suficiente para julgamento. Às vezes o quadro assume as proporções de tão violento incêndio que os traços fogem da moldura imposta pela necessidade prática e se revelam em sua verdadeira universalidade. Nesses momentos, o traçado que os caminhos humanos quiseram impor ao meu pensamento, surge destruído e o meu conceito nada mais tem de comum com os campos particulares em que parecia enquadrado. E então, eu sou supermediúnico, supermetapsíquico, superbiosófico etc. Estou sozinho, avanço desacompanhado, porque sozinho vivi o meu fenômeno e sozinho assumo todos os riscos e todas as responsabilidades.

É necessária extrema prudência porque os escolhos são muitos. Todos estão atentos, duramente à  espera dos que desejam criar. O pensamento humano, por necessidade de defesa e de sobrevivência, encerrou-se em castelos armados uns contra os outros; não flui livremente, como linfa verdadeira, mas está circunscrito em recintos. Não se admitem idéias que não se apresentem limitadas, aprisionadas dentro de um desses recintos. Eu vôo alto, por sobre os castelos, vejo-os todos. Desejaria que se identificassem na paz e compreensão recíprocas. Não posso descer, porque descer seria entrar para um recinto e ficar prisioneiro. Teria a defesa e a estabilidade da terra firme, mas perderia, com a prisão, a liberdade do vôo. No entanto, devo descer, entrar nos castelos, mas não me conformar com o encerramento na cômoda segurança da verdade aceita e devo caminhar ainda; e, muitas vezes, ver, saber e calar. Tenha-se em conta, nestes meus trabalhos, sobretudo, as muitas coisas que calo.

No entanto, essa prudência seria covardia se no momento decisivo eu me calasse, ou não revelasse todo o meu pensamento, a qualquer preço. Aqui, minha alma está ofegante de cansaço e paixão, aos pés de uma idéia pela qual tudo darei. Nem mesmo as preocupações humanas importam.

Mas a prudência é necessária, sobretudo porque faço sondagens no mistério que pode conter para mim, para a minha consciência, como razão e como fé, grandes perigos. Não são os riscos da incompreensão humana que me atemorizam; são os riscos no terreno divino que exploro e que às vezes me esmagam. Inúmeros e severos exames de consciência são necessários antes que nos aventuremos em certos campos, e antes de ousarmos certas conclusões. Da calma, objetiva e fria análise com que, no volume precedente28  enfrentei o estudo do meu caso, procurando, eu próprio, até onde me foi possível, esmiuçar o fenômeno julgado, primeiramente, exclusivamente mediúnico, tirando-o daquela atmosfera de fantástico e miraculoso que a tantos satisfaz (outro escolho no meu caminho), percebe-se com quanta ponderação devia eu seguir minha áspera estrada. Impus-me naquele trabalho, eu, o intuitivo, desiludido da razão humana, uma psicologia de desconfiança, racional e científica. Os meus trabalhos se desenvolvem na profundidade do cognoscível e do inconsciente e nascem em estranha lucidez do contato da alma com abissais zonas de mistério. A minha consciência racional normal tem que exercer um severo controle sobre estas para mim estupefacientes imersões. Se aquilo que me distingue e em que talvez consista minha chamada mediunidade é ser consciente no superconsciente, sinto emergir em mim, igualmente, baixas zonas de subconsciente que tenho de reconhecer e dominar. Eis porque não aconselho o abandono do consciente ao inconsciente às pessoas que não tenham o superconsciente largamente desenvolvido, e disso não estejam vasta e claramente seguras. De outro modo, a inspiração não será senão o afloramento das baixas regiões da alma.

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28 As Noúres, já citado. (N. do A.)